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Calipso e a intransigência do gênero

Calipso and the gender intransigence

Resumo:

O presente texto propõe-se a investigar a operação dialética que Calipso elabora (Canto 5 da Odisseia - Regresso) ao ser obrigada pelos Deuses (Zeus), contra a sua vontade, a deixar Odisseu seguir o seu regresso à Ítaca. A análise é feita à luz dos estudos de gênero e feministas. O canto em questão pode figurar como um dos principais registros ocidentais das relações de gênero, destacando-se entre as demais passagens da Odisseia como um todo. Em poucas palavras, o canto cinco indica a superação dialética da condição não hegemônica das mulheres a partir da intransigência do gênero.

Palavras-chave:
gênero; superação; odisseia

Abstract:

This paper intends to investigate the dialectical operation that Calypso elaborates (Part 5 of the Odyssey - Return), while told by the gods (Zeus), against her will, to let Odysseus follow his path to Ithaca. The analysis is conducted in the light of gender and feminist studies. The passage under analysis may be included as one of the major Western records of gender relations, especially among the other passages of the Odyssey as a whole. In a few words, this passage indicates the dialectic overcoming of non-hegemonic status of women from the gender intransigence.

Keywords:
Gender; Overcoming; Odyssey

Introdução

Na esteira das indicações de Judith Butler em Antigone’s Claim (2000BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death. New York: Columbia University Press, 2000. ),1 1 A primeira edição em inglês do livro de Butler data do ano 2000. Em português, o volume foi publicado em 2014 com o título O clamor de Antígona (EDUFSC). livro que, a partir da figura de Antígona e do desafio por ela lançado, questiona a relação entre o feminismo e o papel regular do Estado, examinamos, neste texto, as tensões entre o comando dos Deuses - presididos por Zeus - e o desejo da Deusa Calipso de manter cativo o seu eleito, Odisseu, em detrimento da ordem clara recebida, por meio de Hermes, para deixá-lo partir para Ítaca, onde Penélope o aguarda.

Na apresentação da edição brasileira de Antigone’s Claim, Mirian Grossi (2014GROSSI, Mirian. “Apresentação à edição brasileira, O clamor de Antígona: entre a vida e a morte”. In: BUTLER, Judith. O clamor da Antígona: parentesco entre vida e a morte. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014, p. 7-9., p. 7) afirma que o livro de Butler representa “[...] um dos eixos centrais da reflexão feminista [da autora], sobre a tensão entre as regras - representadas pelas leis do Estado - e o desejo dos sujeitos, expresso e vivido através de práticas sociais inovadoras e transformadoras”. Dando continuidade às preocupações da autora com relação à dimensão política da performatividade de gênero, e em diálogo com toda uma tradição filosófica que se debruçou sobre a figura de Antígona, que vai de Hegel a Lacan, Antigone’s Claim é um ensaio sobre um mito exemplar, esboço de uma atuação capaz de colocar em crise tanto os regimes vigentes de representação do parentesco, quanto as normas sociais que os acompanham. Nesse sentido, buscamos visitar os embates entre Calipso e o comando dos Deuses, a partir dos apontamentos de Butler e do desafio lançado por Antígona em torno das relações afetivas e de parentesco, reguladas pela lei do Estado. Tal como no caso da peça Antígona, de SófoclesSÓFOCLES. Antígona. Tradução do grego de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2012. [496 AC-406 AC], o Canto 5 da Odisseia, que lhe é anterior, nos permite refletir sobre o registro de uma forma de desafiar o Estado, em vez de simplesmente habitá-lo ou legitimá-lo.

Em sua leitura de Antígona, Butler (2000BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death. New York: Columbia University Press, 2000. ) tematiza a questão do parentesco e a legitimação da autoridade masculina. O crime de Antígona, conforme argumenta a autora, “[...] foi enterrar o irmão após Creonte, seu tio e rei, ter publicado um decreto proibindo tal enterro”. (BUTLER, 2014BUTLER, Judith. O clamor da Antígona: parentesco entre vida e a morte. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014., p. 24). No decorrer da peça Antígona, haveria um deslocamento “apropriativo” da posição hegemônica, segundo Butler (2000, p. 10), no diálogo entre Antígona e Creonte: “Ao lhe endereçar a fala, ela se torna masculina; ao ser implicado na fala, ele se desmasculiniza; assim nenhum dos dois mantém sua posição dentro do gênero [...]”. (BUTLER, 2014, p. 29). Retomaremos esta questão no item seguinte, referenciando o “decreto” de Zeus e a ação de Calipso em relação a Odisseu.

Em Calipso, não se trata precisamente de obediência, pois há uma ‘intransigência’ produtiva diante da imposição que gera tensão entre os Deuses (Hermes, que levará o recado) e a Deusa, o que engendra outras formas de relação diante da hegemonia pressuposta, pois ela, em vez de simplesmente obedecer, acaba por questionar Odisseu (objeto) acerca do seu desejo de partir. Em outras palavras, diante do comando de Zeus, Calipso busca desfazer a lei do Estado, referindo-se não diretamente ao “magno poder”, cujo decreto ela compreende como imutável, mas ao próprio Odisseu que, deslocando o objeto de seu desejo, ao decidir não mais partir, colocaria por terra a própria ordem dos Deuses acerca do seu retorno. Assim, entendemos aqui por ‘intransigência’ do gênero a ação empreendida pelos sujeitos em um dado contexto em prol do fortalecimento afirmativo (self power) de uma posição ancorada no gênero historicamente subalternizado. Instaura-se, portanto, uma crítica imanente no contexto das divindades. Calipso empreende uma “prática social inovadora e transformadora” ao questionar a ordem dos Deuses, e só permitir a partida de Odisseu após a confirmação do desejo deste de seguir em seu regresso à Ítaca.

