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Agência e autonomia feminina: aportes para estudos sociológicos em contextos de pobreza urbana

Agencia y autonomía de la mujer: contribuciones a los estudios sociológicos en contextos de pobreza urbana

Resumo:

O conhecimento sociológico produziu extensa tradição com base na dualidade entre a impossibilidade de agência e o voluntarismo da ação. Abordagens contemporâneas, com contribuições das feministas, têm formulado o problema da agência e da autonomia de modo a escapar dessa dualidade e oferecido constructos mais adequados às investigações sobre as experiências das mulheres. A partir da combinação da abordagem interseccional com a abordagem das capacidades, este trabalho organiza um aporte analítico capaz de compreender a agência e a autonomia em um pêndulo entre os constrangimentos e as escolhas. Esse empreendimento é realizado considerando-se o entrelaçamento entre gênero, classe e raça como sugestão para estudos em contextos de pobreza urbana, tendo em vista sua relevância para o debate sobre gênero, pobreza e desenvolvimento humano. Esta é uma pesquisa teórica sobre o tema proposto.

Palavras-chave:
Feminismo; Autonomia feminina; Pobreza; Agência; Interseccionalidades; Desenvolvimento Humano

Resumen:

El conocimiento sociológico ha producido una extensa tradición basada en la dualidad entre la imposibilidad de agencia y el voluntarismo de la acción. Los enfoques contemporáneos, con aportes de las feministas, han formulado el problema de la agencia y la autonomía para escapar de esta dualidad y ofrecer constructos más adecuados para investigar las experiencias de las mujeres. Basado en la combinación del enfoque interseccional y el enfoque de capacidades, este trabajo organiza un enfoque analítico capaz de comprender la agencia y la autonomía en un péndulo entre restricciones y opciones. Este emprendimiento se lleva a cabo considerando el entrelazamiento de género, clase y raza como sugerencia de estudios en contextos de pobreza urbana, dada su relevancia para el debate sobre género, pobreza y desarrollo humano. Se trata de una investigación teórica sobre el tema propuesto.

Palabras clave:
feminismo; Autonomía femenina; Pobreza; Agencia; Interseccionalidad; Desarrollo humano

Abstract:

Sociological knowledge has produced an extensive tradition based on the duality between the impossibility of agency and the voluntarism of action. Contemporary approaches, with contributions from feminists, have formulated the problem of agency and autonomy in order to escape this duality and offered more adequate constructs for investigations into the experiences of women. By combining the intersectional approach with the capabilities approach, this paper organizes an analytical resource capable of understanding agency and autonomy in a pendulum between constraints and choices. This undertaking is carried out considering the interweaving of gender, class, and race as a suggestion for studies in contexts of urban poverty, given its relevance to the debate on gender, poverty, and human development. This is a theoretical study on the proposed theme.

Keywords:
feminism; female autonomy; poverty; agency; intersectionalities; Human development

Introdução

O lugar que a noção de indivíduo ocupa na teoria sociológica e no pensamento político envolve questões que interconectam os debates sobre agência, autonomia e desenvolvimento humano. Esses debates se deparam com questões que, por vezes, foram lançadas pelo feminismo, outras o desafiaram e influenciaram análises de padrões de dominação e conservação social ou mudanças sociais. Nas tradições sociológicas, especialmente nas abordagens herdeiras do estrutural-funcionalismo, frequentemente a ação social não foi tomada como uma questão. Por seu turno, teorias contemporâneas que se colocaram o desafio de explicar e compreender as experiências, a vida cotidiana ou o mundo da vida, empenharam-se em oferecer recursos conceituais e analíticos da ação social.

O problema sociológico sobre a relação entre estrutura e agência também se expressa no terreno político e das políticas públicas porque envolve interpretar a capacidade, ou incapacidade, que os indivíduos têm de interferir na configuração de sua biografia ou na história da sociedade. Desse modo, abordagens sociológicas estruturalistas, funcionalistas e sistêmicas encontram pontos de convergência com visões políticas feministas que preferem se distanciar de perspectivas de individualização. Essas construções convergem, ainda, para a recusa do pensamento liberal.

Da crítica formulada a partir do feminismo negro encontram-se reivindicações por uma teoria feminista apartada do individualismo liberal (bell hooks, 2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015.). Entre estudos feministas sobre família, encontram-se acusações de que perspectivas feministas informadas pela noção de individualização estariam presas a vieses de classe que não abarcam as experiências das mulheres e das famílias trabalhadoras ou das camadas populares (Cynthia SARTI, 2004SARTI, Cynthia. “O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 35-50, maio-agosto 2004.; Leny TRAD, 2010TRAD, Leny A. Bomfim. Família contemporânea e saúde: significados, práticas e políticas públicas. São Paulo: SciELO-Editora; FIOCRUZ, 2010.). Há, também, as críticas dirigidas ao colonialismo que veem noções de liberdade individual e igualdade como próprias de um pensamento eurocêntrico e, enquanto tal, também opressor. Tais noções, quando incorporadas em projetos internacionais de desenvolvimento, não respeitariam as diferenças culturais e a pluralidade e sustentariam, além disso, um tipo nocivo de paternalismo (Andréa CORNWALL; Elizabeth HARRISON; Ann WHITEHEAD, 2012CORNWALL, Andréa; HARRISON, Elizabeth; WHITEHEAD, Ann. “Introdução: reposicionando feminismos em gênero e desenvolvimento”. Revista Feminismos, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-22, 2012.).1 1 Parte das críticas à agenda do desenvolvimento pode ser encontrada em: Cornwall et al. (2012). Sobre um diálogo entre as críticas ao colonialismo e a defesa de uma concepção feminista de desenvolvimento universalista, ver Nussbaum (2001).

