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A prostituição no marxismo clássico: crítica ao capitalismo e à dupla moral burguesa

The Prostitution in Classical Marxism: Critique of Capitalism and Bourgeois Double Standard of Sexual Morality

Resumo:

O artigo tem o objetivo de examinar como as tradições do marxismo clássico, do século XIX ao início do século XX, compreenderam a questão da prostituição, conectando-a com visões específicas sobre as relações de gênero, sobre a autonomia sexual e sobre as formas de superar a opressão sobre as mulheres trabalhadoras. Reconhecendo a diversidade das perspectivas trazidas por essas tradições e os relativos limites, a crítica à instituição da prostituição será construída pelas/os autoras/es a partir da necessidade de superação do sistema capitalista de produção, do desmonte das instituições burguesas como a família e o casamento, da construção de relações sociais igualitárias e calcadas na solidariedade e como forma de emancipação feminina.

Palavras-chave:
Prostituição; Marxismo; Feminismo

Abstract:

The article aims to examine how the traditions of classical Marxism and anarchist feminism of the nineteenth century to the early twentieth century understood the issue of prostitution, connecting it with specific views on gender relations, on sexual autonomy and on ways to overcome the oppression of women workers. Recognizing the diversity of perspectives and relative limits, the critique of the institution of prostitution will be developed based on the need to overcome the capitalist system of production, the dismantling of bourgeois institutions like family and marriage, the construction of egalitarian social relations, based on solidarity and as a form of female emancipation.

Keywords:
Prostitution; Marxism; Feminism

Introdução

O tema da prostituição, assim como outros temas relacionados às mulheres, esteve no raio dos quadros interpretativos da política desde, pelo menos, o século XVIII. Essa presença não decorre do fato de a prostituição ser, como se costuma dizer no senso comum, a profissão mais antiga do mundo, mas por ela ser considerada uma das instituições que revela as relações de poder entre homens e mulheres e a moral sexual de cada período histórico.

No século XIX o debate político sobre a prostituição se intensificou a partir das contradições do capitalismo industrial; do movimento puritanista na Europa; do fortalecimento do discurso médico e da patologização de sintomas associados ao dito feminino; da linguagem abolicionista contra a escravidão e da primeira onda do feminismo.1 1 A história do feminismo tem sido narrada por meio da ideia das ondas. Basicamente, a primeira onda se desenvolveu na segunda metade do século XIX e início do século XX, a partir das denominadas sufragistas, que emergiram publicamente através de campanhas pelo direito ao voto e que lutaram também pelo acesso aos direitos civis e sociais - pelo direito ao divórcio, pelo direito a estudar, a ter propriedade, entre outros.

Por um lado, forjava-se, especialmente na Europa e Estados Unidos, movimentos feministas mais massivos, a partir do envolvimento das mulheres nas lutas pela abolição da escravidão negra, da prostituição e na luta pelo sufrágio. Por outro lado, o discurso médico e sanitário buscava “limpar” as cidades e “higienizar” as práticas do submundo da prostituição. Também fortalecia o discurso que legitimava a prática como um mal menor que, de um lado, expressava a degradação moral das mulheres e, de outro, garantia certo equilíbrio na ordem social patriarcal.

As prostitutas formavam um grupo importante entre as mulheres trabalhadoras e passaram a ganhar amplo interesse social ao se contraporem à repressão sexual e à angústia que dominava as relações íntimas no período, tal como Freud remarcou no final do século XIX (Eli ZARESTKY, 1976). Como afirma Judith WALKOWITZ (1991WALKOWITZ, Judith. “Sexualidades peligrosas”. In: DUBY, Georges; PERROT, Michelle. Historia de las mujeres en Occidente. Espanha: Taurus Ediciones, 1991. p. 389-426. (v. 4 - Séc. XIX).), “a magnitude, a visibilidade e a proteica natureza da prostituição constituíram um traço distintivo das cidades do século XIX” (p. 392).

Na Inglaterra, apesar de não ser um crime, a prostituição era uma atividade altamente condenada e considerada um “mal social” (Paula Bartley, 2000BARTLEY, Paula. Prostitution: Prevention and Reform in England, 1860-1914. London: Routledge, 2000.). Como afirma Bartley (2000), ela obteve a atenção dos médicos, das emergentes associações filantrópicas, das mulheres, da Igreja, entre outros. Ao final do século, com a influência das teorias eugenistas, a prostituição foi vista como traço de subdesenvolvimento do intelecto, desordens psicológicas, loucura ou perversidade.

A ideia de que a prostituição era um mal necessário, já que protegia a pureza e virtude das mulheres “honestas” diante da sexualidade incontrolável e insaciável dos homens, vai sendo contestada por uma visão de que a sociedade como um todo se beneficiaria de um maior controle sexual dos homens e também do reforço da monogamia e do sexo marital entre eles.

Na Inglaterra movimentos organizados buscaram denunciar a conivência do Estado com a manutenção da prostituição, bem como se opunham às formas de regulação estabelecidas, que se centravam no controle das prostitutas a partir do discurso profilático.2 2 Josephine Butler foi líder do movimento contra a regulamentação da prostituição na Inglaterra, no início do século XIX, a partir da oposição às leis de controle de doenças venéreas. Essas leis discriminavam as prostitutas por supostamente contagiarem os homens e instituíam formas violentas de controle sobre o corpo delas, por meio de exames médicos cruéis e encarceramento (WALDRON, 2007). Tal movimento, ainda que bastante localizado, foi considerado por Waldron (2007WALDRON, Jeremy. “Mill on liberty and on the Contagious Diseases Acts”. In: URBINATI, Nadia; ZAKARAS, Alex (Ed.). J.S. Mill’s Political Thought: A Bicentennial Reassessment. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.) a primeira grande revolta feminina no mundo ocidental (WALDRON, 2007).

Na França do século XIX, por sua vez, esforços foram organizados no intuito de constituir um sistema que ficou conhecido como “regulamentarista” (Alain Corbin, 1990CORBIN, Alain. Women for hire: prostitution and sexuality in France after 1850. London; Cambridge (MA): Harvard University Press, 1990.) - as prostitutas deveriam ser identificadas, de modo a prevenir que os seus vícios fossem passados para outras pessoas. Mas deveriam se manter isoladas e marginalizadas da sociedade, pois representavam uma ameaça moral, social, sanitária e política (CORBIN, 1990).

A consolidação do capitalismo industrial, a moral sexual puritana e as desigualdades entre homens e mulheres influenciaram o perfil do contingente de prostitutas (advindas da emergente classe trabalhadora), as formas de seu exercício (cada vez mais encerradas em zonas e bairros próprios) e a sua legitimidade/marginalização (encarna mal necessário, choca-se e, portanto, reforça ideal de feminilidade, resume “deterioração” moral e sanitária da sociedade industrial).

A proliferação de discursos a favor do controle e normatização da prostituição será fortemente questionada por alguns atores e pelo movimento de mulheres que emerge nesse período. No âmbito dos/as socialistas, a crítica à prostituição esteve associada à crítica às instituições burguesas e ao resultado das contradições do capitalismo sobre a classe trabalhadora. O tema foi consideravelmente debatido entre socialistas utópicos como Flora Tristan, entre Marx e Engels, na tradição socialista alemã, em Bebel e Zetkin e também entre os/as russos/as. Ainda que não seja escopo deste trabalho, também no âmbito das feministas anarquistas3 3 Dentre as feministas anarquistas do período, Emma GOLDMAN (1911) foi uma voz importante para denunciar a hipocrisia em relação à prostituição. No texto “The Traffic in women”, de 1910, a feminista condenou o discurso dos movimentos puritanos que desconsideravam as verdadeiras sustentações da prostituição. Assim como as socialistas, denunciou a dupla moral sexual e a desigualdade econômica como fatores que influenciavam na prática, assim como rechaçou o pânico moral decorrente do combate ao chamado “tráfico de brancas”. Na Argentina, ao final do século XIX, o periódico anarquista semiclandestino “La Voz de La Mujer” circulou textos críticos à prostituição, especialmente associada às instituições hierárquicas, como a do casamento (Natalia PRADO, 2015). do final do século XIX a prostituição foi vista como símbolo da hipocrisia da sociedade puritana e das mazelas vividas pelas mulheres trabalhadoras.

O objetivo do artigo será o de examinar como a questão da prostituição foi alvo de análises no interior da tradição marxista clássica, do século XIX ao início do século XX, e de que modo as concepções particulares sobre a opressão de gênero e a autonomia sexual contribuíram para uma visão crítica da instituição da prostituição, não calcada em uma posição puritana, que marcou parte dos discursos críticos do período, mas a partir de uma perspectiva contrária às instituições burguesas e à desigualdade imposta pelo sistema capitalista de produção.

Para tal, iniciaremos com a perspectiva da socialista utópica e feminista Flora TRISTAN, especialmente em duas obras: União Operária, escrita em 1843, em que contempla a questão das mulheres, e Paseos em Londres (Passeios em Londres), publicada em 1840, em que dedica um capítulo sobre a questão da prostituição, que lhe causou profundos sentimentos de compaixão e revolta. Também analisaremos algumas obras de Karl Marx e Ernest Engels (2003MARX, Karl; ENGELS, Ernest. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2003.; 2008) que mencionaram a questão das mulheres e da prostituição. É o caso de: A Sagrada Família e Manuscritos Econômicos-filosóficos (esta de MARX (2004MARX, Karl. Manuscritos Econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.)), publicadas em 1844, e O Manifesto Comunista, de 1848.