Examinando o Canto 5 da Odisseia (Regresso), objetivamos explicitar e compreender a operação elaborada por Calipso para instituir uma relação equânime com o outro. Assim, nos apropriamos de uma das definições de “gênero” apontadas por Joan Scott (1995SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre: v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. [1989]), qual seja, “o gênero [é aqui] utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. [...] o gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as ‘construções sociais’ - a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres.” (Joan SCOTT, 1995SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre: v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. , p. 75). Gênero é, então, uma categoria operativa para a compreensão de tal itinerário, cuja análise se expressa neste texto em duas partes, além desta introdução e das considerações finais. A próxima seção intitula-se ‘Calipso: a intransigência do gênero’, momento em que indicamos os principais elementos dos quais a Deusa se vale para superar a tensão entre a imposição dos Deuses e seu desejo; na seção seguinte, intitulada “Reflexos dos papeis sociais e as práticas inovadoras: pensando com Agnes Heller”, indicamos uma dimensão mimética na execução de certos comportamentos sociais para, finalmente, nas considerações finais, explicitarmos a importância de “práticas sociais inovadoras e transformadoras empreendidas” pelos sujeitos femininos na assunção, em alguma dimensão, de sua autonomia.

Nos apropriamos de forma paradigmática do texto de Homero, sobre cuja autoria pairam dúvidas, pois o gesto de sistematizar as estórias recolhidas de diversas partes da Grécia coloca em xeque a ideia de uma escrita de apenas um autor. De qualquer forma, as lendas sobre os/as Deuses e Odisseu podem ser consideradas de coautoria coletiva, expressando a história de um tempo e de um povo. Para Donaldo Schuler (2007SCHULER, Donaldo. ‘Por que ler a Odisséia?” In: Odisséia, v. 3: Ítaca. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007. a, p. 7), tradutor da versão que aqui utilizamos, “(...) a autoria da Odisseia é atribuída a Homero, um autor legendário do século IX antes de Cristo, pois

[...] os argumentos levantados contra a teoria da autoria única das duas epopeias não são convincentes. Admitamos que a Ilíada e a Odisseia procedam de um só autor em dois momentos privilegiados de sua farta criação literária. (SCHULER, 2007SCHULER, Donaldo. ‘Por que ler a Odisséia?” In: Odisséia, v. 3: Ítaca. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007. c, p. 10).

Porém, Schuler (2007SCHULER, Donaldo. ‘Por que ler a Odisséia?” In: Odisséia, v. 3: Ítaca. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007. , p. 10) não nega que existem “...discussões entre analíticos (... autoria múltipla) e unitários (...um só autor). [Mas,] não podemos negar, entretanto, a presença de um poeta central, a quem atribuímos a cuidadosa elaboração dos episódios (...).”

O Canto 5, quando Odisseu livra-se do cativeiro da ninfa, torna-se o mais eloquente para pensar as questões de gênero na ‘Odisseia: o regresso’ de Homero, pois materializa um embate entre os deuses e a deusa. Em resumo: o Canto 5 narra, em Odisseia: regresso, sobre a decisão dos Deuses em libertar Odisseu da Ilha onde Calipso o mantinha. Calipso resiste em libertá-lo e só o faz depois que consulta a vontade do próprio Odisseu. Porém, antes se revolta verbalmente contra os Deuses que invejam as Deusas. Neste canto temos um confronto direto entre Calipso (mulher), a ninfa que prendia Odisseu (homem),2 2 No canto 5 Calipso é retratada como a ninfa, mulher, e Zeus, por exemplo, como homem, tanto que é acusado por Calipso de engravidar mulheres humanas e depois relegá-las aos Hades. e os deuses, representados por Zeus (homem), embate que não se repete ao longo das três seções que compõem a obra, quais sejam, TelemaquiaHOMERO. Odisseia, v. 1: Telemaquia. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007a. (cantos de 1 a 4), Regresso (cantos de 5 a 12), Ítaca (cantos de 13 a 24). No Canto examinado, explicitamos a intransigência do gênero.

Calipso: a intransigência do gênero

Em linhas gerais, pode-se resumir os episódios da Odisseia da seguinte maneira: após a Guerra de Tróia, Odisseu, ajudado por Atena, elabora o seu plano de regresso a Ítaca, transpondo diversas dificuldades até conseguir chegar à terra natal. Durante o percurso, o herói se depara com diferentes formas de retardamento do seu intento, como acontece no período em que ficou retido na Ilha de Calipso.

Odisseu enfrenta doze trabalhos (dificuldades) (HOMERO, 2007HOMERO. Odisseia, v. 3: Ítaca. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007c., p. 311 e 313 (tomo 3)., quais sejam: (1) “o encontro com os ciclopes; (2) o acolhimento por Éolo; (3) a passagem pela terra dos lotófagos; (4) o encontro com Telépilo na terra dos lestrigões; (5) conheceu Circe; (6) a descida ao Hades; (7) o canto das Serreias; (8 e 9) a passagem pelas Rochas Moventes e de Caribde e, conhece Cila; (10) a estada na ilha de Hélio; 11) a tensão na ilha de Calipso; 12) a chegada à terra dos feáceos”, antes de conseguir retornar a Ítaca, sendo a estada na Ilha de Calipso o décimo primeiro momento antes de regressar para a sua terra (antes ainda, cai na terra dos feácios). Portanto, “[...] as ondas o jogaram à Ilha de Calipso, ela o reteve para fazer dele seu esposo e escravo sexual, escapando apenas diante da intervenção dos Deuses piedosos dos seus sofrimentos”. Tudo isso sob os olhos providenciais da Deusa Atena, filha de Zeus. (HOMERO, 2007, p. 311 e 313, tomo 3).

