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Diálogos sobre a obra de Heleieth Saffioti e o feminismo de esquerda

Dialogues on Heleieth Saffioti’s Work and the Left-Wing Feminism

Resumo:

Tendo o marxismo como instrumental teórico para compreender as desigualdades entre mulheres e homens nas sociedades de classes, a obra de Heleieth Saffioti foi pioneira ao apontar que as categorias de sexo, raça/etnia e classe são constitutivas da sociedade, destacando o papel do trabalho nas relações de desigualdade. A articulação dessas contradições foi um debate importante na formação do feminismo que se forjou no país a partir da década de 1970, com uma forte militância de mulheres de esquerda, e permanece central para o feminismo hoje. Ao final dos anos 1980, priorizando elaborações sobre o conceito de gênero, classe e raça/etnia e o tema da violência, Heleieth Saffioti renovou sua presença intelectual e militante no feminismo no Brasil em novos diálogos que inspiram a intervenção feminista e as lutas dos movimentos de mulheres que visam à transformação da sociedade.

Palavras-chave:
Heleieth Saffioti; marxismo; feminismo; movimento de mulheres; trabalho

Abstract:

With Marxism as a theoretical tool to understand the inequalities between women and men in class societies, Heleieth Saffioti’s work was a pioneer in pointing out that the categories of sex, race/ethnicity and class are constitutive of the Brazilian society, highlighting the central role of work in inequality relations. The articulation of these contradictions was an important debate in the formation of feminism that was forged in the country since the 1970s, with a strong militancy of women on the left, and remains central to feminism today. From the end of the 1980s, giving priority to elaborations on the concept of gender, class and race/ethnicity and the theme of violence, Heleieth Saffioti renewed her intellectual and militant presence in feminism in Brazil, in new dialogues that inspire feminist intervention and struggles of women’s movements aimed at transforming society.

Keywords:
Heleieth Saffioti; Marxism; Women’s Movement; Work

Introdução

Algumas obras têm uma vida e uma importância muito além do seu texto. Isso ocorre pela novidade das ideias que apresentam, pelas circunstâncias do momento de sua divulgação ou pelo destaque à personalidade que as escreveu. Marcam seu tempo, trazem uma inquietação que questiona o passado e vislumbram mudanças ainda em gestação na sociedade e, nesse sentido, abrem caminhos de interpretação das dinâmicas sociais emergentes. É o caso do livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, de Heleieth Saffioti.

Publicado em 1969, com a redação concluída entre novembro de 1966 e fevereiro de 1967, sua elaboração partiu de um esforço para compreender a situação das mulheres na sociedade brasileira. Mas, mais do que isso, para compreender a posição das mulheres no capitalismo dentro de um quadro amplo de análise da economia e da sociedade, buscando entender como se coloca o trabalho das mulheres na dinâmica das relações capitalistas. O livro já traz uma característica que se tornou recorrente na elaboração intelectual de Heleieth Saffioti: englobar, perceber e interpretar as questões que moviam sua análise de uma forma abrangente, no bojo da complexidade dos fenômenos sociais. Daí pensá-los ao longo da história, indicar os pontos de conflito, as distintas interpretações, as interfaces econômicas, sociais, políticas e, eventualmente, filosóficas. É assim quando, anos mais tarde, questiona os limites do conceito de gênero e sua interpretação predominante em um campo do feminismo no Brasil a partir dos anos 1990 até chegar à formulação de “ordem patriarcal de gênero”; na síntese explicativa que almejou com o binômio exploração-dominação; na persistência em desvendar a complexidade das relações de classe, de sexo como categoria social e de raça/etnia até formular a ideia de um “nó” que dinamiza as relações sociais. Concordando-se ou não com as análises que faz, os conceitos que formula ou as conclusões a que chega, é inegável o esforço intelectual de Heleieth Saffioti em compreender as relações de desigualdade que organizam a sociedade no seu conjunto - um desafio indispensável para um feminismo que se quer de esquerda.

Nesse texto abordaremos aspectos da trajetória de elaboração teórica de Heleieth Saffioti e algumas tensões que, a nosso ver, foram recorrentes nesse diálogo entre seu trabalho e os caminhos do movimento feminista no Brasil. Sem o objetivo de descrever todos os momentos distintos desse percurso, é possível perceber um desencontro que emerge nos distintos momentos. Despontando como precursora no final dos anos 1960 até meados de 1970, quando os novos debates feministas da época chegam ao Brasil no final da década e na seguinte, imersos em um diálogo crítico com a ortodoxia marxista, os trabalhos de Heleieth Saffioti se mantiveram reticentes à intensa reformulação no âmbito dos intensos debates entre feminismo e marxismo, notadamente no universo de discussão que lhe era principal: relações de trabalho e as relações sociais de classe e sexo. Já no limiar dos anos 1990, quando se desenvolve uma significativa mudança de rota em sua elaboração, quando então se volta mais para o tema da violência sexista e os debates sobre o conceito de gênero, é interessante apontar que a temática sobre o trabalho das mulheres, que concentra fortes questionamentos a uma visão ortodoxa do marxismo, deixa de ser recorrente em seus textos. As elaborações sobre divisão sexual do trabalho, os distintos lugares do trabalho das mulheres na desigualdade social, a necessária reformulação dos conceitos sobre exploração do trabalho e a produção do valor, que continuam a se desenvolver nos debates feministas sobre a sustentabilidade da vida nas vertentes do feminismo socialista, não se constituem mais, a partir daí, como um campo de diálogo preferencial para Heleieth. Este é o primeiro aspecto do que identificamos aqui como desencontro. Ao mesmo tempo, para além da elaboração teórica, Heleieth Saffioti percorria os caminhos e posições no movimento referenciados mais fortemente na dinâmica institucional, ou impulsionados pelas grandes conferências internacionais, esferas sem dúvida avessas a posições de esquerda mais radical ou referenciadas no marxismo, o que, em alguma medida, também gerava desencontros no âmbito dos distintos setores do movimento de mulheres. Novas pontes vão se tecendo, ao longo da década de 1990 até seus últimos trabalhos, seja pelo envolvimento mais prático no tema do enfrentamento à violência, pela aproximação com as políticas públicas nessa área, seja pela presença sistemática ao longo dos anos de atuação docente, em contato com várias gerações de militantes.

Ao apontar neste texto alguns desses diálogos incompletos entre a obra de Heleieth Saffioti e o feminismo de esquerda queremos destacar seu pioneirismo, a busca por compreender a desigualdade e a opressão das mulheres no contexto das relações de dominação capitalista apoiada em uma perspectiva marxista, que permanecem e se renovam como inspiração para uma militância feminista e socialista que hoje busca fortalecer e renovar a luta feminista de esquerda. Nestes nossos tempos em que a hegemonia política do capitalismo neoliberal busca capturar pautas e expressões do feminismo para a integração na ordem e no mercado, é promissor vermos brechas na estigmatização do pensamento marxista tão enfatizada nos meios acadêmicos e no pensamento social nas últimas décadas. Como apresenta de forma sintética Nancy Fraser, a fragilização e mesmo “a ausência da crítica ao capitalismo nos anos recentes” deve-se tanto à força do liberalismo como à “ascensão espetacular do pensamento pós-estruturalista no fim do século XIX” (Nancy FRASER; Rahel JAEGGI, 2020FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020., p. 18). Rememorar e reativar de forma crítica esses debates nos ajuda também a conhecer melhor aspectos das trajetórias do movimento feminista e contribuir para um debate crítico do feminismo no Brasil, ajudando a romper com o isolamento e ampliar os caminhos para um feminismo que se pauta por uma perspectiva de transformação das relações sociais de dominação e para quem o pensamento marxista, um marxismo crítico, libertário, que dialogue com o presente, é um instrumento poderoso.

Primeiros passos de uma trajetória

Heleieth Saffioti tinha o marxismo como instrumental teórico capaz de abrir caminhos para compreender as desigualdades entre mulheres e homens nas sociedades de classes. Ao observar sua produção intelectual, interrogar as elaborações teóricas em diálogo com as reflexões e os debates acumulados no seu tempo, importa destacar que, no período em que a obra foi redigida (novembro de 1966 a fevereiro de 1967), ainda não haviam se desenvolvido as novas mobilizações do movimento feminista no Brasil, gestadas a partir dos anos 1960 nos Estados Unidos e alguns países europeus, espalhando-se a partir da década de 1970 para várias outras partes do planeta, como foi entre nós.1 1 Não cabe aqui o debate sobre a eventual interpretação das ondas do movimento. O que queremos demarcar é que, no momento de redação dessa obra, era ainda incipiente a organização do movimento internacional de mulheres que explodiu no mundo após meados dos anos 1960 e cerca de uma década mais tarde no Brasil.

Nesse seu primeiro livro, Heleieth Saffioti não se colocou as fronteiras de um estudo conjuntural, empírico, da situação das mulheres no Brasil. Valendo-se dos marcos teóricos do marxismo, o livro ambiciona compreender a dinâmica do capitalismo, em particular em seu desenvolvimento fora dos países capitalistas centrais, na relação com as mulheres nessas sociedades.