Também serão examinadas as obras de Engels, a saber: Princípios básicos do comunismo (1951ENGELS, Friedrich. “Princípios básicos do comunismo”. In: FRÉVILLE, Jean; VERMEERSCH, Jeannette. La mujer y el comunismo: antología de los grandes textos del marxismo. Paris: Editions Sociales, 1951.), escrita em 1847, e Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1984), publicada pela primeira vez em 1884. Destaca-se também a obra A mulher e o socialismo, de 1879, escrita pelo socialista alemão August Bebel (1910BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910.), especialmente o capítulo 7, intitulado “Prostituição: uma instituição social necessária para sociedade burguesa”. Analisaremos ainda os escritos da militante socialista alemã Clara Zetkin (1976ZETKIN, Clara. La cuestión feminina y el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976.), especialmente o texto “Diretrizes para o movimento comunista feminino”, de 1920.

Por fim, serão analisadas as importantes contribuições da feminista bolchevique Alexandra Kolontai (1976KOLONTAI, Alexandra. La mujer en el desarrollo social. Barcelona: Editorial Guadarrama, 1976.; 1977). Ainda que sua contribuição não seja muito conhecida no âmbito do marxismo e do feminismo, a autora marca uma visão de que os valores do socialismo deveriam ser acompanhados da igualdade entre homens e mulheres. É a partir desse ponto de vista que a autora analisa o tema da prostituição. No artigo, serão examinados os textos escritos em 1918 e 1921, reunidos no livro A nova mulher e a moral sexual e o discurso de Kolontai na Terceira Conferência de toda a Rússia de Chefes de Departamentos Regionais de Mulheres, intitulado “Prostituição e formas de lutar contra ela”, de 1921.

1 A feminista e socialista utópica Flora Tristan e a crítica à prostituição

No século XVIII, os/as socialistas buscaram analisar as consequências do sistema capitalista para as mulheres, dada sua massiva incorporação no sistema fabril, e construíram uma forte crítica ao modelo de família vigente no período. O socialismo, portanto, buscou teorizar a questão das mulheres desde os seus primórdios (Ana Álvrez De Miguel, 2010DE MIGUEL, Ana Álvarez. “La articulación del feminismo y el socialismo: el conflicto clase-género”. In: AMORÓS, Celia; DE MIGUEL, Ana Álvarez (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: de la ilustración al segundo sexo, v. 1. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 295-332.; Clarisse Paradis; Sarah De Roure, 2013PARADIS, Clarisse; DE ROURE, Sarah. “Origens históricas do feminismo socialista e as mulheres na Rússia revolucionária”. Revista Democracia Socialista, São Paulo, n. 1, p. 129-152, 2013.). A organização das mulheres em associações operárias, sindicatos e organizações socialistas existia em resistência à oposição de muitos homens que argumentavam que as mulheres deveriam se ocupar exclusivamente das funções do mundo privado e que elas ofereciam uma concorrência desleal no mercado de trabalho, uma vez que eram uma mão de obra mais barata que a masculina (PARADIS; DE ROURE, 2013).

Como afirma De Miguel (2010DE MIGUEL, Ana Álvarez. “La articulación del feminismo y el socialismo: el conflicto clase-género”. In: AMORÓS, Celia; DE MIGUEL, Ana Álvarez (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: de la ilustración al segundo sexo, v. 1. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 295-332.), o socialismo inaugurou uma nova corrente de pensamento dentro do feminismo, diferente do feminismo precedente em relação às suas explicações sobre a origem da opressão, às formas de unificar as mulheres e também nas estratégias de emancipação. Está presente nas concepções do socialismo utópico, do socialismo marxista e também do anarquismo uma forte crítica à prostituição, vista não como uma degradação estritamente moral da sociedade, mas como espaço das contradições que o capitalismo e a moral burguesa impunham sobre as relações entre homens e mulheres.

Entre os/as socialistas utópicos, na primeira metade do século XIX já era possível perceber debates em torno do matrimônio, do divórcio, da maternidade e da moral sexual. Entre eles, é possível destacar Flora Tristan (1803-1844). A militante socialista e feminista nasceu em 1803, em Paris, filha de um militar de origem peruana e uma mãe francesa. Conheceu Saint-Simon e Fourier e foi citada por Marx e Engels ao criticarem o socialismo utópico em A Sagrada Família (Estuardo Núñez, 2009NÚÑEZ, Estuardo. “Estudio Preliminar”. In: TRISTAN, Flora. Paseos en Londres. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009. p. 4-10.).

Em sua obra União Operária (1843), escreveu o capítulo “Por que menciono as mulheres”, em que denunciou a naturalização da inferioridade feminina, afirmando estar “convencida de que todos os males do mundo provêm da incompreensão que se tem até hoje de que os direitos naturais são imprescindíveis para o ser mulher” (TRISTAN apudParadis; De Roure, 2013PARADIS, Clarisse; DE ROURE, Sarah. “Origens históricas do feminismo socialista e as mulheres na Rússia revolucionária”. Revista Democracia Socialista, São Paulo, n. 1, p. 129-152, 2013., p. 132). Para De Miguel (2010), Tristan representa a transição entre o feminismo ilustrado e o feminismo de classe, afinal, ela relacionou temas caros ao primeiro, como o problema da falta de acesso das mulheres à educação e relacionou-o à exploração econômica a que estão sujeitas as trabalhadoras.

No escopo deste artigo, nos interessa outra obra da autora - Passeios em Londres. Sua primeira edição foi publicada em 1840, fruto dos quatro momentos em que Flora esteve em Londres (1826, 1831, 1834 e 1839). Esse relato buscou escancarar as injustiças sociais as quais os/as trabalhadores/as ingleses/as vivenciavam. A obra pode ser definida, portanto, como um livro de indignação e protesto (Núñez, 2009NÚÑEZ, Estuardo. “Estudio Preliminar”. In: TRISTAN, Flora. Paseos en Londres. Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009. p. 4-10.). Em um dos capítulos, intitulado “Mulheres Públicas”, Tristan relatou a situação das prostitutas na capital inglesa. Para tal, a autora frequentou bairros em que se concentrava a atividade4 4 Tristan relata ter ido a um dos bairros onde quase todas as atividades giravam em torno da prostituição, acompanhada de dois amigos armados de bastões. Em dado momento, é abordada por agenciadores, conforme narra: “[...] Muitos nos acercaram e nos perguntaram se não queríamos um quarto. Como os respondemos negativamente, um, mais atrevido que os outros, nos disse em tom ameaçador: que vem então fazer nesse bairro, se vocês não querem um quarto para fazer entrar a “sua dama”? Confesso que não gostaria de me encontrar sozinha frente a este homem” (TRISTAN, 2009, p. 62 [tradução nossa]). e também visitou um “finishe” - salões luxuosos que reuniam prostitutas ricamente vestidas, frequentados por jovens aristocratas.

A autora condenou veementemente a prostituição, a “mais horrorosa praga produzida pela desigual repartição dos bens desse mundo” (Tristan, 2009TRISTAN, Flora. Paseos en Londres . Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009., p. 60).5 5 Esta e todas as outras citações são traduzidas por nós. Para ela, a prostituição seria uma forma de morte: “[...] que morte afronta a mulher pública! Está comprometida com a dor e a consagrada abjeção. Sofre torturas físicas incessantemente repetidas, morte moral em todos os instantes e desprezo de si mesma” (TRISTAN, 2009, p. 60).

Ao mesmo tempo, sua postura em relação às prostitutas é tanto de certa incompreensão e ambiguidade, quanto de compaixão. “A mulher pública é para mim um mistério impenetrável... Vejo na prostituição uma loucura horrenda, ou bem é em tal forma sublime que meu ser humano não pode ter consciência dela” (Tristan, 2009TRISTAN, Flora. Paseos en Londres . Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009., p. 60). Tristan nutria sentimentos de compaixão pelas prostitutas e de revolta pelos seus dominadores:

Jamais pude ver uma mulher pública sem ser comovida por um sentimento de compaixão por nossas sociedades, sem sentir o desprezo por sua organização e ódio por seus dominadores que estranhos de todo pudor, de todo respeito pela humanidade, de todo o amor por seus semelhantes, reduzem a criatura de Deus ao último grau de abjeção. A rebaixam para abaixo do brutal! (Tristan, 2009TRISTAN, Flora. Paseos en Londres . Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009., p. 60).

A autora identificou várias causas da prostituição. Como produto da desigualdade econômica, ela denunciou os preconceitos aristocráticos da sociedade inglesa e os vícios dos ricos que corrompiam toda a sociedade e seduziam e enganavam as mulheres. Para Tristan, o imenso aumento da riqueza na Inglaterra levava à destruição dos laços familiares e as pessoas a agirem apenas em nome dos interesses econômicos. “O dinheiro por motor; e para todo o gozo, o vinho e as prostitutas” (TRISTAN, 2009, p. 65 [tradução nossa]). Ao frequentar um finishe, esses “templos que o materialismo inglês eleva a seus deuses” (TRISTAN, 2009, p. 93), ela se depara estarrecida com formas humilhantes de “entretenimento” dos jovens ricos, denunciando como a riqueza corrompia e desumanizava as mulheres:

Um dos mais apreciados [entretenimentos] é o de embebedar uma mulher até que caia morta de embriaguez; então a fazem provar vinagre, em que mostarda e pimenta foram adicionados; esta beberagem a provoca, quase sempre, horríveis convulsões e as contorções dessa desgraçada provocam os risos e divertem infinitamente a honorável sociedade (Tristan, 2009TRISTAN, Flora. Paseos en Londres . Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009., p. 65).

Enquanto os homens se divertiam, as mulheres se sujeitavam a essas condições na única esperança de obter fortuna nesses finishes. Nesse sentido, Tristan argumentou que a desigualdade econômica empurrava as mulheres pobres para a fome, as excluía dos trabalhos tanto no campo, quanto nas fábricas e a prostituição seria, portanto, único recurso de sobrevivência. Ao denunciar o tráfico de pessoas, a autora argumentou que meninas pobres de 10 a 15 anos eram ludibriadas e que as meninas ricas estavam menos expostas a esses perigos.

