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‘Mais branca que eu?’: uma análise interseccional da branquitude nos feminismos

Resumo:

No presente artigo, analisamos como a branquitude apresenta-se nos movimentos feministas, buscando compreender os processos de subjetivação e racialização de mulheres brancas por meio do diálogo com as epistemologias dos feminismos não hegemônicos e estudos críticos da branquitude. Analisamos as falas de quatro feministas brancas que foram entrevistadas de maneira a pensar os desdobramentos da branquitude nos contextos feministas hegemônicos, buscando entender o que ocorre quando feministas brancas estão dispostas a dialogar e refletir sobre sua condição racial. A discussão dos resultados mostra a importância de compreendermos as formas de ser mulher e os feminismos afastando-se de uma via essencialista e universalizante, reconhecendo que se faz necessária a horizontalização dos pensamentos e práticas feministas a partir da intersecção dos marcadores sociais da diferença.

Palavras-chave:
Psicologia Social; teoria feminista; branquitude; gênero; interseccionalidade

Abstract:

This paper analyses how whiteness appears in feminist movements, in an effort to comprehend the subjectivation and racialization of white women through a dialogue with epistemologies of non-hegemonic feminisms and critical studies of whiteness. Four white feminists were interviewed and their statements were analyzed to consider the ramifications of whiteness in hegemonic feminist contexts, and to understand what occurs when white feminists are willing to dialogue and reflect on their own racial conditions. The discussion of the results reveals the importance of understanding ways of being a woman and feminisms with a distance from an essentialist and universalizing path, recognizing the need for horizontalizing feminist thinking and practices through the intersection of social markers of difference.

Keywords:
Social Psychology; Feminist Theory; Whiteness; Gender; Intersectionality

Introdução

a agredida

e a

agressora

- estive dos dois lados

(Rupi KAUR, 2017KAUR, Rupi. Outros jeitos de usar a boca. São Paulo: Planeta, 2017.)

Muito se tem discutido sobre a diversidade e as dessemelhanças dos/nos movimentos feministas e como as diferentes possibilidades de subjetivação de mulheres geram tensionamentos de pautas e agendas nas práticas e organizações políticas. Nesse sentido, é necessário pensar a branquitude que permeia as discussões dominantes das produções e ativismos feministas. A branquitude produz efeitos e divergências no âmbito de uma estrutura racializada do gênero nos movimentos feministas, o que torna imprescindível uma reflexão sobre os trânsitos raciais nesse campo. Este trabalho tem como objetivo compreender como se dão os processos de subjetivação e racialização de feministas brancas, e como o conceito de branquitude contribui para pensarmos as lógicas hegemônicas neste contexto.

Os processos de subjetivação podem ser compreendidos como constitutivos dos sujeitos, atravessados pelas diversas formas de relações sociais, políticas e culturais pelas quais se forjam. Segue-se, portanto, uma lógica que não é fixa e nem determinante, mas que está em constante movimento e transformação, sendo urgente levarmos em conta as singularidades e as constituições identitárias dos sujeitos, pensando a produção dos marcadores de exclusão e invisibilidade nesses processos (Amana Rocha MATTOS; Maria Luiza Rovaris CIDADE, 2016MATTOS, Amana Rocha; CIDADE, Maria Luiza Rovaris. “Para pensar a Cisheteronormatividade na Psicologia”. Periódicus, Salvador, v. 5, n. 1, p. 132-153, maio/out. 2016. Disponível em Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/viewFile/17181/11338 . Acesso em 14/02/2020.
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). Lia Schucman (2014SCHUCMAN, Lia Vainer. “Sim, nós somos racistas: Estudo psicossocial da branquitude paulistana”. Psicolocia & Sociedade, Recife, v. 26, n. 1, p. 83-94, 2014b. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/10.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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b, p. 92) define a racialização como um processo simbólico que consiste em dar “significado social a certas características biológicas (normalmente fenotípicas), na base das quais aqueles que delas são portadores são designados como uma coletividade distinta”. Trata-se de um processo de categorização social a partir de determinados traços fenotípicos, organizando grupos pelo marcador racial da diferença. Ainda que essa categorização seja uma construção social, ela determina racialmente as populações.

Compreender o impacto das diversas discriminações e exclusões sociais que as questões étnico-raciais produzem é, entretanto, insuficiente. Ao discutirem a pluralidade de processos de subjetivação das mulheres, os diversos feminismos, incluindo os que são formados majoritariamente por mulheres brancas, precisam ser “tratados como práticas discursivas não essencialistas e historicamente contingentes” (Avtar BRAH, 2006BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jan./jun. 2006. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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, p. 358), possibilitando o trabalho em conjunto mediante articulações políticas e práticas feministas antirracistas, numa análise conceitual das questões de diferença que são úteis na condução de lutas e proposição de pautas.

Neste trabalho, dialogamos com teorias e práticas dos feminismos não hegemônicos e de mulheres racializadas1 1 A escolha do termo “mulheres racializadas” compreende os corpos das mulheres e as suas leituras nos contextos feministas, tendo como premissa a branquitude nesses espaços. A racialização ocorre sempre para mulheres não encaixadas na lógica universal do sujeito - o branco. De maneira geral, mulheres brancas não se reconhecem como pessoas racializadas, e o nosso propósito neste trabalho é pensar a racialização de pessoas brancas, visto que as outras formas de ser mulher, silenciadas e marginalizadas nos feminismos, já são racializadas. (bell hooks, 2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, jan./abr. 2015. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n16/0103-3352-rbcpol-16-00193.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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; Yuderkis ESPINOSA-MIÑOSO, 2014ESPINOSA-MIÑOSO, Yuderkis. “Una crítica descolonial a la epistemologia feminista crítica”. El Cotidiano, Azcapotzalco, n. 184, p. 7-12, mar./abr. 2014. Disponível em Disponível em https://metodologiainvestigacionfeminista.files.wordpress.com/2014/06/yuderkys-espinosa-feminismo-decolonial.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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; Cherrie MORAGA; Ana CASTILLO, 1988MORAGA, Cherrie; CASTILLO, Ana. Esta Puente, mi espalda: vocês de mujeres tercermundistas en los Estados Unidos. San Francisco: ISM Press, 1988.) - produzidas principalmente por mulheres negras; e com a abordagem interseccional. As propostas desses feminismos (não hegemônicos e periféricos) localizam-se como oposição a um feminismo que se coloca como referência normativa - tanto histórica quanto academicamente -, feminismo este que é majoritariamente branco, cisgênero, heterossexual e institucional. Tais propostas dialogam com a necessidade de se construir uma prática política que considere as articulações dos sistemas de dominação e opressão (Ochy CURIEL, 2009CURIEL, Ochy. Descolonizando el Feminismo: Una Perspectiva desde America Latina y El Caribe. In: PRIMER COLOQUIO LATINO AMERICANO SOBRE PRAXIS Y PENSAMENTO FEMINISTA, 1, 2009, Buenos Aires, Universidad Nacional de Colômbia. Anais... Buenos Aires: Grupo Latinoamericano de Estudios, Formación y Acción Feminista (GLEFAS) y el Instituto de Género de la Universidad de Buenos Aires, 2009. p. 1-8. Disponível em Disponível em http://feministas.org/IMG/pdf/Ochy_Curiel.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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).

As produções que registram práticas subalternizadas, racializadas e sexuadas a partir da luta e da resistência são fundamentais para entendermos as relações de opressão, inclusive dentro dos movimentos feministas. Neste sentido, a interseccionalidade nos traz uma “sensibilidade analítica”, como diz Carla Akotirene (2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019., p. 18), que permite repensarmos as metodologias como forma política de reconhecimento e valorização de subjetividades, práticas e vivências cotidianas que problematizam a cisgeneridade branca heteropatriarcal.

Outro campo de interlocução são os estudos críticos da branquitude, que problematizam as formas de (re)produção e potencialização do racismo, em que a pessoa branca ocupa um lugar simbólico que não é estabelecido por questões genéticas, mas por posições e lugares sociais que são construídos para que determinadas lógicas de privilégios, vantagens e direitos sejam mantidas em função dos fenótipos raciais. Neste sentido, a branquitude é entendida como um dispositivo de hegemonia racial que mantém e reforça as dimensões de privilégios de um determinado grupo racial - as pessoas brancas (Maria Aparecida BENTO, 2014BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57.).