Entre alguns olhares que garantem ao livro um lugar pioneiro, vale aqui ressaltar pelo menos três. Inicialmente, a ousadia de provocar o pensamento político, social, progressista, e acadêmico, da época ao insistir na necessária introdução da situação das mulheres na análise sociológica, econômica e política da sociedade brasileira, interpelando nossos clássicos, ‘papas e príncipes’ do pensamento social brasileiro. Em segundo lugar, insistir em categorias de sexo, de raça/etnia e classe como constitutivas da sociedade brasileira (SAFFIOTI, 2013SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013 [1969].).2 2 Todas as citações de A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, neste texto, têm como referência a terceira edição (2013), da Expressão Popular. E em terceiro lugar, valorizar e identificar o feminismo como uma perspectiva e um processo de luta inovadores e necessários, em um ambiente acadêmico, social e cultural absolutamente hostil, a despeito das ambiguidades do texto e da nota preliminar.

Buscando situar a posição das mulheres na sociedade brasileira, Heleieth também debatia com a produção acadêmica e o pensamento da esquerda que naquele período se dedicavam a compreender e interpretar a dinâmica do desenvolvimento capitalista no Brasil (SAFFIOTI, 2011SAFFIOTI, Heleieth. “Heleieth Saffioti por ela mesma: antecedentes de A mulher na sociedade de classes”. [Entrevista cedida a] Renata Gonçalves e Carolina Branco. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 27, p. 70-81, 2º sem. 2011b. (Dossiê Um ano sem Heleieth Saffioti).b) . É explícito o diálogo com os debates sobre o desenvolvimento, as polêmicas sobre a relação econômica do Brasil e da América Latina no contexto internacional. Importava situar a posição das mulheres dentro do capitalismo dependente. Nesse sentido, a obra vai dialogar e questionar o pensamento sociológico da época ao introduzir ali um elemento ausente na análise dos autores que se destacavam no período: como compreender a situação das mulheres, com toda a especificidade de sua inserção na sociedade e no mundo do trabalho.

O aspecto que mais chama atenção nesse primeiro livro e que sustenta a reivindicação do pioneirismo da elaboração de Heleieth Saffioti nos debates do feminismo no Brasil é a percepção de que o sexo enquanto categoria social e também a raça se articulam de maneira estrutural com as relações de classe na dinâmica da desigualdade social. Um fio condutor do seu pensamento que só será, efetivamente, amadurecido a partir da segunda metade dos anos 1980.

Na retomada do feminismo dos anos 1960 e 1970, diversas perguntas despontavam nos debates e embates do feminismo com a esquerda. Eram muitas perguntas a serem feitas nessa busca por compreender a situação das mulheres nas sociedades de classes em uma perspectiva de mudança social, não apenas do ponto de vista teórico, mas também no que era experienciado entre militantes, em um ambiente onde não faltavam também embates vividos pelas mulheres dentro das organizações de esquerda, nos movimentos sociais e políticos e na intelectualidade do campo progressista (Natália Pietra MÉNDEZ, 2008MÉNDEZ, Natalia Pietra. Com a palavra, o segundo sexo: percursos do pensamento intelectual feminista no Brasil dos anos 1960. 2008. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.).3 3 Ainda era uma época em que praticamente não havia questionamento sistemático ao machismo. Não custa lembrarmos a reação grosseira, misógina e retrógrada do Pasquim quando da visita de Betty Friedan ao Brasil, isso já em 1971. Assim como Heleieth Saffioti, as também pioneiras Carmen da Silva e Rose Marie Muraro ressaltam a dificuldade de se identificarem como feministas antes da segunda metade da década de 1970, tal era o grau de desqualificação e agressividade que predominava (MÉNDEZ, 2008).

No Brasil, o momento em que o livro foi redigido e publicado é o período de luta contra a ditadura, com uma forte repressão sobre as organizações de esquerda e sobre qualquer proposta de mobilização social. É, ao mesmo tempo, um momento de uma inquietação permanente nas correntes de esquerda, forçando brechas nas universidades para se ter acesso ao pensamento socialista, à elaboração marxista e aos debates críticos existentes na América Latina e em outras partes do mundo. Se a década de 1960, desde seu início, é marcada pelas tensões e divergências estratégicas nos grupos de esquerda no Brasil, em ruptura com a forte hegemonia do Partido Comunista Brasileiro (PCB) até então, o debate teórico não era menos tenso: estava em jogo explicitar os caminhos da almejada revolução no Brasil, as estratégias em relação às distintas camadas sociais e, principalmente, como enfrentar a ditadura. E é no bojo desses debates e disputas políticas que vai se formar, em sua maioria, a militância das mulheres que vão pensar e conformar o feminismo no Brasil.

Em mais ou menos uma década e meia, da segunda metade dos anos 1960 até início dos anos 1980, foi intenso o debate sobre os caminhos da esquerda e do socialismo, os descaminhos dos processos revolucionários corroídos pelo estalinismo, o surgimento de novos movimentos sociais que destacam sujeitos para além da classe trabalhadora industrial e uma pressão das mulheres que se mobilizam em movimento com as novas perguntas trazidas pelo feminismo, obrigando a esquerda, em suas distintas vertentes, a se repensar.

A experiência política, o acesso à produção feminista e ao debate crítico sobre o pensamento marxista e as experiências socialistas serão bastante distintos para, por um lado, as militantes que ficaram no Brasil durante todo esse período, e se colocavam pessoalmente na tarefa de construir o movimento social e as forças de esquerda no país ainda sob a ditadura militar e, por outro lado, as militantes que experimentaram o feminismo no exílio, grande parte na França, vivendo outra dinâmica de movimento social, de rebeldia, de contato com leituras e diferentes correntes do feminismo. Experiências que geraram conflitos no retorno das exiladas e que marcam o processo de formação do feminismo entre nós - ver em particular Maira Abreu (2014ABREU, Maira. Feminismo no exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-americano de Mulheres em Paris. São Paulo: Alameda, 2014.), Anette Goldberg (1989GOLDBERG, Anette. “Feminismo no Brasil contemporâneo: o percurso intelectual de um ideário político”. BIB: Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 28, p. 42-70, 2º sem. 1989. Disponível em Disponível em https://www.anpocs.com/index.php/bib-pt/bib-28/409-feminismo-no-brasil-contemporaneo-o-percurso-intelectual-de-um-ideario-politico/file . Acesso em: 26/04/2021.
https://www.anpocs.com/index.php/bib-pt/...
) e Cíntia Sarti (1988SARTI, Cíntia. “Feminismo no Brasil: uma trajetória particular”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 64, p. 38-47, fev. 1988.). Mas o que importa destacar aqui é o fato de que o feminismo no Brasil, nos diferentes grupos que estiveram em sua origem, foi fortemente influenciado pelo ambiente, pelos debates e pelas tensões com a esquerda.

O marxismo como referencial político e teórico para compreender as relações de desigualdade, alimentando a perspectiva socialista de mudança, estava presente no movimento de mulheres que se formava no Brasil nos anos 1970. A partir desse referencial teórico algumas perguntas ganhavam destaque: qual o papel do trabalho na relação dos indivíduos com o mundo, com sua construção social? Como explicar o trabalho doméstico, sua relação com a família, com a exploração econômica, dada a sua posição externa à dinâmica de mercantilização do capitalismo? Qual a relação entre produção e reprodução? Como pensar a posição das mulheres na teoria das classes sociais?

Vale a provocação: que pensadora ou militante social viveu o ressurgimento do feminismo nos anos 1960-1970 a partir de uma perspectiva de esquerda e não se viu, em momentos distintos do debate feminista, desafiada por essas dúvidas? E outras mais que o debate com o marxismo exige, e pelos quais A mulher na sociedade de classes transita ou tangencia sem se deter (como o valor do trabalho doméstico tendo em vista a teoria do valor, a produção de mais-valia e a relação dos homens com o trabalho das mulheres etc.).

Havia uma nova militância feminista em vários países, forjando um amplo debate que, no interior ou em diálogo em especial com a chamada ‘Nova Esquerda’, mas não apenas, buscava interpretar a desigualdade e a opressão das mulheres, interrogando e tensionando os limites da teoria marxista clássica. É impossível não ver os vínculos dessa relação entre marxismo e o feminismo em formação também no Brasil. E isso ocorria para além das militantes pertencentes a organizações políticas. Alguns exemplos explicitam essa relação. Em depoimento sobre sua atuação nos anos 1970, várias das militantes que, em São Paulo, formaram dois dos primeiros jornais do movimento de mulheres no Brasil, Mulherio e Brasil Mulher, relatam a tentativa de buscar as referências marxistas para discutir a desigualdade entre mulheres e homens (Amelinha TELES; Rosalina Santa Cruz LEITE, 2013TELES, Amelinha; LEITE, Rosalina Santa Cruz. Da guerrilha à imprensa feminista: a construção do feminismo pós-luta armada no Brasil (1975-1980). São Paulo: Intermeios, 2013.), uma referência teórica que se revela também nos artigos desses jornais (Maria Lygia Quartim de MORAES, 2012MORAES, Maria Lygia Quartim de. “Feminismo e política: dos anos 60 aos nossos dias”. Revista Estudos de Sociologia. Araraquara, v. 17, n. 32, p. 107-121, 2012.). Hildete Pereira, no Rio de Janeiro, na busca por referenciais marxistas, menciona seu entusiasmo ao se deparar com o livro de Heleieth Saffioti, que, ainda em 1976, o propôs como material de leitura coletiva no Centro da Mulher Brasileira (Rachel SOIHET, 2012SOIHET, Rachel. “Mulheres moldando esteticamente suas existências: feminismo como alavanca para uma sociedade mais justa”. Projeto História, São Paulo, n. 45, p. 29-60, dez. 2012.). Recuperando a trajetória feminista de grupos de exiladas, Maira Abreu menciona que

se não é possível afirmar que as militantes do Círculo [de Mulheres Brasileiras em Paris] se reivindicavam marxistas, os depoimentos sugerem que estas se consideravam pertencentes ao campo mais amplo da esquerda e que tinham, como referencial teórico, muitos autores que se filiavam ao marxismo, ainda que suas leituras não se restringissem a estes (ABREU, 2014ABREU, Maira. Feminismo no exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-americano de Mulheres em Paris. São Paulo: Alameda, 2014., p. 203).

