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A insígnia do pecado: The Magdalene Sisters

The Badge of Sin: The Magdalene Sisters

Resumo:

Considerada a insígnia do pecado, sendo percebida como a agente privilegiada de Satã, a mulher manteve uma reputação frequentemente hostil durante todo o medievo. Sua imagem, muitas vezes, fora associada à ideia da luxúria, da decadência moral e da iniquidade demoníaca. Deste modo, neste artigo pretende-se refletir sobre o imaginário medieval em relação à mulher durante o período medieval e à presença desta concepção imaginária como construtora de sentidos na narrativa fílmica The Magdalene Sisters, de Peter Mullan (2002). Considerando que o longa-metragem apresenta a história verídica de mulheres na segunda metade do século XX, é possível analisar as representações sociais da mulher medieval, bem como das alegorias presentes no longa-metragem, compreendendo-as como um elemento de permanência histórica.

Palavras-chave:
imaginário social; idade média; mulher; The Magdalene Sisters; alegorias

Abstract:

Considered to be the badge of sin, perceived as the privileged agent of Satan, woman maintained an often hostile reputation throughout the Middle Ages. Her image had often been associated with the idea of lust, moral decay, and demonic iniquity. In this way, this article intends to reflect on the medieval imaginary in relation to women during the medieval period and the presence of this imaginary conception in the construction of meaning in the film narrative The Magdalene Sisters, by Peter Mullan (2002). Considering that the feature film presents the true story of women in the second half of the twentieth century, it is possible to analyze the social representations of the medieval woman, as well as the allegories present in the movie, as an element of historical permanence.

Keywords:
Social Imaginary; Middle Ages; Woman; The Magdalene Sisters; Allegories

Irlanda, 1964. Em uma festa de casamento, diante de uma plateia atenta, um padre entoa uma canção religiosa. “Ele disse que ela jurava em falso, pois já tinha seis belos filhos. [...]. Dois dos filhos estão enterrados no estábulo, perto do poço no fundo do vale. [...]. Você tocará um sino por sete anos, mas o senhor salvará minha alma de todo esse inferno” (Peter MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 53s).1 1 Todas as citações nesta apresentação introdutória do filme são diálogos retirados das cenas iniciais do longa-metragem irlandês lançado no ano de 2002, The Magdalene Sisters, que na tradução brasileira tem por título Em Nome de Deus. O filme tem roteiro e direção de Peter Mullan e traz no elenco as atrizes Geraldine McEwan, Anne Marie Duff, Nora Jane Noone, Dorothy Duffy e Eileen Walsh. Após o término da canção, os convidados aplaudem entusiasticamente a apresentação do clérigo, enquanto Margaret e seu primo Kevin sobem para o sótão da casa onde a festa acontece. No salão de festas, as pessoas dançam, bebem e sorriem umas para as outras, enquanto Margaret é estuprada pelo primo no andar de cima. Um crucifixo balança sob uma cadeira ao mesmo tempo em que Kevin reaparece diante de todos, aturdido. Ele dança, bebe cerveja e observa Margaret aproximar-se dos demais, como se nada houvesse acontecido entre os dois. Ela, por sua vez, relata o ocorrido para uma das convidadas, que logo discute com o rapaz e expõe o episódio para o pai da jovem. Rapidamente, o pai fecha-se em uma sala com outros homens da família, o padre e o próprio agressor para descobrir, absorto nas interpretações masculinas, a conclusão óbvia do ocorrido: a culpada é a mulher que seduziu e conduziu o homem ao pecado.

Morando em um orfanato irlandês, Bernadette também é considerada culpada: pela sua ousadia, pela sua dissimulação, pela sua beleza. “Não é pecado ser bonita, Bernadette? Não. Olhem a Virgem Maria, por exemplo. Ela não é bonita? É pecado ser vaidosa, a vaidade sim é um pecado” (MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 09min17s). No intervalo das aulas, conversa com os meninos que brigam nos portões para melhor admirá-la. Pedem beijos, fazem perguntas, pedem para que mostre as pernas para todos. “Mostre mais do que as pernas, Bernadette” (MULLAN, 2002, 09min49s). Quando a inspetora da instituição manda os garotos embora, Bernadette permanece imóvel no pátio. Eles voltam. Voltam e continuam a fazer os mesmos pedidos para ela. “Ela está provocando a gente” (MULLAN, 2002, 10min29s). Quando um sinal anuncia o fim do intervalo, as meninas correm para voltar às suas atividades corriqueiras, mas Bernadette continua a conversar com os garotos, sem saber que é observada. Horas depois, a cama vazia e os pertences pessoais jogados no chão indicam ao espectador que Bernadette não está mais no orfanato. Seu exemplo, visto como lascivo, não era bem visto para as demais. Era necessário mandá-la embora.

Não muito longe dali, Rose encontra-se em uma cama de hospital, após dar à luz ao seu primeiro filho. Com o bebê no colo, ela tenta sensibilizar a mãe que permanece gélida, fechada e impassível perante o neto bastardo. “Mãe, já disse que estou arrependida. Sei que o que fiz foi pecado. Mas olhe para ele. Não pode culpá-lo por algo que ele não fez. Sei que envergonhei você e o papai” (MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 11min41s). O pai aparece na porta do quarto, sombrio. Chama a jovem que deixa o filho na cama e vai ao seu encontro. O pai está junto a um padre que pertence a uma sociedade de adoção para pais católicos. Um padre que levará a criança consigo. “Um filho ilegítimo é um bastardo. Quer que ele seja um pária, rejeitado e humilhado pela sociedade decente?” (MULLAN, 2002, 12min46s). Rose reluta, não quer abandonar o filho. “Quer que a criança pague por um pecado seu e não dela? Eu digo: seu, e não dela!” (MULLAN, 2002, 13min01s). Desolada, a jovem aceita entregar o bebê para adoção. “Quer lhe dar a chance de ter pais decentes, amorosos e católicos? Assine aqui” (MULLAN, 2002, 13min10s). Rose assina, enquanto pergunta ao pai se ele viu o rosto do neto. Após uma fria negação, Rose observa seu filho sendo levado pelo padre, ao passo que brada pela anulação dos papéis que o entregam para adoção. Aos prantos, Rose pede em vão que o filho não seja levado para longe de si.2 2 Como mostram as informações finais presentes na narrativa fílmica, a partir de entrevistas e pesquisas realizadas por Mullan e sua equipe cinematográfica para compor a obra, ela só o encontrará 30 anos após este acontecimento.

As três cenas supracitadas constituem a sequência inicial do longa-metragem The Magdalene Sisters, que narra a história de um convento na Irlanda da segunda metade do século XX, onde mulheres eram mandadas para “pagar” pelas mais diversas falhas morais: desde sexo antes do casamento e gravidez indesejada, até motivos mais “brandos” como dissimulação, desobediência familiar e vaidade. Margaret, Bernadette e Rose são apenas alguns dos exemplos apresentados ao longo da narrativa fílmica,3 3 Estima-se que cerca de 30.000 mulheres foram detidas em conventos na Irlanda. Apesar das denúncias, a última lavanderia fechou apenas no ano de 1996. Em 2011, o comitê da ONU (Organização das Nações Unidas) contra tortura pediu ao governo irlandês a instalação de um inquérito que investigasse os maus-tratos cometidos contra mulheres entre os anos de 1922 e 1996. Para aprofundamento sobre a questão, sugere-se a leitura da obra de James Smith publicada pela University of Notre Dame Press, chamada Ireland’s Magdalen Laundries and the Nation’s Architecture of Confinement. que traz um cenário pouco aprazível do feminino em algumas esferas da sociedade irlandesa dos anos 1960. Não obstante, no filme, a mulher é a culpada por todos os males morais e físicos deste espaço, seja ludibriando e envolvendo os homens em armadilhas sexuais, seja simplesmente desobedecendo às normas sociais no âmago societário dos grupos em que está inserida, evidenciando uma construção que tem suas raízes históricas na mentalidade do medievo, época em que a mulher era percebida como a encarnação do próprio mal, a presa favorita nas armadilhas de Satã.