Quais (des)construções ou desdobramentos delineiam-se quando mulheres brancas reconhecem sua posição de privilégio a partir do recorte de raça (e de outros marcadores sociais) no âmbito de suas práticas feministas? Haveria, nesse processo, reconhecimento de sua condição racial em intersecção com as desigualdades de gênero experienciadas? Para responder a essas questões, o campo desta pesquisa consistiu de entrevistas semiestruturadas feitas com quatro mulheres que se afirmam feministas e se autodeclaram brancas, dispostas à reflexão sobre raça, gênero e movimentos feministas a partir da ótica de privilégios e suas consequentes vantagens e direitos.

O propósito deste texto ultrapassa o âmbito do diagnóstico, e visa à compreensão sobre como os processos de subjetivação e racialização ocorrem para pessoas brancas - neste caso, mulheres brancas nos contextos feministas. O ponto de partida aqui não se constitui em uma ideia essencialista e universal do ser pessoa branca, mas compreende que esta lógica se constrói a partir de um sistema hegemônico racial e de poder que atravessa a constituição de sujeitas2 2 “No original inglês, o termo subject não tem gênero. No entanto, a sua tradução corrente em português é reduzida ao gênero masculino - o sujeito -, sem permitir variações no gênero feminino - a sujeita - ou nos vários gêneros LGBTTQIA+ - xs sujeitxs -, que seriam identificadas como erros ortográficos” (Grada KILOMBA, 2019, p. 15). Por ser um texto que se refere apenas a entrevistadas mulheres, optamos por manter o termo no feminino. de diferentes formas, a partir dos marcadores sociais da diferença.

Processos de subjetivação e racialização: diálogos com os feminismos não hegemônicos

As inquietações acerca da racialização de mulheres brancas nos feminismos não partem, na maioria das vezes, das feministas brancas, pois se reconhecer privilegiada a partir de sua cor e condição fenotípica não é uma tarefa fácil para quem não sofre discriminação racial e pertence a uma lógica etnocêntrica normativa (hooks, 2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, jan./abr. 2015. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n16/0103-3352-rbcpol-16-00193.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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; ESPINOSA-MIÑOSO, 2017ESPINOSA-MIÑOSO, Yuderkis. “De por qué es necesario un feminismo descolonial: Diferenciación, dominación co-constitutiva de la modernidad occidental y el fin de la política de identidad”. Revista Solar de Filosofía Iberoamericana, Lima, v. 12, n. 1, p. 141-171, 2017. Disponível em Disponível em http://revistasolar.org/wp-content/uploads/2017/07/9-De-por-qu%C3%A9-es-necesario-un-feminismo-descolonial...Yuderkys-Espinosa-Mi%C3%B1oso.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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; Sueli CARNEIRO, 2003CARNEIRO, Sueli. “Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero”. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS & TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano, 2003b. p. 49-58.b; Donna HARAWAY, 1995HARAWAY, Donna. “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 14/02/2020.
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). Entende-se que há relações de poder intragênero nos feminismos, produzidas nas intersecções raciais (também atravessadas por marcadores de classe, sexualidade, geração, religião, entre outros), que se atualizam em conceitos e práticas desenvolvidas por meio do debate intelectual e da intervenção prática e social dos feminismos.

Há extensa produção dos feminismos não hegemônicos que investiga como marcadores sociais atravessam os sujeitos nas produções de saberes e práticas de resistência, permitindo-nos entender e ressignificar o papel dos discursos feministas nos processos de subjetivação e racialização das mulheres (Kimberlé CRENSHAW, 1994CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Wmen of Color”. In: FINEMAN, Martha Albertson; MYKITIUK, Roxanne. The Public Nature of Private Violence. New York: Routledge, 1994. p. 93-118.; hooks, 1984hooks, bell. “Black Women: Shaping Feminist Theory”. In: hooks, bell. Feminst Theory: from margin to center. Nova York: South End Press, 1984, p. 1-15.; Maria LUGONES, 2011LUGONES, María. “Hacia un feminismo descolonial”. La manzana de la discordia, Cali, v. 6, n. 2, p. 105-119, jul./dez. 2011. Disponível em Disponível em https://hum.unne.edu.ar/generoysex/seminario1/s1_18.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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; Chandra MOHANTY, 2008MOHANTY, Chandra Talpade. “Bajo los ojos de Occidente: Feminismo Académica y Discursos Coloniales”. In: NAVAZ, Liliana Suárez; CASTILLO, Rosalva Aída Hernández. Descolonizando el Feminismo: Teorias y Práticas des los Márgenes. Madrid: Cátedra, 2008. p. 117-163.).

Neste sentido, é necessário recorrer às percepções sobre as novas formas de ser mulher, não considerando apenas análises das relações patriarcais e sexistas, por exemplo. Reconhecer as nuances das disputas de saberes e práticas é crucial para que sejam criados espaços de horizontalidade e pluralidade (HARAWAY, 1995HARAWAY, Donna. “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 14/02/2020.
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; hooks, 2013hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.; Djamila RIBEIRO, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.). Como afirma hooks (2015, p. 207), “em termos gerais, as feministas privilegiadas têm sido incapazes de falar a, com e pelos diversos grupos de mulheres, porque não compreendem plenamente a inter-relação entre opressão de sexo, raça e classe ou se recusam a levar a sério essa inter-relação”.

Apesar de feministas compreenderem a necessidade de desenvolver análises que englobem maior quantidade de vivências das diferentes formas de ser mulher, fundamentais para a criação de alianças, a complexidade e a lógica da branquitude marginalizam os movimentos. Os processos ditos universais e essencializados de compreensão e subjetivização dos corpos de feministas brancas nem horizontalizam e nem pluralizam os feminismos, reforçando a hegemonia do saber e produzindo distanciamentos epistemológicos. Uma perspectiva crítica, na maioria das vezes, emerge de pessoas que têm conhecimento e vivência de ambos, margem e centro (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.; HARAWAY, 1995HARAWAY, Donna. “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 14/02/2020.
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; hooks, 1984hooks, bell. Feminst Theory: from margin to center. Nova York: South End Press, 1984.; 2013).

Segundo Brah (2006BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jan./jun. 2006. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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), não se pode analisar isoladamente os problemas que afetam as mulheres, muito menos universalizá-los, isto é, os discursos de feminilidades assumem significados específicos a partir das diferentes trajetórias que atravessam não apenas as questões de gênero, mas de raça, classe, sexualidade, geração, dentre outros marcadores. Como afirma Haraway (1995HARAWAY, Donna. “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995. Disponível em Disponível em https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 . Acesso em 14/02/2020.
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, p. 26-27), “não há maneira de estar simultaneamente em todas, ou inteiramente em uma, das posições privilegiadas (subjugadas) estruturadas por gênero, raça, nação e classe”. E esta busca pela posição “inteira” e total aparece em muitos feminismos.

Há uma heterogeneidade do entendimento do que “brancas” e “branquitude” significam, e será a partir do conceito de interseccionalidade que reconheceremos que os privilégios e opressões vão constituir uma posição social, isto é, posições desprivilegiadas não apagam privilégios de raça, mas irão modificar os sentidos e formas de subjetivação e racialização das pessoas (Dieuwertje Dyi HUIJG, 2011HUIJG, Dieuwertje Dyi. “‘Eu não preciso falar que eu sou branca, cara, eu sou Latina’ Ou a complexidade da identificação racial na ideologia de ativistas jovens (não)brancas”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 36, p. 77-116, jan./jun. 2011. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/cpa/n36/n36a5 . Acesso em 14/02/2020.
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).

Neste sentido, é inevitável compreendermos que as pessoas serão atravessadas por privilégios de diferentes formas. O objetivo desta pesquisa não foi produzir culpabilizações individuais, visto que cada pessoa reconhecerá privilégios de formas distintas. A aposta foi visibilizar e discutir os privilégios raciais que atravessam as vivências das interlocutoras, marcadas por outras opressões - em especial, de gênero.