No Olimpo, entre os Deuses mais uma vez reunidos para decidir a sorte de Odisseu, Atena fala: “- Merece padecer privações penosas na ilha do calabouço de Calipso? A ninfa o retém prisioneiro” (HOMERO, 2008HOMERO. Odisseia, v. 2: Regresso. Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2008., p. 13). O relato da deusa Atena sobre os sofrimentos de Odisseu, na companhia da ninfa Calipso, convence os Deuses a enviarem Hermes, deus que a tudo ilumina, para ordenar que ela o liberte e que lhe permita seguir em seu regresso a Ítaca. O relato da Atena supõe relativa igualdade entre os Deuses e Calipso. É no reconhecimento dessa relativa igualdade que a ninfa obedece à decisão dos demais Deuses, pois foi decretada em assembleia. Portanto, a obediência não pressupõe submissão a um único Deus, mas sim a uma instância coletiva na qual todos são reconhecidos como iguais no âmbito das divindades. Mas, pode-se dizer que tal decisão instala uma tensão que alimenta uma intransigência por parte de Calipso, que busca formas de desregular a decisão. Essa intransigência é superada na dialética da relação entre sujeito (Calipso) e objeto (Odisseu). O questionamento que a primeira direciona ao segundo faz emergir a vontade do objeto de partir ao encontro dos seus. Apresenta-se a tese (a decisão ou ‘decreto’ a ser obedecido); Calipso ‘contra-argumenta’ (antítese); a síntese derradeira surge no desejo de partir, expresso por Odisseu. A dialética contextual - Deuses, Calipso e Odisseu - remodelou o que deveria ser um simples ato de obediência, a partir de uma prática que os Deuses ignoravam, qual seja, questionar Odisseu sobre seu real desejo. Em outras palavras, inquire-se ao objeto quanto ao seu desejo, para além das deliberações oficiais dos Deuses, e ele opta pela liberdade de partir. Além de desregular a própria mecânica de decisão, questionando diretamente Odisseu sobre o seu intento, Calipso inaugura uma forma alternativa de desafiar o ‘decreto’ dos Deuses: no caso de uma mudança de desejo por parte de Odisseu, o encaminhamento dos Deuses tornar-se-ia automaticamente anulado sem qualquer enfrentamento direto que, no fim, acabaria por validar mais uma vez a instância de decisão em pauta.

Hermes segue o desiderato dos Deuses liderados por Zeus. Este o ordena: “Hermes, notório em outras missões, leva meu decreto irrevogável à ninfa das renomadas tranças. Terminou a angustiosa espera de Odisseu” (HOMERO, 2008, p. 13). Ao chegar à ilha em que residia a “ninfa das memoráveis madeixas”, Hermes tem calorosa recepção. “Os imortais reconhecem uns os outros” (HOMERO, 2008, p. 17), diz Calipso. Hermes é recepcionado na caverna onde “o canto deslizava suave pelos sonoros paredões. Os pés se moviam junto ao tear, nos dedos navegava a áurea naveta. [...] Até um imortal se deteria em êxtase para contemplar o espetáculo.” (HOMERO, 2008, p. 15-17). Calipso, receptiva, pergunta a Hermes: “- O que te trouxe?”, aproximando a mesa e servindo-lhe ambrosia: “Deliciou-se com as iguarias Hermes, o divino. Terminada a refeição, saciados seus desejos, revelou o motivo da visita.” (HOMERO, 2008, p. 17). E segue:

- Deusa, diriges a palavra a um Deus. Não poderia ocultar-te a verdade. Exponho-te palavras sem véus. Não vim por decisão minha. Zeus me mandou. Quem, por vontade própria, enfrentaria essa imensidão salgada, este espaço sem fim? [...] Sabes que não é possível contrariar Zeus. [...] Consta que vive aqui um sofredor [...]. Tens que soltá-lo [Odisseu], é a ordem, o mais depressa possível. Foi determinado que ele reveja quem ama, que volte ao seu palácio e que pise o solo pátrio. (HOMERO, 2008, p. 17-19).

Ora, se Hermes reconhece Calipso como Deusa e sendo ele próprio um Deus, por que ser submisso a Zeus? Hermes viajara contra a própria vontade, mas afã da obediência - submissão. Portanto, qual a obrigação de uma Deusa de acatar as ordens de um Deus, se desfrutam da igualdade?

Apesar da reconhecida superioridade de Zeus para a mitologia, ele era um Deus que governava o Olimpo, onde coabitava com outros Deuses. Ser superior não mudava a sua natureza, mas sim o papel que exercia junto à Deusa e seus pares. O governante não se difere pela natureza do seu ser, mas sim na função de mando que ocupa. No Olimpo tudo era decidido em assembleia, antes de Zeus deliberar sobre algum tema. Portanto, os Deuses se igualavam no direito à voz considerada pelo soberano antes do decreto. Se não fosse assim, Zeus não castigaria os usurpadores das vacas de Hélio, que ameaçou iluminar o Hades caso nada fosse feito para vingar suas perdas. Zeus, assim como outros Deuses, também se transvestia de humano para fornicar com mulheres. Isto é, Zeus era um Deus, líder, mas se igualava aos outros Deuses. Para compreendermos melhor a questão, seguimos a pista de Djamila Ribeiro (2016RIBEIRO, Djamila. “A categoria do Outro: o olhar de Beauvoir e Grada Kilomba sobre ser mulher”. Revista Fórum (online). Santos, 2016. Recuperado de: Recuperado de: http://www.revistaforum.com.br/2016/04/08/a-categoria-do-outro-o-olhar-de-beauvoir-e-grada-kilomba-sobre-ser-mulher/ . Acesso em 27/06/2016.
http://www.revistaforum.com.br/2016/04/0...
), em quem encontramos uma chave de leitura ancorada no feminismo ortodoxo de Simone de Beauvoir e no feminismo negro de Grada Kilomba.

No seu clássico O segundo sexo (BEAUVOIR, 1980BEAUVOIR, Simone.O Segundo sexo: fatos e mitos. tradução de Sérgio Milliet. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980a.a; 1980BEAUVOIR, Simone.O segundo sexo: a experiência vivida. tradução de Sérgio Millet. 4ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980b.b [1949]), ela traça as linhas gerais sobre a categoria do ‘outro’3 3 Utilizamos as aspas simples (‘’) quando empregamos o vocábulo ‘outro’ na acepção bouvariana apropriado, também, por Kilomba. ocupada pela mulher, branca e ocidental, pertencente às camadas médias e intelectualizada, diante do homem em que não encontra reciprocidade no ‘olhar’, mas com quem partilha os mesmos dispositivos na sociedade ocidental, branca e elitizada. Baseada na dialética do senhor e do escravo, de Hegel, Beauvoir desenvolve a ideia do ‘outro’ para saber do desejo de reconhecimento - recíproco e que, segundo Butler (2000BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death. New York: Columbia University Press, 2000. , p. 13), consiste num “[...] desejo que busca seu reflexo no Outro, um desejo que busca negar a alteridade do Outro, um desejo que se encontra na obrigação de necessitar o Outro que tememos ser e que tememos que nos capture [...]” (Sic!). (BUTLER, [2000BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death. New York: Columbia University Press, 2000. ] 2014, p. 33). A partir destas indicações, Hermes, como objeto que realiza a vontade de Zeus, figuraria como o ‘outro’ (mulher branca em relação ao homem branco).