Sendo assim, neste artigo, ao se analisar a insígnia do pecado: representações do feminino e a presença do imaginário medieval no filme The Magdalene Sisters, objetiva-se estabelecer uma reflexão entre o imaginário medieval em relação à mulher durante o período medieval e a presença desta concepção imaginária como construtora de sentidos na narrativa fílmica de Peter Mullan (2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color.). Por meio da análise das representações sociais da mulher medieval, bem como das alegorias presentes no longa-metragem, procura-se compreender este imaginário social acerca do feminino como um elemento de permanência histórica, aqui compreendida como o conjunto de padrões que resiste e persiste por gerações em determinados grupos sociais, dando-lhes coesão de ideias, valores, características etc. (Jacques LE GOFF, 1976LE GOFF, Jacques. “As mentalidades: uma história ambígua”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 68-83.), já que a narrativa fílmica se baseia em fatos de cunho verídico. Por meio das situações apresentadas ao longo do filme, em que a conjuntura cunhada em relação à mulher evidencia uma realidade hostil perante o que é apresentado, se busca refletir acerca das representações cinematográficas e de seus significados, a partir deste passado histórico medieval.

Entre a santa e a pecadora: o imaginário medieval e a construção do feminino

Para melhor entender a presença do imaginário medieval na narrativa fílmica de The Magdalene Sisters, se faz necessária a devida contextualização da imagem relativa à mulher na mentalidade coletiva do medievo, a fim de se compreender o processo de significação acerca do feminino com base nesta misógina no decorrer do filme.4 4 Em sua obra Idade Média: O nascimento do ocidente, Hilário Franco Jr. (2006) caracteriza a mentalidade coletiva medieval a partir de elementos como a hierofania, o simbolismo, o belicismo e o contratualismo, considerando por mentalidade “o plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação” (p. 256). Elencar as representações do feminino neste período histórico é, portanto, de cabal relevância neste estudo.

No período medieval, o homem criava sentidos para a realidade na qual estava incurso a partir da sua relação com o sagrado. O mundo circundante era percebido com base naquilo que Hilário Franco Júnior (2006FRANCO JR., Hilário. A Idade Média: o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.) chama de hierofania, que é a manifestação do sagrado e do profano em todas as instâncias da vida cotidiana dos sujeitos, já que a cosmologia medieval ligava todas as partes do universo entre si, sem distinções abruptas entre o mundo terreno e o mundo sobrenatural. Neste sentido, considera que o cristianismo está centrado na maior hierofania possível - Deus se fez homem. Sendo assim, “o mundus devia ser compreendido pela essência de seus seres e de seus fenômenos” (Paulo Roberto de Núñez SOARES, 2011SOARES, Paulo Roberto de Núñez. “Os monstros na cultura medieval”. Revista Signum, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 188-210, 2011., p. 189).

Esta percepção mantinha-se fortemente alimentada pela vulnerabilidade do homem mediante as forças naturais, típicas de sociedades essencialmente agrárias como a do medievo, sendo que elementos culturais exógenos e endógenos alinhavam-se de forma socialmente complexa. Sob este prisma, “[o] mundo era, pois, permeado de seres e fenômenos que ultrapassavam qualquer lógica, autocentrada ou interna” (SOARES, 2011SOARES, Paulo Roberto de Núñez. “Os monstros na cultura medieval”. Revista Signum, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 188-210, 2011., p. 189). E, em uma sociedade em que uma das características na mentalidade coletiva era o hierofanismo pautado na presença constante do fantástico, e onde a sobrevivência diária dependia do acaso natural percebido como sobre-humano, o caráter bélico do mundo exemplificado pelos membros do clero e lido na cotidianidade dos sujeitos, a partir de sua injunção espiritual, era intensamente vivenciado. Deste modo, o belicismo pautado na luta constante entre o bem e o mal é outra característica tácita da mentalidade medieval que “decorria da presença constante daquelas manifestações sagradas nas suas duas modalidades, que vistas do ponto de vista humano, eram benéficas ou maléficas” (FRANCO JR., 2006FRANCO JR., Hilário. A Idade Média: o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006., p. 146).

Neste sentido, o imaginário medieval se revelava na concretude da vida cotidiana da Idade Média como um grande campo de forças antagônicas, em que as almas eram disputadas por dignitários da salvação e por agentes de Satã. As representações imagéticas, ornadas em pinturas, esculturas, iluminuras, textos eclesiásticos etc., estavam impregnadas da mentalidade bélica inerente à sociedade feudal, tanto no âmbito da vida terrena, como no âmbito dos lugares reservados ao além. Estas representações evidenciavam a luta existente entre Deus e o Diabo, da qual todos eram partícipes, sendo que, não obstante, explicitava-se a necessidade de se escolher um dos lados pelo qual lutar, o que se confere no que Franco Jr. (2006FRANCO JR., Hilário. A Idade Média: o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006.) chama de contratualismo presente neste imaginário, uma espécie de contrato firmado entre uma das partes envolvidas no duelo sacro medieval. Esta essencialidade bélica revelava-se em diferentes momentos da vida do indivíduo, pois estava atrelada a uma construção arraigada na coletividade da sociedade feudal, uma vez que o imaginário que se estabelece é, no argumento de Sandra Jatahy Pesavento (1995PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Em Busca de uma Outra História: Imaginando o Imaginário”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995.), “[...] representação, evocação, simulação, sentido e significação, jogo de espelhos onde o “verdadeiro” e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber” (p. 24).

Da mesma forma, Michel Maffesoli (2001MAFFESOLI, Michel. “O imaginário é uma realidade”. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 15, p. 74-82, agosto 2001.) aponta que “o imaginário é uma força social de ordem espiritual, uma construção mental, que se mantém ambígua, perceptível, mas não quantificável” (p. 75), o que denota uma “leitura coletiva” da realidade, sem a necessidade de uma efusão concreta, de um sentido meramente físico. Deste modo, se a compreensão do mundo dava-se por intermédio da hierofania supracitada, a estrutura social mantinha-se por meio da fé naquilo que era dado, percebido e apreendido na vida coletiva. E isso não apenas no campo das forças materiais, mas também no âmbito mental, visto que a mentalidade “é o plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados e transmitidos inconscientemente [...]” (FRANCO JR., 2006FRANCO JR., Hilário. A Idade Média: o nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2006., p. 184).

Assim sendo, o período medieval deu grande importância para as imagens, tendo em vista que a grande maioria da população europeia do período era iletrada. O uso do conteúdo iconográfico por parte do clero servia tanto para doutrinar os grupos sociais nas premissas de cunho religioso, assim como para repreender os comportamentos indesejáveis, as ofensivas heréticas e as máculas anticristãs. Deste modo, durante a Idade Média, os membros do clero são aquilo que Bronislaw Baczko (1985BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social”. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 296-332.) chama de “guardiões do imaginário coletivo”, visto que “os guardiões do imaginário social são, simultaneamente, guardiões do sagrado” (p. 300). É neste ideário de suplantação ao indesejado, de luta contra os vícios terrenos e as forças demoníacas no combate bélico celestial, bem como do trabalho de legitimação da instituição eclesiástica na sociedade, que se advém às representações do feminino presentes no imaginário do medievo, que no argumento de Roger Chartier (1990CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.) são determinadas pelos grupos que as constroem de acordo com seus próprios intereses, pois, como observa:

As percepções do mundo social não são, de forma alguma, discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas (p. 17).