Discutir raça e racismo no contexto dos movimentos feministas nos permite pensar sobre como as práticas de sujeitos são (re)produzidas e como a não racialização do “ser mulher (branca)” acaba por legitimar concepções racistas de gênero. Falar e problematizar o racismo exige reflexão e entendimento sobre os lugares que ocupamos e sobre as nossas práticas, visto que o não reconhecimento do lugar de privilégio racial desfrutado por mulheres brancas já se torna uma forma de racismo, uma vez que não permite o tensionamento de hierarquias raciais intragênero (Geórgia Grube MARCINIK; MATTOS, 2017MARCINIK, Geórgia Grube; MATTOS, Amana Rocha. “Branquitude e racialização do feminismo: um debate sobre privilégios”. In: OLIVEIRA, João Manuel; AMÂNCIO, Lígia. Géneros e Sexualidades: Interseções e Tangentes. Lisboa: ISCTE-IUL, 2017. p. 159-173. Disponível em Disponível em https://www.academia.edu/32231167/Branquitude_e_racializa%C3%A7%C3%A3odo_feminismo_um_debate_sobre_privil%C3%A9gios . Acesso em 14/02/2020.
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).

Segundo Carneiro (2003CARNEIRO, Sueli. “Mulheres em movimento”. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-132, set./dez. 2003a. Disponível em Disponível em http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9948 . Acesso em 14/02/2020.
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a), as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino não são reconhecidas pelos feminismos hegemônicos, o que, consequentemente, faz com que mulheres vítimas de outras formas de opressão - não considerando apenas o sexismo - continuem sendo silenciadas e invisibilizadas. Em ressonância com o pensamento de hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, jan./abr. 2015. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n16/0103-3352-rbcpol-16-00193.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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, p. 202), precisamos resistir “à dominação hegemônica do pensamento feminista insistindo que ele é uma teoria em formação, em que devemos necessariamente criticar, questionar, reexaminar e explorar novas possibilidades”. Portanto, seria mais coerente compreender o sexismo e as relações patriarcais em articulação com outras formas de relações sociais em um determinado contexto. Não se pode tratar classe, raça, gênero e sexualidade separadamente, pois uma constitui a outra (BRAH, 2006BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jan./jun. 2006. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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).

A interseccionalidade critica, assim, o essencialismo do feminismo hegemônico, em discussões propostas por mulheres racializadas, não exatamente com objetivos acadêmicos. Entretanto, não se pode desconsiderar a finalidade e o propósito do termo (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.; CRENSHAW, 1994CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Wmen of Color”. In: FINEMAN, Martha Albertson; MYKITIUK, Roxanne. The Public Nature of Private Violence. New York: Routledge, 1994. p. 93-118.; 2002CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 10, p. 171-188, jan./jun. 2002. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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). “A experiência interseccional é maior do que a soma do racismo e sexismo e qualquer análise que não tome a interseccionalidade em conta não consegue de forma correta ter em consideração as formas particulares de subordinação de muitas mulheres, particularmente as mulheres negras, que eram o alvo das suas preocupações” (Conceição NOGUEIRA, 2017NOGUEIRA, Conceição. Interseccionalidade e Psicologia feminista. Salvador: Devires, 2017., p. 146).

Interseccionalizar os feminismos e os estudos de gênero é, necessariamente, uma tarefa prática3 3 “Feministas brancas e negras usam a abordagem da interseccionalidade para evidenciar hierarquias impostas pelos machos, desconhecendo o fato dessas subordinações funcionarem no sistema de antiguidade adquirida, não pelas relações de poder propagadas por gênero” (AKOTIRENE, 2019, p. 82). (AKOTIRENE, 2019AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.; CRENSHAW, 1994CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Wmen of Color”. In: FINEMAN, Martha Albertson; MYKITIUK, Roxanne. The Public Nature of Private Violence. New York: Routledge, 1994. p. 93-118.). Ao mesmo tempo, é importante pensar mulheres racializadas como sujeitas que sofrem opressão dentro dos feminismos, mas que também estão em posição de resistência em suas práticas e produções de saber. Valorizar isso é primordial (LUGONES, 2011LUGONES, María. “Hacia un feminismo descolonial”. La manzana de la discordia, Cali, v. 6, n. 2, p. 105-119, jul./dez. 2011. Disponível em Disponível em https://hum.unne.edu.ar/generoysex/seminario1/s1_18.pdf . Acesso em 14/02/2020.
https://hum.unne.edu.ar/generoysex/semin...
).

É preciso discutir o conceito de branquitude, especificamente quando usado em referência às relações raciais no Brasil, tomando como pano de fundo a construção histórica do pensamento social brasileiro, entendendo seu processo colonial e hegemônico. Uma das maiores consequências do colonialismo foi a maneira pela qual se constituíram as ex-colônias latino-americanas e caribenhas: “a homogeneização com uma perspectiva eurocêntrica foi a proposta nacional através da ideologia da mestiçagem, que aspirou ao europeu uma forma de ‘melhorar a raça’” (CURIEL, 2007CURIEL, Ochy. “Crítica poscolonial desde las práticas políticas del feminismo antirracista”. Nómadas, Bogotá, n. 26, p. 92-101, abr. 2007. Disponível em Disponível em http://ram-wan.net/restrepo/decolonial/25-curiel-critica%20poscolonial.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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, p. 98, tradução nossa).

Carneiro (2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.) assegura que o que deveria ser passado permanece na história colonial brasileira por meio de novas práticas, em uma organização social que insiste em se dizer democrática, mas que, ao mesmo tempo, mantém as relações de gênero hierarquizadas segundo a raça desde o período da escravidão. Essa violação colonial contra sujeitos subalternizados, principalmente mulheres negras e indígenas, aliada à ideia de miscigenação,4 4 “O discurso da mestiçagem, positivada pelo pensamento social da época, deu suporte às políticas de embranquecimento e de construção de uma unidade nacional. Estas eram, certamente, as duas faces da mesma moeda. O processo de mestiçagem, enquanto uma ideologia, deu suporte político ao pensamento da elite brasileira de meados do século XX e foi o alicerce de sustentação das políticas raciais no país” (Ana Helena Ithamar PASSOS, 2013, p. 62). repercute nas construções de nossa identidade nacional.

A partir de uma perspectiva histórica, Luciana Alves (2010ALVES, Luciana. Significados de ser branco - a brancura no corpo e para além dele. 2010. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.), Passos (2013PASSOS, Ana Helena Ithamar. Um estudo sobre branquitude no contexto de reconfiguração das relações raciais no Brasil, 2003-2013. 2013. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.) e Priscila Elisabete da Silva (2015SILVA, Priscila Elisabete da. Um projeto civilizatório e regenerador: análise sobre raça no projeto da Universidade de São Paulo (1900-1940). 2015. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.) nos apontam que, mesmo que academicamente, o termo branquitude seja relativamente recente - os estudos críticos da branquitude estadunidenses são trazidos para o Brasil em 1990 -, este se refere a um sistema hegemônico que vem se consolidando por meio da colonização, da escravidão e das diversas opressões que envolvem raça e gênero. Refere-se, ainda, às representações sociais que enfatizam a neutralidade racial do branco, afirmando sua universalidade, e reduzindo coletividades racializadas à diferença, por traços fenotípicos e pigmentação da pele, articulando-as a valores e estereótipos morais e sociais inferiores (BENTO, 2014BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57.; CARNEIRO, 2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.; Iray CARONE, 2014CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014.). Como afirma Carone (2014CARONE, Iray. “Breve Histórico de uma Pesqusa Psicossocial sobre a Questão Racial Brasileira”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo: Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 13-23., p. 23), as consequências da branquitude são inevitáveis: “a neutralidade de cor/raça protege o indivíduo branco do preconceito e da discriminação raciais na mesma medida em que a visibilidade aumentada do negro o torna um alvo preferencial de descargas de frustrações impostas pela vida social”.

Desse modo, a branquitude está relacionada diretamente ao prestígio social, político e econômico que “liga os modos de funcionamento do racismo no Brasil às hierarquias ‘raciais’ de outras sociedades fundadas pelo colonialismo europeu” (Vron WARE, 2004WARE, Vron. Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004., p. 8). A branquitude entendida como sistema de dominação, que tem em sua raiz a hegemonia racial, pode ser entendida como uma categoria de análise de um conjunto de fenômenos atravessados pelas relações socioculturais, econômicas e psíquicas (Liv SOVIK, 2009SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.).