Já nos últimos anos da década de 1970, a referência marxista e socialista marca a produção feminista do jornal de esquerda alternativo Em tempo.

Essa atmosfera ampla de referência de esquerda, e grande parte com influência marxista, não significava, entretanto, a ausência de polêmicas sobre suas interpretações, sobre sua adequação ou não para compreender a desigualdade entre mulheres e homens, e para apreender os conflitos que o feminismo colocava em primeiro plano.

Subversão dentro das regras, dentro do cânone marxista

No livro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, Heleieth Saffioti insiste e retoma reiteradamente que seu objetivo é compreender a posição das mulheres nos marcos do “modo de produção capitalista” e explicar como “a elaboração social do fator natural sexo” atua de forma a colocar as mulheres em condições diferenciadas dos homens na dinâmica capitalista. É com foco nessa dinâmica que vai buscar os mecanismos que fazem com que fatores considerados externos à economia ou à organização da produção, como sexo e raça, sejam absorvidos como elementos de exploração. De forma mais consistente, sexo, como categoria social, mas também raça, são vistos como elementos que tensionam o capitalismo como modo de produção e as relações de produção e de classe, em uma abordagem bem distante ainda da elaboração do final da década de 1980, quando Heleieth Saffioti começa a trabalhar com a formulação de “nó” que dinamiza as relações sociais (SAFFIOTI, 2004SAFFIOTI, Heleieth. “Diferença ou indiferença: gênero, raça/etnia, classe social”. In: Prefeitura do Município de São Paulo, Coordenadoria Especial da Mulher. GODINHO, Tatau; SILVEIRA, Maria Lúcia da (Orgs.). Políticas públicas e igualdade de gênero. São Paulo, 2004 [1995]. p. 35-42.). Desde o final dos anos 1970, essa será uma questão central para a elaboração feminista, uma preocupação que mobiliza outras pensadoras, como Danièle KERGOAT (2010KERGOAT, Danièle. “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”. Novos Estudos Cebrap, n. 86, p. 93-103, mar. 2010. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000100005 . Acesso em 10/10/2020.
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, 2014) que vai sintetizá-la como dinâmica de consubstancialidade das relações de classe e relações sociais de sexo e logo de raça. Esse também é o núcleo do debate sobre interseccionalidade de gênero, raça e classe em voga a partir dos anos 1980 (Kimberlé CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 1º sem. 2002.).4 4 Já no final dos anos 1970, a pesquisadora feminista francesa Danièle Kergoat começou a elaborar sobre a articulação das relações sociais, formulando essa problemática com a elaboração do conceito de consubstancialidade das relações sociais. Em um primeiro momento, a ênfase foi sobre a articulação das relações sociais de sexo e classe social. Seu pensamento vai ganhando um contorno mais complexo com a dimensão de classe social. Insistindo em que é fundamental discutir em termos de relações sociais, mais do que posições na sociedade, Kergoat afirma que existem três relações sociais fundamentais que se imbricam - as de sexo, as de raça e as de classe - e que são consubstanciais e coextensivas. Circulando mais no âmbito da sociologia francesa e do trabalho, bem como dos estudos feministas nos países de língua francesa, entre nós, essa conceituação e análises têm sido difundidas a partir, sobretudo, do pensamento de Danièle Kergoat e Helena Hirata, que utilizam mais essa categoria analítica. Ver, em particular, Kergoat (2010). Já o conceito de interseccionalidade foi sintetizado, pela primeira vez, para designar a interdependência de relações de poder de gênero, raça e classe, em um texto da jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, em 1989. O conceito ganhou força e grande divulgação para descrever a articulação das desigualdades de raça, de gênero e de classe, a partir de preferências teóricas distintas e se nutrindo de tradições sociológicas e de movimento social também distintos. Em 2002, Crenshaw publicou um artigo no qual define interseccionalidade, e sua tradução foi publicada no mesmo ano pela Revista Estudos Feministas. Não cabe aqui aprofundar a discussão sobre as distinções e aproximações entre essas três abordagens, sem dúvida um debate importante do feminismo entre nós. O que queremos, principalmente, enfatizar são dois aspectos presentes no primeiro livro de Heleieth Saffioti. Por um lado, a percepção aguda da especificidade das desigualdades de sexo como categoria social e da questão racial na formação histórica e social brasileira com a cobrança de que este seja um elemento estrutural de análise no debate sobre o desenvolvimento nacional. Por outro lado, as indagações que perpassam todo o texto para encontrar um marco explicativo global para a desigualdade entre mulheres e homens.

Buscando desvendar o histórico da desigualdade entre os sexos, o livro faz um rápido percurso pelo pensamento socialista do século XIX (Fourier, Marx, Engels, Lafargue, Bebel) com críticas às limitações dessa elaboração, entre outros aspectos o que considera economicismo de Engels, que não percebe as relações de dominação, e as lacunas advindas de não haverem se detido na análise da família. Nesse mesmo sentido, destaca limites na reorganização mencionando as sociedades chamadas então socialistas, com exemplos basicamente da então União Soviética, que indicam que é preciso muito mais do que a resolução dos problemas econômicos para romper com a desigualdade.

Limites e contradições das elaborações do marxismo clássico estão apontados. Mas não basta ressaltar contradições, é preciso buscar uma compreensão da situação das mulheres que vislumbre caminhos para romper com a desigualdade. Com os limites da bibliografia a que teve acesso, a autora vai buscar uma interpretação a partir da história do pensamento e do movimento socialista em suas convergências e divergências com o feminismo. Em um primeiro momento, a partir do processo histórico de formação do capitalismo e as manifestações do movimento socialista e do movimento feminista, no século XIX basicamente, até o período da Primeira Guerra Mundial. E após passar por um histórico da situação das mulheres na sociedade brasileira, buscar explicar os mecanismos de manutenção e consolidação da desigualdade na atualidade, isto é, século XX até os anos 1960, no bloco que denomina “a mística feminina na era da ciência”.

Vale chamar atenção para um grande bloco que Heleieth Saffioti identifica e chama de “a solução feminista”, em que se discute tanto o pensamento das militantes e pensadoras socialistas como das correntes liberais do feminismo: o debate que percorreu o feminismo socialista desde a metade do século XIX até os inícios do século XX e também o debate feminista caracterizado como feminismo burguês ou pequeno burguês, centrado no sufragismo e direitos civis. Ainda que ressaltando as divergências de abordagem política e teórica dos dois campos do feminismo e os limites no enfrentamento da desigualdade percorridos pela luta das mulheres nesse período, percebemos uma ambivalência positiva, com o texto valorizando o feminismo em suas distintas perspectivas, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade de um feminismo vinculado à luta anticapitalista. A certa altura, em defesa do feminismo, afirma mesmo que “o feminismo pequeno-burguês não é na verdade, um feminismo”, uma vez que ajuda a dissimular as contradições internas das sociedades de classes (SAFFIOTI, 2013SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013 [1969]., p. 194).

Chamar atenção para esse aspecto é importante, pois explicita uma inquietação que perpassa todo o livro: a necessidade de explicar a desigualdade das relações sociais de sexo, entre categorias de sexo, e sua relação com a dominação de classes. E a dificuldade em sintetizar uma posição.

A interlocução e as referências do debate feminista eram extremamente escassas no momento da elaboração de A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Em entrevistas, Heleieth Saffioti relembra que, pouco mais do que o contato com O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, com Alba Myrdal, Viola Klein, Evelyne Sullerot, com a antropóloga Margaret Mead, naquele momento específico, se sentiu movida pela leitura de Betty Friedan, A mística feminina. Trazido por Florestan Fernandes, o texto de Juliet Mitchell, Mulheres: a revolução mais longa, só chegou a suas mãos em dezembro de 1966, quando seu texto já estava em fase final de elaboração (SAFFIOTI, 2008SAFFIOTI, Heleieth. “Entrevista com Heleieth Saffioti”. [Entrevista cedida a] Natalia Pietra Méndez. Anexo de Com a palavra, o segundo sexo: percursos do pensamento intelectual feminista no Brasil dos anos 1960. 2008. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em História) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2008.). O impacto da leitura de Betty Friedan, perceptível em todo o texto, é ainda mais evidente na análise sobre o pensamento, a ideologia e as práticas de socialização das mulheres para uma posição subordinada, caracterizada como uma “mística feminina”, reproduzida na imprensa, nas religiões, nas dinâmicas familiares, no campo dos estudos, com destaque dado à antropologia e à psicanálise.