Mas isso não nos esclarece quanto à situação de Calipso. Por isso recorremos ao feminismo na figura de Grada Kilomba, em Plantation Memories (2010KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. 2ª ed. Munster: UNRAST, 2010.), quando, a partir da estrutura beauvariana, localiza a mulher negra como ‘o outro do outro’ (a mulher negra seria o ‘outro’ da mulher branca que é o ‘outro’ do homem branco), ou seja, Calipso estaria ocupando uma terceira instância com referência a Zeus. Neste caso, tanto Hermes quanto Calipso, apesar de gozarem da imortalidade, não desfrutam da reciprocidade em relação a Zeus. Em outras palavras, Hermes, apesar de ser um Deus, em relação a Zeus passa a ser um mensageiro, ou seja, o ‘outro do outro’. Já Calipso, mesmo sendo uma Deusa, como Hermes, deve acatar o decreto expedido pela assembleia anunciado por Hermes, ou seja, ela figura na terceira instância do outro (Zeus, Hermes e Calipso), apesar da sua divindade. Esse exercício é aqui feito para exemplificar a conceituação de Kilomba a partir da trama em tela. Neste caso, Zeus (homem) “é a medida, o padrão, a referência de todo discurso legitimado”. Não há ainda, neste primeiro momento, uma equidade entre os Deuses.

É claro que nem Beauvoir tampouco Kilomba se referem aos Deuses na Odisseia, mas sim à relação entre homem branco e mulher branca (Beauvoir), mulher negra, mulher branca e homem branco (Kilomba). Este instrumental conceitual nos serve, no entanto, para indicar a ‘localidade discursiva’ ou lugar de fala de cada imortal envolvido nesta tríade (isso porque não nos atemos ao papel de Atena).

Assim, concordamos com Scott, quando afirma que a dualidade homem e mulher deve ser implodida, pois “a oposição binária e o processo social das relações de gênero tornam-se, os dois, parte do sentido do poder, ele mesmo. Colocar em questão ou mudar um aspecto ameaça o sistema por inteiro”. (SCOTT, 1995SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre: v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. , p. 92). No contexto do Canto 5, o procedimento acima enunciado pode ser exemplificado quando Calipso recebe Hermes na igualdade, pois os Deuses se reconhecem. Ao ser comunicada da decisão dos Deuses de libertar Odisseu, Calipso se revolta, acusando-os de invejosos. Antes de libertar Odisseu, ela o questiona sobre a sua vontade de partir. Após ouvi-lo, Calipso aceita a decisão e o ajuda a arquitetar uma nau nova, orientando-o na construção, pois a anterior fora destruída. Este procedimento, por si só desconstrói as polaridades na relação e a superioridade compulsória dos Deuses, deslocando-a para Odisseu (objeto). Ao mesmo tempo, tal gesto problematiza a oposição entre os Deuses do Olimpo e a Deusa Calipso quanto ao decreto estabelecido em assembleia. Calipso se opõe verbalmente, mas obedece de fato. Mais adiante retornaremos à análise desse procedimento.

Mas, se avançarmos um pouco no argumento, veremos que o conceito de gênero é propício para compreendermos as relações instaladas neste contexto dos Deuses, pois tais relações transcendem a dicotomia dominador/dominado a partir da intransigência de Calipso. Uma vez que Hermes obedece, ele ocuparia, se fosse o caso, a posição de dominado em relação a Zeus, mas de dominador em relação a Calipso.

Isso nos permite, pelo menos, observar que Calipso não goza de lugar equivalente ao de Hermes, assim como este não é beneficiário dos mesmos privilégios de Zeus. O Canto 5 é tomado como propedêutico para a compreensão das relações socialmente instauradas entre homens e mulheres. Portanto, é para além do sexo que se encaminham as nossas análises pautadas nos estudos de gênero e estudos feministas.

Dito isto, justifica-se a revolta relutante de Calipso que desnuda debilidades dos seus impositores, ao invés de obedecê-los sem questionamentos. Neste momento de contestação, Calipso narra os castigos sofridos por diversas Deusas, como Aurora e Deméter, dentre outras, por terem levado “[...] para a cama homens eleitos”. (HOMERO, 2008, p. 19). Em contrapartida, os Deuses levam as mortais para o leito sem que sejam acometidos por nenhum castigo divino (por exemplo, em algumas narrativas recolhidas no Hades por Odisseu, proferidas por mulheres que ali estão porque mantiveram relações com Deuses). O procedimento de Calipso reafirma a hegemonia contextual exercida pelos Deuses, em especial por Zeus, contra quem ela direciona suas palavras aos gritos, pois não podia alcançar o seu interlocutor:

- Deuses, sois duros, invejosos mais que ninguém. Perseguis Deusas que, movidas pelo desejo, levam para a cama homens eleitos. [...] A perseguida agora sou eu devido a um mortal. Agarrado à quilha, o raio de Zeus partiu com uma tempestade bravia a nau em que se movia no mar cor de vinho.4 4 Aqui Calipso se refere ao castigo que Zeus infringiu à nau de Odisseu por que seus marinheiros carnearam as vacas de Hélio, que por sua vez ameaçou iluminar o Hades caso os usurpadores não fossem castigados. Quem o salvou fui eu. [...] Eu o acolhi, tratei-o com afeto, ofereci-lhe a imortalidade, garanti-lhe que não conheceria a velhice em dias vindouros. Visto ser impossível contornar decisões de Zeus, nem a Zeus se consente menosprezar a vontade de outra divindade, que se vá! Submeto-me ao decreto do porta-Escudo. (HOMERO, 2008, p. 19). (Grifos nossos).