Todas as pessoas são afetadas pelo racismo, reconheçam elas sua racialidade ou não. Porém, há um abismo entre os privilégios e as discriminações que este (re)produz. Compreender como se constroem as relações de poder em que as desigualdades raciais se ancoram se torna urgente. A branquitude é um sistema de poder intrinsecamente articulado com os processos de racialização e constituição subjetiva das pessoas brancas enquanto grupo hegemônico de dominação. Como afirma Sovik (2009SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009., p. 40), é necessário “analisar a articulação silenciosa da hegemonia branca”.

Bento (2014BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57.) considera que a discriminação racial tem como motor a manutenção e a conquista de privilégios de um grupo sobre o outro. Ao se perceberem como grupo padrão e universal de toda uma sociedade, pessoas brancas apropriam-se simbolicamente desta lógica de privilégio racial, fortalecendo a autoestima e o autoconceito do grupo no qual se inserem, resultando na legitimação de sua supremacia econômica, política e social. Sovik (2009SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009., p. 36) segue nessa direção, ao afirmar que “a branquitude não é genética, mas uma questão de imagem”, isto é, a raça é um constructo social que funciona para que haja uma centralidade normativa baseada nos fenótipos e estereótipos raciais, sendo o seu valor demonstrado em um contexto de miscigenação, de mistura.

Por todos estes aspectos, o conceito de branquitude está intrinsecamente relacionado à noção de privilégios, direitos e vantagens. Ao propormos o debate sobre raça e, consequentemente, sobre o racismo, partindo dos estudos críticos da branquitude dentro dos movimentos feministas, compreendemos que tais conceitos têm a sua gênese em construções sociais e ideológicas (CARONE; BENTO, 2014CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014.; SCHUCMAN, 2014SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014a.a).

“A gente tá discutindo o que é ser branco, e o que esse ser branco faz para provocar esse racismo”: notas de uma pesquisa ativista interseccional

Discutir os movimentos feministas e como os processos subjetivos e raciais de mulheres brancas permeiam tais movimentos é tarefa complexa, dada a invisibilização dessa reflexão em nossa sociedade estruturalmente, institucionalmente e estatalmente racista.

Para dar conta da proposta, adotamos a ideia de pesquisa ativista (MATTOS; Giovana XAVIER, 2016MATTOS, Amana; XAVIER, Giovana. “Activist research and the production of non-hegemonic knowledges: Challenges for intersectional feminism”. Feminist Theory, New York, v. 17, n. 2, p. 239-245, 2016. Disponível em Disponível em https://doi.org/10.1177/1464700116645880 . Acesso em 14/02/2020.
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), por meio de uma metodologia interseccional. Segundo Nogueira (2017NOGUEIRA, Conceição. Interseccionalidade e Psicologia feminista. Salvador: Devires, 2017., p. 139), uma análise interseccional opõe-se às essencializações das diversas categorias, isto é, ao invés de supor que todas as pessoas que estão inseridas em um grupo social partilham das mesmas vivências, esta perspectiva considera que, mesmo em nossas similaridades, possuímos nossas especificidades. Assim, faz-se necessário “estar atenta e teorizar privilégios e opressões, não como estatutos fixos, mas sim como estatutos fluídos e dinâmicos, permeáveis à mudança, quer nas opressões, quer nos privilégios” (NOGUEIRA, 2017NOGUEIRA, Conceição. Interseccionalidade e Psicologia feminista. Salvador: Devires, 2017., p. 151).

Pesquisas ativistas, feministas e interseccionais possibilitam desenvolver estratégias de desconstrução das categorias sociais, analisando seus funcionamentos e produzindo reflexões que potencializem não apenas produções acadêmicas, mas também modos de vida que levem em conta vivências desiguais (Michele BERGER; Kathleen GUIDROZ, 2009BERGER, Michele Tracy; GUIDROZ, Kathleen. The Intersectional Approach: Transforming the academy through Race, Class an Gender. Chaper Hill, NC: The University of North Carolina Press Chapel Hill, 2009.; NOGUEIRA, 2017NOGUEIRA, Conceição. Interseccionalidade e Psicologia feminista. Salvador: Devires, 2017.). Berger e Guidroz (2009BERGER, Michele Tracy; GUIDROZ, Kathleen. The Intersectional Approach: Transforming the academy through Race, Class an Gender. Chaper Hill, NC: The University of North Carolina Press Chapel Hill, 2009.) afirmam que a abordagem interseccional é um conceito que atravessa fronteiras, produzido por feministas ativistas que teorizam as relações sociais de poder.

Considerando os aspectos mencionados, na realização do campo de pesquisa procuramos compreender as várias possibilidades do “ser mulher”, partindo da não essencialização de pessoas brancas e tomando os atravessamentos proporcionados pelos marcadores sociais da diferença de maneira entrecruzada, e não hierarquizada. Para tanto, foram analisadas as entrevistadas de quatro mulheres com diferentes marcadores sociais, dando destaque à articulação entre gênero e raça, sem perder de vista que outros atravessamentos são fundamentais para a compreensão das lógicas hegemônicas que partem dos processos de subjetivação e racialização das pessoas brancas (CRENSHAW, 1994CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics and Violence Against Wmen of Color”. In: FINEMAN, Martha Albertson; MYKITIUK, Roxanne. The Public Nature of Private Violence. New York: Routledge, 1994. p. 93-118.; 2002CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, n. 10, p. 171-188, jan./jun. 2002. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ref/v10n1/11636.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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).

As quatro entrevistadas pertencem a diferentes gerações, regionalidades, classes sociais, profissões, ativismos e pautas, como pode ser observado na Tabela 1. As únicas delimitações que definiram o recorte das escolhas foram a necessidade de autodeclaração como feministas e mulheres brancas, além da disposição em dialogar acerca da sua condição racial. Após a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, as entrevistas realizadas foram gravadas, com autorização das entrevistadas, e posteriormente transcritas. Os nomes que identificam as entrevistadas são fictícios.

Tabela 1
Principais dados coletados durante as entrevistas

Apesar de todas as entrevistadas identificarem-se como feministas brancas, seus processos de subjetivação e racialização foram atravessados por diferentes marcadores sociais. Explicitar isso faz parte da pesquisa interseccional, propondo uma análise em que a lógica do ser feminista, mulher e branca não obedeça a essencializações. As falas analisadas neste trabalho trazem, para além das questões centrais abordadas nas entrevistas, outras perspectivas que envolvem discussões caras aos feminismos, como a maternidade e a transexualidade. Ainda que nem todas essas temáticas sejam aqui aprofundadas, permitem nuançarmos e complexificarmos os processos de subjetivação das participantes do estudo.

“Ser uma feminista branca é, talvez, menos difícil”: intersecções de raça e gênero nos feminismos

A seguir, discutimos o material de campo obtido em entrevistas feitas com quatro feministas brancas. A análise foi dividida em dois eixos: (1) Os processos de subjetivação e racialização de feministas brancas e (2) A branquitude nos movimentos feministas. A análise do material foi feita em diálogo com produções dos feminismos não hegemônicos, feministas interseccionais, e com os estudos críticos da branquitude apresentados até aqui.

Os processos de subjetivação e racialização de feministas brancas

Uma das principais questões analisadas neste estudo refere-se a como as feministas brancas constroem as suas racialidades, isto é, como se assumem pessoas brancas a partir dos seus processos de subjetivação e de racialização. Conforme Brah (2006BRAH, Avtar. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 26, p. 329-376, jan./jun. 2006. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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, p. 345), “a racialização da subjetividade branca não é muitas vezes manifestamente clara para os grupos brancos, porque ‘branco’ é um significante de dominância, mas isso não torna o processo de racialização menos significativo”. Assim, primeiramente foi perguntado às entrevistadas quando elas se perceberam brancas e, em seguida, o que significa ser uma mulher branca para cada uma delas, propondo uma reflexão sobre como seus processos de racialização se desenvolveram:

Bom, eu me percebi branca desde quando eu tive a capacidade de saber o que era cor, né? Tipo... o que é ser branca, o que é ser negra. [...] Até porque desde essa minha idade, de 8 anos, eu já vivenciei junto com as minhas amigas o preconceito que elas passavam [na escola]. Até de colegas meus que eram negros e que faziam atos racistas com elas, então eu já sabia muito bem a diferença em que eu era branca, porque eu não sofria isso (Amanda).

