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Memórias dos corpos sem órgãos nas duas Agdas, de Hilda Hilst

Memories of Bodies without Organs in the two Agdas of Hilda Hilst

Resumo:

“Alguém lhe toca, minha senhora? Ele disse isso.” É uma pergunta que move o conto Agda (1), de Hilda Hilst. A indagação é feita pelo médico de Agda, personagem um tanto deslocada psicossocialmente de sua rede interpessoal. Esse conto faz parte do livro Kadosh, no qual há outro conto com título idêntico, Agda (2). Hilda Hilst representará e expressará dois de seus temas culturais recorrentes: o corpo feminino envelhecendo e a preparação para a morte. As duas Agdas complementam-se nos enfrentamentos às formações discursivas excludentes que tentam submetê-las a subjetivações avessas aos seus desterritorializantes desejos. Em contexto socioestético, analisaremos os dois contos perspectivados por Michel FOUCAULT (2011; 2006a; 2006b; 2001) em relação aos cuidados de si e às tradições de preparação para a morte. Também abordaremos a produção do Corpo sem Órgãos (CsO) e seu corolário psicossocial pensado por Gilles DELEUZE e Félix GUATTARI (1995; 1996), entre outros referenciais sobre transversalidades subjetivas, erotismo, velhice e finitude.

Palavras-chave:
Hilda Hilst; transversalidades psicossociais; erotismo; velhice

Abstract:

“Someone touches you ma’am? He said that.” This is a question that moves the short store Agda (1) by Hilda Hilst. The is made by a doctor who meets a mature lady named Agda psychosocially displaced from her interpersonal network. This short story is part of the Kadosh, in which there is another short story with the same title, Agda (2). Hilda Hilst will represent one of her recurrent thematic movements: the issue of female body in an aging process and preparing to death. The two Agdas complement each other in clashes with discursive formations and social places of exclusion that try to submit them to subjectivations that do not match their deterritorialised desires of active and critical subjective agency before their socius. In this socioaesthetic context, we will analyze the two short stories in the perspective of Michel FOUCAULT’s thoughts (2011; 2006a; 2006b; 2001) on of cares of oneself and the traditions of preparation for death. Also we will emphasize the heterogeneous and multiple production of the Body without Organs (BwO) and its psychosocial corollary conceived by Gilles DELEUZE and Félix GUATTARI (1995, 1996), among other references about subjective transversalities, eroticism, old age and finitude.

Keywords:
Hilda Hilst; Psychosocial transversalities; Eroticism; Old age

Alguém lhe toca, minha senhora? Mil perdões, senhora, não quis dizer, luvas quem sabe, ajudariam? Mil perdões, senhora, não quis dizer, enfim quero dizer que para revitalizar essa espécie de flacidez, assim na sua idade, cincoenta? Cincoenta e cinco? Agda. Hilda Hilst (2002).

Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo - senão você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado - senão será desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado - senão você será apenas um vagabundo. Mil Platôs 3. Gilles Deleuze e Félix Guattari (1996DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “28 de novembro de 1947 - Como criar para si um corpo sem órgãos”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto et al. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.).

Introdução

Kadosh, de Hilda HILST (1973), é uma coletânea que contém quatro contos: Agda, Kadosh, Agda e O oco. Foi publicado inicialmente em 1973, com o título Quadós. Tal obra expressa talvez duas das maiores preocupações socioestéticas e biografemáticas1 1 O conceito de biografema e seu corolário teórico-analítico que vinculam de modo relativamente assimétrico dados da realidade factual com a realidade ficcional podem ser acompanhados no conjunto de obras do narratólogo Roland Barthes; aqui, o conceito é particularmente seguido em Roland Barthes por Roland Barthes (1977). da autora, que tratam das metafísicas religiosas tensamente presentes em nossa cultura e das lembranças enviesadas de sua infância e adolescência ao lado da mãe e, sobretudo, sobre o campo afetivo criado pelas complexas relações afetivas com seu pai, contexto este que também marcará suas subjetivações pessoais, estéticas e suas ações coletivas.

Tratamos, aqui, dos dois contos intitulados “Agda”, sendo que, no primeiro, a protagonista é designada por Agda primeira e, no segundo, por Agda-lacraia.2 2 A distinção e, ao mesmo tempo, a complementação psicossocial entre as duas Agdas podem ser vistas no segundo conto, quando a comunidade local tenta descrever a personalidade da protagonista: “[...] essa primeira Agda teve morte afundada, e que sonhou como ouro, rosais de rosas negras, coisas como touro, não sabemos ao certo, só sabemos que amou de modo impróprio, sem luz e desapego. Que lidava com pássaros e porcos, isso temos certeza porque há gaiolas quebradas e restos de um chiqueiro no fundo do arrozal que outrora era extensão de seu próprio quintal, e que Agda primeira desejou ambiciosa a um tempo só juventude e noviciado, e Agda-lacraia tem muito dessa outra e se fez feiticeira” (HILST, 2002, p. 118-119). As duas protagonistas estão ligadas por várias características, apesar de suas singularidades, mesmo que provisórias, no campo comportamental e relacional: são mulheres que moram em pequenas cidades, como que tivessem optado por ocupar espaços que lhes propiciassem condições de recolhimento psicossocial; possuem comportamentos tidos como atípicos e até mesmo incompreensíveis para a vizinhança interiorana; possuem dimensões subjetivas na constante tentativa de compressão de si mesmas e dos contextos coexistenciais ao seu redor; percebem seus corpos como fenômenos em constante organização, desorganização e reorganização e não apenas como organismos completos diante de uma evolução conservadora que se tem sobre a evolução humana; estão imersas em uma temporalidade multiforme que lhes possibilita uma diferente engenharia do tempo presente; por fim, não são vítimas do determinismo de uma memória que lhes configuraria como frutos de um tempo passado no qual não puderam ser sujeitos ativos na produção de sentidos.

Nesse estudo comparativo, tratamos principalmente da multitemporalidade e dos modos pelos quais tal modalidade temporal constrói memórias variadas, conexas, heterogêneas, por vezes a-significantes e com territórios subjetivos mutantes. Essas características do campo da produção de subjetividades são dispostas na dinâmica que os pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução: rizoma”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.) denominam por rizoma. Assim, temporalidades não apenas cronológicas, mas de ordem também psicossocial, criam as latências em um tempo fértil de possibilidades e de deslocamentos interconectados, que são capazes de propiciar estados mentais e corporais para que as protagonistas compreendam, por meio de estratos semânticos polissêmicos em síntese inclusiva, seu lugar em um socius conservador e resistente a diferentes e novas modalidades comportamentais.

Os dois contos recortados para nossa análise podem ser inseridos naquela dimensão que Roland BarthesBARTHES, Roland. O Prazer do Texto. 4.ed. Tradução de Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1996. pensa como sendo a dos textos literários scriptibles. Tais formações discursivas passariam ao largo da produtividade semântica que a cultura padrão oferece aos seus leitores; textos de recepção agradável, porém sem incentivos para que a recepção se posicione como coautora crítica do universo ficcional/factual que lhe é expresso. Ao contrário do texto lisible, o escrevível pretende trazer o leitor para o campo de tensão no qual o fenômeno literário é produzido e suas implicações nos universos das recepções múltiplas e ativas. A recepção de tais textos, desafiadores e motivadores de ação interventiva, também objetiva, pois, lançar questões de ordem prática que são capazes de alterar as ordens aparentemente inamovíveis das potenciais e potencializadoras realidades inconclusas nas quais estamos insertos/incertos de modo ontológico e pragmático.

Aqueles pesados barcos da memória

Em “Agda primeira”, a narrativa é iniciada por uma admoestação que, inclusive, é marcada por um verbo no imperativo e em caixa alta:

GUARDA-TE AGDA, é tempo de guardar, o fruto dentro da mão, espia apenas, como poderás tocar com a tua mão amarela esse que diz que te ama, esse tênue. Agda, começa o de sempre, cuida dos porcos, limpa o pátio, põe água nos cactos, examina as avencas, os antúrios, lenta lenta caminha, como estás velha há tempos, e tanto nessa manhã (HILST, 2002HILST, Hilda. “Agda e Agda”. In: HILST, Hilda. Kadosh. São Paulo: Globo, 2002. [Queira ler Agda (1) e Agda (2)]., p. 17).