Diante do exposto, pode-se dizer que não se tratou de uma obediência cega, mas sim de um reconhecimento dos limites de ação diante do imponderável. Portanto, Calipso luta e, na eminência da derrota, se posiciona: -“Mas, não conte com minha ajuda. Não tenho naus nem tripulação que lhe permita cavalgar o lombo de indômitas ondas. Mais que aconselhar não posso. Não dissimulo. Que retorne sem danos à sua terra!”. (HOMERO, 2008, p. 19). Com estas palavras, Calipso retorna à praia onde encontra o choroso Odisseu, porém “a ninfa sedenta abraçava um homem sem desejos. [...] Próxima soou a voz esplendorosa da esplêndida Deusa: -‘coitado! Não quero que consumas tua vida aqui, em prantos. Já não me oponho à tua partida.’” (HOMERO, 2008, p. 21) (grifos nossos). A força desta última frase é o cerne da intransigência.

Geralmente conhecemos a história pela ótica dos vencedores, pois os vencidos, não raro, são dizimados também em sua retórica. Mas é possível afirmar que Calipso inverte a questão, oportunizando o conhecimento da história pela perspectiva das vencidas, pois pôde contá-la a partir do seu diálogo com Odisseu. Em poucas palavras, Calipso pôde narrar a sua história. É diante do tensionamento do desejo do beneficiário do decreto de Zeus que a Deusa Calipso aceita o posicionamento de Odisseu, oferecendo-lhe toda a infraestrutura para a sua partida. Portanto, ao contrário de Antígona, Calipso não comete o “crime” da desobediência, mas ao questionar o ‘objeto’ (Odisseu), sugere outra prática nas relações contextuais, pois não o toma apenas como algo a ser possuído, mas sim como sujeito discursivo, garantindo assim a sobrevivência de ambos. Ela não renuncia à permanência de Odisseu, mas lhe concede a liberdade e a possibilidade de retorno. Com efeito, se Calipso somente obedecesse, ela libertaria Odisseu logo que recebera a notícia de Hermes. Mas ela não o fez. Nesse sentido, Calipso desloca a ordem de Zeus em decisão dialogada com Odisseu para efetivar a sua libertação. Cabe ressaltar que esse procedimento resulta na obediência ao decreto do porta-escudo. Portanto, não se trata de uma derrota, mas da consideração da voz dos que se encontram em posição de fragilidade (no caso, Odisseu). Ele, em deslocamento espacial (pois estava em viagem de volta à Ítaca) e ela, em deslocamento temporal (pois pela sua imortalidade permanecia na mesma ilha). Seja como for, cada um se percebe diante da possibilidade de narrar. Conforme Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume 1 (tradução: Sergio P. Rouanet; prefácio: Jeanne M. Gagnebin). 7 ª ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.), é concedida a capacidade de narrar àquele que viaja no espaço (o marinheiro) e àquele que viajam no tempo (o camponês sedentário). Aqui localizamos o ponto alto de uma reversão para as práticas inovadoras e de transformação das relações de gênero na rejeição a submeter-se.

Se Homero é anterior a Sófocles, podemos dizer que, em Antígona, o segundo estabelece um diálogo não declarado (pois não há referência direta ao texto de Homero) ancorado no ato de Calipso como antecessor do ato de Antígona. Dito de outra forma, por temer o castigo de Zeus, Calipso ensaiou (potência) uma revolta; como citado acima, diz ela: “- visto ser impossível contornar decisões de Zeus, [...] Submeto-me ao decreto do porta-Escudo”, pois Hermes já a havia ameaçado ao lembrá-la da impossibilidade de contrariar Zeus. Antígona, por sua vez, efetivou (ato) a revolta, pois não se encontrava sob o julgo de Zeus e sim de humano igual a ela. Por isso que

[...] ela [Antígona] afirma, é claro, que não irá obedecer ao decreto de Creonte porque não foi Zeus quem formulou a lei, argumentando, portanto, que a autoridade de Creonte não é a de Zeus (496-501) e, aparentemente, exibindo sua fé na lei dos Deuses.” (BUTLER, [2000BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death. New York: Columbia University Press, 2000. ] 2014, p. 28).

No prólogo, em diálogo com Ismênia, Antígona afirma:

Não insistirei mais; e, ainda que mais tarde queiras ajudar-me, já não me darás prazer algum. Faze tu o que quiseres; quanto a meu irmão, eu o sepultarei! Será um belo fim, se eu morrer, tendo cumprido esse dever. Querida, como sempre fui, por ele, com ele repousarei no túmulo... com alguém a quem amava; e meu crime será louvado, pois o tempo que terei para agradar aos mortos, é bem mais longo do que o consagrado aos vivos... Quanto a ti, se isso te apraz, despreza as leis divinas! (SÓFOCLES, 2005SÓFOCLES. Antígona . Tradução de J. B. de Mello e Souza . eBooksBrasil.com, 2005., p. 09).

Portanto, aproximar Antígona e Calipso se justifica pelo fato de as duas terem desafiado, cada qual em seu contexto, as leis falocêntricas que subjugavam as ações femininas. Assim sendo, cada uma, à sua maneira, desafiou os pressupostos legais impostos por outrem. Antígona tornou ato a sua ação concretizando o enterro do irmão amado. Já Calipso permaneceu na potência da sua ação indicando as possibilidades de questionar a realidade posta, porém sem assumir a morte como fim, diferenciando-se assim de Antígona.

Uma vez contrariada, Calipso se revolta, emite a sua posição, questiona a vontade do mortal eleito para aceitar o desígnio da partida. É a essa inversão que nos referimos como prática inovadora, ou seja, Calipso passa daquela que obedece para quem ordena a partida, orientando, inclusive, os procedimentos para que a viagem de regresso seja feita de forma segura. Assim fazem-se importantes as palavras da Deusa: -“chegarás sem transtornos à tua terra, se os senhores que mandam no vasto céu assim o desejarem. Estou sujeita a irrevogáveis decretos deles.” (HOMERO, 2008, p. 21). É no reconhecimento do lugar que ocupa que Calipso empreende ações contra-hegemônicas que desestabilizam relações subalternizantes no contexto das relações de gênero. Portanto, a intransigência de gênero demanda uma práxis transformadora, ou seja, cabe reconhecer o discurso hegemônico, tensioná-lo e agir convictamente na defesa de si (self). É por meio do discurso que Calipso resiste e explicita sua honestidade/força ao permitir o regresso de Odisseu, uma vez que está sujeita ao decreto de Zeus. Desta feita, na resistência discursiva reforça as ofertas anteriores para além da imortalidade. Diz a ninfa:

- Agora, se resolveres ficar comigo, poderias administrar esta propriedade. Eu te concederia a imortalidade, mesmo que dia após dia sentires falta de tua esposa. Não sou de se jogar fora. Se consideras corpo e beleza, ganho dela. Mortais não igualam imortais na forma e na harmonia das linhas. (HOMERO, 2008, p. 23).