Assim, ainda que com a brilhante percepção de que é indispensável discutir a sociedade brasileira, em particular, e as sociedades em geral, analisando em conjunto as desigualdades entre os sexos e as desigualdades raciais, a análise reitera a leitura da realidade conduzida por uma interpretação em que prevalece uma rígida hierarquia explicitada como sendo “as relações entre os sexos relações subalternas às de classe, é por estas que aquelas se definem” (SAFFIOTI, 2013SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013 [1969]., p. 167). A autora deixa transparecer a contradição resultante dessa hierarquização rígida em vários momentos no livro, porém o texto, afinal, reitera uma perspectiva alicerçada na compreensão de absoluta dependência das contradições das relações sociais de sexo subordinadas à classe.

Dentro do marco global de esquerda, do campo do feminismo socialista, e apontando as contradições da situação das mulheres nas sociedades de classes, a tarefa de inserir a desigualdade entre mulheres e homens na teoria marxista exigia um diálogo aberto com esse pensamento, a ponto de ousar questionar conceitos básicos de sua interpretação da dinâmica capitalista e das relações de classe. Um desafio já em gestação no pensamento feminista, no qual as feministas de esquerda vão se aprofundar alguns anos depois.

Entre acordes dissonantes: um diálogo incompleto

A mulher na sociedade de classes: mito e realidade teve o mérito e a ousadia de propor a discussão sobre a situação das mulheres como parte constitutiva da análise das sociedades capitalistas e, em especial, da formação social brasileira, foi pioneiro no Brasil em sugerir a integração estrutural das relações sociais de classe, de sexo e étnico-raciais nessa análise, e buscou abarcar uma análise marxista sobre a opressão das mulheres. Coloca-se, assim, como um marco importante da elaboração sociológica, acadêmica e do pensamento feminista no Brasil.

No marco das mudanças no quadro político nacional, a partir dos anos 1975-1976, com as mobilizações para a anistia política, as possibilidades de retorno dos exilados, uma crescente presença dos movimentos sociais e, pouco tempo depois, podendo-se vislumbrar uma reorganização político-partidária no país, cresce a organização das mulheres, vão surgindo grupos feministas e o debate político e teórico também vai se apurando.

As análises sobre o mundo do trabalho, as formas de inserção das mulheres no processo de desenvolvimento econômico e, assim, a compreensão sobre as dinâmicas de exploração e apropriação diferenciada do trabalho das mulheres colocam no centro da questão a compreensão da interação entre as relações sociais de sexo e as relações de classe. O tema do trabalho marcou fortemente esse período de reorganização do movimento no Brasil. E é, também, o tema central dos estudos de Heleieth Saffioti, compondo uma primeira fase até o final dos anos 1980; uma segunda fase terá como foco as discussões sobre a violência (Renata GONÇALVES, 2011GONÇALVES, Renata. “O feminismo marxista de Heleieth Saffioti”. Revista Lutas Sociais, São Paulo, n. 27, p. 119-131, 2º sem. 2011.).

Na reorganização dos movimentos sociais, tendo o chamado novo sindicalismo como ator fundamental na luta política, em uma conjuntura de reconfiguração partidária da esquerda, de uma esquerda que queria se reinventar, da disputa por novos projetos políticos para o país, e de uma militância feminista em sua maioria identificada com as posições de esquerda, o tema das relações econômicas e do trabalho, ainda que extremamente importante do ponto de vista da elaboração, era muito mais do que uma abordagem teórica: estava no centro do embate político cotidiano das militantes feministas que estavam envolvidas nas organizações sociais e partidárias (Tatau GODINHO, 1998GODINHO, Tatau. “O PT e o feminismo”. In: BORBA, Ângela; FARIA, Nalu; GODINHO, Tatau (Orgs.). Mulher e política: gênero e feminismo no Partido dos Trabalhadores. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998. p. 15-32.).

Nessa dinâmica combinada de elaboração feminista e ação política, posições vão se delineando e compondo campos mais ou menos fluidos de debate e de intervenção política. Assim, sem diminuir a importância do pioneirismo de sua elaboração, destacar alguns pontos de dissonância de uma trajetória intelectual tão rica como a de Heleieth Saffioti na sua relação com o feminismo como pensamento político e como luta social talvez nos ajude a compreender melhor alguns limites no alcance e divulgação de seus textos dessa primeira fase.

Em A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, Heleieth Saffioti trabalha com duas teses que manifestavam uma forte dissonância com outras vertentes dos estudos sobre a situação das mulheres no capitalismo, considerando-se em especial esse primeiro período até meados dos anos 1980. Tais teses serão recorrentes em seus textos da época. Em primeiro lugar, e é o que apresenta como tese central do seu livro, a percepção de que o desenvolvimento capitalista “expele” a força de trabalho feminina do trabalho “extralar”, ou dito de outra forma, que “as possibilidades de integração da mulher na sociedade variam em razão inversa do grau de desenvolvimento das forças produtivas” (SAFFIOTI, 2013SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013 [1969]., p. 64), argumento que, em certa medida, ofuscou a divergência interessante já anunciada por Heleieth com as teorias da modernização, e limitou o alcance do seu livro diante da percepção sobre a presença das mulheres no mundo do trabalho que se desenvolveu no feminismo logo em seguida. A segunda questão refere-se à tensão entre as relações de classe e as categorias de sexo afirmando uma rígida hierarquia ainda dependente da elaboração marxista tradicional de determinações essenciais, questão que será reelaborada pela autora a partir da segunda metade da década de 1980. Outras dissonâncias, de alguma forma, talvez respondam a uma dimensão mais da dinâmica política que das análises teóricas. No geral de seus textos da época é também possível imaginar que o uso tradicional de categorias de análise do corpus marxista nessa primeira fase, sob forte questionamento no pensamento feminista, tenha restringido a recepção de seus trabalhos.5 5 De maneira geral, a edição de livros no Brasil é bastante limitada e, nesse sentido, não pode ser encarada como elemento definidor de uma influência, mas nos ajuda a pensar sobre o assunto. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade teve sua segunda edição em 1976 (pela editora Vozes) e só foi novamente publicado em 2013 (pela Expressão Popular). Os demais livros sobre o assunto trabalho não tiveram reedição, a saber: Emprego doméstico e capitalismo (1978, Vozes); Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher (1981, Hucitec); Mulher brasileira: opressão e exploração (1984, Achiamé). Ao mesmo tempo, sua elaboração manteve um distanciamento cauteloso em relação às intensas elaborações sobre a divisão sexual do trabalho tão presentes no campo do feminismo materialista e socialista (SAFFIOTI, 1984SAFFIOTI, Heleieth. Mulher brasileira: opressão e exploração. Rio de Janeiro: Achiamé, 1984., 1992b, 1992SAFFIOTI, Heleieth. “Reminiscências, releituras, reconceituações”. Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, ano 0, n. 0, p. 97-103, 2º sem. 1992c.c) e que alimentaram as elaborações e a pauta das militantes mulheres no campo do sindicalismo combativo. Resulta que, mesmo se dedicando aos temas do trabalho, o fato é que a obra de Heleieth Saffioti se manteve distante das elaborações sobre a divisão sexual, as relações de trabalho e as desigualdades entre as trabalhadoras e os trabalhadores movidas pelas demandas do cotidiano das lutas que se desenvolviam no intenso processo de organização das mulheres trabalhadoras no Brasil nesse período, apartamento este decorrente também das conformações de campos políticos no feminismo brasileiro.

Cada uma das questões mencionadas acima traz desdobramentos que influenciavam fortemente o cotidiano do debate feminista e, também, das organizações de mulheres no Brasil desde meados dos anos 1970. Estão imbricadas, nessas questões, estratégias voltadas a enfatizar a indispensável autonomia econômica das mulheres, enfrentando as contradições da desigualdade das formas de exploração capitalista sobre mulheres e homens; trazer à tona a forma de perceber a dinâmica dessa desigualdade para organizar a pauta das lutas sindicais e populares; ampliar o conceito de trabalho (Andrée KARTCHEVSKY-BULPORT et al., 1987KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et al. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.; KERGOAT, 1987KERGOAT, Danièle. “Em defesa de uma sociologia das relações sociais: da análise crítica das categorias dominantes à elaboração de uma nova conceituação”. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et al. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 79-93.), para dar conta do trabalho doméstico realizado no seio das famílias e garantir que as estatísticas registrassem a imensa gama do trabalho não computado das mulheres; mas também questionar profundamente o conflito presente nas relações sociais de sexo; e explicitar, sem romper com uma análise das contradições de classe, que “os homens se beneficiam com a opressão das mulheres” (Ivonne TAYLOR; Judy WATSON, 1983TAYLOR, Ivonne; WATSON, Judy. “Os homens se beneficiam com a opressão das mulheres?”. Revista Perspectiva Internacional, n. 7, p. 22-24, nov./dez. 1983.) ou, na expressão de Frédérique Vinteuil (1989VINTEUIL, Frédérique. Marxismo e feminismo. Tradução Cadernos Democracia Socialista. São Paulo: Editora Aparte, 1989. (Cadernos Democracia Socialista, v. 8).), se contentam com “migalhas de mais-valia” para manter posições de dominação. Assim, repensar conceitos e atualizar o marxismo era uma exigência.6 6 Com o gosto da polêmica que a caracterizava, já em 1984 é a própria Heleieth Saffioti quem registra o quanto os debates polarizavam, ao afirmar que “uma das maneiras mais eficazes de despertar a ira das feministas sem formação marxista é qualificar de improdutivo o trabalho doméstico, quer desempenhado gratuitamente, quer remuneradamente” (SAFFIOTI, 1984, p. 13). Na verdade, na maior parte das vezes, não se tratava de não ter formação marxista, mas de discordância sobre a adequação dos conceitos ou sobre a necessidade de sua reformulação. Compreender a dinâmica das relações de classe, das categorias de sexo e raça/etnia, assim como os temas relacionados ao trabalho, sua relação com o desenvolvimento capitalista, e as novas dinâmicas de exploração e da divisão sexual do trabalho redimensionadas pelo neoliberalismo recolocam novas interrogações e desafios e permanecem no centro das preocupações e das mobilizações de um campo de esquerda do feminismo no Brasil.