Uma voz um tanto indefinida seria a voz do pai? Da mãe? Da própria consciência reprimida de Agda, que abrirá o tenso diálogo com a protagonista desse primeiro conto. O que ela parece nos oferecer? No universo da primeira Agda temos um enredo aparentemente simples: Agda é uma mulher madura que sente de modo intenso o processo de envelhecimento chegando para si mesma. Está na faixa etária dos cinquenta para os sessenta anos. Mora sozinha em um sítio próximo a uma pequena cidade. Vive um caso amoroso complicado com um rapaz mais novo que ela. Sua rede de coexistência, feita por suas lembranças pessoais, familiares e da vizinhança, aponta para certa intolerância com os seus desejos amorosos, tidos como impróprios para sua fase de vida. No meio de lembranças parcializadas e movidas por complexas afecções, acompanharemos, por fim, a morte da protagonista, que parece cavar sua própria sepultura, dando fim aos embates com os valores conservadores que a temporalidade presente, aparentemente homogeneizada, impõe-lhe.

O conto, portanto, oferece-nos esta mulher madura em instante de crise, vivenciando seus campos desejosos e, sobretudo, no instante em que pessoas à sua volta, como sua mãe e seu médico, alertam-lhe para o fato de que já é uma mulher envelhecida e que deve se portar como o hábito do campo vivencial da pessoa idosa lhe exige. Sua adequação a tal campo parece, no entanto, que não ocorre de modo tranquilo, pois sua atenção quanto ao tempo presente fragmenta-se, levando-a para variados e diferentes tempos passados de convívio infantis e adolescentes com seu pai e com sua mãe. Dessa forma, há na narrativa como que uma amálgama temporal a-significativa, na qual tempos diversificados e contrários parecem conviver de modo simultâneo, contraditório e, mesmo assim, inclusivo.

Vejamos outra situação,3 3 Havemos de observar as peculiaridades que a autora constrói com/em torno de nossa linguagem oficial. De modo usual, alguns procedimentos gramaticais tradicionais são colocados de lado ou remanejados segundo outros ordenamentos. Particularmente, entre tantos outros deslocamentos criativos, a pontuação e seus rigores ortográficos são manejados de modo a colocar em questão a tradição e os limites da linguagem oficial. Tais procedimentos lembram-nos de uma das características do que seria a produção rizomática, aqui no que diz respeito à linguagem, no aspecto intrínseco de forma e conteúdo, quanto à a-significância criadora do campo da liberdade expressiva. Tal reflexão é aquela que seguimos em Deleuze e Guattari (1995). na qual Agda consulta-se com seu médico e recebe o irremediável diagnóstico do envelhecimento4 4 Reflexões da Gerontologia Social e áreas afins nos auxiliam aqui, mesmo que de modo um tanto assistemático, através dos estudos de Simone de BEAUVOIR (1990), Tomiko BORN (2008) e, sobretudo, com o alentado estudo multidisciplinar apresentado pelo Tratado de Geriatria e Gerontologia (Elizabete Viana de FREITAS; Ligia PY, 2016). e da consolidação arbitrária da velhice. Velhice esta que, mesmo precoce, já lhe desloca as perspectivas tanto do presente fugidio quanto do futuro positivo, pois libertador, que já lhe parece inviável.

Alguém lhe toca, minha senhora? Mil perdões, senhora, não quis dizer, luvas quem sabe, ajudariam? Mil perdões, senhora, não quis dizer, enfim quero dizer que para revitalizar essa espécie de flacidez, assim na sua idade, cincoenta? Cincoenta e cinco? Enfim essa espécie de flacidez não tem solução, minha senhora, a música erudita, quem sabe... seria uma distração... a música erudita lhe é indiferente? Não, pelo contrário, doutor, gosto muito, Stochausen e, Verdade? Stochausen está bem, mas quem sabe se Scarlatti não será melhor? Fugas consertos quinzes cantatas? Alguém lhe toca minha senhora? Ele disse isso. Tocaram-me sim, meu pai tu me tocaste, a ponta dos dedos sobre as linhas da mão, o dedo médio sobre a linha da vida, dizias Agda, três noites de amor apenas, três noites tu me darás e depois apertaste o meu pulso e depois olhaste para o muro e ao nosso lado as velhas cochichavam filha dele sim a cabeça é igual, os olhinhos também, bonita filha toda branca (HILST, 2002, p. 21).

O médico age de modo determinista e fatalista em seu diagnóstico e prognóstico. É o típico profissional formado pelo ímpeto da medicamentalização do corpo humano, com o objetivo de assegurar-lhe condições otimizadas de bem-estar psicofisiológico. Tais corpos humanos lhe são oferecidos como um dispositivo maquínico que, se adequadamente controlado, podem ainda ter sua capacidade de produtividade assegurada, mesmo que em patamares mínimos e por meio de rigoroso controle científico. Longe da organicidade humana em toda sua complexidade, a paciente é alertada para a condição que começa a se instalar, a consolidar-se em sua vida. Não é ainda velha, mas também não é um corpo feminino de existência e de produtividades confiáveis pelo mainstream biopolítico de sua condição coexistencial. Haveria, então, de se tomar autocuidados, adequar-se a uma ordem de regimes comportamentais que promovessem o que seria aquela sobrevida e/ou um término de vida civilizado,5 5 Refletimos sobre este contexto vivencial da protagonista amparados pelos últimos estudos de Michel FOUCAULT (2001; 2006a; 2006b; 2011), aqueles que tratam dos cuidados de si, quando da necessidade imposta por um socius conservador à fase do envelhecimento e da finitude humana, entre outras condições humanas de adequação social. Para esse pensador, essa temática e práticas são sistematizadas desde as tradições do mundo grego antigo até nossa contemporaneidade, que ainda sofre influências destas tradições. No caso de nosso estudo, temo que a velhice suponha principalmente a preparação em relação à morte tranquila para a pessoa que sofre o processo e mais tranquila ainda para a comunidade das pessoas que continuam vivas. Ou seja, haveríamos de prioritariamente nos educar para a morte apaziguada que não constrangesse a plateia de familiares, amigos e demais membros de nossa rede de convivência. Para o autor, esta preparação supõe uma premeditação de males e, consequentemente, a consecução do equilíbrio contínuo dos que ficam. Ou seja: “O que confere importância e particular significação à meditação sobre a morte e a este gênero de exercício é precisamente o fato de permitir ao indivíduo que perceba a si mesmo [...] se quisermos, é realmente para este acontecimento como infortúnio por excelência que devemos nos preparar pela meléte thanátou, que constituirá um exercício privilegiado, aquele no qual ou pelo qual precisamente faremos culminar a premeditação dos males” (FOUCAULT, 2006a, p. 579-580). No entanto, como Foucault também pondera de modo crítico sobre essa imposição da “etiqueta do bom morrer”, nosso estudo encaminha-se ao encontro de possíveis deslocamentos de caráter heterogêneo e libertário, por meio dos quais as subjetividades podem se articular no curso de tais fenômenos, sem sacrificar suas afecções, crenças e procedimentos singulares. pela qual teria que lutar e sacrificar-se.