A autora também denunciou a conivência das várias instituições sociais e se revoltou com a liberdade de ação dos proxenetas. Para ela, a hipocrisia da igreja anglicana fazia com que os sacerdotes não expressassem misericórdia com as prostitutas: “Este [o sacerdote] pronunciará no púlpito um discurso enfático acerca da caridade e o efeito que teve Jesus para Madalena, mas para as milhares de Madalenas que morrem a cada dia nos horrores da miséria e do abandono, não há nenhuma lágrima!” (Tristan, 2009TRISTAN, Flora. Paseos en Londres . Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009., p. 66).

Como dito anteriormente, no contexto do século XIX, na Europa, as tentativas de regulamentação da prostituição implicavam, fundamentalmente, medidas ditas “sanitárias”, que visavam ao controle sobre as prostitutas que, em muitos casos, eram forçadas a exames médicos cruéis. Flora denunciou, portanto, a arbitrariedade da polícia, que punia as prostitutas e a conivência dos governos, que deveriam combater as causas da prostituição e não regulamentá-la: “[...] sendo a prostituição um resultado forçoso da organização das sociedades europeias, diminuir a intensidade das causas que a provocam no lugar de regulamentar seu uso é o que atualmente devem tender os governos” (Tristan, 2009TRISTAN, Flora. Paseos en Londres . Lima: Biblioteca Nacional del Perú, Biblioteca Digital Andina, 2009., p. 69).

A autora se revoltou também com o fato de que aqueles capturados por administrarem uma casa de prostituição de menores ficavam livres ou eram detidos por no máximo dez dias, enquanto uma mulher popular que fosse detida vendendo algo nas calçadas era castigada a trinta dias de prisão e experimentava a ruína completa.

A dupla moral sexual e a dominação masculina também seriam causas da prostituição. A imposição da castidade, requerida apenas das mulheres, acabava por legitimar que aquelas que a violassem fossem rechaçadas pela sociedade, tendo como destino a atividade da prostituição. Agravavam a situação o despotismo do poder paterno e a indissolubilidade do casamento, que gerariam opressão e infâmia. Além disso, a educação destinada às mulheres, marcada pela dependência, as prepararia para exercerem tal atividade, conforme a autora argumentou:

A virtude ou o vício supõe a liberdade de fazer bem ou mal; mas qual pode ser a moral da mulher que não pertence a si mesma, que não tem nada próprio, e que toda sua vida foi preparada a se subtrair do arbitrário pela astúcia e da coação pela sedução. E quando é torturada pela miséria, quando vê o gozo de todos os bens ao redor dos homens, a arte de gostar, na qual foi educada não a conduz inevitavelmente à prostituição? (TRISTAN, 2009, p. 61).

Nesse sentido, se as mulheres estão submetidas ao julgo do homem, se não têm direito à educação profissional, se estão privadas de direitos civis, despojadas das propriedades que possam ter adquirido, privadas do exercício do poder, a não ser se utilizando das paixões, então, conclui Tristan, a lei moral não pode existir para as mulheres. Assim, “[...] até que a emancipação da mulher tenha lugar, a prostituição vai crescer todos os dias” (TRISTAN, 2009, p. 61).

2 Marx e Engels e as considerações sobre as mulheres e a prostituição

A questão das mulheres e o tema da prostituição também foram abordados nas obras de Marx e Engels. Como afirma Frédérique VINTEUIL (1989VINTEUIL, Frédérique. “Marxismo e feminismo”. Cadernos Democracia Socialista, v. 8, 1989.), os teóricos superaram os socialistas utópicos, que não foram além da descrição da inferioridade das mulheres e exigência da igualdade por via da justiça, para pensar a opressão das mulheres como produto das formações sociais (e, portanto, não entendida como natural e a-histórica). No entanto, Marx considerava essa opressão como derivada da lógica do materialismo e tanto ele quanto Engels não produziram uma teoria da subordinação das mulheres.

Na obra A Sagrada Família, publicada em 1844, Marx e Engels citaram a crítica do Príncipe Rodolfo à falta de lei contra a prática de um amo “perverter habitualmente” a servente, usando do terror, da surpresa e da natureza da domesticidade. Segundo os autores, falta a Rodolfo uma crítica da domesticidade e a consideração de como é “desumana a condição geral da mulher na sociedade moderna” (Karl MARX; Ernest ENGELS, 2003, p. 48). Em Manuscritos Econômicos-filosóficos, escrito em 1844, Marx (2004) diferencia casamento - entendido como uma forma de propriedade privada exclusiva e a “comunidade de mulheres”, que seria o estado em que elas se tornam “propriedade comum de todos” (MARX; ENGELS, 2008, p. 47).

Em 1847, Engels publicou Princípios básicos do comunismo, desenvolvendo a noção de abolição da família. Na obra, o autor faz muitas perguntas que buscam esclarecer os princípios teóricos fundamentais do comunismo. Uma delas diz respeito à influência da ordem social comunista sobre a família. Para Engels, o comunismo eliminaria a base fundamental do matrimônio burguês: a dependência das mulheres e dos filhos aos homens por meio da propriedade privada. O autor, reforçando os argumentos em torno da “comunidade de mulheres” e associando-a à noção de prostituição, argumentou:

A comunidade das mulheres é uma relação que pertence totalmente à sociedade burguesa e hoje em dia reside inteiramente na prostituição. A prostituição repousa, porém, sobre a propriedade privada, e cai com ela. Portanto, a organização comunista, em vez de introduzir a comunidade das mulheres, muito pelo contrário, suprime-a (MARX; Engels, 2008MARX, Karl; ENGELS, Ernest. Manifesto Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 48).

No Manifesto Comunista, publicado em 1848, Marx e Engels também argumentaram contra aqueles que denunciavam que o comunismo instituiria a “comunidade de mulheres”. Para eles, a ideia de que as mulheres são uma propriedade comum existiria “desde os tempos imemoriais” (MARX; ENGELS, 2008, p. 39) e também identificaram o fim da prostituição com a abolição do capitalismo:

O casamento burguês é, de fato, uma comunidade de mulheres casadas e, portanto, o máximo que se poderia criticar nos comunistas é pretenderem substituir uma comunidade de mulheres hipócrita e disfarçada por uma que seria franca e oficial. Quanto ao resto, é evidente que a abolição do atual sistema de produção causará o desaparecimento da comunidade de mulheres a ele inerente, ou seja, a prostituição pública e particular (Marx; Engels, 2008MARX, Karl; ENGELS, Ernest. Manifesto Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 40).

Para os teóricos, a família burguesa estava baseada no lucro privado e encontrava “seu complemento na ausência forçada de família entre os proletários e na prostituição” (Marx; Engels, 2008MARX, Karl; ENGELS, Ernest. Manifesto Comunista. São Paulo: Expressão Popular, 2008., p. 38). Portanto, a prostituição seria resultado das distorções decorrentes dos valores e práticas burguesas - a hipocrisia e a transformação das mulheres em propriedade. Apesar dessas considerações expostas aqui por Marx e Engels, é somente com a última obra escrita por Engels, Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, publicada pela primeira vez em 1884, que encontramos um enfoque sistemático da questão das mulheres (Vinteuil, 1989VINTEUIL, Frédérique. “Marxismo e feminismo”. Cadernos Democracia Socialista, v. 8, 1989.).

Nessa obra, Engels buscou explicar, a partir dos estudos antropológicos da época, a origem da família e da consequente opressão sobre as mulheres. De maneira muito breve, o autor demonstrou como as transformações da organização familiar foram associadas às transformações no modo de produção. O advento da propriedade privada teria provocado a derrota do matriarcado, a partir da instituição da família patriarcal monogâmica como parte do período da civilização (ENGELS, 1984).

Se nas organizações familiares precedentes a incerteza da paternidade levava à determinação do parentesco pela linhagem feminina, o advento da propriedade (decorrente da evolução das técnicas e instrumentos de trabalho) fez com que a preocupação relativa à herança fosse circunscrita em uma família em que o parentesco fosse determinado pelos homens. O advento da família monogâmica foi possível a partir da forte condenação do adultério para as mulheres e sua submissão ao controle masculino (Engels, 1984ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.).

Nesse sentido, o autor refutou noção frequente da época de que a monogamia seria uma reconciliação entre homem e mulher ou uma forma mais elevada de matrimônio, mas foi considerada por ele uma “forma de escravização de um sexo pelo outro” (Engels, 1984ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984., p. 70). Nesse sentido, o autor afirmou que: “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (ENGELS, 1984, p. 70-71).

A partir dessa constatação, Engels buscou compreender as opressões associadas à família e também como se daria a libertação das mulheres. O autor denunciou a divisão sexual do trabalho no interior da família individual moderna. Esta “baseia-se na escravidão doméstica, franca ou dissimulada, da mulher. [...] Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário” (ENGELS, 1984ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.). Por sua vez, o casamento, para o autor, era dissociado do amor sexual e associado à noção de prostituição e escravidão. Como veremos adiante, a associação entre prostituição e casamento é recorrente entre teóricos/as do marxismo. Para Engels (1984), o casamento se converte:

[...] na mais vil das prostituições, às vezes por parte de ambos os cônjuges, porém, muito mais habitualmente, por parte da mulher; esta só se diferencia da cortesã habitual pelo fato de que não aluga o seu corpo por hora, como uma assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava (p. 77).

Engels (1984ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.) também denunciou a prostituição como parte de uma moral sexual deformada entre os homens. O autor afirmou que a monogamia era exigida apenas entre as mulheres (portanto, a prostituição existiria em função dela): “aquilo que para a mulher é um crime de graves consequências legais e sociais, para o homem é algo considerado honroso, ou, quando muito, uma leve mancha moral que se carrega com satisfação” (ENGELS, 1984, p. 82).