Fundamentando o pensamento basilar de uma acurada sociedade ou grupo social acerca de determinado assunto, as representações sociais (Dominique Vieira Coelho SANTOS, 2011SANTOS, Dominique Vieira Coelho. “Acerca do conceito de representação”. Revista de Teoria da História, Goiás, ano 3, n. 6, p. 27-53, dezembro 2011.) dão sentido ao que é percebido no corpus social como algo dado, natural, possuindo assim uma dupla função: manifestar uma ausência, através da distinção entre o que representa e o que é representado (a mulher não é só a mulher, mas um elemento santo ou demoníaco na edificação hierofânica medieval); e a apresentação pública do que é representado (necessita-se mostrar, no seio da vida social, a essência satânica e as formas de atuação da mulher nessa sociedade). Assim, faz-se necessário dar atenção “às condições e aos processos que, muito concretamente, sustentam as operações de construção de sentido” (CHARTIER, 2002CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre Certezas e Inquietude. Porto Alegre: EDUFRGS, 2002., p. 68). Posto isso, pode-se compreender que as representações sociais ordenam a estrutura do mundo social, definindo papéis, condutas e comportamentos, legitimando um discurso em detrimento de outro e organizando as práticas societárias.

Considerando assim que “não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações [...] pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao seu mundo” (CHARTIER, 2002CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre Certezas e Inquietude. Porto Alegre: EDUFRGS, 2002., p. 66), as referências icônicas e os discursos sociais que agenciavam a imagem da mulher no medievo eram duplamente intuídos: ao passo que o feminino era sumariamente santificado pela representação da Virgem, mantinha-se por outro prisma sorrateiramente hostilizado devido à sua natureza maléfica terrena. No que tange à sua essência divina, a história de ascensão da imagem de Maria, mãe de Cristo, alinhava-se, segundo Jérôme Baschet (2006BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.), com a lógica de promoção do próprio clero católico, o que supunha a necessidade de uma nova leitura acerca do feminino diante desta jactância. Neste sentido, a idiossincrasia da Virgem Igreja ou da Santa Madre Igreja relaciona a elevação da figura de Maria com a posição da instituição eclesiástica no corpo social, sendo que

as figuras da virgem e da Igreja testemunham, entretanto, a necessidade de dar espaço ao feminino. Convém, de resto, integrá-los à esfera divina, pois Maria é cada fez mais associada à soberania das figuras divinas, a tal ponto que se pode falar de um processo de quase divinização da Virgem (BASCHET, 2006BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006., p. 470).

Para o autor, na Baixa Idade Média, o discurso associa de tal forma a Virgem com a Igreja, concebendo-as como uno (BASCHET, 2006BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.). Todavia, este caráter divino do feminino não era facilmente alcançável pela mulher comum, tendo em vista que a construção da imagem imaculada se referia à santa Mãe de Cristo em congruência com a própria imagem da instituição clerical - lugar masculino por excelência. Indicava-se que a mulher se mantivesse casta até o casamento, se este fosse o caso. Mas se objetivava, sobretudo, a ausência total das práticas sexuais, pois “o melhor é homem não tocar a mulher. Todavia, para evitar a fornicação, tenha cada homem a sua mulher e cada mulher o seu marido” (CORÍNTIOS, 7: 1-3CORÍNTIOS, 7: 1-3. In: A BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1967.), sendo que “a Igreja, na metade do século XII, acabava de fazer do casamento um dos setes sacramentos a fim de assegurar seu controle” (Georges DUBY, 1995DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 17). Também a Bíblia indicava ao homem acerca de sua esposa: “Separa-te dela quanto ao corpo, a fim de que não abuses sempre de ti” (ECLESIÁSTICO, 25: 36ECLESIÁSTICO, 21, 25, 27. In: A BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1967.), e São Jerônimo, representante da imensa maioria dos teólogos da Igreja em início do medievo, declarava no seu Adversus Jovianum que “nada é mais imundo do que amar a sua mulher como uma amante” (Carlos Roberto Figueiredo NOGUEIRA, 1991NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. “As companheiras de Satã: o processo de diabolização da mulher”. Espacio, Tiempo y Forma, Madrid, Série IV. t. IV, p. 9-24, 1991., p. 15).

Sob este olhar, a feição de Maria, em sua santidade, é o da maternidade imaculada e não em concubinato, o que continua a aquiescer a sua imagem como ideal privilegiado do feminino. Somente a partir deste ideal sagrado é que a mulher teria a possibilidade de salvar-se da culpa por gerar filhos em pecado. Neste aspecto, é a própria mulher que pode salvaguardar sua aura imaculada, repreendendo seus instintos sexuais e, por conseguinte, do cônjuge, como ressalta Carla Casagrande (1990CASAGRANDE, Carla. “A mulher sob custódia”. In: KLAPISCH-ZUBER, Christiane (Dir.). História das mulheres no Ocidente: Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990. p. 99-141. v. 2.):

A mulher foi criada por Deus, participou com a Virgem Maria do mistério da Encarnação, contribuiu por meio de inúmeras mulheres santas e piedosas para o desenvolvimento espiritual da cristandade, possui uma alma que está apta a entrar em relação com a divindade, pode salvar e ser salva, praticar a virtude, fugir ao vício, tornar-se exemplo de perfeição moral: é, portanto, capaz de se autocustodiar (p. 121).

Se, por um lado, o sagrado feminino medieval alinhava-se à imagem da Virgem, por outro, sua presença na sociedade denotava maldade, perfídia e devassidão. Sabe-se que, em um período em que a Igreja desfrutou de grande prestígio, sendo a ela legado o papel de preceptora das verdades divinas, a mulher sempre se manteve como coadjuvante dos ritos religiosos. Isso porque a instituição eclesiástica à época era predominantemente masculina. Porém, nas manifestações religiosas populares, percebe-se a presença feminina de maneira fortemente marcada, sobretudo em práticas de cunho mágico e espiritual. Todavia, o envolvimento de mulheres nestas práticas religiosas, vistas como ofensivas heréticas peculiares, foi duramente combatido pela Igreja, que não aceitava outro saber que não o teológico e considerava estas práticas periféricas como feitiçaria. Às mulheres que continuavam a praticar os ritos ou mesmo a colocar formas alternativas de conhecimento em exercício, a tortura e a fogueira eram um destino comum, já que é na feitiçaria “que encontramos a diabolização do feminino em sua total dramaticidade” (NOGUEIRA, 1991NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. “As companheiras de Satã: o processo de diabolização da mulher”. Espacio, Tiempo y Forma, Madrid, Série IV. t. IV, p. 9-24, 1991., p. 18).

Não obstante, a representação da mulher no período medieval ligava-se fortemente às forças do mal e a sua presença na sociedade era vista quase sempre com desconfiança na edificação bélica da realidade. Esta desconfiança estava presente em diferentes discursos do período, sobretudo por parte de alguns teólogos, para quem Eva não teria sido feita a imagem e semelhança de Deus, mas a partir da costela de Adão, este sim unívoco ao divino. Este fato caracterizaria a inferioridade natural do feminino, pois, como afirma o teólogo Thomas de Aquino em sua Suma Teológica, “a mulher foi criada ainda mais imperfeitamente do que o homem [...]. Na geração, o papel positivo é do homem, sendo a mulher apenas um receptáculo. Verdadeiramente não há outro sexo que não o masculino. A mulher é um macho deficiente” (Thomas de Aquino apudNOGUEIRA, 1991NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. “As companheiras de Satã: o processo de diabolização da mulher”. Espacio, Tiempo y Forma, Madrid, Série IV. t. IV, p. 9-24, 1991., p. 16).