Eu me percebi branca pela primeira vez, foi no colégio. É, eu acho que era oitava série, não lembro. Acho que eu devia ter uns 14, 15 anos. [...] na minha turma tinha um rapaz negro, um único na minha turma inteira. E eu ficava me perguntando, “por que que só ele é negro aqui neste colégio?”. [...] então foi quando eu me toquei de que, é, eu era diferente dele (Carolina).

Considerando os fragmentos acima, é possível identificar algumas questões que aproximam os discursos das entrevistadas. A primeira é o contexto em que se percebe uma diferença racial das pessoas em relação a elas. Foi no contexto escolar, espaço de convivência com outras pessoas, em que as entrevistadas notaram a existência de uma diferença racial a partir da pigmentação da pele; a segunda é que se reconhecer branca foi possível na percepção de como outra pessoa, racializada, era lida naquele contexto, com a diferença transformando-se em discriminação, com ênfase na percepção do privilégio implícita na fala das entrevistadas.

Sovik (2009SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009., p. 50) alega que a branquitude como um sistema de hegemonia racial, “mantém uma relação complexa com a cor da pele, o formato de nariz e tipo de cabelo. [...] A branquitude é um ideal estético herdado do passado e faz parte do teatro de fantasias da cultura de entretenimento”. Nesse sentido, pessoas brancas possivelmente entendem-se racializadas mais tardiamente visto que, por serem a norma, não são interpeladas racialmente.

Uma das entrevistadas, por sua vez, afirmou que se percebeu como branca a partir do momento em que se deslocou do Brasil para a Europa. A percepção racial é frequentemente narrada por pessoas brancas brasileiras em experiências no exterior, uma vez que no país de origem não precisam refletir sobre sua condição racial, pois ser branco é ser o padrão, e ter representatividade massiva nos lugares, situação estruturada pelo racismo cultural e histórico. Quando essa pessoa branca se desloca para um contexto colonizador, de construção étnica-racial diferente da brasileira, ela ocupa lugar de alteridade, desenvolvendo outra percepção racial.

Eu, na verdade, me percebi mais branca quando eu fui pra Holanda. [...] lá falavam assim “mas você é brasileira? Você se sente brasileira?” eu falava “como assim se sente brasileira?” Eu não entendo essa pergunta. [...] então foi por aí, foi pelo contraste de lá, foi pelo olhar que eles têm do Brasil que aqui só tem negro e quando tem alguém como eu eles acham que eu não sou brasileira, eu acho que mostra um pouco como é o Brasil. Que minha amiga que era negra que foi, ninguém questionava se ela era brasileira ou não. Então isso me fez pensar bastante (Alice).

Alice também diz que, por sempre se interessar pela questão racial e pelo seu convívio com pessoas negras, ela já entendia a existência das diferenças raciais. Mas foi apenas quando se deslocou para a Holanda que percebeu como as interpretações do que é ser brasileira são contextualizadas. Segundo Bento (2014BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57., p. 26), o que se destaca no ponto de vista de pessoas brancas em discussões sobre raça é “o silêncio, a omissão ou a distorção que há em torno do lugar que o branco ocupou ou ocupa, de fato, nas relações raciais brasileiras”. Predomina a ausência de reflexão - afinal, qual seria a necessidade de refletir a respeito, se isso não repercute negativamente em sua vida? - sobre o seu real papel nas manutenções, desigualdades e vivências sociais de raça. Quando Alice estranha que europeus desconheçam a existência de pessoas “como ela” (brancas) no Brasil, sua surpresa se deveu ao apagamento, pelo outro, de sua identidade como brasileira, mas não parece tensionar a hierarquização racial estabelecida nesse discurso, em que pessoas “como ela”, semelhantes aos europeus, não são vistas como naturais do Brasil (ao contrário de sua amiga negra).

Algumas entrevistadas não tematizaram explicitamente a intersecção de gênero e raça em suas reflexões sobre ser mulher branca, e afirmaram, como disse Carolina, que a posição da mulher branca é uma posição subjugada. Por mais que hoje os direitos sejam iguais, não são. Na prática não é. (...) ser mulher não é fácil, seja branca, seja negra, ser mulher não é fácil. Carolina refere-se aos seus direitos de forma curiosa, pois, ao comparar os direitos das mulheres com os direitos dos homens como referência de quem detém direitos, ela entende que há a reprodução de um discurso que, na prática, não ocorre, e menciona que “os direitos não são iguais”. Chama atenção que a entrevistada repita este mesmo discurso quando universaliza o “ser mulher”, ao dizer que seja branca, seja negra, ser mulher não é fácil. Como discute hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, jan./abr. 2015. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n16/0103-3352-rbcpol-16-00193.pdf . Acesso em 14/02/2020.
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), os feminismos brancos operam a essencialização da categoria mulher, ainda que denunciem que as Ciências Humanas essencializem historicamente o homem como sujeito universal.

Duas entrevistadas trouxeram, por sua vez, reflexões considerando o entrecruzamento de ser mulher e ser pessoa branca:

Bom, pra mim, ser uma mulher branca é como uma pessoa branca, é ser privilegiada, mas sendo uma mulher branca, em questões de raça eu sou privilegiada também, mas somente por isso mesmo. [...] me vejo como privilegiada, perante branca (Amanda).

Eu sempre me pergunto qual é o valor de me dizer mulher branca, né? [...] Porque já que os privilégios são todos pra mim, porque que eu preciso reafirmar isso? Mas eu acredito que se dizer mulher branca é também se racializar, sabe? É fazer um esforço em que eu não me reconheço como centro, mas eu me reconheço como um tipo de pessoa (Vanessa).

Os fragmentos acima demonstram a reflexão racial das mulheres a partir do “ser mulher branca”, exigida pelos processos de racialização. As falas ultrapassam a compreensão dos privilégios associados ao “ser mulher branca”, e os direitos e vantagens decorrentes disso: a construção desse processo se faz necessária justamente a partir da construção racial - fato não observado frequentemente entre pessoas brancas. Afirmar-se como mulher branca é reconhecer-se racializada, entender seus privilégios e, a partir disso, buscar compreender como o seu corpo ocupa e é lido nos espaços sociais. A autodeclaração como branca é o primeiro passo para a problematização da branquitude - ainda que ela não garanta que os demais passos serão dados. Segundo Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 46), pessoas brancas finalmente reconhecem a realidade do racismo a partir do momento que reconhecem sua própria branquitude e/ou racismo: “Reconhecimento é, nesse sentido, a passagem da fantasia para a realidade”.

Outro ponto importante é que pessoas brancas percorrem processos de racialização diferentes, caracterizados pela articulação com outros marcadores sociais, como a regionalidade e a hierarquização dos fenótipos, por exemplo. Conforme Schucman (2014SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014a.a, p. 139), no grupo de pessoas brancas “há características da mestiçagem que hierarquizam, por assim dizer, esta brancura. No subgrupo que tem origem europeia, há uma distinção entre o ‘branco brasileiro’ e o ‘branco original’”. É interessante pontuar, também, como o “branco brasileiro” e o “branco original” vão mudando ao longo da nossa história colonial, a partir da questão da democracia racial e do projeto de branqueamento da população brasileira (BENTO, 2014BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57.).

Este é um aspecto complexo, que necessita ser debatido. O que torna uma pessoa branca? Há, a partir do que se entende por modelo ideal de brancura, várias formas de racializar-se como pessoa branca, inclusive por vivermos em um país miscigenado, constituído historicamente sob o mito da democracia racial (SCHUCMAN, 2014SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014a.a; SOVIK, 2009SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.). Nas falas abaixo, vemos como os fenótipos movimentam-se nas leituras raciais, descortinando uma diversidade de possibilidades de entender-se como racializada.

No primeiro exemplo, foi perguntado à Carolina se ela entende que haveria uma diferença entre ser mulher branca e ser mulher negra:

Tem. Os homens negros vão querer mulheres brancas ou mulheres negras que se aproximem do padrão de beleza que é o padrão de beleza branco. Aquela mulher loira, cabelo liso, rosto fino, feições finas, né? Se ela tiver feições étnico-raciais fortes, a pele escura, o nariz grande, né, os lábios grossos, ela vai ter menos privilégios do que uma mulher negra que tenha as feições finas (Carolina).