Nesse sentido, o autor acreditava que a prostituição desmoralizava muito mais os homens do que as mulheres. “A prostituição, entre as mulheres, degrada apenas as infelizes que caem em suas garras, e mesmo a estas num grau menor do que se costuma julgar. Em compensação, envilece o caráter do sexo masculino inteiro” (Engels, 1984ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984., p. 82). Mais tarde, Alexandra Kolontai (1976KOLONTAI, Alexandra. La mujer en el desarrollo social. Barcelona: Editorial Guadarrama, 1976.; 1977) vai retomar essa crítica da prostituição como perversa para a psicologia masculina.

Finalmente, a transformação dos meios de produção levaria necessariamente ao fim da família burguesa - para Engels. As mulheres seriam incorporadas à indústria, os filhos seriam educados publicamente, o matrimônio perderia indissolubilidade e passaria a ser, enfim, o “triunfo do amor sexual” e a igualdade entre homens e mulheres seria plena. Além disso, a prostituição fatalmente ruiria com o fim da monogamia: “estamos caminhando presentemente para uma revolução social, em que as atuais bases econômicas da monogamia vão desaparecer, tão seguramente como vão desaparecer as da prostituição, complemento daquela” (ENGELS, 1984, p. 82). A prostituição seria produto, portanto, da necessidade de sobrevivência das mulheres e também da não exigência da monogamia para os homens:

[...] com a transformação dos meios de produção em propriedade social desaparecem o trabalho assalariado, o proletariado, e, consequentemente, a necessidade de se prostituírem algumas mulheres, em número estatisticamente calculável. Desaparece a prostituição e, em lugar de decair, a monogamia chega enfim a ser uma realidade - também para os homens (Engels, 1984ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 9.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984., p. 82).

É preciso fazer um parêntese sobre o fato de que muitas autoras reconheceram os limites da interpretação de Engels sobre a origem da opressão das mulheres e das estratégias de sua superação (De Miguel, 1993DE MIGUEL, Ana Álvarez. Marxismo y feminismo en Alejandra Kolontai. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1993.; Simone de Beauvoir, 1970BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.; Shulamith Firestone, 1976FIRESTONE, Shulamith. La dialectica del sexo: en defensa de la revolución feminista. Barcelona: Editorial Kairós, 1976.; Vinteuil, 1989VINTEUIL, Frédérique. “Marxismo e feminismo”. Cadernos Democracia Socialista, v. 8, 1989.). A ideia da derrota do matriarcado é simplificadora e homogeneizante diante dos diferentes processos de subordinação das mulheres ao longo da história (VINTEUIL, 1989).

Como nos afirma Carole Pateman (1993PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. São Paulo: Paz e Terra, 1993.), em O contrato sexual, a fascinação exercida pelas histórias de gênesis política da “derrota histórica mundial do sexo feminino” está associada à própria ideia da ficção política do contrato original para explicar o advento da ordem política moderna que, para a autora, é a história do patriarcado moderno. Além disso, Engels e outros marxistas do período subestimaram a função da família para o capitalismo (Vinteuil, 1989VINTEUIL, Frédérique. “Marxismo e feminismo”. Cadernos Democracia Socialista, v. 8, 1989.) e as diferentes formas de opressão sobre as mulheres que sobreviveriam, mesmo com a incorporação delas no trabalho remunerado.

3 As mulheres e o socialismo segundo August Bebel

Outra obra fundamental para analisar o debate socialista sobre a prostituição foi A mulher e o socialismo (1910), de August BEBEL (1840-1913), fundador e líder da social-democracia alemã. A obra foi publicada pela primeira vez em 1879 e editada várias vezes. Como nos afirma Kolontai (1976KOLONTAI, Alexandra. La mujer en el desarrollo social. Barcelona: Editorial Guadarrama, 1976.), o livro foi “convertido em um verdadeiro evangelho para a mulher trabalhadora” (p. 57), tendo sido traduzido em muitas línguas, inclusive chinês e japonês. Para De Miguel (2010DE MIGUEL, Ana Álvarez. “La articulación del feminismo y el socialismo: el conflicto clase-género”. In: AMORÓS, Celia; DE MIGUEL, Ana Álvarez (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: de la ilustración al segundo sexo, v. 1. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 295-332.), Bebel teve êxito em articular a questão feminina no socialismo científico. Para a análise aqui empreendida, interessa-nos o debate que o autor fez no capítulo 7, intitulado “Prostituição uma instituição social necessária para sociedade burguesa” [tradução do original].

Assim como Engels, Bebel (1910BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910.) associou prostituição e casamento não como equivalentes, mas como duas fases das relações sexuais na sociedade burguesa. Para ele, a prostituição não seria uma instituição natural, própria da humanidade (visão recorrente na cultura política da época), mas uma instituição social. Nesse sentido, Bebel polemizou com as teses de alguns autores que defendiam que a prostituição seria um mal necessário, tanto para proteger as mulheres “virtuosas” do adultério, quanto para prevenir que todos satisfizessem seus desejos sexuais no casamento, uma vez que esse fato geraria uma superpopulação, sem acesso à educação e que teria potencial de se tornar inimiga da sociedade (BEBEL, 1910). Para esses autores, o Estado deveria garantir prostitutas livres de sífilis, confinadas em algumas ruas e que contribuíssem com impostos.

Bebel refutou esses argumentos dizendo que essas posições encarnavam o egoísmo masculino ao exigir o celibato apenas para as mulheres, e que o Estado não poderia funcionar em prol do interesse exclusivo dos homens. O autor se revoltou com a dupla moral sexual, que exigia a castidade apenas para as mulheres, afinal, assim como os homens, elas também teriam impulsos sexuais. Para ele, “[...] nada ilustra de maneira mais drástica e também revoltante, a dependência das mulheres sobre homens que essa concepção radicalmente diferente concernente à gratificação do impulso natural idêntico e a medida radicalmente diferente pela qual é julgada” (BEBEL, 1910, p. 146).

Essa problematização sobre o desejo sexual feminino será mais tarde retomada por Alexandra Kolontai e terá posteriormente um lugar importante para Simone de Beauvoir e a luta política feminista da segunda onda.6 6 A segunda onda pode ser caracterizada como uma importante ascensão do feminismo como movimento político e como teoria da emancipação, especialmente a partir dos anos 60, em várias partes do mundo. Influenciadas pela emergência dos novos movimentos sociais, pelo momento irruptivo de maio de 68 e pelo movimento por direitos civis nos Estados Unidos, e também pelos debates na esquerda (Alicia H. PULEO, 2010). Na obra de Bebel, a problematização é incipiente e ambígua em relação à sua consideração sobre a decência e temperança. Para o autor:

Satisfação sexual excessiva é infinitamente mais danosa do que pouca satisfação. Um corpo, abusado pelo excesso, perde o controle, mesmo sem doenças venéreas. Impotência, esterilidade, problemas na coluna, insanidade, ou ao menos fraqueza intelectual, além de muitas outras doenças, estão entre as consequências usuais. Temperança é necessária para relação sexual, assim como para comer e beber e para todos os outros desejos humanos (Bebel, 1910BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910., p. 164-165).

Para o autor, não seria fácil manter a temperança para aqueles acostumados com a luxúria. O autor relata que “práticas não naturais”, que remontavam à Grécia antiga, como o “amor lésbico”, estavam se popularizando entre as mulheres, ao qual se refere como uma perversidade, tal como a sodomia e a pedofilia.

Ao mesmo tempo, Bebel denunciou fortemente a hipocrisia que envolvia a prostituição, que afirmou ser “uma instituição social necessária para a sociedade burguesa, assim como a polícia, o exército, a igreja e a classe capitalista” (BEBEL, 1910, p. 146). A hipocrisia envolveria o Estado, a religião e os clientes, afirmando que ela nunca foi tão espalhada quanto na sociedade burguesa. Sobre os clientes, Bebel denunciou que oficiais públicos, militares, representantes do povo, juízes e aristocratas frequentavam bordéis enquanto eram vistos como guardiões da moralidade pública e da santidade do casamento e da família. Alguns seriam inclusive líderes de caridade cristã e membros de organizações que “combatiam a prostituição”.

O autor também denunciou a posição ambígua do Estado perante a prostituição - de um lado perseguindo e punindo as prostitutas e proxenetas e, do outro, reconhecendo oficialmente a prática. Nesse sentido, Bebel (1910BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910.) condenou fortemente o controle policial que as prostitutas sofriam e os exames médicos regulares e compulsórios, implementados também na Alemanha. O autor, que cita a luta de Josephine Butler7 7 Ver nota de rodapé 2. na Inglaterra contra as leis de controle das doenças venéreas, via nesses exames a prova de que as mulheres estavam excluídas da lei. Além disso, a regulação do Estado, por meio do controle das prostitutas, não seria eficaz ao estimular comportamento masculino imprudente e não promover exames nos homens, que seriam os verdadeiros hospedeiros dos germes das doenças.

O autor também discorreu sobre o tráfico de mulheres, que seria uma atividade de larga escala, bem organizada, raramente detectada pela polícia. Para Bebel, as mulheres não diferenciariam de mercadorias nesse tráfico. Nesse sentido, o autor denunciou ainda a ação dos proxenetas, que escravizavam as mulheres e meninas traficadas (muitas eram menores de idade). Bebel detalhou inclusive as rotas do tráfico das europeias, incluindo países da América do Sul como o Brasil e a Argentina.8 8 A preocupação de Bebel sobre o tráfico refletia o debate público sobre a questão na Europa. Na Inglaterra, por exemplo, o problema do “tráfico das brancas”, como foi intitulado, ainda que fosse real, ganhou dimensões caricatas e exageradas na opinião pública, especialmente devido à divulgação de histórias em tabloides que emergiram na época, gerando certo pânico moral (Judith R. WALKOWITZ, 1982). O tema angariou a preocupação dos governos e uma agenda de combate ao tráfico foi um importante espaço de intervenção das mulheres, em conferências diplomáticas e, mais tarde, na Liga das Nações (Sheila JEFFREYS, 1997).