Para além desta questão, Eva, a primeira mulher, foi o elemento intermediário entre o homem e o pecado, levando a humanidade infalivelmente às agruras da danação eterna. “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu, e deu também ao marido, e ele comeu” (GÊNESIS, 3GÊNESIS, 3: 6. In: A BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1967.: 6). A partir do caráter da transgressão de Eva e o que ele apreende, suas sucessoras são percebidas no imaginário do medievo como o meio pelo qual o homem pode ceder às iniquidades terrenas, uma vez que, assim como Eva o foi, elas são as presas e as agentes favoritas de Satã nos seus planos funestos elencados para conceber a perdição dos homens. Diante desta prerrogativa, vários discursos do período salientaram esta natureza diabólica do feminino, como neste excerto de um discurso dos clérigos Cícero e João Crisóstomo, datado do século XVI:

Toda malícia não é nada perto de uma malícia de mulher [...]. A mulher, o que é ela se não a inimiga da amizade, a pena inelutável, o mal necessário, a tentação natural, a calamidade desejável, o perigo doméstico, o flagelo deleitável, o mal por natureza pintada de cores claras? [...]. Uma mulher que chora é uma mentira [...] Uma mulher que pensa sozinha, pensa para o mal apenas (In: Jean DELUMEAU, 1999DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 324).

Da mesma forma, o abade Drouet de Maupertuis afirmava que “[o] diabo não tem via mais segura para perder os homens do que entregá-los às mulheres” (Séverine FARGETTE, 1990FARGETTE, Séverine. “Eva, Lilith e Pandora: o mal da sedução”. História Viva, São Paulo, ano 6, v. 12, p. 61-63, dezembro 1990., p. 61-63). Também no trecho do poema de Bernard de Morlas, um monge da região de Cluny, redigido no século XII, se evidencia a presença de uma imagem maléfica da mulher no imaginário do período, sendo ela “o trono de Satã”:

A mulher ignóbil, a mulher pérfida, a mulher vil. Macula o que é puro, rumina coisas ímpias, estraga as ações [...]. A mulher é fera, seus pecados são como a areia [...]. Toda mulher se regozija de pensar no pecado e de vivê-lo. [...] A mulher é coisa má, coisa malmente carnal, carne toda inteira. Dedicada a perder, e nascida para enganar, perita em enganar. Abismo inaudito, a pior das víboras, bela podridão [...]. A mulher é uma feroz serpente por seu coração, por seu rosto, por seus atos [...]. Ela é o trono de Satã [...] (In: DELUMEAU, 1999DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 325).

A construção do feminino sob a lógica da diabolização na sociedade feudal estava articulada naquilo que Baschet (2006BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006.) denomina de “mecanismos de representação” na estrutura mental do medievo,5 5 Este termo tem sido amplamente utilizado associado aos estudos sobre as mentalidades. Refere-se ao conjunto de elementos que se relaciona a conceitos, modos de pensamento e experiências conscientes e inconscientes, focando em abordagens como crenças, sentimentos, ritos, cerimônias. já que “uma mesma imagem pode associar significações contraditórias” (p. 512), sem, contudo, apaziguar a intencionalidade das alegorias mentais que suscitam uma interpretação social sobre determinada premissa, uma vez que “longe de ser uma deficiência, tal ambivalência [...] permite que a imagem assuma aspectos importantes do modo de pensar medieval” (p. 512). Esta ambivalência manifestava-se na percepção inerente ao feminino na sociedade do medievo, ora visto como um elemento idiossincrático santo na sua correlação com a instituição clerical, ora como a onipresença do pecado no seio da vida cotidiana terrena. Este último aspecto, no entanto, vigorou com extrema aquiescência no ocidente medieval, devido à crescente persecução que o sexo feminino sofreu neste período histórico,6 6 Para analisar este tipo de persecução às mulheres, a feminista e escritora ativista Diana Russel cunhou, pela primeira vez na historiografia feminista, o termo Femicídio ou Feminicídio. Durante um depoimento em um tribunal de crimes contra as mulheres em Bruxelas, no ano de 1976, a ativista utilizou a expressão para designar os assassinatos de mulheres pelo fato de serem mulheres. Mais tarde, a expressão estendeu-se para designar diferentes discriminações de gênero. No tocante à Idade Média, segundo alguns autores como Jacques Le Goff e Georges Duby, o feminicídio teve seu auge entre os séculos XII e XVI. E, muito embora o Tribunal do Santo Ofício tivesse em vista combater hereges de ambos os sexos, a grande maioria dos réus era constituída por mulheres. principalmente com a intensificação das práticas inquisitoriais (Francisco BETHENCOURT, 2000BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.), como demonstra este excerto do Malleus Maleficarum,7 7 Malleus Maleficarum, ou Martelo das Feiticeiras, foi escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger e constituía-se em um manual orientador para a caça às bruxas. selecionado por Delumeau (1999DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.) para exemplificar a imagem visivelmente negativa da mulher, visto que “Nº 1: Suas palavras são melífluas [...]; Nº 2: Ela é enganadora [...]; Nº 13: Está cheia de malícia. Toda malícia e toda perversidade vêm dela (ECLESIÁSTICO 25); [...] Nº 81: Muitas vezes tomadas de delírio, elas matam seus filhos [...]; Nº 102: Algumas são incorrigíveis [...]” (p. 323).

É por intermédio deste imaginário social, sob a efígie dicotômica entre a santa e a pecadora, que o enredo e a construção de sentidos de The Magdalene Sisters foram edificados. O universo da narrativa audiovisual se passa em um asilo, na Irlanda, ao longo dos anos 1960, e baseia-se em histórias reais de mulheres mandadas para conventos a fim de “purgar os seus pecados”. Estes lugares, conhecidos como Asilos de Madalena, abrigavam mulheres consideradas “ímpias” ou que não estivessem de acordo com o padrão social vigente, tais como deficientes físicas, mães solteiras, prostitutas, jovens rebeldes, órfãs etc.8 8 Um dos pesquisadores mais expressivos sobre a História da Irlanda e, por consequência, do Asilo das Madalenas, é James Smith, sendo possível aprofundar a questão na obra Ireland’s Magdalen Laundries and the Nation’s Architecture of Confinement. Indiana: University of Notre Dame Press, 2014. Desta forma, cabe pensar as representações do feminino e a presença do imaginário medieval na narrativa fílmica a partir de três temas dramáticos presentes na obra e que, apesar de serem analisados separadamente, complementam-se entre si: o medo da mulher, a culpa feminina e a remissão dos pecados em congruência à lógica da salvação.