É importante observar que Calipso joga a sua última cartada, pois além da imortalidade, ela oferece novas posses materiais (fazenda e corpo) para que Odisseu abra mão do seu regresso e fique com ela. Essas ofertas figuram como motivações para a permanência de Odisseu na Ilha de Calipso em detrimento do regresso a Ítaca. Porém, Odisseu, seguro de si, refuta contundentemente, afirmando que - “Rever o que é meu, desejo só isso.” (HOMERO, 2008, p. 23). Mesmo em situação de desvantagem, Odisseu se sabe sujeito de posse - de si, da sua esposa e de bens materiais -, por isso não deseja mais propriedade ainda, mas sim e tão somente a manutenção do já adquirido. Em tentativa de convencê-lo a permanecer na ilha, Calipso lhe oferece a possibilidade de administrar a sua propriedade, caso ele decida ficar com ela, e diz: “-Não sou de se jogar fora. Se consideras corpo e beleza, ganho dela” [referindo-se à Penélope, para quem Odisseu pretendia voltar]. Mas a Deusa ouve a seguinte resposta/rejeição do sofredor: “ninguém sabe melhor do que eu que a minha adorada Penélope, seja no porte, seja na beleza, comparada contigo, some. Sei que ela é mortal (...). Rever o que é meu, desejo só isso” (HOMERO, 2008, p. 23).

É à procura da apropriação desta excelência que se direciona a igualdade de gênero que vislumbra a equidade nas relações. Esse movimento é sintetizado por Calipso, pois se, por um lado, ao obedecer ao decreto de Zeus, ela se submete, por outro, ela submete fazendo-se obedecer, mas ouvindo o sujeito tomado por todos como mero objeto, desestabilizando assim as relações hegemônicas de gênero a partir da escuta.

Reflexos dos papeis sociais e as práticas inovadoras: pensando com Heller

Agnes Heller, que teve um convívio intelectual muito próximo com Georg Lukács, integra a chamada Escola de Budapeste. As suas preocupações intelectuais transitam em torno das questões de ética e da vida social. Segundo a “Nota sobre Agnes Heller”, que consta das primeiras páginas do livro O cotidiano e a história, ao estudar A vida cotidiana (2004), p. xi), “cujo tema principal é nosso inteiro sistema dinâmico das categorias da atividade e do pensamento cotidiano”, Heller nos fornece ferramentas conceituais que dialogam, conforme mostraremos, com as principais referências e a temática do presente artigo. Segundo Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, na ‘Nota sobre Agnes Heller’ (In: HELLER, 2004COUTINHO, Carlos Nelson; KONDER, Leandro. “Nota sobre Agnes Heller”. In: HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. ix - xii., p. x), ao caracterizar a Escola de Budapeste, Lukács afirmava que:

Estudando de modo individual vários estágios socialmente significativos do desenvolvimento humano, essa escola procura situar, de modo, concreto as estruturas e as mudanças estruturais naquele processo histórico-ontológico que deve ser explicitado por uma correta compreensão do método de Marx. (LUCKÁCS, apud Coutinho; Konder, 2004LUCKÁCS, Georg. apud HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004., p. x)

Para melhor materializar as ações de Calipso no contexto das relações no interior da sociedade, neste item encontramos Heller na sua formulação de papeis sociais como uma importante companhia de viagem teórica. Sabemos que Heller (2004 [1970]) não se dedicou a pensar as relações de gênero, mas sim as relações humanas a partir do princípio do “papel social”. É sob tal prisma que estabelecemos diálogo com as fontes anteriormente citadas, pensando nas relações sociais a partir do lugar de fala (RIBEIRO, 2017 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de falar? Belo Horizonte: Letramento, 2017.).

O conceito de lugar de fala, como explica Patricia Hill Collins (apud RIBEIRO, 2017 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de falar? Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 61), pretende explicitar quais “(...) condições sociais [...] permitem ou não que esses grupos acessem lugares de cidadania”, por isso a importância de Heller para objetificar as ações de Calipso como uma materialidade paradigmática do sujeito que pode proferir um discurso.5 5 Ver o primeiro capítulo em Butler (2016) no Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade no qual, também, constam as polêmicas sobre as concepções do feminismo de Monique Wittig, Simone de Beauvoir, Luce Irigaray, dentre outras. Por isso, essa teoria, segundo Collins (apud RIBEIRO, 2017, p. 61), “precisa ser discutida a partir da localização dos grupos nas relações de poder”. Em outras palavras, e concordando com Linda Alcoff, quando critica a imposição de uma epistemologia universal, pode-se dizer que “as reivindicações de conhecimento universal sobre o saber precisam, no mínimo, de uma profunda reflexão sobre sua localização cultural e social.” (ALCOFF, 2016, p. 131 apud RIBEIRO, 2017, p. 27).6 6 Para privilegiar o tema em tela não nos aprofundaremos nas teses presentes no livro de Ribeiro (2017).

Dito isto, reafirmamos que a equidade nas relações de gênero vai além dos papeis sociais. Por isso, segundo nos ensina Heller (2004HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [1970]), inúmeros indícios dos papeis já são dados na existência social do gênero humano, por meio da mimese. Esta “manifesta-se sobretudo como imitação dos usos [que antecedem as relações sociais].” (HELLER, 2004HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [1970], p. 88). Segundo Grossi (2014GROSSI, Mirian. “Apresentação à edição brasileira, O clamor de Antígona: entre a vida e a morte”. In: BUTLER, Judith. O clamor da Antígona: parentesco entre vida e a morte. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014, p. 7-9., p. 9), “o simbólico [para Butler] está em um plano não identificável ao social. [...] No entanto, para ela [Butler] o simbólico permanece como algo imutável, uma lei que nos antecede e nos estrutura enquanto sujeitos”. Mas Butler é taxativa quando afirma, em relação ao parentesco, que

“[...] a distinção entre a lei simbólica e social, enfim, não se sustenta, que o simbólico não apenas é, ele próprio, a sedimentação das práticas sociais, como as alterações radicais no parentesco exigem uma rearticulação dos pressupostos estruturalistas da psicanálise e, portanto, das teorias contemporâneas de gênero e sexualidade”. (BUTLER, [2000BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death. New York: Columbia University Press, 2000. ] 2014, p. 40).