Ao argumentar sobre o que levaria as mulheres a entrarem na prostituição, o autor acusou os baixos salários ganhos pelas mulheres e a crise industrial, levando miséria para muitas famílias. O autor também reconheceu haver fatores além das privações econômicas, que influenciariam as mulheres a se prostituírem, já que muitas “são atraídas pelo brilho superficial da aparente vida livre” (Bebel, 1910BEBEL, August. Women under socialism. New York: Socialist Literature Co., 1910., p. 161), sendo a prostituição composta por mulheres de todos os estratos da sociedade. Nesse sentido, Bebel aponta que aquelas das classes altas seriam movidas pela “sedução, inclinação para uma vida fácil, para vestir e se divertir” (BEBEL, 1910, p. 161).

Por fim, Bebel acreditava que a abolição da propriedade privada e o advento da sociedade socialista transformariam a situação das mulheres. No capítulo intitulado “As mulheres do futuro”, o autor desenha uma sociedade em que elas possuem independência econômica e social, têm oportunidade de se educar, de trabalhar e de cultivar as artes, poderiam viver sua sexualidade segundo a sua escolha (no escopo das relações heterossexuais, há que se remarcar) e uma união que não a satisfizesse poderia ser encerrada sem maiores problemas, apesar de que o autor acredita que muitos dos problemas vividos pelos casais também desapareceriam com a nova ordem. Enfim, a prostituição seria abolida. Ao unir teoria e prática, o socialismo instituiria a completa liberdade e fraternidade entre todas as pessoas (BEBEL, 1910).

4 Zetkin e Kolontai: visões do feminismo socialista clássico sobre a prostituição

Clara Zetkin (1857-1933) foi uma incansável militante feminista e comunista e será aqui analisada pelo seu papel na luta feminista socialista. Ela foi dirigente do Partido Social-Democrata Alemão e mais tarde da dissidência que formou o Partido Comunista Alemão e dedicou sua vida na organização de um movimento internacional de mulheres proletárias. Foi redatora de jornais femininos e sua contribuição principal foi mais na articulação prática do feminismo do que na teoria, tendo como produção panfletos e conferências (DE MIGUEL, 2010).

Como afirma De Miguel (2010DE MIGUEL, Ana Álvarez. “La articulación del feminismo y el socialismo: el conflicto clase-género”. In: AMORÓS, Celia; DE MIGUEL, Ana Álvarez (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: de la ilustración al segundo sexo, v. 1. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 295-332.), Zetkin buscou construir a ideia de que os interesses das mulheres não eram homogêneos, mas determinados pela sua situação de classe. Para ela, as mulheres seriam oprimidas pelo sistema capitalista e não pelos homens (DE MIGUEL, 2010). Assim como os autores analisados anteriormente, Zetkin (1976) acreditava que a família burguesa seria mero acordo econômico e que a prostituição seria análoga a ela:

[...] em que se funda a família atual, a família burguesa? No capital, no lucro privado. Só a burguesia tem uma família, no pleno sentido da palavra; e esta família encontra seu complemento na carência forçosa das relações familiares dos proletários e na prostituição pública (Zetkin, 1976ZETKIN, Clara. La cuestión feminina y el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976., p. 28).

Zetkin analisou a situação das mulheres nas famílias burguesas, na pequena burguesia e também entre o proletariado. Sua conclusão é a de que as proletárias vivenciavam uma relação de igualdade com os proletários. No caso das altas burguesas, elas experimentavam certa liberdade de desenvolver a individualidade, a partir do seu patrimônio, mas viviam dependentes do marido, em casamentos fundados no dinheiro e, assim, citando Fourier (apudZETKIN, 1976ZETKIN, Clara. La cuestión feminina y el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976.), é caracterizada a relação entre esposa e marido de dupla prostituição.9 9 “Na moral matrimonial duas prostituições fazem uma virtude” (Clara ZETKIN, 1976, p. 38). Por sua vez, as mulheres da pequena e média burguesia estavam experimentando uma piora nas condições de vida, ao mesmo tempo em que crescia o número de mulheres solteiras que eram rechaçadas pela sociedade. Esse aumento se dava pelo fato de que os homens tinham cada vez menos interesse em se casar - não eram recriminados por isso e achavam na prostituição a satisfação sexual. A oferta de prostitutas era garantida pela exploração capitalista sobre as mulheres (ZETKIN, 1976).

No texto “Diretrizes para o movimento comunista feminino”, escrito em 1920, Zetkin argumentou que a oposição de muitos homens, inclusive de sindicalistas, ao trabalho produtivo das mulheres e a crescente desocupação e miséria delas faria com que a prostituição se intensificasse, a qual ela identifica ter formas das mais variadas: “[...] desde o matrimônio por conveniência, até a venda crua do corpo feminino sob a forma de trabalho sexual pago por serviço” (ZETKIN, 1976, p. 55). É preciso destacar que, entre todos/as autores/as aqui analisados, somente Zetkin caracterizou a prostituição também como um trabalho, que será o tom dos debates mais atuais sobre o tema.

Nesse texto, Zetkin elaborou diretrizes para “os países nos quais o proletariado conquistou o poder estatal e edificou seu domínio no sistema de soviets, como na Rússia” (ZETKIN, 1976, p. 57). Dentre muitas propostas, está:

Promoção de instituições análogas para a assistência dos enfermos, incuráveis e inválidos: provisões econômicas e educativas que permitam a recuperação das prostitutas - herança do sistema burguês - e do subproletariado para a comunidade produtiva (Zetkin, 1976ZETKIN, Clara. La cuestión feminina y el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976., p. 58).

Para aqueles países “nos quais o proletariado segue lutando pela conquista do poder político” (Zetkin, 1976ZETKIN, Clara. La cuestión feminina y el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976., p. 58), a diretriz relativa à prostituição era:

Adoção das disposições econômicas e sociais adequadas para combater a prostituição; medidas higiênicas contra a difusão das enfermidades venéreas; eliminação do preconceito social em relação às prostitutas; superação da dupla moral sexual, distinta para os dois sexos (Zetkin, 1976ZETKIN, Clara. La cuestión feminina y el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976., p. 59).

Alexandra Kolontai (1872-1945) foi dirigente do Partido Comunista Russo e importante articuladora do movimento de mulheres trabalhadoras no seu país. Foi fundamental para reivindicar que as mulheres tivessem espaço no Partido e jogou luz sobre como a revolução bolchevique não poderia prescindir da igualdade entre homens e mulheres, sob o risco de fracassar. Suas críticas sobre os cursos da revolução, depois de 1918, vão fazer com que perca o posto de ministra e passe a ser embaixadora fora da Rússia. Conforme afirma De Miguel (1993DE MIGUEL, Ana Álvarez. Marxismo y feminismo en Alejandra Kolontai. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1993.), Kolontai foi marginalizada em primeiro lugar entre os dirigentes políticos marxistas do seu tempo e, em segundo, foi pouco reconhecida no próprio movimento feminista do século XXI.

Suas obras articularam da forma mais racional e sistemática o feminismo e marxismo (DE MIGUEL, 2010DE MIGUEL, Ana Álvarez. “La articulación del feminismo y el socialismo: el conflicto clase-género”. In: AMORÓS, Celia; DE MIGUEL, Ana Álvarez (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: de la ilustración al segundo sexo, v. 1. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 295-332.). Em La mujer en el desarrollo social (A nova mulher e a moral sexual),10 10 Coletânea de dois textos de Kolontai escritos em 1918 e 1921, cuja publicação utilizada neste artigo é de 2007. a autora construiu a ideia de que uma revolução dos modos de produção deveria ser acompanhada de uma revolução na vida privada, nas relações sexuais, afetivas e morais, enfim, seria necessária uma nova psicologia, um novo homem e uma nova mulher: “Ao mesmo tempo em que se experimenta uma transformação das condições econômicas, simultaneamente à evolução das relações da produção, experimenta-se a mudança no aspecto psicológico da mulher” (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 16).

Nesse sentido, a autora difere dos autores marxistas precedentes, já que, para ela, não bastaria o fim do capitalismo para acabar com a opressão das mulheres. Seus apontamentos sobre a necessidade de politização do mundo privado e de que a revolução não poderia parar na porta de casa antecederam todo o movimento feminista da segunda onda.11 11 Essa visão de Kolontai encontrava oposição inclusive no interior do seu partido. Em cartas trocadas entre Clara Zetkin e Lênin, o último reprovava o fato de algumas comunistas alemãs se ocuparem de questões relativas à sexualidade, “desviando-se” do objetivo maior da revolução: “O primeiro estado no qual se realizou a ditadura proletária está cercado de contrarrevolucionários de todo o mundo. A situação da própria Alemanha exige a máxima união de todas as forças revolucionárias proletárias para repelir os ataques sempre mais vigorosos da contrarrevolução. E, agora, justamente agora, as comunistas ativas tratam da questão sexual, das formas de casamento no passado, no presente e no futuro, julgam que seu primeiro dever é instruir as operárias nessa ordem de ideias. Disseram-me que o folheto de uma comunista vienense sobre a questão sexual tivera amplíssima difusão. Que tolice, esse folheto!” (ZETKIN apud PARADIS; DE ROURE, 2013, p. 145). Conforme a autora apresenta,

é imperdoável nossa atitude de indiferença diante de uma das tarefas essenciais da classe trabalhadora. É inexplicável e injustificável que o vital problema sexual seja relegado, hipocritamente, ao arquivo das questões puramente privadas. Por que negamos a este problema o auxílio da energia e da atenção da coletividade? As relações entre os sexos e a elaboração de um código sexual que regulamente estas relações aparecem na história da humanidade, de maneira invariável, como um dos fatores da luta social (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 54).