A partir da segunda metade dos anos 1980, além de se dedicar à temática da violência, Heleieth Saffioti orienta suas pesquisas e sua elaboração para o debate sobre o conceito de gênero, a imbricação das relações sociais, sem se dedicar mais especificamente aos temas do mundo do trabalho. No desenvolvimento de sua linha de pensamento marxista, ela opta por concentrar seus estudos na análise da constituição sócio-histórica das relações de gênero em simbiose com as relações de classe e raça/etnia (SAFFIOTI, 1992SAFFIOTI, Heleieth. “Rearticulando gênero e classe social”. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992b, p. 183-215.b). Preocupa-se em explicar como a organização social de gênero propicia que homens e mulheres vivenciem diferencialmente a experiência de gênero, mesmo pertencendo à mesma classe social. No texto escrito em 1992, “Rearticulando gênero e classe social”, a autora reforça a defesa de que há uma simbiose entre patriarcado, capitalismo e racismo. A partir do diálogo com Edward P. Thompson, num excerto do texto a autora reflete sobre como uma leitura feminista socialista se aplicaria à simultaneidade da constituição histórica das relações entre homens e mulheres e das relações de classe em seus antagonismos, na experiência de luta. E nessa trilha interpela as discussões apresentadas por Danièle Combes e Monique Haicault para pensar as dinâmicas das contradições de classe e das categorias de sexo:

Combes e Haicault (1987COMBES, Danièle; HAICAULT, Monique. “Produção e reprodução: relações sociais de sexos e de classes”. In: KARTCHEVSKY-BULPORT, Andrée et al. O sexo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 23-44.) cunharam a expressão “aliança desigual dos sexos na luta de classes”. Cabe aqui perguntar sobre a aliança desigual das classes na luta de gênero. Mais do que especulação, isto significa pensar em diferentes estratégias de luta. Como mostram certos movimentos sociais realizados predominantemente por mulheres, mas com diversos tipos de colaboração de homens - como foi o caso da luta por creches em São Paulo - tais alianças são possíveis entre distintas frações da mesma classe social e mesmo entre diferentes classes, se o analista não se limitar ao esquema marxista simplificado. (SAFFIOTI, 1992SAFFIOTI, Heleieth. “Rearticulando gênero e classe social”. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992b, p. 183-215.b, p. 199).

Após um debate em que cita o significativo texto de E. P. Thompson, adere à elaboração do autor:

Nenhuma categoria histórica foi mais incompreendida, atormentada, transfixada e des-historicizada do que a categoria de classe social; uma formação histórica autodefinidora, que homens e mulheres elaboram a partir de sua própria experiência de luta, foi reduzida a uma categoria estática, ou a um efeito de estrutura ulterior, das quais os homens não são os autores mas os vetores. (E. P. THOMPSON, 1981, p. 57 apud SAFIOTTI, 1992b, p. 200).

Desse modo, Heleieth Saffioti apresenta uma releitura das elaborações provenientes de seu trabalho pioneiro A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, para além da visão das classes, baseada unicamente na força de trabalho na produção, justificando sua fidelidade ao campo marxista:

Nesse contexto, não se pode fugir da discussão, ainda que ligeira, da determinação. Recorre-se mais uma vez a E. P. Thompson (1981, p. 176) que define ‘determinar’ em seu sentido de ‘estabelecer limites’, ‘exercer pressões’ e de definir leis de ‘movimento’ como lógicas de ‘processo’. (SAFFIOTI, 1992SAFFIOTI, Heleieth. “Rearticulando gênero e classe social”. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992b, p. 183-215.b, p. 200).

Desse modo, defende que é mais rico pensar a “produção e a reprodução da vida real”, remontando a Marx e Engels da Contribuição à crítica da economia política (SAFFIOTI, 1992SAFFIOTI, Heleieth. “Rearticulando gênero e classe social”. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992b, p. 183-215.b, p. 200).

Um novo campo de luta: enfrentar a violência

As denúncias da violência sexista são um marco das mobilizações das mulheres após os anos 1960. Ao aprofundar a compreensão sobre as relações de dominação e desigualdade, sobre os mecanismos de poder presentes nas relações sociais de sexo, o feminismo como teoria e prática passa a colocar o enfrentamento à violência como uma de suas batalhas/questões centrais.

Heleieth Saffioti faz questão de enfatizar que a violência contra as mulheres deve ser entendida como violência estrutural e não fruto de relações interpessoais no âmbito da família. Argumenta, ainda, que seu entendimento do campo marxista a credencia para a tarefa de análise desse tipo de violência que atinge as mulheres e insiste na necessidade de ações que incorporem o potencial de resistência das mulheres que tão frequentemente aparece como fragmentado. Em trabalho com Sueli Almeida vemos:

Hoje, no Brasil, seguramente, não se pode falar em transformações sociais sem que se pense no estabelecimento de alianças entre frações de classe, categorias e grupos sociais, que sofrem discriminações de diversos matizes, entre os quais se inclui um imenso contingente de mulheres que vêm se organizando em movimentos feministas, associações de bairro, partidos políticos, sindicatos, centrais sindicais, enfim, nas mais variadas frentes de luta. Mas é preciso também, que se esteja alerta e se saibam perceber as mulheres que vêm lutando, embora de forma não organizada, contra uma dominação que vai além das suas condições de classe e raça/etnia, mas que passa necessariamente por elas, e reforçar os indicativos, por menores que possam parecer, de uma possível consciência crítica, de forma a buscar uma ampliação, através da organização, das forças que estão construindo a história. Mulheres que, embora não façam parte de um movimento estruturado, não estão fora da luta das mulheres da sociedade brasileira; na realidade, com seus relatos individuais, revelam a dificuldade de se constituírem enquanto movimento, mas, ao mesmo tempo, mostram formas específicas e particulares de resistência, deixando entrever, assim, o seu potencial de luta. (SAFFIOTI; Sueli ALMEIDA, 1995SAFFIOTI, Heleieth; ALMEIDA, Sueli Souza de. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 1995., p. 188).

A análise é concluída afirmando a importância da luta para trazer elementos novos à consciência e construir relações novas, rejeitando as leituras marxistas estáticas e defendendo o estudo e a luta contra a violência que atinge as mulheres como prioridade:

Considera-se, pois, importante reter duas questões, que merecem aprofundamento, quais sejam: há, pelo menos, duas dimensões possíveis e necessariamente articuladas das lutas das mulheres - sua organização para reivindicar a criação de condições concretas que lhes permitam romper com toda forma de tutela, que reforçam e reproduzem sua dependência, aliada à construção de um movimento pela difusão de um novo senso comum, uma nova cultura, na concepção gramsciana, capaz de contemplar relações de gênero igualitárias (SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995SAFFIOTI, Heleieth; ALMEIDA, Sueli Souza de. Violência de gênero: poder e impotência. Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 1995., p. 189).

No enfrentamento da violência sobre as mulheres, retirá-la da invisibilidade e da negação foi uma primeira grande batalha, à qual vão se agregando desafios: romper com o silêncio sobre a violência doméstica; inverter a lógica do constrangimento e da vergonha que pesavam (e ainda pesam) sobre as mulheres agredidas; repensar conceitos, vocabulário e formas de interpretação; propor instrumentos de resistência e solidariedade entre as mulheres; legitimar a denúncia e a voz das mulheres; exigir uma ação pública do ponto de vista da legislação e das políticas sociais; cobrar a mudança de padrões na atenção às mulheres nas distintas áreas dos serviços públicos. Durante duas décadas esse foi campo de atuação prioritário de Heleieth Saffioti, desde o final da década de 1980 até 2010.7 7 De acordo com o currículo disponível na Plataforma Lattes, dos 25 artigos de Heleieth Saffioti em periódicos registrados a partir de 1987 até 2009, 17 relacionam-se ao tema da violência. São elencados, ainda, 19 capítulos/artigos sobre o assunto, de um total de 33 publicados em livros, entre 1989 e 2009. Nos anos anteriores (de 1963 a 1985), registram-se 34 artigos em periódicos, nem um sobre violência.