Destaca-se, aqui, a oposição que a entrevistada faz entre “feições étnico-raciais fortes” e “feições finas”, aproximando as feições finas do padrão de beleza (isto é, branco). Se todas as pessoas pertencem a uma raça/etnia, por que se caracteriza a “a pele escura, o nariz grande, lábios grossos” como “feições fortes” que se opõem ao padrão de beleza? Durante essa resposta, a entrevistada citou a atriz Thais Araújo que, “por ter feições finas”, “é uma branca”, e teria facilidade para transitar entre os polos raciais. Na próxima fala, de outra entrevistada, vemos mais um exemplo de como esses traços fenotípicos são acionados nos discursos.

Então eu não sei o que significa ser branca. Hoje na verdade tem me incomodado mais do que outra coisa, né. Porque eu vou num ambiente que ninguém me conhece e falam “olha lá, branca”. Aqui no Rio eu fui assaltada, fui na delegacia e o cara [policial] falou “você tem que pintar esse seu cabelo, você é muito loira, você parece muito gringa”. E é complicado às vezes em algumas situações, você entendeu? Quem me conhece tudo bem, já me conhece [refere-se ao seu interesse por discussões raciais], agora quem não me conhece vai me identificar aonde? É branca, loira, de classe média. Como uma mulher branca, de classe média talvez, de elite dominante. E aí você tem que falar “olha não é bem assim”, [...] minha família não é proprietária de terra nem de nada, meu pai é militar, minha mãe dona de casa, uma família tradicional (Alice).

Alice traz a ideia de que estar muito próxima ao padrão fenotípico de pessoa “branca europeia”, de brancura - loira, de olhos claros, pele clara -, remete ao privilégio tanto de raça como de classe. Ela fala de seu incômodo com o fato de as pessoas, sem a conhecerem, já a caracterizarem como uma pessoa que possui privilégios, apenas pelo fenótipo. Ao trazer o assalto vivido e a recomendação do policial para que ela pintasse o cabelo para não parecer “tão gringa”, faz-se necessário compreender o que significaria “pintar o cabelo” nessa situação. Ser “menos diferente” da pessoa que a assaltou? Aproximar-se de uma pessoa “branca brasileira”? A leitura de seus privilégios raciais pelo policial pareceu causar na entrevistada o desconforto de ser lembrada das profundas desigualdades raciais, nas quais Alice ocupa lugar privilegiado. Também se faz presente, na fala do policial, a atualização de uma hierarquia de gênero. Ao recomendar que a entrevistada mude a cor de seus cabelos, o policial sente-se autorizado, do lugar que ocupa como homem e representante da lei, a opinar sobre a aparência da entrevistada, sinalizando alguma responsabilidade individual da mesma no assalto sofrido. Vemos, aqui, intersecções de gênero e raça atualizadas na narrativa de um evento pontual e seus desdobramentos.

Outra noção cara à análise da construção racial da pessoa branca é a ideia de privilégio. Discutir privilégios com pessoas brancas que já se entendem racializadas complexifica o debate. Vejamos os dois fragmentos a seguir.

Eu lembro que uma vez, assim que a gente tava se conhecendo, ela [sua companheira] falando que fazia doutorado [...], e eu falando que tava fazendo mestrado e aí ela me congratulou, disse que é muito importante eu estar nesse espaço, pela minha história de vida [...] aí eu soltei em algum momento assim é, alguma frase com “nós”, como era importante “nós estarmos” [na academia], algo nesse sentido. E ela de pronto me cortou. Ela falou assim “olha, eu entendo o que você quer dizer, mas eu preciso dizer que esse nós não existe”, e aquilo me desconsertou demais, sabe, como assim? As duas estão resistindo pra estar nesse espaço e como não existe esse “nós”, né. E ela foi muito categórica, ela falou assim, “olha... esse nós não existe, porque a gente vive em uma sociedade em que pra você, mulher branca e retirante é uma caminhada árdua, e que talvez você nem chegue lá, mas no meu caso, não é só a caminhada, tem o fato de eu me manter viva pra que eu faça essa caminhada, então no meu caso é uma questão de vida ou não”, então isso me trouxe esse grau sabe, de privilégio, mas acima de tudo de implicação, sabe? (Vanessa).

Conheço [...] mulheres que eram brancas e eram negras, e moravam perto uma da outra. Essa mulher branca saiu de onde morava e estava um processo de policiamento, ao redor das casas e ela não foi revistada, mas a amiga negra foi revistada. [...] quando um policial invade o morro, por exemplo, é... algumas mulheres brancas se safam, mas mulheres negras, juntos com seus parceiros, morrem ali (Amanda).

Os dois fragmentos nos mostram uma sensibilidade racial para a forma como mulheres brancas são atravessadas pelas dimensões de privilégio. Sobre a fala de Vanessa, vale destacar a importância da interlocução com alguém próxima afetivamente para que algo cotidiano e da vivência íntima seja percebido criticamente. Vemos a problematização do discurso da meritocracia, algo tão caro às pessoas brancas por lhes conferir inúmeros privilégios naturalizados. Na fala de Amanda, observamos que a percepção de uma realidade social marcada pelo racismo de Estado permitiu que a entrevistada se desse conta das condições distintas que atravessam o cotidiano de mulheres brancas e negras que vivem em territórios marcados pela violência, estabelecendo desigualdades intragênero significativas.

Todas as entrevistadas mencionaram situações pessoais ou de pessoas próximas em que percebem, explicitamente, os seus privilégios. Entretanto, como indica Ribeiro (2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.), é importante ultrapassar a mera nomeação de privilégios, avançando no entendimento das relações de poder que os sustentam, e em seu enfrentamento, pois não basta assumir os privilégios: o atual momento político e social requer reflexões que transcendam simples atribuições.

Agora, o que você faz com esse privilégio, você entendeu? Como que você distribui ele? Uma coisa é você reconhecer, mas e depois que você reconhece, você faz o quê? Eu acho que o que você pode fazer é tá numa luta, você entendeu? Eu sou uma pessoa totalmente indignada com o racismo nesse país (Alice).

A reflexão que Alice nos traz, “é possível distribuir privilégios?”, remete a uma discussão recorrente feita nos espaços feministas que tematizam o privilégio branco. Como pessoas brancas poderiam distribuir privilégios, e quais seriam os efeitos disso? Voltaremos a essa reflexão mais adiante.

A seguir, veremos mais precisamente como tais processos de subjetivação e racialização de feministas brancas, assim como a lógica da branquitude, atravessam espaços intragênero, nos movimentos feministas.

A branquitude nos movimentos feministas

Propomos, neste segundo eixo de análise, entrecruzar as duas grandes temáticas deste artigo: os movimentos feministas e a construção racial e subjetiva de mulheres brancas. Nesta perspectiva, quatro temas serão discutidos: (1) o que é ser uma feminista branca, (2) sobre a existência de um feminismo branco no Brasil, (3) se há racismo nos movimentos feministas e (4) qual o papel da pessoa branca na luta antirracista. A escolha deste caminho teve como propósito pensar, por meio de um panorama das práticas e espaços feministas, a branquitude dos movimentos feministas a partir da fala de feministas brancas.

Perguntamos, primeiramente, “o que é ser uma feminista branca?”. Nota-se que, anteriormente, duas perguntas similares foram lançadas, vinculadas à noção de racialidade: “quando você se percebeu como pessoa branca?” e “o que significa ser uma mulher branca?”. O propósito de organizar desta forma as perguntas na entrevista foi de entender como as entrevistadas percebem as nuances envolvidas nessa discussão:

Ser uma feminista branca é, talvez, menos difícil. Continua sendo difícil por ser uma mulher, mas, novamente, cito os privilégios, que meus privilégios do dia a dia, mesmo que eu receba uma cantada péssima, é... muitos dos assédios não são voltados pra minha cor, por exemplo. Então é um pouco mais tranquilo, talvez, assim, mais ser mulher ainda é muita resistência (Amanda).

Aí eu já não sei o que é ser uma feminista branca, pra mim eu falo que feminismo é tudo na minha vida, [...] feminismo faz a diferença. E o fato de ser feminista branca talvez tenha me levado a muita coisa boa (Alice).