Para Kolontai (2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007.), a nova mulher que estava surgindo no seio da classe operária, no processo da revolução, era livre, independente, constituíra uma individualidade capaz de protestar contra qualquer opressão e contribuir com a reivindicação dos seus direitos e exercia uma nova moral sexual:

As mulheres do novo tipo, ao criar os valores morais e sexuais, destroem os velhos princípios na alma das mulheres que ainda não se aventuraram a empreender a marcha pelo novo caminho. São estas mulheres do novo tipo que rompem com os dogmas que as escravizavam (p. 24).

Ao discutir sobre a crise sexual da sua época, a autora reconheceu que as formas de união intersexuais do período estavam em crise e deveriam ser repostas por novas formas de valorizar a sexualidade, que estivessem livre dos valores burgueses da individualidade e superioridade masculina e sim condizentes com as ideias emergentes na revolução, como a da solidariedade e camaradagem (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007.). Como nos mostra De Miguel (2010DE MIGUEL, Ana Álvarez. “La articulación del feminismo y el socialismo: el conflicto clase-género”. In: AMORÓS, Celia; DE MIGUEL, Ana Álvarez (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: de la ilustración al segundo sexo, v. 1. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 295-332.), a injustiça da dupla moral gerava crise de valores na época e novas ideias passaram a ganhar terreno, como a ideia do amor livre. Para construir seus argumentos, Kolontai analisou três formas de união entre os sexos - o casamento legal, a prostituição e a união livre -, formas essas incapazes de revestir os indivíduos dos valores necessários para se transformar a moral sexual.

No que se refere ao casamento, a autora criticou fortemente o fato de as mulheres serem obrigadas a serem virgens ao casar e também condenou sua indissolubilidade, bem como a ideia de posse na relação matrimonial, afinal, não seria possível compatibilizar a ideia de solidariedade, se um dos dois - frequentemente as mulheres - era visto como propriedade do seu cônjuge. Tal como afirma Kolontai (2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007.): “O matrimônio legal está fundado em dois princípios igualmente falsos: a indissolubilidade, por um lado, e o conceito de propriedade, da posse absoluta de um dos cônjuges pelo outro” (KOLONTAI, 2007, p. 31).

As considerações de Kolontai sobre a prostituição partiram de outro aspecto do debate, até então não completamente desenvolvido pelos/as autores/as analisados anteriormente. Apesar de associar a prostituição às misérias sociais, sofrimentos físicos, enfermidades e “degenerescência da raça”, a autora escolhe abordar a prostituição desde sua influência na psicologia humana. Para Kolontai (2007): “Não há nada que prejudique tanto as almas como a venda forçada e a compra de carícias de um ser por outro com que não tem nada em comum. A prostituição extingue o amor nos corações” (KOLONTAI, 2007, p. 34).

A prostituição deformaria as relações sexuais, a partir de sua visão de que a sexualidade seria uma forma elevada de enriquecimento pessoal, o espaço do prazer, do amor, da cumplicidade, ou seja, de sentimentos elevados. Nesse sentido, ela deveria estar fora do alcance das relações mercantis, sob pena de transformar a sexualidade em um ato rebaixado:

A prostituição deforma as ideias normais dos homens, empobrece e envenena o espírito. Rouba o que é mais valioso nos seres humanos, a capacidade de sentir apaixonadamente o amor, essa paixão que enriquece a personalidade pela entrega dos sentimentos vividos. A prostituição deforma todas as noções que nos levam a considerar o ato sexual como um dos fatores essenciais da vida humana, como o acorde final de múltiplas sensações físicas, levando-nos a estimá-lo, em troca, como um ato vergonhoso, baixo e grosseiramente bestial (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 35).

Além disso, a autora estava particularmente preocupada com os efeitos da prostituição para a construção da sexualidade masculina (De Miguel, 2010DE MIGUEL, Ana Álvarez. “La articulación del feminismo y el socialismo: el conflicto clase-género”. In: AMORÓS, Celia; DE MIGUEL, Ana Álvarez (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: de la ilustración al segundo sexo, v. 1. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 295-332.). A prática em questão faria com que os homens se acostumassem a viver relações sexuais baseadas na submissão e desigualdade e na satisfação sexual apenas de si mesmos, sem se importar com o prazer sexual de suas parceiras. Como afirmou a autora,

a vida psicológica das sensações na compra de carícias tem repercussões que podem produzir consequências muito graves na psicologia masculina. O homem acostumado à prostituição, relação sexual na qual estão ausentes os fatores psíquicos capazes de enobrecer o verdadeiro êxtase erótico, adquire o hábito de se aproximar da mulher com desejos reduzidos, com uma psicologia simplista e desprovida de tonalidades. Acostumado com as carícias submissas e forçadas, nem sequer tenta compreender a múltipla atividade a que se entrega a mulher amada durante o ato sexual. Esse tipo de homem não pode perceber os sentimentos que desperta na alma da mulher. É incapaz de captar seus múltiplos matizes (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 35).

A união livre tampouco seria uma solução para a crise sexual. Afinal, ela não seria acompanhada de uma transformação da psicologia humana, deformada tanto pelo matrimônio legal, quanto pela prostituição. O individualismo essencial para o mundo da época impediria que as pessoas experimentassem o amor verdadeiro (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007.). Nesse sentido, Kolontai acreditava em um novo tipo de amor, fruto de uma verdadeira revolução na vida pessoal e que seria a única solução para a crise sexual: um amor baseado na camaradagem:

Este princípio básico da ideologia da classe ascendente [a camaradagem] é o que dá colorido e determina o novo código em formação da moral sexual do proletário, pelo qual se transforma a psicologia da humanidade, chegando a adquirir uma acumulação de sentimentos, de solidariedade e de liberdade, ao invés do conceito de propriedade: uma acumulação de companheirismo ao invés dos conceitos de desigualdade e de subordinação (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 71).

Substituindo o sentimento de posse e a desigualdade inerente a esse sentimento, o amor poderia triunfar plenamente, a partir da liberdade, igualdade e solidariedade entre os amantes e entre toda a sociedade:

Pretendemos conquistar a totalidade da alma do ser amado, mas, em compensação, somos incapazes de respeitar a mais simples fórmula do amor: acercarmo-nos do outro dispostos a dispensar-lhe todo o gênero de considerações. Esta simples fórmula nos será unicamente inculcada pelas novas relações entre os sexos, relações que já começaram a se manifestar e que estão baseadas também em dois princípios novos: liberdade absoluta, por um lado, e igualdade e verdadeira solidariedade entre companheiros, por outro (Kolontai, 2007KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular, 2007., p. 57).

A luta pela abolição da prostituição, acompanhada dos novos valores defendidos por Kolontai, fez parte do programa dos partidos socialistas, tal como as diretrizes das mulheres comunistas escritas por Zetkin, bem como fez parte do programa de governo do Estado bolchevique. Em 1921, Kolontai professou discurso na Terceira Conferência de toda a Rússia de Chefes de Departamentos Regionais de Mulheres, intitulado “Prostituição e formas de lutar contra ela” (inKOLONTAI, 1977KOLONTAI, Alexandra. Selected Writings of Alexandra Kolontai, Allison & Busby, 1977. Disponível em: Disponível em: https://www.marxists.org/archive/kollonta/1921/prostitution.htm . Acesso em: 19/08/ 2015.
https://www.marxists.org/archive/kollont...
), em que cobrou um empenho maior da república dos trabalhadores para aprovar uma lei que visasse à eliminação dessa prática. Ainda que os mesmos argumentos construídos por ela nos textos reunidos no livro A nova mulher e a moral sexual comparecessem no discurso, o tom estava envolto de certo pragmatismo em torno das possíveis ações estatais para a eliminação da prostituição.

É preciso lembrar que os primeiros anos da revolução russa foram bastante duros, tanto do ponto de vista da precariedade dos meios de sobrevivência das pessoas, quanto do desafio de tornar o programa socialista uma realidade (Paradis; De Roure, 2013PARADIS, Clarisse; DE ROURE, Sarah. “Origens históricas do feminismo socialista e as mulheres na Rússia revolucionária”. Revista Democracia Socialista, São Paulo, n. 1, p. 129-152, 2013.; Wendy Goldman, 2014GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e revolução: política da família soviética e da vida social entre 1917 e 1936. São Paulo: Boitempo; ISKRA, 2014.). Além disso, como nos mostra Goldman (2014), a visão socialista de liberação esteve marcada pela tensão entre o individual e o coletivo/Estado, afinal, se de um lado a ideologia bolchevique promovia liberdade individual, por outro aumentava tremendamente o papel social do Estado, especialmente ao suplantar a eliminação de instituições intermediárias como a família.

Uma das questões centrais para o Estado bolchevique em relação às mulheres era garantir sua participação, em pé de igualdade, no trabalho produtivo. Isso se daria a partir da socialização do trabalho reprodutivo e de garantias de trabalho produtivo e igual salário. Em seu discurso, Kolontai reconheceu que, embora as principais fontes da prostituição tivessem sido abolidas - propriedade privada e políticas de reforço da família -, outras condições contribuíam para que a prostituição persistisse, como a falta de habitação, a solidão e os baixos salários. Como afirmou Kolontai (1977): “nosso aparato produtivo está ainda em estado de colapso e o deslocamento da economia nacional continua. Essas e outras condições econômicas e sociais levam as mulheres a prostituírem seus corpos”.

Dada essa situação, Kolontai argumentou que o Estado bolchevique deveria ser enérgico em combater esse mal, que começaria entendendo o que é a prostituição e quais as suas causas. Nesse sentido, ela seria fruto da condição econômica e da educação das mulheres incentivadas a trocar favores sexuais por benefícios dos homens.12 12 O argumento que relaciona a prostituição com a educação recebida pelas mulheres já comparecia na obra de Flora Tristan, conforme analisamos. A autora definiu as prostitutas como as mulheres “que vendem seus corpos por benefício material - comida decente, roupas e outras vantagens; prostitutas são as que evitam a necessidade de trabalharem, para dar-se a um homem, seja temporariamente ou para toda a vida” (KOLONTAI, 1977). A partir dessa definição, tanto as mulheres que vendiam serviços sexuais, quanto as sustentadas pelos seus maridos, seriam igualmente prostitutas.