Heleieth nos conta que foi sua atuação como professora que a levou a se envolver inicialmente com a temática da violência sofrida pelas mulheres já em 1983, a partir da solicitação de uma aluna para que orientasse sua tese sobre o tema (SAFFIOTI, 2011SAFFIOTI, Heleieth. “Entrevista com Heleieth Saffioti”. [Entrevista cedida a] Juliana Cavilha Mendes e Simone Becker. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 141-165, jan./abr. 2011a.a). Durante um curto período, o debate sobre desenvolvimento, economia e trabalho ainda ocuparam a maior parte do seu tempo.

A dedicação ao tema da violência levou Heleieth Saffioti a muitos caminhos de atuação. Na década de 1980 e 1990, setores do movimento de mulheres no Brasil priorizaram enfaticamente os temas de violência e saúde. Esse momento possibilitou o vínculo entre a elaboração teórica acadêmica e a implantação de políticas de atenção às mulheres, em especial das delegacias de defesa da mulher. Em sua experiência, Heleieth destaca um projeto desenvolvido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a partir de 1988, no qual colaborou já na primeira fase, passando a coordenar o grupo de pesquisa em seu segundo momento (SAFFIOTI, 1992SAFFIOTI, Heleieth. “Prefácio ou Post-fácio?”. In: VINAGRE SILVA, Marlise. Violência contra a mulher: quem mete a colher? São Paulo: Cortez, 1992a.a). A partir de então, sua atuação combinará permanentemente as análises da violência de gênero com a construção de políticas públicas nessa área. Desde organizar, assessorar e ministrar cursos para servidores da área da justiça e da segurança pública, participar de grupos de trabalho e pesquisas avaliando a implantação de políticas, Heleieth Saffioti passou a ser uma das pesquisadoras e militantes feministas mais solicitadas a discutir questões relacionadas à violência.

A preocupação de Heleieth Saffioti com a ação do Estado e as políticas públicas de enfrentamento às desigualdades de gênero não era novidade. É ela mesma que nos conta seu envolvimento com a proposta do Conselho Estadual da Condição Feminina (CECF), primeiro organismo desse tipo criado no Brasil, e a proposta de criação das delegacias especializadas para atendimento à violência:

Mulheres do PMDB, partido ao qual pertencia Montoro, apresentaram-lhe algumas reivindicações em 1982, durante a campanha eleitoral. Eleito governador em novembro de 1982 e tendo assumido o poder a 15/03/1983, Montoro cria o CECF a 4 de abril do mesmo ano. Uma comissão de cinco mulheres é nomeada pela organizar o CECF (SAFFIOTI, 1994SAFFIOTI, Heleieth. “Violência de gênero no Brasil contemporâneo”. In: SAFFIOTI, Heleieth; MUÑOZ-VARGAS, Mônica (Orgs.). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, Nipas; Brasília-DF: Unicef, 1994. p. 151-182., p. 173).

Entre as cinco estava Heleieth Saffioti. Nos anos 1990, Heleieth foi figura destacada na preparação e redação, sob coordenação do Ministério das Relações Exteriores, do documento oficial do governo brasileiro para a Conferência de Pequim (IV Conferência Mundial Sobre a Mulher), realizada em 1995.

O envolvimento com a temática da violência a levou a uma participação mais direta com as áreas de políticas públicas. É toda uma área que se desenvolveu nas décadas de 1990 e 2000 e que demandava pensar estratégias de organização dos serviços, formação e capacitação de profissionais, mudanças legislativas e levantamento de dados sobre uma questão até então praticamente ignorada como um problema social, além das indispensáveis mudanças legislativas e na jurisprudência. Heleieth Saffioti foi interlocutora recorrente em todos esses âmbitos.

Para pensar sobre o fenômeno da violência de gênero, Heleieth Saffioti recorreu às mais variadas fontes de discussão e elaboração no campo das ciências sociais em geral e do feminismo em particular (GONÇALVES, 2016GONÇALVES, Renata. “Heleieth Saffioti e o feminismo marxista”. Marxismo 21. [Apresentação sobre Heleieth Saffioti], 08/03/2016. Disponível em Disponível em https://marxismo21.org/heleieth-saffioti-marxismo-genero-e-feminismo/ . Acesso em 19/12/2019.
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). Afinal, as referências tradicionais da esquerda não eram suficientes ou eram mesmo inadequadas. Novas reflexões eram exigidas em um pensamento crítico que quisesse dar conta de um problema tão complexo como a violência exercida contra as mulheres. Declarando não abandonar a coerência com sua visão materialista, Heleieth Saffioti afirma que orienta sua discussão por uma postura que “tem como premissa a precedência das práticas sobre as ideias”, buscando interpretar como a violência é manifestação, “fundamentalmente, de estruturas de poder” (SAFFIOTI, 1994SAFFIOTI, Heleieth. “Violência de gênero no Brasil contemporâneo”. In: SAFFIOTI, Heleieth; MUÑOZ-VARGAS, Mônica (Orgs.). Mulher brasileira é assim. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, Nipas; Brasília-DF: Unicef, 1994. p. 151-182., p. 154).8 8 Ao longo do tempo, seus estudos atenuaram a forte presença de conceitos da psicanálise na busca de explicações sobre o fenômeno da violência. E, ao mesmo tempo, nos textos em que prevalecia a preocupação em tornar mais acessíveis temas complexos, e dando asas ao viés do gosto pela polêmica que a caracterizava, algumas das abordagens e expressões de contestação do machismo e da violência sexista neles encontrados são, na verdade, simplificadoras ou pouco explicativas. E, como parte constitutiva de seu pensamento, insiste que, o “fenômeno da violência de gênero é transversal à sociedade, ignorando fronteiras de classe social e de raça/etnia” (SAFFIOTI, 1994, p. 168), sendo fundamental destruir as representações sociais dominantes que, a partir de um viés de classe, ressaltam a violência como característica dos setores populares.

Sempre atenta para a necessidade de ações preventivas e mudanças globais nos padrões de comportamento e relações pessoais, ela se preocupava com o caráter educativo e a necessária atuação pública nos marcos legislativos mais gerais. Assim, ao analisar a violência contra crianças e adolescentes no Brasil, defende a necessária atuação do Estado nas situações de violência nas situações familiares, concluindo:

Não só a Constituição Federal é bastante democrática e protetora de menores. Isto também ocorre com o Estatuto da Criança e do Adolescente. O cumprimento rigoroso destes dois institutos legais traria muitos benefícios a meninas e meninos. Estes últimos teriam suas expectativas de vida ao nascer bastante aumentadas, na medida em que correriam menos riscos de ser assassinados seja por matadores assalariados, seja por um braço armado do Estado: a PM. Ademais seriam seguramente menos violentos, o que reduziria as desigualdades de gênero. As meninas, sendo criadas num ambiente de respeito ao seu sexo, certamente estariam mais capacitadas a colaborar na construção de relações amorosas igualitárias e mesmo a exigi-las. (SAFFIOTI, 1997SAFFIOTI, Heleieth. “No fio da navalha: violência contra crianças e adolescentes no Brasil atual”. In: MADEIRA, Felícia (Org.). Quem mandou nascer mulher? Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos; UNICEF, 1997. p. 135-211., p. 206).

E continua, insistindo no caráter coletivo das mudanças, com a participação dos sujeitos envolvidos:

A história ensina, todavia, que as transformações estruturais se realizam graças a pressões, reivindicações e outras formas de luta por uma divisão mais equitativa do poder. Trilhando este caminho, quer na micro quer na macropolítica, são exatamente os negros, as mulheres e os pobres em geral que apresentam maior potencial transformador. (SAFFIOTI, 1997SAFFIOTI, Heleieth. “No fio da navalha: violência contra crianças e adolescentes no Brasil atual”. In: MADEIRA, Felícia (Org.). Quem mandou nascer mulher? Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos; UNICEF, 1997. p. 135-211., p. 207).

Sem deixar de apontar a simultaneidade da luta pelas transformações das relações sociais de gênero, de classe e raça/etnia, Heleieth Saffioti inseriu essa ótica na luta contra a violência enfrentada pelas mulheres e pela igualdade de gênero, mostrando o alcance estrutural dessa questão e iluminando a imbricação dessas dimensões na realidade concreta.

Além disso, situa a violência contra as mulheres como resultado de uma “função patriarcal”, na qual os homens detêm o poder de determinar a conduta da categoria social mulheres:

recebendo autorização, ou pelo menos, tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio. Ainda que não haja nenhuma tentativa, por parte das vítimas potenciais de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais, a execução do projeto de exploração-dominação da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência. (SAFFIOTI, 2001SAFFIOTI, Heleieth. “Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero”. Cadernos Pagu, Unicamp, Campinas, SP, v. 16, p. 115-136, 2001., p. 115, grifo da autora).

