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Brasileiros, só mais um esforço se quiserdes refundar a esquerda!

Brazilians, Just One More Effort If You Want to Refound The Left

SAFATLE, Vladimir. . Só mais um esforço . São Paulo: Três Estrelas, 2017. 143p.

Vladimir Pinheiro Safatle, nascido no Chile em 1973, é filósofo e professor livre-docente pela Universidade de São Paulo (USP). Tem se notabilizado, a partir de suas últimas publicações, pela análise e crítica políticas de um novo comportamento da “esquerda”, em contexto internacional e, em especial, o caso brasileiro. Só mais um esforço é uma análise de conjuntura a quente, escrita e publicada no segundo semestre de 2017, na qual observa os acontecimentos cujas consequências estão em curso neste momento. O título do livro é uma referência a uma frase do Marquês de Sade dentro do ambiente da Revolução Francesa, nos diálogos de A filosofia na alcova (La philosophie dans le boudoir, 1795). A obra trazia um breve panfleto que dizia “franceses, só mais um esforço se vocês quiserem ser republicanos” (Vladimir SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 11); isto é, se quisessem estar à altura dos processos de transformação que se abriam, era necessário um pouco mais de fôlego e compreender que muitas vezes tudo pode ser bem nebuloso e complicados no início. É assim que o autor faz a leitura da atual gramática política: é nebulosa, mas tem potencialidades que devem ser exploradas, sobretudo se consideradas de um ponto de vista mais largo, estrutural. Este é exatamente o teor do livro. Um minucioso e profundo exame da atual situação política brasileira e suas relações com processos mais amplos e mais largos tanto no tempo quanto no espaço.

Além das seis partes que constituem o corpo da obra, o livro traz um prefácio assinado por Michel Löwy e dois anexos (do próprio Safatle) muito breves anteriormente publicados em sua coluna no noticioso Jornal Folha de São Paulo. A primeira parte, intitulada “O último capítulo, ou História sucinta da decomposição de uma país”, faz uma retomada histórica demonstrando como as recentes experiências de governos de esquerda na América Latina e, com especial destaque, a brasileira constituem “o último capítulo da história da esquerda mundial no século XX” (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 16). Na sequência, menciona a fragilidade política da emergente democracia liberal e o moralismo que sustenta o discurso neoliberal. Encerra a seção mostrando como a capitulação da esquerda está ligada não a uma força ao seu inverso, mas à tendência da própria esquerda de esvaziar-se em seus princípios, pois “estamos todos comprometidos com a gestão de mesmo modelo econômico, divergindo apenas sobre a intensidade da aplicação das mesmas políticas” (SAFATLE, 2017, p. 36).

O que esvazia a esquerda de seus princípios, segundo o autor, é a incapacidade da própria “esquerda de lutar pela emergência de um sujeito político com força de implicação genérica” (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 36). São sujeitos, identidades, grupos falando apenas em seus próprios nomes, sem um caráter de implicação universal, “sem nenhuma preocupação sobre como criar implicações genéricas” (SAFATLE, 2017, p. 37). O que leva - como levou - a esquerda à capitulação, foi ceder a uma agenda global e recente assentada em pautas reformistas e circunstanciais em vez de revolucionária e estrutural. Foi também a ausência de uma agenda mínima profunda e inegociável, centrada em um “sujeito político capaz de se colocar como agente global” (SAFATLE, 2017, p. 38), deixando-se guiar por “demandas locais de modificação na estrutura legal” - cada uma delas porta voz individual de um “lugar de fala” - nunca de exigências globais de transformação dos “modos de reprodução material da vida” (SAFATLE, 2017, p. 38).

Na segunda parte, denominada “Um problema de imagem”, o autor faz uma leitura de três imagens, cada uma retratando um tempo diferente e o modo diverso como a esquerda se comportou em relação a eles. A primeira delas é a do jornalista Vladimir Herzog, morto nas dependências do DOI/Codi, em São Paulo, em 25 de outubro de 1975, expressando as barbáries da ditadura oligárquica civil-militar; a segunda, como expressão do populismo que marcou os primeiros quinze anos do século XXI, é a imagem do ex-presidente Lula em abril de 2006 mostrando as mãos sujas de petróleo em uma plataforma da Petrobras na Bacia de Campos (RJ); e, por fim, a terceira, de manifestantes à frente do Palácio Itamaraty, em Brasília, em junho de 2013, marcando o dia em que ocorreu uma série de protestos em todo o país. Se “cada época tem sua imagem” (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 41), são essas três, olhadas em contexto, os ícones ora da incapacidade e ora do “esgotamento da esquerda brasileira” (SAFATLE, 2017, p. 52).