No entanto, como podemos acompanhar no final do fragmento literário acima, apesar do quadro que exige plena atenção de Agda, o narrador dá curso a devaneios que só as profundezas de sensações e afecções paradoxais são capazes de propiciar. Agda lembra-se de sua infância, da trágica loucura de seu pai e dos cuidados que isso lhe acarretam tanto na sua formação pessoal quanto na sua índole perante valores e práticas tidas como transgressoras,6 6 Esse contexto ficcional também nos remete à complexa relação da escritora com a perda precoce do seu querido e frequentemente invocado/evocado pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst. De modo usual, a escritora sustentava que sua obra poética seria uma tentativa de resgatar a memória do pai, oferecendo-lhe condições de permanência imorredoura em um mundo que não soube lhe compreender os comportamentos pessoais e artísticos. Hilda Hilst parece impor às figuras dos homens que amou e com os quais conviveu a imagem desse pai idealizado, com quem pouco conviveu. Apolônio sofria de complicações psiquiátricas e passou grande parte de sua vida internado em sanatórios, sob tutela da própria Hilst. Quando da morte do pai, Hilda passou a morar de vez na Casa do Sol, imóvel construído em parte da fazenda de sua mãe, em Campinas. Assim, realmente parece haver algum elo entre a morte do pai e sua saída da cosmopolita cidade de São Paulo para uma espécie de retiro, no qual começa a consolidar sua perspectiva reflexiva sobre vários temas existenciais, que são expressos em sua vasta e densa obra ficcional. Tanto a relação intensa de Hilda com seu pai Apolônio, quanto as intenções que envolvem a construção da Casa do Sol, podem ser acompanhadas em entrevistas da autora em vários veículos midiáticos brasileiros e internacionais e, em especial, nos Cadernos de Literatura Brasileira, n. 8, outubro 1999. dos comedimentos de sua mãe quanto às tradições familiares, do complexo envolvimento afetivo que tivera com o pai, com a morte deste pai, com os amores e planos para o futuro que o pai lhe fora capaz de prognosticar, quando em estado de híbrida lucidez com desvarios e percepções sobre formas de vida variáveis.

A triangulação amorosa canônica parece encaminhar o mote do conto para o âmbito de um Complexo de Édipo não resolvido. Uma espécie de romance familiar supostamente toma conta da situação do presente conflituoso no qual a mulher amadurecida se encontra. No lugar do insatisfatório rapaz mais jovem, com quem deseja manter relações amorosas plenificadas, surge a figura do fantasma do pai morto precocemente, sendo este responsável por reequilibrar ou dar outro curso qualquer ao estado crítico vivencial no qual sua filha se encontra.

Recolhimento, reflexões sobre tempos passados e suas implicações para as exigências de novas condições psicofísicas parecem formar o lema dessa Agda primeira que se aproxima da segunda, a Agda-lacraia, quando a essa também é exigida tal condição e cuidados pessoais para se compreender os estados da vida, velhice e finitude precoces que são exigidos pelos moradores da cidade interiorana.

Quanto à Agda-lacraia, temos que sua estória se assemelha à primeira no sentido de enfrentamentos comportamentais com essa mesma comunidade provinciana. Ela também é observada, vigiada e controlada pelo conjunto de leis tradicionais que determinam a ordem local. A alegoria e funcionalidade pragmática do panóptico7 7 Acompanhamos o conceito de panóptico, de modo transversalizado, em Microfísica do poder, de Michel Foucault (2001). Na obra, o pensador discute os mecanismos de controle biopolítico montados pelas sociedades modernas e contemporâneas de educação, vigilância e controle sobre corpos e mentes dos indivíduos. Aqui, mais que uma estrutura física coercitiva, como as prisões, sanatório, escolas e instituições afins, o panóptico já estaria inserido na própria engenharia psicossocial do cotidiano de se vivenciar sensações, pensamentos e afecções dos indivíduos inseridos em determinado socius. Sobre processos de subjetivação, cuidados de si e dos outros, bem como nas reflexões sobre a finitude, estamos perspectivados, como já apontamos nesse estudo, por Foucault (2001; 2006a; 2006b; 2011). também ocorrem aí quando a vemos se relacionar amorosamente com três rapazes da aldeia: Kalau, Celônio e Orto. Tal relação questiona a estrutura familiar tradicional de seus vizinhos, incomodando-os a ponto de motivá-los a incendiar a casa de Agda-lacraia. Novamente temos uma diegese aparentemente tênue. Uma mulher dando vazão ao seu campo amoroso, conforme valores e comportamentos historicamente atípicos para seu gênero, para seu locus e para seu socius.

Agda-lacraia nos é apresentada por uma intrincada e arbitrária polifonia montada pelas vozes dos três rapazes, vozes autoritárias, sexistas e excludentes, por sua própria voz e pelas vozes conservadoras da vizinhança que perfazem os espaços de coexistência entre o sítio da protagonista e a pequena cidade.

Pelas vozes dos três rapazes somos levados para o estupor que o comportamento libertário da mulher lhes ocasiona. Para eles, Agda é uma subjetividade compósita: mistura de mulher feiticeira e de mulher natureza. Na primeira conformação, ela é vista como aquela que é capaz de manipular forças primordiais da natureza; na segunda, como subjetividade que se conforma de modo rizomático com animais, com vegetais e com elementos minerais. Os três rapazes tentam dominá-la, pois se sentem atraídos e possuídos eroticamente por ela, mas não compreendem o caráter múltiplo e heterogêneo de seus variados processos de subjetivação. Por isso, planejam destruir o objeto de desejo que não entendem e que não podem, pois, dominar e possuir por completo. Chamam-na, nesse quadro, de corpo-procissão:

Kalau: [...] Orto, Celônio nós três vamos morrer se essa mulher cadela continua viva... escute, Orto... ela é tua quando está lá dentro? É tua, Celônio? Fala. Orto: Uma vez em abril. Celônio: Uma vez antes da lua nascer. Kalau: Uma vez em pleno meio-dia. Eu sei, eu sei, ela te parecia tua, não é? Celônio: Antes da lua nascer eu perguntei se não seria bom sair do vale e subir a colina, a mais alta, eu disse Agda, bom que seria olhar de cima as queimadas e ela me olhou sabendo que não era o fogo da mata que eu queria, me olhou... e um espaço de brasa, um tempo incandescente, corpo de Celônio ligado ao corpo-procissão de Agda. Orto: Corpo-procissão... já sei, a Virgem na frente, depois os caras graduados, depois os de asa, depois o povo... cada um com sua máscara. E quando ela passa a mão no pelo daquele cão idiota... o jeito que ela olha... Tu não tomas parte, entendes? O cão é também uma coisa que está dentro dela, a planta (HILST, 2002, p. 104).

Um teatro de tensas relações amorosas é colocado em cena no espaço do sítio ao lado de uma pequena comunidade conservadora. As duas Agdas se movem, portanto, entre desejos psicossociais libertários e revolucionários, a capacidade da subjetivação feminina tem o poder de cuidar das engenharias de suas subjetivações, e as limitações impostas pelo panóptico conservador e autoritário que envolve tais planejamentos e atitudes, podendo lhe ocasionar inclusive a finitude física de modo precoce.

No contexto crítico de subjetivação proteiforme, observamos que as duas Agdas, mais do que se entregarem aos sacrifícios fatais que a aldeia lhes exige, procuram construir recursos protetivos para si mesmas, nesses tempos presentes que lhes são tão adversos. Lembrar-se-ão de estratégias de enfrentamento e/ou de negociação que asseguram algum tipo de sobrevivência pragmática ou mesmo que alegórica em tais situações? Seria possível o resgate ou a construção de alguma memória pessoal e familiar que fossem capazes de assegurar a abertura de produção de bens, ao menos simbólicos, para algum tempo futuro?

Os devires das latências do presente e as aberturas para o futuro

Em Agda primeira acompanhamos a protagonista em uma espécie de autoimolação - quando ela recebe o diagnóstico do envelhecimento inclemente e, consequentemente, é obrigada a se afastar da vida de produtividade consensual, dedicada apenas aos indivíduos de suposta idade apropriada. Nessa fase, ela recebe a visita do fantasma de seu pai, que lhe conta de suas experiências no além-mundo. Ele lhe conta de suas necessidades de adequação a tal universo metafísico e das ligações que ainda mantém com o mundo dos vivos. No mundo dos vivos, sua preocupação envolve a filha amada, que precisa conhecer certos princípios de sobrevivência em condições adversas. Um desses princípios seria o de montar certa anamnese crítica de si mesma. Uma anamnese diferenciada daquelas dos dispositivos biopolíticos que, por exemplo, a prática médica lhe impusera. Vejamos:

O que, pai? Retrocedes, filha, outra vez a juventude, infância, adolescência, depois o nada, mas vale a pena. Uma única vez e vale a pena. Vais caminhar menina para o nada, mas o mecanismo é mais fácil, aos poucos te identificas com o inanimado, menina-planta, menina-pedra, menina-terra (HILST, 2002, p. 28).