As entrevistadas identificam que o marcador social da raça (branca) remete a privilégios dentro do feminismo e que as lógicas de gênero são atravessadas de diferentes formas quando racializamos os corpos. Logo, experiências como o assédio serão vivenciadas de formas diferentes - fato que não deslegitima as suas trajetórias enquanto mulheres que enxergam o feminismo como uma forma de resistir às opressões patriarcais. Por outro lado, em alguns fragmentos, pode-se notar que as entrevistadas não apontaram aspectos positivos (no sentido de características perceptíveis) em “ser feminista branca”. Há entendimento de que os privilégios existem, mas há também dificuldade de pensar como horizontalizar relações hegemônicas intragênero. Por exemplo, Amanda, em um determinado momento, diz que (...) eu sou uma feminista branca, (...) mas, é (risos), mas não me identifico tanto às vezes [com feministas brancas], (...). Então, eu faço parte mas, às vezes, em algumas divisões e coisas que acontece nesse feminismo, eu não me enquadro.

Outra questão levantada abordava o termo “feminismo branco”, muito utilizado nas produções de mulheres racializadas em contexto euro-estadunidense. Ao perguntarmos se existiria um feminismo branco no Brasil, obtivemos diferentes respostas.

Não gosto desse termo! Não vejo assim. [...] qual seria o feminismo branco? Eu acho que no Brasil tá muito ligado ao feminismo de esquerda, as sufragistas, talvez, a questão do voto, eram mulheres que foram estudar na Europa, voltaram e trouxeram as ideias de emancipação. Agora depois da década de setenta e oitenta eu não vejo purismo, assim. Porque falar feminismo branco é um purismo. Eu conheço muitas brancas, você pega os nomes da época dessa relação, grandes feministas brancas, poucas negras de referência, né? Mas hoje... Eu não sei, o que seria um feminismo branco hoje? Quem tá na academia? Feminismo branco talvez seja esse grupo de mulheres que tão ali pra discutir benefícios pra elas (Alice).

A temática geracional traz um recorte importante para a análise. Alice discorre que até a década de 1980, possivelmente, a existência de um feminismo branco ocorreria em virtude das poucas referências feministas negras. Será que tal dado, em si, já não anunciaria um feminismo majoritariamente branco? Até a década de 1980 havia muitas mulheres negras no Brasil que pautavam ideias de emancipação, inclusive com um viés interseccional, como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento. Esse apagamento das mulheres racializadas no Brasil já anunciava a branquitude nos movimentos, perpetuada desde a década de 1970, quando as discussões feministas ganham fôlego no país. Ao mesmo tempo, declarar que “falar de um feminismo branco é um purismo” parece marcar um contraponto em relação ao feminismo negro (ou de mulheres racializadas), que teria como característica principal a raça. Nesse sentido, Carolina reflete sobre o feminismo branco a partir de outro viés:

[...] o que existe é o movimento feminista predominantemente branco, a não ser os movimentos feministas exclusivamente negros, né. Existe o movimento feminista negro, exclusivo, e existe o movimento feminista que não necessariamente tem cor, mas é predominantemente dominado pelas pessoas brancas, onde elas ainda estão aprendendo a ceder espaços para as pessoas negras (Carolina).

Carolina reconhece de saída a predominância de mulheres brancas nos movimentos feministas. Chama atenção a expressão usada pela entrevistada, quando diz que as pessoas brancas estariam aprendendo a “ceder espaço” para as pessoas negras. Se, por um lado, sua fala traz um processo de mudança que tem acontecido muito em função da atuação dos movimentos de mulheres negras, em que feministas brancas se veem interpeladas a pensarem seus ativismos, por outro lado, a ideia de que há um aprendizado em “ceder espaço” nos ajuda a pensar a forma como os corpos e as subjetividades de mulheres brancas ocupam os movimentos feministas. Esse reconhecimento constitui um passo importante para o avanço das discussões que não se resolvem apenas discutindo gênero, mas que consideram, também, a racialização das mulheres brancas.

Na sequência, questionamos se existiria racismo nos feminismos, e se as entrevistadas poderiam citar algum exemplo. Todas afirmaram existir racismo nos feminismos, articulando o fato de que, como vivemos em uma sociedade racista, muito facilmente teríamos feministas racistas. Porém, não se lembraram de situações explícitas de discurso de ódio ou discriminação.

Esse país aqui é tão racista. E quem é feminista também, né? As relações são muito autoritárias, eu já trabalhei com feministas de nomes que são superautoritárias, vem de uma raiz difícil de quebrar, né? Então eu acho que deve ter feminista racista, é muito difícil não ser racista (Alice).

O que eu tenho visto é mais uma coisa subjetiva mesmo, entendeu? Com a gente, pessoas trans, foi bem incisivo, bem objetivo. Foi caso de transfobia mesmo. Agora dentro do partido, dentro dos movimentos pelos quais eu tenho participado o que há realmente é este racismo internalizado, entendeu? (Carolina).

Ao final, pedimos que cada entrevistada falasse sobre o papel da pessoa branca na luta antirracista. Como anteriormente mencionado, o intuito do estudo não foi apenas de discutir a branquitude nos espaços feministas mas, para além disso, entender como feministas brancas, que estão à frente de lutas políticas e identitárias sobre as questões de gênero, percebem sua responsabilidade quando a pauta racial é trazida em contextos intragênero. Neste sentido, quando perguntamos “você acha que pessoas brancas têm um papel na luta antirracista? Se sim, qual é?”, Amanda respondeu:

Têm, porque [...] as pessoas que mais são racistas são brancas, você vê desde o processo colonial, portugueses vieram pra cá, tomaram o lugar dos índios e escravizaram, começa tudo a partir desse processo. Então eu acho que, historicamente, socialmente, sim, as pessoas brancas têm um processo, têm uma importância nesse processo antirracista pra que essas pessoas se desconstruam (Amanda).

Os discursos das entrevistadas sobre essa temática foram diversos, mas se interseccionavam à medida que concordavam que, sim, pessoas brancas têm um papel na luta antirracista, principalmente porque são as pessoas brancas que estão no poder. São as pessoas brancas que são eleitas, por conta desse racismo institucionalizado (Carolina) e, consequentemente, são elas que mantêm uma lógica racista. Carolina afirmou que, primeiro, seria necessário perceber que o racismo existe: Reconhecendo que ele existe, que ele é devastador, que as pessoas sofrem, que as pessoas são impedidas de desenvolver suas potencialidades, de se expressar, então é reconhecer isso. Depois é participar das lutas.

Vanessa, por sua vez, comentou sobre o compromisso que a pessoa branca deve ter com a temática racial e com a luta antirracista: E me parece que isso implica estudar, implica você se sensibilizar, e perder um tempo, pegar um tempo da sua vida pra tentar entender essas coisas, assimilar, ou se expor mesmo, sabe? Sair da sua zona de conforto, do que você acreditou a vida inteira. Aqui, a entrevistada propõe o diálogo com outras pessoas brancas para que, coletivamente, haja um entendimento sobre como a branquitude aciona privilégios em um sistema estruturado pelo racismo, pois é recorrente que não haja investimento ou esforços de pessoas brancas em se posicionar em relação à questão racial (CARNEIRO, 2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, Sexismo e Desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.; CARONE; BENTO, 2014CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2014.; SCHUCMAN, 2014SCHUCMAN, Lia Vainer. “Sim, nós somos racistas: Estudo psicossocial da branquitude paulistana”. Psicolocia & Sociedade, Recife, v. 26, n. 1, p. 83-94, 2014b. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/10.pdf . Acesso em 14/02/2020.
https://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n1/10....
b).

As entrevistadas também citaram situações mais práticas onde seria possível ser antirracista:

E eu acho que é se utilizar dos espaços que a gente tem, sabe? [...] Não se omitir a um comentário, não se omitir a reprodução, aquela reprodução leviana que as pessoas têm de senso comum, né, críticas, aprofundar, né? (Vanessa).

É o dar mais acesso, ensino também ajuda muito, porque quando elas conseguem ter acesso à educação, a educação muitas vezes é precária. [...] Então, é melhorar o ensino, oferecer mais oportunidades, mais acesso, ensinar desde pequeninho aprender as diferenças, a respeitar tudo. São essas coisas (Amanda).

Eu tô chamando as minhas irmãs negras pra ocupar os mesmos espaços que eu ocupo. Porque eu, enquanto mulher branca, eu sei que eu transito em lugares públicos com mais facilidade que mulheres negras. [...] Quantas mulheres negras você vê em shows pagos, em teatro... [...]. Então eu pego pela mão e arrasto (Carolina).