A partir dessa definição, as políticas de combate à prostituição passariam por uma política de punição das prostitutas, não a partir de um entendimento calcado na falta de moralidade delas, mas porque o critério de cidadania no Estado Bolchevique era exatamente seu envolvimento no trabalho produtivo.13 13 Essa constatação se confirma pelo fato de que Kolontai defendia que as mulheres que tinham carteira de trabalho, mas se prostituíam como uma fonte secundária de renda, não poderiam ser processadas (KOLONTAI, 1977). Assim, as prostitutas viveriam às custas de outros e seu trabalho não contribuiria para a coletividade:

[...] Nós sabemos que só podemos construir uma nova economia comunista se todos os cidadãos adultos se envolverem com o trabalho produtivo. A pessoa que não trabalha e vive à custa de outro ou de um salário imerecido prejudica o coletivo e a república (Kolontai, 1977KOLONTAI, Alexandra. Selected Writings of Alexandra Kolontai, Allison & Busby, 1977. Disponível em: Disponível em: https://www.marxists.org/archive/kollonta/1921/prostitution.htm . Acesso em: 19/08/ 2015.
https://www.marxists.org/archive/kollont...
).

Essa situação não poderia ser tolerada, afinal, ela “reduz as reservas de energia e o número de mãos de trabalhadores que estão criando a saúde nacional e o bem-estar geral, do ponto de vista da economia nacional, a prostituta profissional é uma desertora de trabalho” (Kolontai, 1977KOLONTAI, Alexandra. Selected Writings of Alexandra Kolontai, Allison & Busby, 1977. Disponível em: Disponível em: https://www.marxists.org/archive/kollonta/1921/prostitution.htm . Acesso em: 19/08/ 2015.
https://www.marxists.org/archive/kollont...
).

Assim, tanto as mulheres que “se vendiam” para um ou para muitos, que se negavam a fazer parte da produção ou do cuidado das crianças, fossem elas prostitutas profissionais ou esposas dependentes, estavam passivas de serem forçadas a trabalhar. Além disso, por mais que Kolontai considerasse que não eram apenas as prostitutas que espalhavam doenças venéreas, a abolição da prostituição era justificada, em associação a outras medidas, para garantir a higiene e a saúde das pessoas (KOLONTAI, 1977).

Finalmente, a autora convocou os departamentos de mulheres a ter um papel ativo na abolição da prostituição - garantindo melhores salários para as mulheres, promovendo treinamento e qualificação profissional para elas, fornecendo habitações apropriadas e contribuindo para elevação da consciência política das mulheres trabalhadoras.

Kolontai foi, sem dúvida, fundamental para a politização do mundo privado no contexto da revolução russa, vivenciando forte oposição de alguns dos seus companheiros de partido. Suas contribuições para construir novos arranjos sexuais e afetivos, calcados nos valores da igualdade, solidariedade e liberdade eram de fato revolucionárias e chocavam-se com as posições conservadoras que ainda pairavam no seu país. A prática dessa nova ordem social enfrentará muitos desafios, desde aqueles relacionados à extrema pobreza, até desafios e tensões em torno da relação entre o individual e o coletivo e em torno da garantia de democracia e soberania popular. Essas últimas vão se acirrar ao longo do tempo, com retrocessos também para os direitos das mulheres no período do stalinismo.

Considerações finais

As teorias do socialismo foram uma das vozes críticas à instituição da prostituição no século XIX e início do século XX. O debate também esteve presente entre diferentes discursos - no liberalismo democrático de John Stuart MILL (apud DE MIGUEL; Eva CERMEÑO, 2011)14 14 Em 1870, John Stuart Mill foi convocado para expressar sua opinião em uma comissão real sobre as Leis de Doenças Venéreas, na qual apresentou sua oposição às leis, entendendo que elas representavam uma intromissão ilegítima sobre a liberdade das mulheres (DE MIGUEL; CERMEÑO, 2011). e nas reivindicações do movimento sufragista. Também permeava na cultura política do século XIX a noção da prostituição como um mal menor, como uma prática inevitável, ou até necessária, uma vez que ela protegeria as mulheres “de família” do estupro, contra uma sexualidade masculina incontrolável e funcionaria, portanto, na preservação das instituições familiares. No entanto, a visão de que a prostituição é um trabalho como outro qualquer parece só comparecer no debate político muito recentemente, próprio da segunda metade do século XX.

Por mais que o conservadorismo ainda existisse mesmo em expressões do movimento operário (PARADIS; DE ROURE, 2013PARADIS, Clarisse; DE ROURE, Sarah. “Origens históricas do feminismo socialista e as mulheres na Rússia revolucionária”. Revista Democracia Socialista, São Paulo, n. 1, p. 129-152, 2013.), os/as autores/as aqui analisados trataram de construir um discurso alternativo ao pensamento conservador da época. Diante das formas atrozes de desumanização dos/as trabalhadores/as no contexto do capitalismo industrial, a prostituição era entendida como uma instituição fundamental para manutenção da hipócrita moral burguesa e para a manutenção das desigualdades de gênero e classe. Os autores partiram, portanto, da crítica ao capitalismo e suas instituições sociais para denunciar a opressão das mulheres da classe trabalhadora, na qual as prostitutas eram significativamente representadas, e buscaram imaginar uma nova moralidade condizente com as promessas do socialismo, baseada em relações igualitárias, fundamentadas no ideal de solidariedade e na liberdade como autonomia.

Flora Tristan, no processo de escrita da obra Passeios em Londres se valeu de observações in locuo da realidade da prostituição, o que permitiu denunciar a face perversa da pujança do capitalismo inglês, da desigualdade jurídica das mulheres em relação aos proxenetas e da dupla moral sexual. No entanto, sua ação, como socialista utópica, se encerrou na denúncia e, tal como seus contemporâneos, a autora não documentou nenhum tipo de diálogo com as mulheres que observou.

A partir do socialismo marxista, a opressão das mulheres e a prostituição passaram a ser pensadas como fruto da propriedade privada e dos arranjos familiares burgueses. Entre Marx, Engels e Bebel prevaleceu a ideia limitada de que a prostituição se extinguiria tão logo a revolução triunfasse e a propriedade privada fosse abolida. No entanto, os autores fizeram críticas importantes, como a de Engels sobre o efeito da prostituição nos homens, que depois foi retomado por Kolontai e Bebel ao admitirem que as mulheres também tivessem “impulsos sexuais”.

Clara Zetkin buscou pensar a prostituição, assim como seus precedentes - como um produto da exploração capitalista sobre as mulheres, da deformação moral dos homens e da família burguesa e da dupla moral sexual que exigia das mulheres um comportamento centrado na castidade e indissolubilidade do casamento. Assim como Tristan, buscou criar certa solidariedade com a situação das mulheres prostitutas, ao redigir a última diretriz que buscava acabar com o preconceito em relação a elas. Por outro lado, não conseguiu romper com o reducionismo do marxismo do período.

A imagem quase idílica de Bebel sobre o socialismo e a mulher do futuro e as contribuições de Marx, Engels e Zetkin revelam como o marxismo nesse período fundamentava sua compreensão da opressão das mulheres como advinda do capitalismo e da propriedade privada. Heidi Hartmann (1988HARTMANN, Heidi. Un matrimonio mal avenido: hacia una unión más progresiva entre marxismo y feminismo. Fundación Rafael Campalans, n. 88, p. 1-32, 1988.), no famoso ensaio “Um matrimônio infeliz: por uma união mais progressiva entre marxismo e feminismo”, apontou que, assim como os liberais, o marxismo clássico acreditava que o capitalismo teria acabado com o patriarcado. Este seria uma “relíquia do passado”. Assim, a conclusão não poderia ser outra: o fim da opressão das mulheres se daria com o fim do capitalismo.

Especialmente a partir da década de 1970, as feministas apontaram o quanto essa perspectiva dificultou o diálogo entre feminismo e marxismo no século XX, não necessariamente porque este último desconsiderou o patriarcado, haja vista a análise de obras como a de Marx e Engels, mas porque ela facilitou uma visão ortodoxa, que relegava as demandas feministas para o segundo plano.

Além disso, boa parte dos argumentos desenvolvidos por Tristan a Kolontai parece ter sido organizada sem qualquer diálogo documentado com as mulheres prostitutas, isto é, a prostituição não compareça na primeira pessoa. O efeito desse limite é prejudicar a percepção da variedade de motivações que levavam as mulheres a se prostituírem, bem como da insuficiência de se pensar que a prostituição acabaria tão logo as relações de exploração no bojo do capitalismo cessassem.

Kolontai foi além ao politizar que a revolução socialista só poderia se cumprir se também transformasse a opressão simbólica das mulheres, politizasse o mundo privado e interferisse sobre as relações pessoais. Nesse sentido, sua contribuição sobre o efeito da prostituição para que os homens vivessem a sexualidade de maneira a subordinar os desejos e vontades das mulheres é um aspecto importante, que será retomado no debate mais atual. Tanto a autora como Zetkin buscaram influenciar as ações do Estado em prol do fim da prostituição. Nesse ponto, principalmente no Estado Bolchevique, prevalecerá ainda uma lógica persecutória em relação às prostitutas, ainda que em muitos outros domínios da vida das mulheres os avanços nos primeiros anos da revolução tenham sido extensos.