Heleieth entende a exploração-dominação como um único processo de duas dimensões e insiste que o conceito pode e deve ser usado em qualquer um dos vetores (dominação-exploração ou exploração-dominação), porque sustenta que o processo de sujeição de uma categoria social apresenta as duas dimensões, tanto no domínio do político como do econômico (SAFFIOTI, 2001SAFFIOTI, Heleieth. “Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero”. Cadernos Pagu, Unicamp, Campinas, SP, v. 16, p. 115-136, 2001., p. 117). Apoiando-se em uma ampla gama de autores, das mais distintas vertentes, Heleieth tenta resolver alguns impasses dos debates sobre a violência de gênero presentes entre estudiosas feministas valendo-se da formulação de uma ordem patriarcal de gênero como terreno abrangente onde se situa a violência contra as mulheres. E toda vez que usou o conceito de gênero o fez como categoria substantiva, não apenas discursiva. A autora fundamenta-se em uma visão da realidade sempre em transformação (que ela nomeia in flux), portanto, histórica, centrada na “realidade complexa da imbricação de gênero, etnia e classe social” (SAFFIOTI, 2001, p. 131), na qual pode-se vislumbrar as mulheres com possibilidade de se tornarem sujeito de lutas.

Impressiona o engajamento de Heleieth Saffioti em toda essa dinâmica dos debates teóricos e sobre a política pública relacionada ao tema da violência aliada à compreensão da necessidade de dialogar, de se aproximar das mulheres como sujeito de transformação. Por assumir esse entendimento é que, além da frequente apresentação de trabalhos em congressos e seminários, da publicação de artigos, de ministrar cursos e dar orientações de caráter acadêmico, Heleieth Saffioti encontrava tempo e energia para atender aos inúmeros chamados para participação em assessorias e atividades de formação na área de políticas públicas e para colaborar com as discussões no movimento de mulheres, muito além dos setores de extração média e mais acadêmicos e intelectualizados com os quais convivia nos momentos anteriores. Também por sua projeção intelectual, por uma produção profícua de textos sobre o assunto, atendendo aos debates no movimento de mulheres e nas dinâmicas das políticas públicas de enfrentamento à violência, é possível dizer que se tornou a pensadora do feminismo brasileiro de maior destaque nesse tema desde o final dos anos 1980.

Articular relações sociais de sexo, de raça e de classe: desafio permanente

O desafio de compreender e elaborar novos instrumentos de análise que dessem conta da interação entre classe e as relações sociais de sexo, tão marcante no feminismo dos anos 1970, perde fôlego nas décadas seguintes. A forte investida da economia liberal, com a reestruturação e fragmentação das relações de trabalho, em um ambiente de ampliação de perdas políticas da esquerda a partir da segunda metade dos anos 1980, acompanha uma fragmentação do debate feminista então hegemônico no Brasil, e na América Latina, passando a prevalecer no movimento uma agenda por temas específicos, o diálogo com a ação institucional e uma dinâmica de atuação sugerida, em grande medida, pelas agências da Organização das Nações Unidas (ONU). A atuação feminista nas organizações de base popular e o investimento em um amplo movimento social de mulheres, que foi marca do feminismo brasileiro nos seus primeiros anos do final da ditadura (Sonia ALVAREZ, 1988ALVAREZ, Sonia. “Politizando as relações de gênero e engendrando a democracia”. In: STEPAN, Alfred (Org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 315-380.), perde fôlego junto aos setores mais tradicionais do feminismo, que concentram sua atuação em grupos e organizações não governamentais com atuações focadas em temas ou estratégias específicas. As militantes feministas que atuavam nos partidos de esquerda, em organizações sindicais e no movimento das trabalhadoras rurais sempre enfrentaram no movimento um questionamento de sua ‘legitimidade feminista’, experimentando, muitas vezes, um processo de isolamento, ampliado também pela fragilização das dinâmicas de ação mais comuns que as existentes na década de 1980. Mesmo no Brasil, que vivera um período recente de reorganização da esquerda na derrota da ditadura, plasmando um rico processo de composição de movimentos sociais urbanos, sindicais - movimentos em que a presença das mulheres era um sujeito político e social incontornável -, ainda assim os ventos do pós-modernismo e do pensamento liberal encontraram terreno fértil para estigmatizar posições que se apresentassem como anticapitalistas (Nalu FARIA, 2005FARIA, Nalu. “O feminismo latino-americano e caribenho: perspectivas diante do neoliberalismo”. In: FARIA, Nalu; POULIN, Richard (Orgs). Desafios do livre mercado para o feminismo. São Paulo: SOF, 2005. p. 11-39. (Coleção Cadernos Sempreviva. Série Gênero, Políticas Públicas e Cidadania, 8)). A interação e os conflitos entre as relações sociais de sexo e de classe, ainda mais perversas em uma dinâmica capitalista que vocalizava o ‘fim do trabalho’, e que se mantêm absolutamente definidoras e cotidianas para as mulheres em novas formas de desigualdade e exploração, perderam espaço tanto na elaboração acadêmica como nos debates do feminismo.

A virada do século XXI traz novos ventos. Será sempre parcial apontar as razões da mudança. Mas as dinâmicas de questionamento da hegemonia neoliberal encontraram nos movimentos antiglobalização, na explicitação das crises econômicas nos países capitalistas centrais, nas reações sociais dos mais variados matizes contra a perda de direitos, entre várias outras questões, novas aberturas para uma elaboração crítica e reflexões à esquerda. A ampliação da organização da luta antirracista também fortaleceu no movimento de mulheres e no debate feminista a exigência de uma retomada em primeiro plano da discussão entre raça/etnia, classes e gênero/relações sociais de sexo.

Nesse contexto, os trabalhos de Heleieth Saffioti sobre a questão aparecem sob nova dinâmica. Há uma retomada efetiva do desafio de se pensar os processos de desigualdade e luta social integrando as dimensões de raça/etnia, de classe e de sexo/gênero. Ainda que em grande parte a luta dos movimentos sociais, por se constituírem como sujeito político reconhecido, apareça muitas vezes como que dissolvendo as desigualdades de classe, há uma retomada crítica de um pensamento de esquerda que insiste nessa necessidade.

Os trabalhos de Danièle Kergoat e de Helena Hirata, tratando da consubstancialidade das relações sociais - relações sociais de classe, de sexo e de raça/etnia - também respondem a essa mesma necessidade, uma vez que retomam e atualizam essas formulações à luz das transformações no mundo do trabalho, dos novos desafios acarretados pelo neoliberalismo, que impõem novas dinâmicas de exploração e da divisão sexual do trabalho (KERGOAT, 2010KERGOAT, Danièle. “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”. Novos Estudos Cebrap, n. 86, p. 93-103, mar. 2010. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000100005 . Acesso em 10/10/2020.
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, 2014KERGOAT, Danièle. “Compreender as lutas das mulheres por sua emancipação pessoal e coletiva”. In: MORENO, Renata (Org.). Feminismo, economia e política: debates para a construção da igualdade e autonomia das mulheres. São Paulo: SOF, 2014. p. 11-21.; HIRATA, 2002HIRATA, Helena. “Reorganização da produção e transformações do trabalho: uma nova divisão sexual?”. In: BRUSCHINI, C.; UNBEHAUM, S. G. (Orgs.). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: FCC; Ed. 34, 2002. p. 339-355., 2018HIRATA, Helena. “Divisão internacional do trabalho, precarização e desigualdades interseccionais”. Revista da ABET, v. 17, n. 1, jan./jun. 2018. p. 7-15. Disponível em Disponível em https://www.researchgate.net/publication/332822669_DIVISAO_INTERNACIONAL_DO_TRABALHO_PRECARIZACAO_E_DESIGUALDADES_INTERSECCIONAIS . Acesso em 21/01/2020.
https://www.researchgate.net/publication...
). São exigências de um campo político feminista de esquerda que necessita de instrumentos teóricos capazes de refletir sobre as contradições que precisam ser enfrentadas pela luta das mulheres hoje, e que auxiliem a construção de estratégias para uma ação feminista libertária e anticapitalista.

A elaboração de Heleieth Saffioti sobre as interações das relações de classe, de raça/etnia e de gênero conceituadas por ela como um ‘nó’ que dinamiza as relações sociais pode ser discutida em profundidade e em diálogo com sínteses e propostas analíticas de distintas autoras, como as supracitadas e outras, cujas formulações, como sobre interseccionalidade, têm circulado nos debates atuais. Tal comparação extrapola o escopo deste texto. No entanto, para o debate aqui realizado vale destacar que, a nosso ver, a partir das discussões sobre o conceito de gênero, muitos dos estudos de Heleieth Saffioti sobre essa questão priorizam o diálogo com as teorias da construção do sujeito, da subjetividade das representações, com ênfase na filosofia (SAFFIOTI, 1992SAFFIOTI, Heleieth. “Rearticulando gênero e classe social”. In: COSTA, Albertina de Oliveira; BRUSCHINI, Cristina (Orgs.). Uma questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1992b, p. 183-215.b, 1992c, 2004), constituindo-se numa abordagem de autores de filiações distintas de pensamento, sem uma ancoragem teórica evidente, estando praticamente ausente o enfoque da divisão sexual do trabalho como base material da desigualdade entre mulheres e homens. Por esse lado, a metáfora do “nó”, embora ganhe em simplicidade e força expressiva nas aproximações e diálogos com a perspectiva de consubstancialidade das relações de classe, de sexo e de raça/etnia, apresenta consistência mais frágil em sua explicação da complexidade das relações sociais. Porém, em síntese, o que importa destacar aqui são as aproximações, que podem ser traduzidas na perspectiva de que os antagonismos de classe, raça/etnia e gênero regem a dinâmica das contradições sociais e não devem ser tomados separadamente.