Uma volta temporal se faz necessária para se compreender como determinado processo de subjetivação aconteceu. Tempos passados são ativados para que se monte o percurso de uma evolução humana que vai para além da esfera antropocêntrica. Ao humano também se juntarão lembranças e necessidades da conformação com outros elementos naturais, como o mudo da natureza mais complexa, como aquela tão presente no sítio em que a protagonista habita e convive de modo anímico. As lembranças são aqui, pois, deslocadas e ampliadas do universo pessoal e familiar para uma existência temporal multiplicada, que transforma a ideia consensual que temos sobre o passado.

Mais que um passado singularizado, teríamos um passado multiplicado capaz de produzir, portanto, mais que uma memória.8 8 Aqui reverberam as reflexões sobre memória coletiva, de Maurice HALBWACHS (2006). Para esse pensador, temporalidades variadas produzem memórias variadas. Tais memórias são conformadas nos imbricados campos coletivo, histórico e pessoal; marcando-se, então, o caráter psicossocial do fenômeno, que é a memória. O tempo presente seria então composto por uma multitemporalidade capaz de produzir, por consequência, identidades transversais, nas quais o sujeito, mais que realidade essencializada em si mesma, é performado por várias possibilidades de subjetivação. O processo, no caso, acaba por ser mais ativo e importante que o produto temporário e singularizado que é capaz de produzir.

Na altura de nossas reflexões sobre processos de subjetivação, temporalidades múltiplas e memórias, lembramo-nos das pesquisas que o teórico da literatura Hans Ulrich Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença - o que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2010.) vem desenvolvendo sobre presença, produção de sentidos, temporalidades e novas abordagens dos produtos artísticos, em particular sobre as narrativas literárias. O professor da Universidade de Stanford preocupa-se, entre outros aspectos da produção literária e outros temas culturais, em compreender sobre como conformarmos nosso tempo presente. Para ele, a presentificação contemporânea está excessivamente cheia de fragmentos temporais do passado. Estaríamos, pois, quase impedidos de realmente vivenciarmos nosso ‘aqui-e-agora’ em função de lembranças de histórias, dados, percepções e afecções de tempos passados que insistem em não terminar.

O pensador procura sistematizar esse vasto e saturado tempo presente, no qual dispositivos ideológicos tentam montar engenharias existenciais para um futuro ainda feito por utopias, semelhantes àquelas do indefectível avanço e melhorias naturais da filosofia hegeliana. A história da humanidade naturalmente evoluiria para estágios cada vez mais avançados e satisfatórios para a coletividade. Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença - o que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2010.) questiona esse otimismo filosófico romântico e analisa a presentificação dos produtos culturais, tendo em vista a amplitude e complexidade de um tempo presente, carregado por sobredeterminações de inclusos tempos passados.

Gumbrecht (2010GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença - o que o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio, 2010.) tenta sistematizar o que denomina, mesmo que provisoriamente, latência. Essa ambiência diz respeito aos sentidos que os heterogêneos tempos passados depositam no presente complexo das subjetivações em curso e imersas em situações de ação e reação, em potente velocidade temporal. Tais subjetivações estão inseridas nas redes sociais estratificadas e perspectivadas por diversos vetores temporais, espaciais e culturais. Assim, há como que um projeto para se compreender as camadas temporais que conformam a qualidade multidimensional na qual os agentes sociais estão inseridos. Sobre essa presentificação complexa, que é acionada pelos tempos de passados inconclusos, Gumbrecht (2010) reflete:

Ao invés de cessar de fornecer pontos de orientação, os passados inundaram nosso presente; sistemas automatizados de memória eletrônica têm um papel central nesse processo. Entre os passados que nos submergem e o futuro ameaçador, o presente se tornou uma dimensão de simultaneidades expandidas. Todos os passados de memória recente formam parte deste presente distendido; é cada vez mais difícil para nós excluir qualquer tipo de moda ou música que se originaram em décadas recentes do tempo de agora. O amplo presente, com seus mundos simultâneos, até agora tem oferecido demasiadas possibilidades; então, à identidade que ele possui - se é que tem alguma - faltam-lhe contornos claros (p. 85-86).

O tempo, mais que realidade substantiva inflexivelmente marcada pelos instrumentos de vivências e de esquemas de produtividade coletivas, é visto em sua dimensão de realidade em curso, vivenciada por sujeitos em devires intrínsecos à sua ontologia.9 9 Perspectivamos nossas reflexões também pelos estudos sobre o fenômeno do tempo, feitos pelo sociólogo alemão Norbert ELIAS (2001), em seu, por exemplo, clássico livro Sobre o Tempo (1998). Nesse estudo, além do explicativo cronótopo da construção do tempo cronológico de fundo científico e mecânico, é ressaltada a natureza da esfera psicossocial para a percepção, manutenção e transformações das temporalidades oficiais. Também com Elias (2001) refletimos sobre o despreparo cultural de nossas sociedades contemporâneas, principalmente as de multiculturas ocidentais, em relação às condições/situações pertinentes ao bem-estar coletivo na fase da velhice e às pragmáticas preparações para a finitude humana. A dimensão da produtividade é ressaltada em detrimento do produto provisório e marcadamente arbitrário do ponto de vista histórico.

Cabe, pois, compreendermos como se configuram e, sobretudo, como ocorre a presentificação, mesmo que fugaz, dos produtos de sentido advindos da latência gerada por esse compósito temporal.

Diante da explanação de Gumbrecht sobre multitemporalidades e das latências criadas nos vários tempos de situações e ações em determinado tempo presente, percebemos que, em uma dessas temporalidades possíveis do presente, há de se saber e se poder selecionar quais memórias nos serão úteis para a construção do futuro que desejamos.

Nas situações expressas por nossas duas Agdas, observamos que essa é uma preocupação constante. Que dados do passado deverão e poderão ser ativados para que se compreenda suas situações atuais com a finalidade de sobreviverem aos enfrentamentos e às negociações existenciais assimétricas nas quais estão inseridas?

Agda primeira tem uma ajuda valiosa. O fantasma de seu pai, em dialogismo crítico com a figura materna, emergindo da constrangedora condição de morto de acordo com um quadro psiquiátrico crônico, vem-lhe visitar e alertar para uma condição salutar a ser desenvolvida pela filha. Entre tantas outras providências que aconselha à filha, a central parece ser a de observar como a memória, essa grande capacidade psicossocial de arquivar a vida e, ao mesmo tempo, manter parte dessa vida em fluxo contínuo, pode ser operacionalizada. Eis um dos momentos dessa intervenção fantasmática:

Uma coisa minha filha: está tudo bem, tenho me sentido muito bem, o corpo, você sabe, mas é preciso que diga para sua mãe que ela diga ao médico que a memória... que é preciso me arrancar a memória, você entende? Que os barcos estão pesados demais, colocaram mil coisas, que pedi que esvaziassem os barcos e colocaram pedras, âncoras enormes, assim não posso minha filha, não posso chegar à ilha, e outra coisa, Agda, os sonhos, é preciso me arrancar os sonhos, à noite uma outra vida, uma vida de outros começa a acontecer, me chamam de muitos lados nesses sonhos, tua mãe se recusa sempre nesses sonhos, passeio na escuridão, não vejo os rios e caio, uns ficam acenando, gente que nunca vi minha filha, outros conheço mas não gostaria de revê-los, Agda diga à sua mãe que ela diga ao médico que os sonhos e a memória devem ser devorados, eu ficarei aqui no banco de cimento e alguém vai devorar esses dois, eu vou expelindo assim sonho memória e alguém ao lado vai comendo. Entendeste, Agda? Corpo-limite, contorno repousado ou tenso, até onde o mais eu? (HILST, 2002, p. 22-23).