Portanto, Butler não nega o simbólico, mas sim a sua distinção das leis sociais, colocando-se contra a interpretação segundo a qual seria na sedimentação destas práticas apropriadas pelo sujeito que deveríamos direcionar os devidos questionamentos. Uma vez que nascemos num mundo já estruturado (inserimo-nos nele), apossamo-nos da estrutura previamente elaborada que necessita de ressignificações. Daí descende a imitação dos usos, pois “o homem jamais se enfrenta com usos isolados; ele os ‘aprende’ numa totalidade relativa, como sistema, como estrutura” (HELLER, 2004HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [1970], p. 88). Portanto, continua a autora,

A sociedade não poderia funcionar se não contasse com sistemas consuetudinários de certo modo estereotipados. Esses sistemas constituem o fundamento do sistema de “reflexos condicionados” do homem, sistema que permite aos membros de uma sociedade mecanizar a maior parte de suas ações, praticá-las de um modo instintivo (mas instintivo por aquisição, não como resíduo de uma estrutura biológica), ou seja, concentrar o pensamento, a força moral, etc., nos pontos concretos exigidos pela realização de novas tarefas. (HELLER, 2004HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [1970], p. 88).

Em uma análise aproximativa, pois Heller não se referia à ação de Calipso, isso justifica de certa forma a ação da última ao aceitar a ordem dos Deuses, pois fazia parte do sistema estruturado ao qual ela pertencia como Deusa. Se isso for correto, reafirma-se ainda mais a tese da intransigência do gênero, pois ela supera a dicotomia biológica da diferenciação entre homens e mulheres baseada no sexo; supera também a precária dicotomia entre dominador (homem) e dominada (mulher), pois se pode dizer que as relações de gênero permitem “[...] concentrar o pensamento, a força moral etc., nos pontos concretos exigidos pela realização de novas tarefas”, como Heller (2004 [1970]) afirma acima. A intransigência reside na não obediência cega e no questionamento do desejo de Odisseu, como destacamos no item anterior. Mas, finalmente, ela procede à vontade de Odisseu, apenas após escutá-lo e considerar seu desejo. Portanto, os limites só se colocam, em parte, porque ela é uma Deusa.

A recusa do papel é característica daqueles[/as] que não se sentem à vontade na alienação. Mas o conflito entre os casos de dever-se, e, neste caso, o conflito moral, que se expressa de modo particular, são inevitáveis na medida em que um homem [mulher] não submete incondicionalmente todo o seu ser ao papel que desempenha num dado momento. (HELLER, 2004HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [1970], p. 96).

Nos termos de Heller (2004HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [1970]), as práticas inovadoras na perspectiva das relações de gênero podem ser tomadas como aquelas orientadas para o futuro em detrimento das que se baseiam no passado. Nas relações de gênero, é necessário que tal orientação não se transforme em moda, pois esta “[...] é a manifestação alienada da orientação para o futuro, encontrando-se em relação necessária com o crescimento da categoria de ‘papeis’”. (HELLER, 2004HELLER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [1970], p. 90). Portanto, torna-se necessário manter como utopia a “[...] necessidade de novidade, a necessidade de transformarmos constantemente tanto a sociedade quanto de nós mesmos, [enquanto] uma das maiores conquistas da história humana” (HELLER, 2004 [1970], p. 90). Isto posto, não existem ideias pré-concebidas para uma atuação a partir da intransigência do gênero. Por isso, esse procedimento não pode ser tomado como exemplar, pois as condições contextuais se modificam a cada momento e para cada um de forma individual. Portanto, a ‘intransigência’ do gênero torna-se um movimento impar em diferentes contextos em que são estabelecidas as relações sociais. Não existindo indicações prévias para atuação, as ações se encontram em suspenso, de estarem como que sobre um fio tensionado. A intransigência superadora da condição não hegemônica de Calipso pode ser tomada como inspiradora para Antígona que “[...] representa os limites da inteligibilidade expostos nos limites do parentesco. Mas ela o faz de maneira pouco pura, difícil de ser romantizada ou, a rigor, consultada por alguém como um exemplo”. (BUTLER, [2000BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death. New York: Columbia University Press, 2000. ] 2014, p. 45). É destas ações fugidias à normatização que emergem conflitos e tensões próprias da “[...] multiplicidade da personalidade humana [...] resultante da complexa totalidade [das] relações sociais” (HELLER, 2004 [1970], p. 92). Mais uma vez, como dirá Heller (2004 [1970], p. 96), “o conflito é a rebelião das sadias aspirações humanas contra o conformismo: é uma insurreição moral, consciente ou inconsciente”. Sendo assim, “a obrigação manifesta no dever-ser pode ser uma meta do homem [mulher], mas não tem necessariamente de sê-lo [conforme indica Calipso]” (HELLER, 2004 [1970], p. 96).

Considerações finais

Debruçamo-nos na análise do Canto 5 por meio do conceito de gênero como categoria analítica social complexa. Fica claro que o Canto cumpriu a função exemplar na materialidade operacional do conceito, ou seja, possibilitou verificar seu potencial de examinar as relações sociais. Estas ainda servem, na contemporaneidade, de vitrine para a busca da sua superação por meio de outras práticas sociais, mais transformadoras e que objetivem a equidade.