Nesse sentido, independentemente das preferências conceituais ou de análise que possamos ter nesse debate, o que é relevante ressaltar é a opção, em ambos os casos, por analisar as relações sociais a partir de uma ótica que não fragmenta a dinâmica da sociedade, que integra de maneira substancial as contradições sociais de classe, de raça/etnia e de relações sociais de sexo/gênero, constituindo, como dito, instrumentos teóricos e práticos indispensáveis para a construção de uma ação feminista libertária e anticapitalista.

Heleieth Saffioti continuou revisitando o debate da ordem patriarcal de gênero, reafirmando a vigência do contrato sexual (teorizado por Carole PATEMAN, 1993PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.), resultante dela e que modela subjetividades; preocupou-se com a superação das violências e com a possibilidade da construção da igualdade, compreendendo que, para tal empreitada, faz-se necessária a construção da autonomia das mulheres, com batalhas individuais por superação de discriminações e formas de dominação, mas com o caudal coletivo das mulheres emergindo de lutas feministas em várias frentes. Essa foi uma mensagem forte que, nós, militantes feministas de esquerda, recebemos dessa pioneira do feminismo brasileiro em muitos diálogos feministas travados com ela a partir de suas obras.

Um legado de inquietações que se oferecem à reflexão crítica do feminismo

A leitura contemporânea de A mulher na sociedade de classes: mito e realidade nos faz lembrar que:

A questão que então se impôs para boa parte do feminismo dos anos 1960 e 1970 era como produzir uma análise que levasse em conta tanto classe quanto sexo ou gênero; ou, dito de outra forma, que fosse capaz de compreender a sociedade como sendo, a um só tempo, capitalista e patriarcal. (Luis Felipe MIGUEL, 2017MIGUEL, Luis Felipe. “Voltando à discussão sobre capitalismo e patriarcado”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1219-1237, set./dez. 2017. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v25n3/1806-9584-ref-25-03-01219.pdf . Acesso em 20/12/2019.
http://www.scielo.br/pdf/ref/v25n3/1806-...
, p. 1.220).

As dinâmicas atuais do capitalismo escancaram o quanto a articulação das contradições sociais de classe, de raça/etnia e de relações sociais de sexo/gênero se combinam para ampliar a desigualdade. Um desafio de teoria e prática para o feminismo. Ou, ainda, como sugere Luis Felipe Miguel:

Sem recuperar a agenda irrealizada da teoria feminista dos anos 1970, não é possível progredir na reflexão crítica não só sobre a posição das mulheres, mas sobre a sociedade contemporânea em geral. Dominação masculina e dominação de classe são dois eixos centrais da estrutura social. Qualquer descrição densa do mundo social, para não falar na busca por sua transformação, precisa avançar na compreensão de sua inter-relação. (MIGUEL, 2017MIGUEL, Luis Felipe. “Voltando à discussão sobre capitalismo e patriarcado”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n. 3, p. 1219-1237, set./dez. 2017. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v25n3/1806-9584-ref-25-03-01219.pdf . Acesso em 20/12/2019.
http://www.scielo.br/pdf/ref/v25n3/1806-...
, p. 1.234).

Na articulação desses eixos com as contradições da desigualdade racial se estruturam e impulsionam as dinâmicas fundamentais da sociedade brasileira.

No âmbito deste texto procuramos ressaltar da análise da obra de Heleieth Saffioti pelo menos três questões que permanecem centrais para o feminismo de esquerda hoje. Em primeiro lugar, a preocupação permanente de pensar a situação das mulheres sempre inserida em uma perspectiva global da sociedade, ou seja, como parte fundamental do contexto político, econômico e social que funda relações de dominação e exploração. Em segundo, a preocupação urgente e atual, como já enfatizado, de perceber e aprofundar as análises de como se imbricam as relações sociais de classe com as relações sociais de sexo e de raça-etnia. E, finalmente, a insistência de que o marxismo é fundamental para uma compreensão global que se orienta para a mudança social e a superação da desigualdade. O diálogo crítico com Heleieth Saffioti tem muito a contribuir nesse desafio, com implicações práticas para a ação feminista.

Referências

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  • VINTEUIL, Frédérique. Marxismo e feminismo Tradução Cadernos Democracia Socialista. São Paulo: Editora Aparte, 1989. (Cadernos Democracia Socialista, v. 8).
  • 1
    Não cabe aqui o debate sobre a eventual interpretação das ondas do movimento. O que queremos demarcar é que, no momento de redação dessa obra, era ainda incipiente a organização do movimento internacional de mulheres que explodiu no mundo após meados dos anos 1960 e cerca de uma década mais tarde no Brasil.
  • 2
    Todas as citações de A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, neste texto, têm como referência a terceira edição (2013), da Expressão Popular.
  • 3
    Ainda era uma época em que praticamente não havia questionamento sistemático ao machismo. Não custa lembrarmos a reação grosseira, misógina e retrógrada do Pasquim quando da visita de Betty Friedan ao Brasil, isso já em 1971. Assim como Heleieth Saffioti, as também pioneiras Carmen da Silva e Rose Marie Muraro ressaltam a dificuldade de se identificarem como feministas antes da segunda metade da década de 1970, tal era o grau de desqualificação e agressividade que predominava (MÉNDEZ, 2008).
  • 4
    Já no final dos anos 1970, a pesquisadora feminista francesa Danièle Kergoat começou a elaborar sobre a articulação das relações sociais, formulando essa problemática com a elaboração do conceito de consubstancialidade das relações sociais. Em um primeiro momento, a ênfase foi sobre a articulação das relações sociais de sexo e classe social. Seu pensamento vai ganhando um contorno mais complexo com a dimensão de classe social. Insistindo em que é fundamental discutir em termos de relações sociais, mais do que posições na sociedade, Kergoat afirma que existem três relações sociais fundamentais que se imbricam - as de sexo, as de raça e as de classe - e que são consubstanciais e coextensivas. Circulando mais no âmbito da sociologia francesa e do trabalho, bem como dos estudos feministas nos países de língua francesa, entre nós, essa conceituação e análises têm sido difundidas a partir, sobretudo, do pensamento de Danièle Kergoat e Helena Hirata, que utilizam mais essa categoria analítica. Ver, em particular, Kergoat (2010). Já o conceito de interseccionalidade foi sintetizado, pela primeira vez, para designar a interdependência de relações de poder de gênero, raça e classe, em um texto da jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw, em 1989. O conceito ganhou força e grande divulgação para descrever a articulação das desigualdades de raça, de gênero e de classe, a partir de preferências teóricas distintas e se nutrindo de tradições sociológicas e de movimento social também distintos. Em 2002, Crenshaw publicou um artigo no qual define interseccionalidade, e sua tradução foi publicada no mesmo ano pela Revista Estudos Feministas.
  • 5
    De maneira geral, a edição de livros no Brasil é bastante limitada e, nesse sentido, não pode ser encarada como elemento definidor de uma influência, mas nos ajuda a pensar sobre o assunto. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade teve sua segunda edição em 1976 (pela editora Vozes) e só foi novamente publicado em 2013 (pela Expressão Popular). Os demais livros sobre o assunto trabalho não tiveram reedição, a saber: Emprego doméstico e capitalismo (1978, Vozes); Do artesanal ao industrial: a exploração da mulher (1981, Hucitec); Mulher brasileira: opressão e exploração (1984, Achiamé).
  • 6
    Com o gosto da polêmica que a caracterizava, já em 1984 é a própria Heleieth Saffioti quem registra o quanto os debates polarizavam, ao afirmar que “uma das maneiras mais eficazes de despertar a ira das feministas sem formação marxista é qualificar de improdutivo o trabalho doméstico, quer desempenhado gratuitamente, quer remuneradamente” (SAFFIOTI, 1984, p. 13). Na verdade, na maior parte das vezes, não se tratava de não ter formação marxista, mas de discordância sobre a adequação dos conceitos ou sobre a necessidade de sua reformulação.
  • 7
    De acordo com o currículo disponível na Plataforma Lattes, dos 25 artigos de Heleieth Saffioti em periódicos registrados a partir de 1987 até 2009, 17 relacionam-se ao tema da violência. São elencados, ainda, 19 capítulos/artigos sobre o assunto, de um total de 33 publicados em livros, entre 1989 e 2009. Nos anos anteriores (de 1963 a 1985), registram-se 34 artigos em periódicos, nem um sobre violência.
  • 8
    Ao longo do tempo, seus estudos atenuaram a forte presença de conceitos da psicanálise na busca de explicações sobre o fenômeno da violência. E, ao mesmo tempo, nos textos em que prevalecia a preocupação em tornar mais acessíveis temas complexos, e dando asas ao viés do gosto pela polêmica que a caracterizava, algumas das abordagens e expressões de contestação do machismo e da violência sexista neles encontrados são, na verdade, simplificadoras ou pouco explicativas.
  • Como citar este artigo de acordo com as normas da revista:

    SILVEIRA, Maria Lucia da; GODINHO, Tatau. “Diálogos sobre a obra de Heleieth Saffioti e o feminismo de esquerda”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e76772, 2021.
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2020
  • Revisado
    14 Out 2020
  • Aceito
    09 Nov 2020
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