“Os barcos estão pesados demais, colocaram mil coisas, que pedi que esvaziassem os barcos e colocaram pedras, âncoras enormes.” A alegoria produzida pelo fantasma do pai é revolucionária e pungente. Revolucionária pois funciona como reflexão e aconselhamento que denotam prudência comportamental quanto aos procedimentos humanos diante de memórias que remontam à tradição de certo código de valores humanos. Ou seja, excesso de diretrizes comportamentais impostas pelos variados dispositivos sociais e políticos que possuem intensa força que inviabiliza ou esteriliza possíveis ações inovadoras nos tempos presentes.

Agda-lacraia também passa por esse enfrentamento com uma dimensão do tempo presente que lhe é adverso, como vimos em sua relação amorosa com três rapazes e com a população da cidade interiorana que lhe emoldura o espaço do sítio, que funciona como seu locus de recolhimento, de reflexão e preparação para outros futuros, que não apenas o da morte psicofísica. No caso dessa protagonista, vemos o pedido de auxílio, para um entendimento mais amplo da situação, que é feito a uma espécie de figura que corresponde à divindade máxima do cristianismo.10 10 Existem vários estudos sobre o projeto estético de Hilda Hilst que exploram a temática da metafísica institucionalizada. No entanto, não é nosso intento aqui o de irmos por essa direção. Se tal poética é fértil em tal temática, preferimos observá-la em sua esfera mais humanizada, no que seria uma metafísica positiva, na perspectiva de Arthur SCHOPENHAUER (2000). Para o filósofo, há uma diferença entre a vivência de certa religiosidade natural ao ser humano e a institucionalização dessa religiosidade. O segundo dispositivo fica mais propício à criação de mecanismos compensatórios que podem inviabilizar a ação ativa do indivíduo em suas dialógicas e críticas relações sócio-políticas. No entanto, ao lado dessa figura há a presença discreta de um homem, que seria uma segunda divindade, que estaria assemelhado ao pai, que surge na Agda primeira. Com essa figura, também fantasmática, Agda-lacraia reflete sobre sua postura diante dos tempos passados que lhes são dispostos e sobre sua ação de anamnese, para que se compreenda melhor o que ocorre em seu ‘aqui-e-agora’. Vejamos sua percepção temporal e memorialística:

Sei muito bem, não foi para bordar que me fizeste assim, e a cada dia construo minhas delicadas espirais, e é cada vez mais difícil entender o que expeliste um dia: Agda, constrói infinitas espirais de metal, que sejam muito maleáveis, que apenas com teu sopro se faça o movimento, e hás de ver que o de cima vai para baixo e o de baixo volta à superfície, e entenderás tudo se entenderes isso. Ando tentando. Entender nunca. Ando tentando fazê-las muito muito bonitas, e quando a lua está limpa, os cordeiros da nuvem no outro extremo, entro nas casas para roubar o ouro, depois derreto tudo no meu forno, mais de cem espirais tão delicadas que até o eu passo de fada faz vibrar, entro na casa o pé acolchoado, não respiro, mesmo assim estremecem. E detendo-me, vejo que o que era base aos meus olhos, fica vértice (HILST, 2002, p. 106-107).

No diálogo com tal entidade, observamos que Agda-lacraia percebe a natureza tirânica daquela temporalidade cronológica que baseia as realidades autoritárias de sua rede de relações sociais e políticas. Tal temporalidade seria aquela montada pelas memórias da tradição de instituições coletivas que determinam as possibilidades efetivadas pelos processos de subjetivações. Agda-lacraia tenta construir delicadas espirais – no que a entidade a corrobora, lembrando-a de construir infinitas espirais de metal que sejam maleáveis e que tenham movimento. Sabemos que a espiral é uma figura que alegoriza certa percepção de tempo. Ou seja, aquela temporalidade que, apesar de parecer repetir-se ad infinitum, é capaz de produzir transformações em seus deslocamentos. Tradição e inovação estariam, pois, em dinâmica dialética, sem que um dos termos contraditórios tenha de eliminar completamente o outro. Assim, que tipos de subjetivações transversalizadas tais movimentos temporários são capazes de construir?

Memórias transversais dos corpos sem órgãos

Em as duas Agdas, acompanhamos um constante e vigoroso processo de transformação psicofisiológico das protagonistas. Diante seus desejos interditados, as relações amorosas e a chance de coexistência pacífica com a população conservadora, as duas são lançadas em exercícios de fragmentação, de deslocamentos e de intensos devires animais, vegetais, minerais e coisais.11 11 Por devir, acompanhamos as reflexões de Deleuze e Guattari (1997) que consideram o fenômeno como o poder de identificação contínua, e sempre em fluxo, entre seres humanos e demais seres; sejam seres do mundo humano, do animal, do vegetal e do mineral. Para tais pensadores, o devir não acarreta a formação de identidade positivamente substancializada advinda da conexão feita entre os dois seres, mas a possibilidade de um identificar-se com as outridades de modo transversal, sem que isso ocasione a interrupção dos ontológicos movimentos de subjetivações que são intermitentes nas situações de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Para estes pensadores, sobre o fenômeno constitutivo do devir, temos que: “O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. [...] Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 21). Seus corpos são vistos em relação de alteridade constante com animais, tais como cães, porcos, aves, lacraias, erva daninha, pitas, girassóis, cipreste, serafins, bruxas, lobos, cavalo, cavalinha, um canto de paredes que chora e tantos outros seres do mundo biótico e abiótico que se colam nos corpos das protagonistas, dando-lhes possibilidades de identificações que vão de encontro ao fenômeno do essencializado e essencializador organismo exigido pela ordem político-social vigente. Exemplo dessa constituição identitária em devir é quando vemos na segunda Agda o vínculo do devir rizomático com a primeira. Dela, a voz narrativa nos conta:

[...] essa primeira Agda teve morte afundada, e que sonhou como ouro, rosais de rosas negras, coisas como touro, não sabemos ao certo, só sabemos que amou de modo impróprio, sem luz e desapego. Que lidava com pássaros e porcos, isso temos certeza porque há gaiolas quebradas e restos de um chiqueiro no fundo do arrozal que outrora era extensão de seu próprio quintal, e que Agda primeira desejou ambiciosa a um tempo só juventude e noviciado, e Agda-lacraia tem muito dessa outra e se fez feiticeira (HILST, 2002, p. 118-119).

O devir anímico é extenso aos demais reinos existenciais que não apenas ao humano, no quesito marcadores psicossociais das identidades possíveis. A humanidade, nos dois contos, é disposta em existência rizomática com animais, vegetais e minerais, como de fato vemos nas evidências biografemáticas, ficção em relação inclusiva com as realidades factuais em franca composição, disposta nas duas narrativas. Os deslocamentos dos devires com os elementos da natureza ampliada e mais complexa são, pois, dispostos pela expressão cultural que são tais enredos literários.

Na primeira Agda, acompanhamos a resistência que a protagonista efetiva frente ao controle médico e familiar, dois dispositivos que representam o princípio de realidade consensual reacionário e conservador. A mulher que se sente envelhecida precocemente para fazer frente às investidas de contenção e normalidade que lhe é exigida passa a existir nos devires dos seres que compõem seu espaço, circunscrito pelo sítio onde mora. Transversaliza-se com os animais, sente o âmago do mundo vegetal e do mineral. E particularmente nesse reino mineral, rasga o chão miraculoso de seu sítio com as próprias mãos, cavando talvez o que fosse sua sepultura para um corpo complexo, múltiplo e não redimido. Sua suposta morte é, então, tida como alegoria realista de que ela quiçá seja capaz de coconstruir seu destino, mesmo que seja um destino aparentemente adverso. Tal adversidade, dada pelos dispositivos alegóricos, pode ser flexibilizada, pois é contrastada pela ação ativa dessa Agda que nos é disposta por devires intensos beirando à a-significação da produção desejosa em curso. Tal condição de subjetivação em devir fora prenunciada pela figura fantasmagórica do pai falecido que, em suas aparições, tentara preparar a filha para os desafios que seu corpo feminino envelhecendo poderia sofrer. Vejamos um de seus aconselhamentos:

Entendeste, Agda? Corpo-limite, contorno repousado ou tenso, até onde o mais eu? Interior da minha mão, esse que eu sei que é meu, interior da tua mão meu pai, esse interior agora íntima absorvência de nós dois, perplexidade de suores, corpo-limite-coitado, de repente te moves, entras na casa dos porcos, te perguntas o que é isso um porco? De repente te lembras que alguém já perguntou, que muitos perguntarão o que é isso um porco. O que é isso-eu? (HILST, 2002, p. 23).