Chartier (2002CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre Certezas e Inquietude. Porto Alegre: EDUFRGS, 2002.) observa que um discurso histórico é sempre “um conhecimento sobre traços e indícios” (p. 17). No tocante ao Cinema, Marc Ferro (1976FERRO, Marc. “Filme: uma contra-análise da sociedade?”. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 199-215.) aponta que um discurso histórico - compreendendo, aqui, o discurso histórico como uma estruturação de significados no interior da narrativa audiovisual que constroem representações e sentidos no âmago da história narrada - pode ser assimilado por meio dos pormenores ideológicos que compõem a discursividade fílmica. Como um produtor de significados na narrativa, esta súmula audiovisual fornece importantes elementos sobre o semblante imaginário de uma determinada época, já que um filme pode ser considerado, segundo o autor, uma “contra-análise” da sociedade, constituída por representações da realidade histórica apresentada. Assim sendo, concordamos com Francis Vanoye e Anne Golliot-Lété (1994VANOYE, Francis; GOLLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994.) quando estes autores ressaltam que a análise fílmica implica duas etapas sumariamente importantes: em primeiro lugar decompor, ou seja, descrever as passagens que são relevantes ao estudo proposto, e, em seguida, estabelecer e compreender as relações de sentido entre estes elementos decompostos em um processo de interpretação. Neste sentido, o método de análise da narrativa fílmica The Magdalene Sisters será indutivo, visto que conjuga estudos bibliográficos que apresentam a construção do feminino no imaginário medieval com um exercício crítico-interpretativo da presença desta insígnia no longa-metragem de Peter Mullan (2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color.), a partir da relação elencada entre História e Cinema.

A culpa feminina

No livro bíblico de Eclesiastes está prescrito que “toda a malícia é leve em comparação à malícia da mulher, sobre ela caia a sorte dos pecadores” (ECLESIÁSTICO, 25: 26). O mesmo livro afirma ainda que “da mulher nasceu o princípio do pecado, e por ela é que todos morremos” (25: 33). A mulher, sob este prisma, é a culpada por todos os danos que se abatem sobre a humanidade. Não obstante, o medievo legitimou esta insígnia em relação ao feminino, como se viu anteriormente neste texto. Ao longo do percurso audiovisual diferentes representações desta culpa feminina concebida no período medieval - e perpassada pelos séculos sucessores - são arquitetadas e traduzidas na narrativa fílmica. Já no início do filme Margaret é estuprada pelo primo, mas não é percebida como vítima do ato, pelo fato de ser mulher e ser vista como aquela que induz o homem ao enlaço sexual. A presença de um padre nesta cena evidencia a relação entre a condenação moral da personagem e a instituição eclesiástica como mentora desta reprovação, naturalizando a culpa da mulher, sobretudo no âmbito moral.

Ainda na sequência inicial do longa-metragem em que Margaret é violentada, também se pode observar a dicotomia medieval entre a santa e a pecadora segundo os elementos apresentados na cena e como eles são colocados: o casamento, procedimento sacramentado no século XII, que permite ao marido que “dê à mulher o que lhe é devido, e, da mesma sorte, a mulher, também, ao marido” (LE GOFF, 1994LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994., p. 160) e a conduta herética de Margaret, que em compasso com a sacralização da noiva, conduz o primo ao ato carnal, constituindo um pecado mortal, sendo considerada o avesso da mulher desejada pelo núcleo familiar e eclesiástico. Howard Bloch e Frances Fergunson (1987BLOCH, Howard; FERGUNSON, Frances (Orgs.). Misogyny, Misandry, and Misanthropy. Oakland: University of California Press, 1987. Representations Books (Book 3).) ressaltam que toda essa discriminação da natureza e da fisiologia femininas realizava, no antifeminismo da Idade Média, uma ligação tendenciosa entre o teológico e o ginecológico. Isso no filme se traduz por meio dos pecados de cunho sexual “cometidos” pelas personagens principais: Margaret, Rose e Bernadette induzem o homem ao vício carnal e por isso são consideradas as únicas culpadas pelos atos cometidos, inocentando o sexo masculino desta culpabilidade religiosa ou de qualquer responsabilidade por seus atos, uma vez que a interpretação clériga paira, ao longo da narrativa, unicamente na falha do feminino, evidenciando o imaginário supracitado.

Esta atuação da culpa atribuída à mulher no longa-metragem é um dos pontos de maior significação no que tange à apropriação do imaginário medieval como construtor de sentidos na obra. Algumas passagens evidenciam fortemente esta assimilação. Uma destas passagens diz respeito à Una O’Connor, personagem que é internada no convento das Irmãs Madalena por ter ofendido a família com suas falhas de cunho sexual. Ao tentar fugir do internato, é rapidamente descoberta pelo pai, que a leva de volta à instituição, violentando a personagem física e verbalmente, atirando-a na cama e explanando que ela não tem mais pai, mãe ou família devido ao ato cometido. Observa-se, no decorrer da cena, que a percepção da culpa na personagem por meio da ótica do pai é tão forte, que ele acaba por dizer - quando esta implora para ir embora - que ela ficará na cama até a morte, purgando seus pecados. O progenitor ainda volta quando a filha grita, a espancando novamente. Ao mesmo tempo, na cama de outra mulher internada, observa-se o dizer Deus é bom, o que acaba por justificar as agressões impingidas contra as detentas, trazendo à tona uma mentalidade de longuíssima duração.

Outras duas passagens do filme de Peter Mullan são bastante significativas deste imaginário da culpa em relação ao feminino. A primeira refere-se à cena em que várias mulheres, entre elas as protagonistas, são humilhadas psicologicamente por freiras do convento, enquanto estão nuas no interior da lavanderia em que trabalham. As irmãs degradam as personagens com insultos, piadas e ofensas destinadas ao corpo de cada uma delas, enquanto estas apresentam uma expressão facial de dor, culpa e sofrimento. Esta composição com base na agressão verbal direcionada ao corpo feminino pode ser percebida por via de sua relação com o processo de culpabilização do corpo da mulher ao longo do medievo, uma vez que

o corpo é a prisão (ergastulum = prisão para escravos) da alma: mais que a sua imagem habitual, é a sua definição. O horror ao corpo culmina nos seus aspectos sexuais. O pecado original [...] foi transformado pelo cristianismo medieval em pecado sexual. A abominação do corpo e do sexo atinge o cúmulo no corpo feminino (LE GOFF, 1994LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994., p. 146).

O corpo feminino é visto, então, como um receptáculo do pecado pela culpa atemporal que a mulher carrega devido ao pecado original. Não obstante, o suplício que as mulheres são obrigadas a suportar nesta passagem da narrativa audiovisual se associa com os pecados cometidos pelas personagens, em sua maioria de caráter sexual. Por serem culpadas, padecem diante do outro, inocente, representado pela sacralidade das freiras, entregues e tementes a Deus. Aliado a esta assepsia tem-se o silêncio das humilhadas como elemento que agrega sentido à cena, já que estas devem se submeter às autoridades eclesiásticas representadas pela figura das irmãs, pelo fato de estas serem castas e elevarem-se diante do divino, pois se assemelham à ideia da santidade. Além disso, a mulher que gesticula - seus gestos excessivos eram associados na mentalidade coletiva medieval como uma posição demoníaca (LE GOFF, 1994LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994., p. 147). Neste ponto, uma analogia fílmica é feita entre o corpo lascivo, desregrado, e a mulher pecadora: no início da cena, todas as mulheres estão em movimento, enquanto são ridicularizadas pelas freiras. Este distanciamento pressupõe que as freiras estão longe desta relação corporal sádica e demoníaca.

A segunda passagem refere-se à indução do homem ao pecado por intermédio da mulher, discurso teológico amplamente difundido no medievo. Este adágio é percebido quando Bernadette, na ânsia por fugir da instituição religiosa, acaba por submeter-se aos caprichos de um vendedor que leva, diariamente, alimentos ao convento. Prometendo casamento para a garota, o rapaz pede para ver o órgão sexual da personagem, como uma espécie de pagamento prévio pelo sacramento prometido. Existe, nesta construção de sentidos que a cena acarreta, uma relação entre o pedido masculino e consentimento feminino, que remete à significação de perdição do homem pelas mãos da mulher, mesmo que este seja partícipe do processo como um todo. O que se denota, então, é que a personagem usa o corpo - concedido por Deus, mas manipulado pelo diabo - como um artifício para alcançar o desejado. Assim sendo, podemos recorrer às observações de Le Goff acerca do corpo feminino e sua composição ardilosa durante o medievo, uma vez que “de Eva à feiticeira do final da Idade Média, o corpo da mulher é o lugar de eleição do diabo” (LE GOFF, 1994LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994., p. 146).