Em “O esgotamento da Nova República” Safatle discute estratégias de invisibilidade promovidas pelo Estado. No Brasil, segundo ele, “o estado não tem apenas o direito sobre a vida e a morte, ele tem o direito de desaparecimento” (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 60). Analisa os crimes da ditadura brasileira, genocídios indígenas, a Lei da Anistia, bem como o totalitarismo que fundou Auschwitz e irradiou-se pelo mundo em diferentes matizes; compara o caso brasileiro às ditaduras da Argentina, do Chile, e encerra a discussão afirmando que “a relação promíscua entre o capital, o empresariado e a casta política” (SAFATLE, 2017, p. 72) fundam uma forma de governar já esgotada, pois em sua origem se corrompe, e “a corrupção é sempre o começo do fim da política” (SAFATLE, 2017, p. 76).

Na quarta parte, “O esgotamento do lulismo”, o autor faz críticas mais pontuais ao cenário político mais atual e diagnostica que em “catorze anos de governo de esquerda no Brasil, não foi dado um passo sequer em relação à constituição de mecanismos de democracia direta” (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 87), de modo que as experiências de governos brasileiros à esquerda não passaram de meros espaços formais de gestão, não da política, mas de conflitos, e “abandonar a política para se dedicar à gestão, seria a morte” (SAFATLE, 2017, p. 87). Se fracassada essa experiência de governo, a consequência mais imediata é o fracasso da própria esquerda no Brasil. “Junho de 2013 e o esgotamento da esquerda brasileira”, a quinta parte do livro, é a narrativa desse processo. Para o autor, as manifestações de junho daquele ano foram levantes autênticos e populares que a esquerda não compreendeu e não soube aproveitar a seu favor. Mais do que isso, “ao se confrontar com manifestações sem comando definido, as organizações da esquerda brasileira descobriram subitamente que estavam quarenta anos atrasadas” (SAFATLE, 2017, p. 113), pois não entenderam a gramática dos novos tipos de revolta e resistência tanto no Brasil quanto no mundo. Em especial a classe intelectual, que não soube potencializar a revolta e tampouco teorizar sobre ela.

Não última parte do livro, “Para além da melancolia: em direção ao grau zero da representação”, o autor convida à ação. Diagnosticar o esgotamento da esquerda brasileira não é razão para perplexidade ou melancolia. Pelo contrário, pode “aparecer como um momento privilegiado para uma inflexão em direção a práticas políticas mais condizentes com o tamanho das lutas e desafios que temos pela frente” (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 121). Nessa seção, trata das demasiadas formas de controle dos modelos burgueses de democracia, em especial a democracia representativa, e alerta que “nenhum programa de esquerda digno desse nome pode retirar de seu eixo central o fim da representação política” (SAFATLE, 2017, p. 126).

O autor é um crítico voraz de uma esquerda que nas últimas décadas se integrou às formas burguesas de gestão social, não só no Brasil, como também na América Latina e em muitos países da Europa. Ao fazê-lo, a esquerda passou a gerir e a fomentar uma “democracia tecnocrata” (SAFATLE, 2017SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço. São Paulo: Três Estrelas, 2017., p. 129), distante e descrente das diversas formas de soberania popular, que vê as pessoas comuns como incapazes de compreender e decidir questões centrais para a vida comum em sociedade, desprezando que são justamente essas pessoas que “têm a inteligência prática necessária para as decisões corretas” (SAFATLE, 2017, p. 129).

Por fim, o livro é um esforço e uma contribuição criteriosamente organizada para se compreender a atual situação na qual se encontram as esquerdas pelo mundo, mas, sobretudo, Só mais um esforço é uma reflexão sobre a vida política brasileira nas últimas décadas, à luz dos processos globais de capitalismo, que não cessam em recrudescer, levando consigo as várias tentativas de democracias em equacioná-lo. Se o esgotamento das esquerdas frente a isso é uma evidência, pensar e compreender sua gramática é uma imposição. Por tudo isso, recomenda-se com ênfase a leitura do texto, não apenas pela lucidez de interpretação que propicia, como também por apontar para caminhos de transformação de que não mais se pode prescindir.

Referência

  • SAFATLE, Vladimir . Só mais um esforço São Paulo: Três Estrelas, 2017.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    HOWES NETO, Guilherme. “Brasileiros, só mais um esforço se quiserdes refundar a esquerda!”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, e61253, 2020
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2019
  • Aceito
    05 Out 2019
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