Na segunda Agda, a dinâmica dos devires intensos segue seu curso desterritorializador quando percebemos que a animalização construída pelos três homens que tentam dominar a protagonista é deslocada para novas possibilidades de ação e de condição. Se a mulher era a lacraia peçonhenta que impedia os rapazes de terem sua autoridade sexista e exclusivista legitimada e parecia ser colocada em um lugar social adequado ao conservadorismo social do socius e do locus específicos da pequena cidade, vemos que a narrativa de Hilda Hilst transversalizará também essa protagonista nos variados e interconectados elementos da natureza. Agda resiste às violências sofridas quando se percebe ser construída subjetivamente nos encontros com elementos animais, como os lobos com os quais foge de sua casa-prisão, que se incendeia com um fogo que parece também ser componente de seu corpo feminino que se autoengravida, gerando um menino que é feito de terra queimada. Mesmo quando os rapazes, na tentativa de assegurarem o poder de violentarem e matarem o corpo feminino, violentam mortalmente essa Agda-Lacraia, vemos que de suas vísceras exala o perfume de folhas. Dessa forma, devires animais, vegetais e minerais conformam essa alegoria de luta e resistência que as subjetivações femininas nos expressam nestas duas narrativas.

Em um primeiro momento, neste quadro ficcional que nos afeta como leitores no universo factual, as relações de coexistência padronizadas produziriam e permitiriam apenas as vigências de organismos supostamente completos e limitados de acordo com os dispositivos oficiais de subjetivação, de disposição espacial e temporal circunscrita. No entanto, tais narrativas também nos expressam os esforços psicossociais e culturais dos corpos sem órgãos,12 12 Da forma mais objetiva que se tem o conceito/fenômeno do CsO, para tais pensadores, temos que: “O CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo. É verdade que Artaud desenvolve sua luta contra os órgãos, mas, ao mesmo tempo, contra o organismo que ele tem: O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são os inimigos do corpo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas, com seus “órgãos verdadeiros” que devem ser compostos e colocados, ele se opõe ao organismo, à organização orgânica dos órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 19). pensados por Gilles Deleuze e Félix Guattari, na esteira dos trabalhos artísticos e das vivências de Antonin Artaud. Quanto à produção de subjetividades, por vezes percebidas e exigidas como identidades essenciais e fixadas aprioristicamente, os pensadores nos indicam que:

Consideremos os três grandes estratos relacionados a nós, quer dizer, aqueles que nos amarram mais diretamente: o organismo, a significância e a subjetivação. A superfície de organismo, o ângulo de significância e de interpretação, o ponto de subjetivação ou de sujeição. Você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo - senão você será um depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado - senão será desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado - senão você será apenas um vagabundo. Ao conjunto dos estratos, o CsO opõe a desarticulação (ou as n articulações) como propriedade do plano de consistência, a experimentação como operação sobre este plano (nada de significante, não interprete nunca!), o nomadismo como movimento (inclusive no mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel, dessubjetivação) (DELEUZE e GUATTARI, 1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução: rizoma”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995., p. 14).

Com nosso corpus de estudo em vista, percebemos que as duas Agdas, a primeira e a lacraia, apesar das múltiplas sobredeterminações conservadoras e excludentes que lhes são sistematicamente impostas, insistem em lutar com/na ambiência constitutiva dos corpos sem órgãos, intrinsecamente em constantes movimentações, mesmo com forças desagregadoras e destrutivas lançando-se em seus percursos de destruição e reconstrução psicossociais. Elas repelem a necessidade de viver com identidades essencialmente fixadas, semelhantes a organismos previsíveis e produzidos pelos estratos sociais centrais que são o organismo estruturado maior, a significância das linguagens oficiais e a subjetivação definitiva, levada a cabo por algum processo identitário, autoritário e excludente.

Corpos sem órgãos seriam/teriam, pois, a capacidade de formação, de conformação e de transformação constante que os processos de subjetivação psicossocial permitem ao indivíduo em devires. Assim, voltando a Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução: rizoma”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.), teríamos que eles tratam mais de um processo inerente ao ser humano desejoso do que de um produto constituído de modo substancial. Para eles:

O CsO [corpo sem órgãos] é o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo) (p. 14).

“Desejo manifesto como processo de produção”. Nesse quadro, percebemos que os organismos - corpos de duas personagens femininas em constantes subjetivações em devir intenso, que são marcados do CsO - produzidos e mantidos pelo panóptico ficcionalizado por Hilda Hilst - são desconstruídos e reconstruídos constante e metodicamente nesses seus dois contos. Despedaçamentos, sangramentos, suicídios alegóricos, autofagias, antropofagias, devires brutais, devires delicados formam o maquinário para se averiguar as potências, latências e efetivações dos corpos sem órgãos, perante os desafios que a coexistência entre identidades transversais exige, quando enfrentada de modo mais crítico e construtivo.

Sabemos das relações entre mundo ficcional e mundo factual. Ou, ao menos, tentamos compreender como tal dinâmica relacional pode ocorrer em suas movediças fronteiras. Em nosso estudo, vale ressaltar a situação de Hilda Hilst em abandonar a cidade de São Paulo para recolher-se em um sítio à beira de cidades interioranas. Desse singular contexto parece que surgem as tocantes escolhas e negociações que a escritora fora obrigada a fazer com seus visitantes do campo literário, com seus familiares vivos ou mortos, com a população local, com a qual obrigatoriamente teve que se relacionar.

Tais dados históricos e, por vezes, brutalmente cronológicos, são dispostos na esfera literária em sua pujança. Ao corpo da escrita literária, ao corpo da escritora, ao corpo de suas duas Agdas aglomeram-se também os vários corpos ressuscitados do que parece ter sido possível resgatar de temporalidades passadas. Tal resgate, porém, não parece ter sido feito seguindo as regras da civilidade e da perfectibilidade dos comportamentos significativos para a ordem local. As novas ordens são de outra natureza memorial. Talvez daquela natureza dos corpos sem órgãos, que se produzem de acordo com negociações existenciais que sejam deslocadas pelos desafios encampados pelos corajosos e desejosos jogos literários e extraliterários que estão estampados ainda hoje em fugidias, porém profundas, linhas territoriais da Casa do Sol.13 13 A Casa do Sol, fruto direto do retiro de Hilda Hilst em parte da fazenda de sua mãe, na cidade de Campinas-SP, e ocorrido em 1965, exemplifica sua pragmática postura diante de seu envelhecimento pessoal, de suas reflexões sobre a morte e exemplo sensível de sua relação animista com a natureza do local. Essas reflexões e atuação estéticas e sociais são constantemente deslocadas do seu campo pessoal para interesses amplamente coletivizados. Acompanhemos um pouco dessa poderosa instituição coletiva que é a Casa do Sol, com dados de sua atual equipe gestora: “O Instituto Hilda Hilst tem como missão preservar a Casa do Sol, sede do instituto, tanto em sua estrutura física, como em seu espírito de servir de porto seguro para a produção cultural inovadora e democrática. Construída por Hilda Hilst em 1965, a Casa do Sol abrigou a autora até o seu falecimento, em 2004, e tem 9 mil m², sendo estes compostos por 800 m² de área construída, rodeada por jardim. Local de grande efervescência cultural, foi frequentada por pensadores do porte dos escritores Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles e J. L. Mora Fuentes, Maestro José Antônio de Almeida Prado e os físicos César Lattes e Mário Schenberg. Atualmente o IHH tem milhares de seguidores nas redes sociais e em breve iniciará seu programa educativo de visitas monitoradas à Casa do Sol, além de receber peças teatrais no anfiteatro a ser construído no pátio interno da Casa do Sol. Com isso o IHH procura cada vez mais diversificar e democratizar o acesso à vida e obra de Hilda Hilst, continuando a manter “o espírito da coisa”, que é ser naturalmente uma referência em vanguarda cultural no País” (Disponível em: http://www.hildahilst.com.br). Hoje, tal casa funciona como o Instituto Hilda HilstINSTITUTO HILDA HILST. Disponível em: Disponível em: http://www.hildahilst.com.br . Acesso em: 10/11/2017.
http://www.hildahilst.com.br...
, que acolhe artistas de todas as artes, oferecendo-lhes condições psicofísicas para o desenvolvimento de sua produção.