Na sequência da cena, Bernadette é surpreendida por uma colega de convento, Katy, que sai em disparada sendo perseguida e alcançada pela jovem. Na narrativa que se estabelece é signo de fundamentalismo e temor aos desígnios divinos da pós-morte, precisa subverter a situação de ebulição sexual para a internalização sacramental do casamento, livrando-se assim da culpa de induzir o homem ao pecado. Todavia, a culpabilidade feminina é sumariamente levantada por Katy, como evidencia este diálogo presente no filme:

Katy: Afaste-se de mim, não quero nem olhar para você! Você é nojenta!

Bernadette: Nós vamos nos casar, é sério!

Katy: Ele nunca se casaria com você!

Bernadette: Vai sim, mas se você contar, não vou poder sair daqui e não poderemos nos casar. Serei pecadora e você não quer isso...

Katy: Não, olhe: vou contar para a irmã Bridget que você foi nojenta e tentou aquele homem. Vão prendê-la aqui para sempre e aí você irá pro paraíso, pois pagará por todos seus pecados nojentos (MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 45min54s a 46min23s).

Na cena supracitada, entende-se então que a mulher estava induzindo o homem à concupiscência e, por conta deste fato, deve permanecer no convento para purgar os pecados de sua alma. A mulher que “é comumente infiel, vaidosa, viciosa e coquete. É o chamariz de que Satã se serve para atrair o outro sexo ao inferno” (DELUMEAU, 1999DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999., p. 320). Neste sentido, independentemente da ação contraventora, o que prevalece é a ideia de que a mulher conduz o ato, que remete ao que se encontra prescrito na obra de São Jerônimo, um teólogo do século IV, que afirma, no tratado Adversus Iovinianum, que as mulheres são sedutoras das almas puras dos homens, pendendo naturalmente para o prazer, e não para a virtude. Mesmo quando uma ação repreensível não é de fato desempenhada e comprovada, a culpa ainda assim recai sobre a mulher que pensou em realizá-la, devido a este imaginário de irreversibilidade de uma natureza feminina maléfica iniciada por meio do pecado original. Não raro, a condenação de uma mulher no medievo, em inúmeros casos, não exigia provas concretas e irrefutáveis no sentido penal, já que a mulher, representando o lado sombrio da obra de Deus, provocaria o desejo e destruição dos homens sem dificuldades e a condenação pautava-se em sumas teológicas (José Rivair MACEDO, 2002MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002.). Este imaginário inerente ao destino lascivo e tentador do feminino pode ser percebido na narrativa fílmica por meio deste diálogo entre Bernadette - que é considerada um mau exemplo para as órfãs do orfanato em que vive e por isso é mandada para o convento - com uma das irmãs (irmã Bridget) da instituição em que é internada:

Bernadette: Só queria saber por que estou aqui, não cometi nenhum crime. Nunca estive com nenhum homem, Deus sabe que é verdade.

Irmã Bridget: Mas gostaria disso, não?

Bernadette: Sou uma boa garota, irmã.

Irmã Bridget: Não. É arrogante, grosseira e burra. Por isso, os rapazes homens gostam de você. Tão pouca inteligência facilita que enfiem os dedos em você. [...]. Todos os homens são pecadores, portanto, abertos à tentação. Num país de Deus correto, para salvá-los de si próprios, remove-se a tentação (MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 40min15s a 41min).

Remover a tentação do mundo significa, neste contexto, o aprisionamento no convento das mulheres consideradas ímpias, como no caso de Bernadette, a fim de que se livrem da culpa, bem como para que os homens possam viver livres da tentação que o feminino representa, pois, “a tristeza do coração é uma praga universal, e a maldade da mulher é uma consumada malícia” (ECLESIÁSTICO 25: 17). O fato de que a culpa é, impreterivelmente, das detentas, demonstra esta conexão entre o imaginário medieval de hostilidade em relação ao feminino e à construção identitária das personagens na narrativa fílmica, uma vez que “a publicidade e o cinema lidam, por exemplo, com arquétipos [...]. O arquétipo só existe porque se enraíza na existência social” (MAFFESOLI, 2001MAFFESOLI, Michel. “O imaginário é uma realidade”. Revista FAMECOS, Porto Alegre, n. 15, p. 74-82, agosto 2001., p. 85). É devido a esta conexão entre os modelos imaginários e os de construção identitária que “[...] as tecnologias do imaginário bebem em fontes imaginárias para alimentar imaginários” (MAFFESOLI, 2001, p. 81). Ou seja, a discriminação presente na narrativa para com as mulheres “do mundo”, as mulheres pecadoras, busca neste imaginário medieval e nas representações por ele interpeladas sua legitimidade e suas justificativas mediante os discursos e as práticas de opressão edificadas no cerne do convento em que se passa a história.

O medo da mulher

O medo da mulher foi uma constante do imaginário medieval, devido ao seu processo de demonização na mentalidade coletiva deste período histórico. Satã e seus demônios, ao passo que aterrorizam os homens, são profundamente conhecedores das fraquezas femininas. Na narrativa de The Magdalene Sisters, o medo do feminino pode ser apreendido a partir da historicidade das três personagens principais Margaret, Rose e, sobretudo, Bernadette. O enclausuramento do trio no convento reside no temor que suas condutas representam para a sociedade irlandesa da época, principalmente para os homens e as famílias católicas tradicionais. Deste modo, as personagens são mandadas para fora do convívio com esta sociedade cristã de cunho patriarcal, removendo as nódoas que levam ao pecado e que são transmitidas, paradoxalmente, pelo fascínio que o feminino exerce sobre os homens. Concernente a esta questão, Delumeau (1999DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.) observa que “esta veneração do homem pela mulher foi contrabalanceada ao longo das eras pelo medo que ele sentiu do outro sexo, particularmente nas sociedades de estruturas patriarcais” (p. 310).

Ao considerarmos esta premissa, percebemos a máxima inquisitória de que “toda bruxaria tem origem na cobiça carnal, insaciável das mulheres” (Heinrich KRAMER; James SPRENGER, 1991KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Malleus Maleficarum. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991., p. 121). As falhas morais localizadas em The Magdalene Sisters são, deste modo, impreterivelmente femininas, sendo encontradas já no início da narrativa cinematográfica, quando irmã Bridget conhece Bernadette e questiona sobre o seu comportamento considerado concupiscente pelos dirigentes do orfanato ao qual pertencera:

Irmã Bridget: E você?

Bernadette: Bernadette Haffie.

Irmã Bridget: Do Orfanato Sta. Attracta?

Bernadette: Sim, irmã.

Irmã Bridget: E como sei disso?

Bernadette: Não sei, irmã.

Irmã Bridget: Será porque o diretor é muito amigo meu e me disse tudo a seu respeito? Ou estou aqui há tantos anos, que reconheço uma sedutora só de olhar? (MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 18min49s a 19min10s).