Esse canto pode figurar como um dos principais registros ocidentais das relações de gênero sem prejuízos para essa temática nas outras passagens em Odisseia como um todo, ou ainda para outros clássicos, como, por exemplo, Antígona em Sófocles (BUTLER, 2014BUTLER, Judith. O clamor da Antígona: parentesco entre vida e a morte. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.), Ofélia em Shakespeare (Márcia TIBURI, 2010TIBURI, Márcia. “Ofélia morta - do discurso à Imagem”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 301-318, maio/ago. 2010.), as figuras de Diadorim em Guimarães Rosa (TIBURI, 2013TIBURI, Márcia. “Diadorim: biopolítica e gênero na metafísica do Sertão”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 191-207, jan./abril 2013), de Charlotte em Goethe, Odette em Proust, dona Munda e dona Hanifa em Mia Couto.

Portanto, apesar da imposição, Calipso deixa Odisseu partir somente após questioná-lo vis-à-vis sobre o desejo de ele querer retornar aos seus e ao que era seu. Aos prantos, Odisseu reconhece a generosidade das ofertas de Calipso, mas confirma à Deusa que deseja seguir viagem. Segura na sua nova posição de não subalternidade, conquistada após tensionar a ordem de Zeus, Calipso oferece ao viajante toda a infraestrutura para a sua partida, pois ele se tornara um “homem sem desejos”.

Por isso, observamos em uma perspectiva transformadora a complexidade da operação empreendida por Calipso. Ela recebe uma imposição; revolta-se e reluta; confronta o objeto ‘sujeito’ em questão - Odisseu; aceita o seu posicionamento; rejeita-o por não servir mais a seus propósitos eróticos; e oportuniza a sua partida nas melhores condições. A equidade nas relações de gênero não é pressuposta senão conquistada na supressão da hegemonia masculina por meio da assunção das tensões estabelecidas na estrutura social e no seu modo de produção. Mas, e se Odisseu tivesse aceitado a última oferta de Calipso? Aí teríamos outra versão de Odisseia.

A relação entre os Deuses, Calipso e Odisseu constitui, como no caso da análise empreendida por Butler acerca da personagem de Sófocles, mais uma mostra da possibilidade de atuações divergentes capazes de recorrer a outras leis para a sua legitimação que não àquelas estabelecidas pelo Estado.

Referências

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  • BEAUVOIR, Simone.O segundo sexo: a experiência vivida tradução de Sérgio Millet. 4ª ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1980b.
  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura Obras escolhidas, volume 1 (tradução: Sergio P. Rouanet; prefácio: Jeanne M. Gagnebin). 7 ª ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
  • BUTLER, Judith. Antigone’s Claim: kinship between life and death New York: Columbia University Press, 2000.
  • BUTLER, Judith. O clamor da Antígona: parentesco entre vida e a morte Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
  • BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade Tradução de Renato Aguiar. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016 [1990].
  • COUTINHO, Carlos Nelson; KONDER, Leandro. “Nota sobre Agnes Heller”. In: HELLER, Agnes. O cotidiano e a História São Paulo: Paz e Terra, 2004. p. ix - xii.
  • GROSSI, Mirian. “Apresentação à edição brasileira, O clamor de Antígona: entre a vida e a morte”. In: BUTLER, Judith. O clamor da Antígona: parentesco entre vida e a morte Trad. André Cechinel. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014, p. 7-9.
  • HELLER, Agnes. O cotidiano e a História São Paulo: Paz e Terra, 2004.
  • HOMERO. Odisseia, v. 1: Telemaquia Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007a.
  • HOMERO. Odisseia, v. 2: Regresso Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2008.
  • HOMERO. Odisseia, v. 3: Ítaca Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007c.
  • KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism 2ª ed. Munster: UNRAST, 2010.
  • LUCKÁCS, Georg. apud HELLER, Agnes. O cotidiano e a História São Paulo: Paz e Terra, 2004.
  • RIBEIRO, Djamila. “A categoria do Outro: o olhar de Beauvoir e Grada Kilomba sobre ser mulher”. Revista Fórum (online). Santos, 2016. Recuperado de: Recuperado de: http://www.revistaforum.com.br/2016/04/08/a-categoria-do-outro-o-olhar-de-beauvoir-e-grada-kilomba-sobre-ser-mulher/ Acesso em 27/06/2016.
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  • RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de falar? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
  • SCHULER, Donaldo. ‘Por que ler a Odisséia?” In: Odisséia, v. 3: Ítaca Tradução do grego, introdução e análise de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2007.
  • SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre: v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
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  • TIBURI, Márcia. “Diadorim: biopolítica e gênero na metafísica do Sertão”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 191-207, jan./abril 2013
  • 1
    A primeira edição em inglês do livro de Butler data do ano 2000. Em português, o volume foi publicado em 2014 com o título O clamor de Antígona (EDUFSC).
  • 2
    No canto 5 Calipso é retratada como a ninfa, mulher, e Zeus, por exemplo, como homem, tanto que é acusado por Calipso de engravidar mulheres humanas e depois relegá-las aos Hades.
  • 3
    Utilizamos as aspas simples (‘’) quando empregamos o vocábulo ‘outro’ na acepção bouvariana apropriado, também, por Kilomba.
  • 4
    Aqui Calipso se refere ao castigo que Zeus infringiu à nau de Odisseu por que seus marinheiros carnearam as vacas de Hélio, que por sua vez ameaçou iluminar o Hades caso os usurpadores não fossem castigados.
  • 5
    Ver o primeiro capítulo em Butler (2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016 [1990]. ) no Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade no qual, também, constam as polêmicas sobre as concepções do feminismo de Monique Wittig, Simone de Beauvoir, Luce Irigaray, dentre outras.
  • 6
    Para privilegiar o tema em tela não nos aprofundaremos nas teses presentes no livro de Ribeiro (2017).
  • Christian Muleka Mwewa (christian.mwewa@pq.cnpq.br/christian.mwewa@ufms.br/afromuleka@yahoo.fr) é professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sociedade (UFMS/CPTL). Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (2010) com estágio doutoral na Université de Paris I Panthéon-Sorbonne (2008)
  • André Cechinel (andrecechinel@unesc.net) é professor no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC).
  • Alexandre Fernandez Vaz (alexfvaz@uol.com.br) é professor no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sociedade Contemporânea (CNPq/UFSC). Pesquisador PQ 1C do CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2016
  • Revisado
    18 Mar 2018
  • Aceito
    10 Abr 2018
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