Há alguns pontos em comum entre as autoras e autores do socialismo utópico ao feminismo bolchevique: em maior ou menor medida, a prostituição é considerada, antes de tudo, como uma instituição para além do âmbito privado e da intimidade, mas como uma instituição política. Nesse sentido, a crítica dessa instituição não se dava de forma isolada, mas a conectando com a hipocrisia da sociedade, com as deformidades da instituição matrimonial, calcada na exigência da castidade para as mulheres em convivência com a dupla moral sexual para os homens, com a mercantilização das esferas da vida e das contradições que o capitalismo produzia especialmente entre as mulheres trabalhadoras. Por fim, as autoras/es identificam uma utopia de que as relações entre homens e mulheres libertárias e igualitárias estavam em contradição com a prática da prostituição.

O século XX assistiu a mudanças importantes tanto na organização da prostituição, como na discussão em torno de sua legitimidade. Hoje a indústria sexual é um setor de grande escala, concentrado, que opera em um mercado global multimilionário, a partir de diversas modalidades.

O que a situação atual dessa indústria nos mostra é que uma rearticulação do discurso sobre a prostituição teve que ser produzida de modo a normalizar a ideia da prostituição, haja vista a decadência da cultura da dupla moral sexual, que foi combatida pelas culturas progressistas desde o século XVIII. Nesse sentido, se o capitalismo não ruiu, tal como previam os socialistas do século XIX, parece ter se refinado e aprofundado os modos de mercantilização e servidão que Marx, Tristan e os/as outros/as autores/as analisados/as tão bem demonstraram.

No campo dos debates políticos, houve um considerável acirramento e polarização das posições em relação à prática. O campo conservador defende a proibição da prostituição e a perseguição dos sujeitos que a praticam; o campo abolicionista busca construir um horizonte ético de fim da prostituição, reconhecendo nela bases violentas, patriarcais e mercantilizadoras, enquanto um campo mais liberacionista reconhece a necessidade de encarar a prostituição como um trabalho, garantindo condições seguras para sua prática e direitos trabalhistas para os sujeitos que sobrevivem dela.

Resgatar o debate histórico sobre esse tema contribui para abordar esse dissenso a partir das potencialidades e limites do marxismo para pensar os dilemas dos processos de emancipação das mulheres. Precisar a relação entre igualdade, liberdade, autonomia, reconhecimento e sexualidade é tarefa que se desdobra para que seja possível constituir diálogos construtivos para (re)pensar a prostituição como uma instituição que ainda hoje regula as relações de gênero, classe e raça.

Referências

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  • ZETKIN, Clara. La cuestión feminina y el reformismo Barcelona: Anagrama, 1976.
  • 1
    A história do feminismo tem sido narrada por meio da ideia das ondas. Basicamente, a primeira onda se desenvolveu na segunda metade do século XIX e início do século XX, a partir das denominadas sufragistas, que emergiram publicamente através de campanhas pelo direito ao voto e que lutaram também pelo acesso aos direitos civis e sociais - pelo direito ao divórcio, pelo direito a estudar, a ter propriedade, entre outros.
  • 2
    Josephine Butler foi líder do movimento contra a regulamentação da prostituição na Inglaterra, no início do século XIX, a partir da oposição às leis de controle de doenças venéreas. Essas leis discriminavam as prostitutas por supostamente contagiarem os homens e instituíam formas violentas de controle sobre o corpo delas, por meio de exames médicos cruéis e encarceramento (WALDRON, 2007).
  • 3
    Dentre as feministas anarquistas do período, Emma GOLDMAN (1911GOLDMAN, Emma. Emma Goldman’s Anarchism and Other Essays. Second Revised Edition. New York & London: Mother Earth Publishing Association, 1911. Disponível em Disponível em https://www.marxists.org/reference/archive/goldman/works/1910/traffic-women.htm . Acesso em: 20/01/2016.
    https://www.marxists.org/reference/archi...
    ) foi uma voz importante para denunciar a hipocrisia em relação à prostituição. No texto “The Traffic in women”, de 1910, a feminista condenou o discurso dos movimentos puritanos que desconsideravam as verdadeiras sustentações da prostituição. Assim como as socialistas, denunciou a dupla moral sexual e a desigualdade econômica como fatores que influenciavam na prática, assim como rechaçou o pânico moral decorrente do combate ao chamado “tráfico de brancas”. Na Argentina, ao final do século XIX, o periódico anarquista semiclandestino “La Voz de La Mujer” circulou textos críticos à prostituição, especialmente associada às instituições hierárquicas, como a do casamento (Natalia PRADO, 2015PRADO, Natalia M. “La emergencia del feminismo en la Argentina: un análisis de las tramas discursivas a comienzos del siglo XX”. Revista Estudos Feministas, v. 23, n. 1, jan.-abr. 2015.).
  • 4
    Tristan relata ter ido a um dos bairros onde quase todas as atividades giravam em torno da prostituição, acompanhada de dois amigos armados de bastões. Em dado momento, é abordada por agenciadores, conforme narra: “[...] Muitos nos acercaram e nos perguntaram se não queríamos um quarto. Como os respondemos negativamente, um, mais atrevido que os outros, nos disse em tom ameaçador: que vem então fazer nesse bairro, se vocês não querem um quarto para fazer entrar a “sua dama”? Confesso que não gostaria de me encontrar sozinha frente a este homem” (TRISTAN, 2009, p. 62 [tradução nossa]).
  • 5
    Esta e todas as outras citações são traduzidas por nós.
  • 6
    A segunda onda pode ser caracterizada como uma importante ascensão do feminismo como movimento político e como teoria da emancipação, especialmente a partir dos anos 60, em várias partes do mundo. Influenciadas pela emergência dos novos movimentos sociais, pelo momento irruptivo de maio de 68 e pelo movimento por direitos civis nos Estados Unidos, e também pelos debates na esquerda (Alicia H. PULEO, 2010PULEO, Alicia H. “Lo personal es político: el surgimiento del feminismo radical”. In: AMORÓS, Celia; ÁLVAREZ, Ana De Miguel (Ed.). Teoría feminista: de la Ilustración a la globalización: del feminismo liberal a la posmodernidad, v. 2. Madrid: Minerva Ediciones, 2010. p. 35-68.).
  • 7
    Ver nota de rodapé 2.
  • 8
    A preocupação de Bebel sobre o tráfico refletia o debate público sobre a questão na Europa. Na Inglaterra, por exemplo, o problema do “tráfico das brancas”, como foi intitulado, ainda que fosse real, ganhou dimensões caricatas e exageradas na opinião pública, especialmente devido à divulgação de histórias em tabloides que emergiram na época, gerando certo pânico moral (Judith R. WALKOWITZ, 1982WALKOWITZ, Judith R. “Male vice and feminist virtue: feminism and the politics of prostitution in Nineteenth-Century Britain”. History Workshop Journal, v. 13, p. 79-93, 1982.). O tema angariou a preocupação dos governos e uma agenda de combate ao tráfico foi um importante espaço de intervenção das mulheres, em conferências diplomáticas e, mais tarde, na Liga das Nações (Sheila JEFFREYS, 1997JEFFREYS, Sheila. The idea of prostitution. North Melbourne: Spinifex Press, 1997.).
  • 9
    “Na moral matrimonial duas prostituições fazem uma virtude” (Clara ZETKIN, 1976, p. 38).
  • 10
    Coletânea de dois textos de Kolontai escritos em 1918 e 1921, cuja publicação utilizada neste artigo é de 2007.
  • 11
    Essa visão de Kolontai encontrava oposição inclusive no interior do seu partido. Em cartas trocadas entre Clara Zetkin e Lênin, o último reprovava o fato de algumas comunistas alemãs se ocuparem de questões relativas à sexualidade, “desviando-se” do objetivo maior da revolução: “O primeiro estado no qual se realizou a ditadura proletária está cercado de contrarrevolucionários de todo o mundo. A situação da própria Alemanha exige a máxima união de todas as forças revolucionárias proletárias para repelir os ataques sempre mais vigorosos da contrarrevolução. E, agora, justamente agora, as comunistas ativas tratam da questão sexual, das formas de casamento no passado, no presente e no futuro, julgam que seu primeiro dever é instruir as operárias nessa ordem de ideias. Disseram-me que o folheto de uma comunista vienense sobre a questão sexual tivera amplíssima difusão. Que tolice, esse folheto!” (ZETKIN apud PARADIS; DE ROURE, 2013, p. 145).
  • 12
    O argumento que relaciona a prostituição com a educação recebida pelas mulheres já comparecia na obra de Flora Tristan, conforme analisamos.
  • 13
    Essa constatação se confirma pelo fato de que Kolontai defendia que as mulheres que tinham carteira de trabalho, mas se prostituíam como uma fonte secundária de renda, não poderiam ser processadas (KOLONTAI, 1977).
  • 14
    Em 1870, John Stuart Mill foi convocado para expressar sua opinião em uma comissão real sobre as Leis de Doenças Venéreas, na qual apresentou sua oposição às leis, entendendo que elas representavam uma intromissão ilegítima sobre a liberdade das mulheres (DE MIGUEL; CERMEÑO, 2011DE MIGUEL, Ana Álvarez; CERMEÑO, Eva. “Los inicios de la lucha feminista contra la prostitución: políticas de redefinición y políticas activistas en el sufragismo inglês”. Brocar, v. 35, 2011, p. 315-334.).
  • Clarisse Goulart Paradis (clarisseparadis@unilab.edu.br) é doutora em Ciência Política pela UFMG, Professora Adjunta da Universidade de Integração Internacional de Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB/Campus dos Malês) e pesquisadora do grupo de pesquisa “Pós-colonialidade, feminismos e epistemologias anti-hegemônicas” (FEMPOS/UNILAB Malês). A autora tem contribuído com estudos e debates sobre a trajetória do feminismo na América Latina e sua relação com o Estado e, mais recentemente, sobre a teoria política e teoria feminista. Na pesquisa de doutoramento, desenvolveu investigação sobre a questão da prostituição nas diferentes tradições do pensamento político

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2016
  • Revisado
    08 Fev 2018
  • Aceito
    12 Abr 2018
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