O que se denota nesta cena é que o simples fato da desconfiança em relação ao sexo feminino permite inferir conclusões sobre a maledicência de Bernadette. À garota não é dada a oportunidade de explicação, pois a ela são atribuídos o pecado, a luxúria e a vaidade, ornamentando-a como um mal inconfesso. Esta desconfiança que promove o cárcere da mulher em sua própria essencialidade provém do medo do feminino construído durante o medievo e legitimado na mentalidade coletiva dos sujeitos, onde se destaca o

[...] esforço de reconhecimento do inimigo, de suas formas e possibilidades de atuação, em paralelo à pia tarefa de identificação de seus agentes, [...] E muitos serão chamados a encarnar esse papel, dentre estes, e fundamentalmente, a mulher, [...] culminando na cristalização do paradigma satânico: a bruxa, o nec plus ultra da perfídia e da maldade, o veículo preferencial de toda a malignidade de Satã, enfim, o feminino em toda a sua tragicidade (NOGUEIRA, 1991NOGUEIRA, Carlos Roberto Figueiredo. “As companheiras de Satã: o processo de diabolização da mulher”. Espacio, Tiempo y Forma, Madrid, Série IV. t. IV, p. 9-24, 1991., p. 9).

Acometidos pelo medo, os homens medievais viam a manifestação satânica em vários lugares, interagindo na sociedade por via de diferentes agentes. Segundo Macedo (2002MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002.), a própria inferioridade feminina no imaginário medieval provinha do medo deste outro, da fragilidade do sexo e dos perigos da carne. A mulher, o maior instrumento do prazer que leva a pecar, mantinha os homens prisioneiros dos vícios mundanos, pois “por meio da mulher - tentadora e reptilizante, aqueles que sonham com a relação entre o cosmos e este microcosmos que é o homem situam-na do lado da sombra, da lua, da água adormecida -, o pecado introduziu-se no mundo” (DUBY, 1998DUBY, Georges. Amor e Sexualidade no Ocidente. Lisboa: Terramar, 1998., p. 235). Neste caso, tanto Margaret, que é retirada do convívio familiar por “conduzir” o primo ao pecado, quanto as outras garotas que possuem condutas transgressoras em relação aos dogmas católicos, são consideradas ameaças mediante o discurso desta sociedade irlandesa, que, por sua vez, tem suas raízes no imaginário medieval acerca do feminino.

A vaidade, símbolo da ignomínia feminina, também é vista na narrativa fílmica como uma tentação a se evitar. A beleza física exaltada, ideário da corrupção moral, é percebida como um elemento satânico que trabalha para a corrupção dos homens. No filme, esta premissa é percebida em dois momentos: quando a personagem Una foge e, após a fuga, lhe é cortado todo o cabelo como castigo, e quando Bernadette tenta fugir e também tem seu cabelo e rosto cortados. Essas duas situações evidenciam o perigo de que a vaidade, quase sempre relacionada com a arrogância e a ignorância no discurso das freiras, representa um mal repugnante na busca pela salvação da alma, como demonstra esta fala de irmã Bridget:

Irmã Bridget: Abra os olhos, garota. Abra. Quero que você se veja como realmente é. Agora, sem sua vaidade, e com sua arrogância derrotada, está livre ... livre para escolher entre o certo e o errado, o bem e o mal, entre Satã e Deus. Precisa procurar na sua alma o que é puro e decente e oferecê-lo a Deus. Só então você encontrará a salvação (MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 50min53s a 51min28s).

Ao tratar este tema, percebemos que o medo que a mulher infere na sociedade em que a diegese cinematográfica se encontra não é contemporâneo apenas, ou relativo exclusivamente àquele grupo social. Esta relação acerca do medo para com o feminino possui suas raízes na iconografia mental do medievo, já que, tanto em relação à vaidade, quanto em relação à potência da mulher como uma agente de Satã, observamos que “nesta sociedade, a mulher aparece dominada de todas as maneiras” (DUBY, 1989DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p. 237).

A remissão dos pecados e a lógica da salvação

Se por um lado as representações sociais da mulher preteridas pelo imaginário medieval pautavam-se na inevitabilidade do pecado por outro, suas condutas heréticas poderiam ser purgadas por meio de um sofisticado aparato de redenção (Teresa TOLDY, 2007TOLDY, Teresa. “As mulheres na Igreja Católica: luzes e sombras ao longo da História”. Revista Teológica, Braga, v. 32, n. 2, p. 219-245, 2007.). Esta representação dicotômica entre o pecado e a sua purgação estabelecia a principal forma na sistemática da salvação no medievo, contribuindo para normatizar a conduta feminina, já que os sistemas de representações consistem “não em conceitos individuais, mas em diferentes formas de organizar, agrupar, arranjar e classificar conceitos, e em estabelecer relações complexas entre eles” (Stuart HALL, 1997HALL, Stuart. Representation: cultural representations and signifying practices. London: Thousand, 1997., p. 4). Neste sentido, eram as premissas teológicas fornecidas por membros do clero que regiam os indivíduos a realizar práticas que os conduzia à salvação eterna.

O temor da danação eterna, das agruras e do sofrimento legitimava os suplícios que o corpo - sobretudo o corpo feminino, receptáculo primo do pecado - deveria receber, já que no centro da moral cristã residia uma desconfiança mórbida em relação ao prazer. Em suma, era necessário que os pecadores sofressem em vida para que pudessem alcançar as glórias do paraíso após a morte. Privando-se das volúpias, rezando intensamente e oprimindo o corpo por via de uma labuta extensa e carregada, o passaporte para o além-túmulo divino estava garantido. Esta insígnia, presente no imaginário do medievo, encontra-se fortemente absorta na narrativa de The Magdalene Sisters. O sistema labutar do convento em que as personagens se encontram tem suas bases de pensamento nesta teologia medieval de remissão dos pecados e incidência da salvação. Não obstante, quando as “pecadoras” chegam ao Asilo das Madalenas, têm seus pertences retirados e lhes é dado um uniforme, então são levadas à presença de irmã Bridget, que conta várias notas de dinheiro obtidas por meio do trabalho das jovens e, sem nem olhar para as meninas, inicia uma preleção sobre o cotidiano de trabalho árduo, oração e privações que será a vida das jovens dali para frente.

Irmã Bridget: A filosofia do convento das Madalenas é bastante simples: mediante o poder da oração, a higiene e o trabalho árduo, as perdidas podem voltar a Jesus Cristo, Nosso Senhor e Salvador. A própria Maria Madalena, santa padroeira da Ordem das Madalenas, era uma pecadora da pior espécie, que vendia seu corpo a depravados. Sua salvação veio somente com a penitência de seus pecados: a negação de todos os prazeres da carne, incluindo dormir e comer, e o trabalho além do limite humano. Assim, ela ofereceu a alma a Deus e entrou no paraíso para ter a vida eterna (MULLAN, 2002THE MAGDALENE Sisters. Direção: Peter Mullan. Produção: Frances Higson. Irlanda, Drama, Europa Filmes, 2002. 1 DVD (114 minutos), son. color., 16min41s a 17min20s).

A rigidez cotidiana inserida no convento, desta forma, visa salvar as mulheres de sua própria perdição. Abstraídas nesta rigidez, bem como em um cotidiano de trabalho árduo, oração e privação de qualquer tipo de prazer, Margaret, Rose, Bernadette e as demais são forçadas a trabalhar na maior parte do tempo nas lavanderias do convento para purgar os seus pecados. O trabalho pesado e a hostilidade em relação ao lugar são frequentemente apresentadas em cena. Também recorrem na narrativa os momentos de oração e, em diferentes passagens do longa-metragem, as mulheres aparecem de joelhos, rogando a Deus pela salvação de suas almas. “A assembleia dos pecadores é como um montão de estopa, e o seu fim será serem consumidos pelo fogo” (ECLESIÁSTICO, 21: 10ECLESIÁSTICO, 21, 25, 27. In: A BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1967.).