Nos recortes acima, percebemos que há perspectivas distintas de práticas antirracistas levantadas pelas entrevistadas. Amanda e Carolina colocam-se em uma posição de “facilitar o acesso” de pessoas negras à educação, à cultura, entre outros. Há um reconhecimento dos privilégios como brancas, mas há um posicionamento voltado para agir pelas mulheres negras, e não para disputar com pessoas brancas em situações de racismo, como Vanessa traz.

Em sua entrevista, Carolina fala sobre como procura apoiar a luta de mulheres negras:

Eu não posso estar chefiando, eu não posso estar à frente, eu posso estar ali de trás ajudando. [...] Telefona para não sei quem, vê com não sei quem, mas a formação da mesa [de debate], quem vai chamar, qual vai ser o tema, não sei o que, não pode ser eu! Pô, eu sou branca! Mais branca que eu? Impossível, difícil de achar (Carolina).

A reflexão do que significa ser antirracista é um ponto importante para entendermos as dimensões de privilégio e os desdobramentos na manutenção de uma estrutura essencialmente racista na qual nos inserimos. Nas falas de Amanda e Carolina, as estratégias voltam-se para pessoas negras - e isso pode fazer com que se apague a responsabilidade e o protagonismo das pessoas brancas na reprodução do racismo na sociedade. De uma forma mais restrita, Amanda diz que a educação das crianças pequenas para que entendam as lógicas opressoras seria um caminho: (...) vai da criação dos filhos entenderem (...) que a amiguinha tem a cor diferente dele, se ele é branco, né? Que ela é igual a ele, que não tem diferença, e explicar também (...) o que é ser negro e o que é ser branco desde pequenininho também, para ele saber a diferença e não achar que é um ET, um extraterrestre.

Em todas as quatro entrevistas foram mais frequentes exemplos de práticas antirracistas que permitem dar “oportunidades” para pessoas racializadas do que exemplos de ações a serem desenvolvidas com pessoas brancas. Como Bento (2014BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57., p. 44) pontua: “como se o branco não fosse elemento essencial dessa análise, como se identidade racial não tivesse fortes matizes ideológicos, políticos, econômicos e simbólicos que explicam e, ao mesmo tempo, desnudam o silêncio e o medo”.

Há diversas formas de pessoas brancas apoiarem a luta contra o racismo. Segundo Nogueira (2017NOGUEIRA, Conceição. Interseccionalidade e Psicologia feminista. Salvador: Devires, 2017., p. 139), a “política de alianças, considerando categorias negociáveis e provisórias, pode ser a resposta política, e a teoria da interseccionalidade uma resposta teórica”. É importante que pessoas brancas saibam ouvir quando o assunto é racismo e, ao mesmo tempo, dialoguem com outras pessoas brancas sobre um assunto que, para muitas, é constrangedor e complexo.

A maioria das entrevistadas relatou que é necessário horizontalizar relações, dividir espaço e entender o seu lugar de fala na luta antirracista. Ribeiro (2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 84) afirma que “falar a partir de lugares é também romper com essa lógica de que somente os subalternos falem de suas localizações, fazendo com que aqueles inseridos na norma hegemônica sequer se pensem”. Saber o seu próprio lugar de fala e entender como os corpos brancos, em sua materialidade, organizam os espaços que estabelecerão quem será validado e quem poderá falar é fundamental para “pensar hierarquias, as questões de desigualdade, pobreza, racismo e sexismo” (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017., p. 84).

Ademais, não basta apenas a compreensão do lugar de fala da pessoa branca a partir de uma postura ética: é necessário que tenhamos noção de que a participação de pessoas brancas na luta antirracista as convoca a repensar seus corpos e como podem horizontalizar seus privilégios, tanto materiais quanto simbólicos, para que os marcadores da diferença, como raça e gênero, possam ter menor impacto na produção de desigualdades sociais. O enfrentamento do racismo só acontecerá quando os praticantes ou beneficiários desse sistema também se comprometerem com esta causa.

Na mesma perspectiva, Bento (2014BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e Branquitude no Brasil”. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 25-57., p. 44) sugere que “ler biografias e autobiografias de pessoas brancas que têm atravessado processos semelhantes de desenvolvimento da identidade oferece aos brancos modelos para mudança. Estudar sobre brancos antirracistas pode também oferecer aos negros a esperança de que é possível ter aliados brancos”. Por fim, vale reforçar que é fundamental que quem está em um grupo social privilegiado consiga, a partir deste lugar, sensibilizar-se e desconstruir relações hierarquizadas de poder - sejam elas quais forem, com grande ou mínimo impacto - que subalternizam pessoas racializadas (RIBEIRO, 2017RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.).

Algumas considerações

A branquitude nos movimentos feministas apresenta múltiplas faces. Este estudo teve como objetivo compreender os processos de subjetivação e racialização de feministas brancas, por meio das intersecções de raça e gênero. Analisamos as falas das entrevistadas de maneira a pensar os desdobramentos da branquitude nos contextos feministas hegemônicos, buscando entender o que ocorre quando feministas brancas estão dispostas a dialogar e refletir sobre sua condição racial. A discussão dos resultados mostra a importância de compreendermos as formas de ser mulher e os feminismos afastando-se de uma via essencialista e universalizante, reconhecendo que se faz necessária a horizontalização dos pensamentos e práticas feministas a partir da intersecção e descolonização dos marcadores sociais da diferença.

Tem-se observado, na atualidade, um movimento de pessoas brancas que têm reconhecido os seus privilégios, nutrindo a concepção de que isso é suficiente para o debate das relações raciais. Partindo do resultado desta pesquisa, em diálogo com produções dos feminismos não hegemônicos, entendemos que é preciso ir além e construir, por meio de práticas cotidianas e institucionais, um comprometimento com a luta antirracista.

Entender as heterogeneidades que atravessam os corpos das mulheres, sem colocá-los como identidades fixas e estáveis, é imprescindível para que os movimentos feministas possam criar estratégias de enfrentamento ao racismo, visto que este também promove a hierarquização de gênero. Do contrário, pela lógica da branquitude, os movimentos feministas hegemônicos serão mais um instrumento de manutenção de relação de poder racial, neste caso, intragênero.

Agradecimentos

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ por meio da modalidade Bolsa NOTA 10.

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    A escolha do termo “mulheres racializadas” compreende os corpos das mulheres e as suas leituras nos contextos feministas, tendo como premissa a branquitude nesses espaços. A racialização ocorre sempre para mulheres não encaixadas na lógica universal do sujeito - o branco. De maneira geral, mulheres brancas não se reconhecem como pessoas racializadas, e o nosso propósito neste trabalho é pensar a racialização de pessoas brancas, visto que as outras formas de ser mulher, silenciadas e marginalizadas nos feminismos, já são racializadas.
  • 2
    “No original inglês, o termo subject não tem gênero. No entanto, a sua tradução corrente em português é reduzida ao gênero masculino - o sujeito -, sem permitir variações no gênero feminino - a sujeita - ou nos vários gêneros LGBTTQIA+ - xs sujeitxs -, que seriam identificadas como erros ortográficos” (Grada KILOMBA, 2019, p. 15). Por ser um texto que se refere apenas a entrevistadas mulheres, optamos por manter o termo no feminino.
  • 3
    “Feministas brancas e negras usam a abordagem da interseccionalidade para evidenciar hierarquias impostas pelos machos, desconhecendo o fato dessas subordinações funcionarem no sistema de antiguidade adquirida, não pelas relações de poder propagadas por gênero” (AKOTIRENE, 2019, p. 82).
  • 4
    “O discurso da mestiçagem, positivada pelo pensamento social da época, deu suporte às políticas de embranquecimento e de construção de uma unidade nacional. Estas eram, certamente, as duas faces da mesma moeda. O processo de mestiçagem, enquanto uma ideologia, deu suporte político ao pensamento da elite brasileira de meados do século XX e foi o alicerce de sustentação das políticas raciais no país” (Ana Helena Ithamar PASSOS, 2013, p. 62).
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    MARCINIK, Geórgia Grube; MATTOS, Amana Rocha. “‘Mais branca que eu?’: uma análise interseccional da branquitude nos feminismos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e61749, 2021.
  • Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ por meio da modalidade Bolsa NOTA 10
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2019
  • Revisado
    14 Fev 2020
  • Revisado
    06 Mar 2020
  • Aceito
    14 Maio 2020
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