Os dois contos que estudamos, assim, também parecem nos indicar que se pode fazer escolhas entre memórias dos vários passados que construímos, ou dos dispositivos de formação de subjetividades que construíram para nós. Tal exercício existencial, disposto no paradigma estético de Hilda Hilst, aponta-nos também a possibilidade pragmática de vivenciarmos, de modo ativo e crítico, as várias temporalidades do tempo presente, com a finalidade de abrirmos portas para futuros nos quais as realidades possam ser vividas por meio de negociações de coexistência mais justas.

Considerações finais

Acompanhamos dois contos de Hilda Hilst, Agda - dispostos aqui em Agda primeira e Agda-lacraia, perspectivados pela temática da multitemporalidade que arquiteta memórias rizomáticas em constantes devires intensos de corpos sem órgãos. Mais que a expressão de inflexíveis organismos subjetivos dispostos nas textualidades literárias, percebemos que as duas protagonistas são produzidas através de singularidades biografemáticas com a própria vida da escritora, que também demonstrou grande capacidade dialógica e construtiva nas negociações identitárias que seu meio social heterogêneo lhe exigia.

As duas Agdas dispunham de dados, histórias, percepções e afecções de arquivos memorialísticos pertinentes ao seu campo pessoal e familiar. No entanto, movimentam-se com o objetivo de também compreender e reconstruir constantemente suas redes de coexistência mais amplas. Mesmo que tais redes possam lhes trazer forças destrutivas, como de fato, alegoricamente e mesmo realisticamente, isso ocorra.

A opção em tentar compreender suas dimensões íntimas faz com que as duas protagonistas perspectivem-se por meio dos olhares das demais pessoas que conformam essa rede de relações intra e interpessoal. E quando tais outridades se colocam como singularmente destrutivas, as memórias dos corpos sem órgãos deslocam-se em posicionamentos de dialogismo radical. Nesse dialogismo, forças dos devires heterogêneos e múltiplos são chamadas para a produção de um socius e de um locus que, ao menos, sejam capazes de apontar possibilidades futuras de maior produtividade feita na síntese disjuntiva integrativa. Prova pragmática de tal futuro, vista na maleabilidade dos mundos ficcional e factual, como insistimos em marcar, é a construção e consolidação da Casa do Sol, com abrangência sócio-político-cultural nacional e internacional.

Por fim, movidos pelas posições e disposições psicossociais destas duas narrativas de Hilda Hilst, lembramo-nos novamente da necessidade de nos acautelarmos em relação à dialética dos corpos organizados e de sua potência libertadora e inovadora para constantes desorganizações e reorganizações necessárias, pois que são produtivas de posição e de disposições subjetivas. Para tanto, voltamo-nos novamente para uma importante pontuação nas reflexões de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução: rizoma”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.) quanto à ideia sobre essa energia de vida constitutiva de nossas subjetivações em curso constante:

É necessário guardar o suficiente do organismo para que ele se recomponha a cada aurora; pequenas provisões de significância e de interpretação, é também necessário conservar, inclusive para opô-las a seu próprio sistema, quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas, inclusive as situações nos obrigam; e pequenas rações de subjetividade, é preciso conservar suficientemente para poder responder à realidade dominante (p. 21).