Também o silêncio aparece na narrativa como um suplício necessário para se purgar os pecados, já que “a conversação dos pecadores se faz odiosa, e o seu riso é sobre as delícias do pecado” (ECLESIÁSTICO, 27: 14ECLESIÁSTICO, 21, 25, 27. In: A BÍBLIA SAGRADA. Antigo e Novo Testamento. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1967.). Em um determinado momento durante o trabalho na lavanderia, Bernadette e outra consorte, a personagem Crispina, conversam sobre as roupas sujas que lavam e na possibilidade de trocar algumas entre si. Repentinamente uma confusão instaura-se na lavanderia, pois o silêncio é requisito básico na labuta, essencial para a salvação de suas almas. Pairado o silêncio, volta-se ao trabalho. Por fim, como artifício primo dessa lógica de salvação, tem-se a negação completa da sexualidade como elemento máximo do encontro divino na narrativa de The Magdalene Sisters, representado por uma das detentas - Una - que renuncia à vida terrena exterior ao convento para se tornar uma das ordenadas da Ordem das Madalenas, repousando assim sua conduta na ideologia anticorporal do cristianismo institucionalizado pelas freiras no convento (LE GOFF; Nicolas TRUONG, 2006LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006., p. 35).

O medievalista Jacques Le Goff (2005) observa que a História e suas relações com o presente só se esclarecem a partir de uma perspectiva de longa duração. Para ele, a reflexão sobre a Idade Média e o imaginário medieval é fundamental para a compreensão das relações humanas em diferentes períodos históricos, pois, se toda época passada ainda vive no presente, “[...] a Idade Média está particularmente viva e é fundamental para a compreensão da sociedade de hoje” (LE GOFF, 2005LE GOFF, Jacques. Em busca da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005., p. 212). Defende a ideia de “uma longa Idade Média”, onde “as mudanças não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os setores e em todos os lugares” (LE GOFF, 2005, p. 66), e que, “[...] em certos aspectos de nossa civilização - perdura ainda e, às vezes, desabrocha bem depois das datas oficiais” (LE GOFF, 2005, p. 66).

Nesta perspectiva, destaca-se o imaginário social como uma das forças reguladoras da vida coletiva, indicativo do argumento de Baczko (1985BACZKO, Bronislaw. “A imaginação social”. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos-Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 296-332.) quando postula que as identidades são designadas pelos imaginários da coletividade que, por consequência, estabelece papéis e posições sociais construindo e ditando os parâmetros para o bom ou mau comportamento. No filme as ações de repressão, violência e fragmentação sofridas por aquelas mulheres são justificadas e corroboradas como uma conduta correta, na medida em que o imaginário sobre o feminino gestou uma representação totalizante elaborada pela coletividade e consolidada pela postura ativa de uns que assumem a normativa social e passiva de outros que não encontram forças ou mesmo motivos para intervir.

Nesse sentido, podemos considerar que a tríade - culpa feminina, medo feminino, lógica da salvação - revela a presença do imaginário medieval acerca do feminino como construtor de sentidos na narrativa fílmica de The Magdalene Sisters, bem como a presença deste na sociedade contemporânea, visto que a narrativa se baseia em relatos reais de mulheres que passaram por estes conventos na Irlanda da segunda metade do século XX (Gary CROWDUS, 2003CROWDUS, Gary. “The Sisters of No Mercy: an interview with Peter Mullan”. Cineaste, v. 28, n. 4, p. 26-33, 2013.). Por intermédio deste imaginário em relação ao feminino, entrelaçado a um processo histórico de longuíssima duração, a narrativa fílmica de Peter Mullan construiu representações cinematográficas que retratam, nesta acepção histórica, os elementos que constroem a imagem e a cosmovisão sobre a mulher no espaço delineado pelo filme. Assim, as histórias apresentadas têm sua essencialidade na relação dicotômica entre a santa e a pecadora edificada na efígie da mentalidade medieval.

Referências

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  • VANOYE, Francis; GOLLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica Campinas: Papirus, 1994.
  • 1
    Todas as citações nesta apresentação introdutória do filme são diálogos retirados das cenas iniciais do longa-metragem irlandês lançado no ano de 2002, The Magdalene Sisters, que na tradução brasileira tem por título Em Nome de Deus. O filme tem roteiro e direção de Peter Mullan e traz no elenco as atrizes Geraldine McEwan, Anne Marie Duff, Nora Jane Noone, Dorothy Duffy e Eileen Walsh.
  • 2
    Como mostram as informações finais presentes na narrativa fílmica, a partir de entrevistas e pesquisas realizadas por Mullan e sua equipe cinematográfica para compor a obra, ela só o encontrará 30 anos após este acontecimento.
  • 3
    Estima-se que cerca de 30.000 mulheres foram detidas em conventos na Irlanda. Apesar das denúncias, a última lavanderia fechou apenas no ano de 1996. Em 2011, o comitê da ONU (Organização das Nações Unidas) contra tortura pediu ao governo irlandês a instalação de um inquérito que investigasse os maus-tratos cometidos contra mulheres entre os anos de 1922 e 1996. Para aprofundamento sobre a questão, sugere-se a leitura da obra de James Smith publicada pela University of Notre Dame Press, chamada Ireland’s Magdalen Laundries and the Nation’s Architecture of Confinement.
  • 4
    Em sua obra Idade Média: O nascimento do ocidente, Hilário Franco Jr. (2006) caracteriza a mentalidade coletiva medieval a partir de elementos como a hierofania, o simbolismo, o belicismo e o contratualismo, considerando por mentalidade “o plano mais profundo da psicologia coletiva, no qual estão os anseios, esperanças, medos, angústias e desejos assimilados e transmitidos inconscientemente, e exteriorizados de forma automática e espontânea pela linguagem cultural de cada momento histórico em que se dá essa manifestação” (p. 256).
  • 5
    Este termo tem sido amplamente utilizado associado aos estudos sobre as mentalidades. Refere-se ao conjunto de elementos que se relaciona a conceitos, modos de pensamento e experiências conscientes e inconscientes, focando em abordagens como crenças, sentimentos, ritos, cerimônias.
  • 6
    Para analisar este tipo de persecução às mulheres, a feminista e escritora ativista Diana Russel cunhou, pela primeira vez na historiografia feminista, o termo Femicídio ou Feminicídio. Durante um depoimento em um tribunal de crimes contra as mulheres em Bruxelas, no ano de 1976, a ativista utilizou a expressão para designar os assassinatos de mulheres pelo fato de serem mulheres. Mais tarde, a expressão estendeu-se para designar diferentes discriminações de gênero. No tocante à Idade Média, segundo alguns autores como Jacques Le Goff e Georges Duby, o feminicídio teve seu auge entre os séculos XII e XVI. E, muito embora o Tribunal do Santo Ofício tivesse em vista combater hereges de ambos os sexos, a grande maioria dos réus era constituída por mulheres.
  • 7
    Malleus Maleficarum, ou Martelo das Feiticeiras, foi escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger e constituía-se em um manual orientador para a caça às bruxas.
  • 8
    Um dos pesquisadores mais expressivos sobre a História da Irlanda e, por consequência, do Asilo das Madalenas, é James Smith, sendo possível aprofundar a questão na obra Ireland’s Magdalen Laundries and the Nation’s Architecture of Confinement. Indiana: University of Notre Dame Press, 2014.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    SILVA, Cristina Ennes da; SILVA, Tiago. “A insígnia do pecado: The Magdalene Sisters”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 2, e60353, 2020
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2018
  • Revisado
    03 Ago 2019
  • Aceito
    22 Out 2019
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