Referências

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  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “Introdução: rizoma”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia v. 1. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
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  • SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor e Metafísica da morte Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes , 2000.
  • 1
    O conceito de biografema e seu corolário teórico-analítico que vinculam de modo relativamente assimétrico dados da realidade factual com a realidade ficcional podem ser acompanhados no conjunto de obras do narratólogo Roland Barthes; aqui, o conceito é particularmente seguido em Roland Barthes por Roland Barthes (1977BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Rio de Janeiro: Vozes, 1977.).
  • 2
    A distinção e, ao mesmo tempo, a complementação psicossocial entre as duas Agdas podem ser vistas no segundo conto, quando a comunidade local tenta descrever a personalidade da protagonista: “[...] essa primeira Agda teve morte afundada, e que sonhou como ouro, rosais de rosas negras, coisas como touro, não sabemos ao certo, só sabemos que amou de modo impróprio, sem luz e desapego. Que lidava com pássaros e porcos, isso temos certeza porque há gaiolas quebradas e restos de um chiqueiro no fundo do arrozal que outrora era extensão de seu próprio quintal, e que Agda primeira desejou ambiciosa a um tempo só juventude e noviciado, e Agda-lacraia tem muito dessa outra e se fez feiticeira” (HILST, 2002, p. 118-119).
  • 3
    Havemos de observar as peculiaridades que a autora constrói com/em torno de nossa linguagem oficial. De modo usual, alguns procedimentos gramaticais tradicionais são colocados de lado ou remanejados segundo outros ordenamentos. Particularmente, entre tantos outros deslocamentos criativos, a pontuação e seus rigores ortográficos são manejados de modo a colocar em questão a tradição e os limites da linguagem oficial. Tais procedimentos lembram-nos de uma das características do que seria a produção rizomática, aqui no que diz respeito à linguagem, no aspecto intrínseco de forma e conteúdo, quanto à a-significância criadora do campo da liberdade expressiva. Tal reflexão é aquela que seguimos em Deleuze e Guattari (1995).
  • 4
    Reflexões da Gerontologia Social e áreas afins nos auxiliam aqui, mesmo que de modo um tanto assistemático, através dos estudos de Simone de BEAUVOIR (1990BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.), Tomiko BORN (2008BORN, Tomiko (Org.). Cuidar Melhor e Evitar a Violência: manual do cuidador da pessoa idosa. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos/Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, 2008.) e, sobretudo, com o alentado estudo multidisciplinar apresentado pelo Tratado de Geriatria e Gerontologia (Elizabete Viana de FREITAS; Ligia PY, 2016FREITAS, Elizabete Viana de; PY, Ligia (Orgs.). Tratado de geriatria e gerontologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2016.).
  • 5
    Refletimos sobre este contexto vivencial da protagonista amparados pelos últimos estudos de Michel FOUCAULT (2001FOUCAULT, Michel. A Coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Curso no Collège de France (1983-1984). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.; 2006FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.a; 2006FOUCAULT, Michel. “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”. In: FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Ditos e escritos V. 2.ed. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b.b; 2011FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de R. Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2001.), aqueles que tratam dos cuidados de si, quando da necessidade imposta por um socius conservador à fase do envelhecimento e da finitude humana, entre outras condições humanas de adequação social. Para esse pensador, essa temática e práticas são sistematizadas desde as tradições do mundo grego antigo até nossa contemporaneidade, que ainda sofre influências destas tradições. No caso de nosso estudo, temo que a velhice suponha principalmente a preparação em relação à morte tranquila para a pessoa que sofre o processo e mais tranquila ainda para a comunidade das pessoas que continuam vivas. Ou seja, haveríamos de prioritariamente nos educar para a morte apaziguada que não constrangesse a plateia de familiares, amigos e demais membros de nossa rede de convivência. Para o autor, esta preparação supõe uma premeditação de males e, consequentemente, a consecução do equilíbrio contínuo dos que ficam. Ou seja: “O que confere importância e particular significação à meditação sobre a morte e a este gênero de exercício é precisamente o fato de permitir ao indivíduo que perceba a si mesmo [...] se quisermos, é realmente para este acontecimento como infortúnio por excelência que devemos nos preparar pela meléte thanátou, que constituirá um exercício privilegiado, aquele no qual ou pelo qual precisamente faremos culminar a premeditação dos males” (FOUCAULT, 2006a, p. 579-580). No entanto, como Foucault também pondera de modo crítico sobre essa imposição da “etiqueta do bom morrer”, nosso estudo encaminha-se ao encontro de possíveis deslocamentos de caráter heterogêneo e libertário, por meio dos quais as subjetividades podem se articular no curso de tais fenômenos, sem sacrificar suas afecções, crenças e procedimentos singulares.
  • 6
    Esse contexto ficcional também nos remete à complexa relação da escritora com a perda precoce do seu querido e frequentemente invocado/evocado pai, Apolônio de Almeida Prado Hilst. De modo usual, a escritora sustentava que sua obra poética seria uma tentativa de resgatar a memória do pai, oferecendo-lhe condições de permanência imorredoura em um mundo que não soube lhe compreender os comportamentos pessoais e artísticos. Hilda Hilst parece impor às figuras dos homens que amou e com os quais conviveu a imagem desse pai idealizado, com quem pouco conviveu. Apolônio sofria de complicações psiquiátricas e passou grande parte de sua vida internado em sanatórios, sob tutela da própria Hilst. Quando da morte do pai, Hilda passou a morar de vez na Casa do Sol, imóvel construído em parte da fazenda de sua mãe, em Campinas. Assim, realmente parece haver algum elo entre a morte do pai e sua saída da cosmopolita cidade de São Paulo para uma espécie de retiro, no qual começa a consolidar sua perspectiva reflexiva sobre vários temas existenciais, que são expressos em sua vasta e densa obra ficcional. Tanto a relação intensa de Hilda com seu pai Apolônio, quanto as intenções que envolvem a construção da Casa do Sol, podem ser acompanhadas em entrevistas da autora em vários veículos midiáticos brasileiros e internacionais e, em especial, nos Cadernos de Literatura BrasileiraCADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Hilda Hilst. n. 8. São Paulo: Instituto Moreira Salles, outubro 1999., n. 8, outubro 1999.
  • 7
    Acompanhamos o conceito de panóptico, de modo transversalizado, em Microfísica do poder, de Michel Foucault (2001). Na obra, o pensador discute os mecanismos de controle biopolítico montados pelas sociedades modernas e contemporâneas de educação, vigilância e controle sobre corpos e mentes dos indivíduos. Aqui, mais que uma estrutura física coercitiva, como as prisões, sanatório, escolas e instituições afins, o panóptico já estaria inserido na própria engenharia psicossocial do cotidiano de se vivenciar sensações, pensamentos e afecções dos indivíduos inseridos em determinado socius. Sobre processos de subjetivação, cuidados de si e dos outros, bem como nas reflexões sobre a finitude, estamos perspectivados, como já apontamos nesse estudo, por Foucault (2001; 2006a; 2006b; 2011).
  • 8
    Aqui reverberam as reflexões sobre memória coletiva, de Maurice HALBWACHS (2006HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de B. Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.). Para esse pensador, temporalidades variadas produzem memórias variadas. Tais memórias são conformadas nos imbricados campos coletivo, histórico e pessoal; marcando-se, então, o caráter psicossocial do fenômeno, que é a memória.
  • 9
    Perspectivamos nossas reflexões também pelos estudos sobre o fenômeno do tempo, feitos pelo sociólogo alemão Norbert ELIAS (2001ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos (seguido de Envelhecer e morrer). Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.), em seu, por exemplo, clássico livro Sobre o Tempo (1998ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Tradução de Vera Ribeiro e revisão de Andréa Daher. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.). Nesse estudo, além do explicativo cronótopo da construção do tempo cronológico de fundo científico e mecânico, é ressaltada a natureza da esfera psicossocial para a percepção, manutenção e transformações das temporalidades oficiais. Também com Elias (2001) refletimos sobre o despreparo cultural de nossas sociedades contemporâneas, principalmente as de multiculturas ocidentais, em relação às condições/situações pertinentes ao bem-estar coletivo na fase da velhice e às pragmáticas preparações para a finitude humana.
  • 10
    Existem vários estudos sobre o projeto estético de Hilda Hilst que exploram a temática da metafísica institucionalizada. No entanto, não é nosso intento aqui o de irmos por essa direção. Se tal poética é fértil em tal temática, preferimos observá-la em sua esfera mais humanizada, no que seria uma metafísica positiva, na perspectiva de Arthur SCHOPENHAUER (2000SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor e Metafísica da morte. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes , 2000.). Para o filósofo, há uma diferença entre a vivência de certa religiosidade natural ao ser humano e a institucionalização dessa religiosidade. O segundo dispositivo fica mais propício à criação de mecanismos compensatórios que podem inviabilizar a ação ativa do indivíduo em suas dialógicas e críticas relações sócio-políticas.
  • 11
    Por devir, acompanhamos as reflexões de Deleuze e Guattari (1997DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. “1730 - Devir-intenso, devir-animal, devir imperceptível”. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. v. 4. Coordenação e tradução de Ana Lúcia Oliveira. São Paulo: Ed. 34, 1997.) que consideram o fenômeno como o poder de identificação contínua, e sempre em fluxo, entre seres humanos e demais seres; sejam seres do mundo humano, do animal, do vegetal e do mineral. Para tais pensadores, o devir não acarreta a formação de identidade positivamente substancializada advinda da conexão feita entre os dois seres, mas a possibilidade de um identificar-se com as outridades de modo transversal, sem que isso ocasione a interrupção dos ontológicos movimentos de subjetivações que são intermitentes nas situações de territorialização, desterritorialização e reterritorialização. Para estes pensadores, sobre o fenômeno constitutivo do devir, temos que: “O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna. [...] Enfim, devir não é uma evolução, ao menos uma evolução por dependência e filiação. O devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 21).
  • 12
    Da forma mais objetiva que se tem o conceito/fenômeno do CsO, para tais pensadores, temos que: “O CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização dos órgãos que se chama organismo. É verdade que Artaud desenvolve sua luta contra os órgãos, mas, ao mesmo tempo, contra o organismo que ele tem: O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não tem necessidade de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são os inimigos do corpo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas, com seus “órgãos verdadeiros” que devem ser compostos e colocados, ele se opõe ao organismo, à organização orgânica dos órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 19).
  • 13
    A Casa do Sol, fruto direto do retiro de Hilda Hilst em parte da fazenda de sua mãe, na cidade de Campinas-SP, e ocorrido em 1965, exemplifica sua pragmática postura diante de seu envelhecimento pessoal, de suas reflexões sobre a morte e exemplo sensível de sua relação animista com a natureza do local. Essas reflexões e atuação estéticas e sociais são constantemente deslocadas do seu campo pessoal para interesses amplamente coletivizados. Acompanhemos um pouco dessa poderosa instituição coletiva que é a Casa do Sol, com dados de sua atual equipe gestora: “O Instituto Hilda Hilst tem como missão preservar a Casa do Sol, sede do instituto, tanto em sua estrutura física, como em seu espírito de servir de porto seguro para a produção cultural inovadora e democrática. Construída por Hilda Hilst em 1965, a Casa do Sol abrigou a autora até o seu falecimento, em 2004, e tem 9 mil m², sendo estes compostos por 800 m² de área construída, rodeada por jardim. Local de grande efervescência cultural, foi frequentada por pensadores do porte dos escritores Caio Fernando Abreu, Lygia Fagundes Telles e J. L. Mora Fuentes, Maestro José Antônio de Almeida Prado e os físicos César Lattes e Mário Schenberg. Atualmente o IHH tem milhares de seguidores nas redes sociais e em breve iniciará seu programa educativo de visitas monitoradas à Casa do Sol, além de receber peças teatrais no anfiteatro a ser construído no pátio interno da Casa do Sol. Com isso o IHH procura cada vez mais diversificar e democratizar o acesso à vida e obra de Hilda Hilst, continuando a manter “o espírito da coisa”, que é ser naturalmente uma referência em vanguarda cultural no País” (Disponível em: http://www.hildahilst.com.br).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2017
  • Revisado
    08 Dez 2017
  • Aceito
    21 Dez 2017
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