A síntese que pode ser feita dessas críticas é que há, no interior dos estudos e da política feminista, um incômodo persistente com categorias do pensamento liberal. Desse incômodo resultam recusas à noção de individualização, o que, em termos de análises sociológicas, transborda para o apagamento da agência e, desse modo, obstaculiza as visões sobre autonomia. Não obstante tais críticas feministas ao liberalismo, e sem querer minimizar a importância delas para colocar em relevo certas limitações dos projetos de desenvolvimento, meu argumento pretende sustentar que o ideal normativo de autonomia feminina exige que se mobilizem, de modo crítico, noções que recebem influências do liberalismo político, a exemplo da agência, em vez de recusá-las.

Elisabeth Badinter (2005BADINTER, Elisabeth. Rumo equivocado: o feminismo e alguns destinos. Rio de Janeiro: Editora Record, 2005.), em diálogo com o feminismo radical de origem estadunidense, critica as correntes feministas que, na ansiedade de amplificar seu poder de denúncia, adota, muitas vezes sem se dar conta, concepções políticas que vitimizam ou infantilizam todas as mulheres. Na visão de Badinter (2005), as agendas feministas que dão destaque a temas como violência contra as mulheres, assédio e estupro incorreriam frequentemente em abordagens vitimistas. Autoras do Sul Global apontaram fenômeno semelhante em estudos sobre a pobreza, revelando como certos enfoques concebem as mulheres como dependentes, impotentes e objeto das intervenções estatais e demais organizações que atuam na agenda do desenvolvimento (Srilatha BATLIWALA; Deepa DHANRAJ, 2013BATLIWALA, Srilatha; DHANRAJ, Deepa. “Os mitos de gênero que instrumentalizam as mulheres: uma visão da ‘linha de frente’ indiana”. Revista Feminismos, Salvador, v. 1, n. 1, p.1-18, 2013.).

O questionamento levantado por Badinter é uma reivindicação por abordagens que reconheçam a agência feminina, isto é, que reconheçam as mulheres como seres dotados da capacidade de agir e de realizar escolhas. Ao fazê-lo, é preciso tomar o cuidado de não aderir a visões, também presentes em projetos ou programas de desenvolvimento humano, dirigidos a mulheres em situação de pobreza, que conferem a elas certo tipo de heroísmo, dado que conseguem realizar muitos benefícios com poucos recursos materiais, resultando na denunciada instrumentalização das mulheres pobres (Caroline MOSER e Annalise MOSER 2005MOSER, Caroline; MOSER, Annalise. “Gender mainstreaming since Beijing: a review of success and limitations in international institutions”. Gender & Development, Oxford, v. 13, n. 2, p. 11-22, 2005.; Silvana MARIANO e Cássia CARLOTO, 2009MARIANO, Silvana Aparecida; CARLOTO, Cássia Maria. “Gênero e combate à pobreza: Programa Bolsa Família”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 3, p. 901-908, 2009.).

Adicionalmente, as reivindicações encontradas em autoras como Patricia Hill Collins (2016COLLINS, Patricia Hill. “Aprendendo com a outsider whithin: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Revista Sociedade e Estado. Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016.), Angela Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.) e bell hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015.) lançam olhares sobre as experiências das mulheres negras e advogam pelo reconhecimento dos diferentes modos de se constituir como sujeito, das diversidades de estratégias de ação e de resistência. Conforme destaca Collins (2016), essas experiências são moldadas pela consciência de quem está posicionada no escalão mais baixo da estrutura social. As abordagens que vitimizam ou infantilizam as mulheres são igualmente aquelas que adotam o mito da fragilidade feminina, mito informado por referências de classe e de raça (DAVIS, 2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.; hooks, 2015). A defesa de um feminismo que opere com noções e categorias que deem conta da diversidade das mulheres e que as reconheçam como agentes é uma visão comum nessas posições. Se há algum consenso em torno dessas reivindicações, concordar-se-á que a autonomia feminina passa pela agência e que não existe agência sem individualização. Nesse ponto, encontra-se a abordagem das capacidades como suporte de uma teoria da justiça universalista que oriente as políticas de desenvolvimento humano.

Neste trabalho, a partir da combinação da abordagem interseccional com a abordagem das capacidades, o objetivo é organizar uma moldura analítica capaz de compreender a agência e a autonomia das mulheres em um pêndulo entre os constrangimentos sociais e as escolhas individuais. Em um exercício teórico, são mobilizadas autoras do campo do feminismo negro, da sociologia da família e da abordagem das capacidades, visando aos recursos analíticos para acessar percepções e compreender trajetórias e aspirações de vida das mulheres.

A próxima seção deste artigo desenvolve reflexões sociológicas e feministas que colocam a abordagem da agência no instrumental disponível e necessário para a compreensão das experiências de mulheres em situação de pobreza, especialmente em vista dos temas relativos ao desenvolvimento humano. Trata-se, portanto, de uma noção de agência que combina visões canônicas da Sociologia com conhecimentos socialmente referenciados para os contextos de pobreza urbana. Na seção seguinte, a relação entre agência, capacidades e individualização é enfatizada, advogando uma concepção sociológica de indivíduo, tomado como agente constituído no atravessamento de relações sociais de diferentes poderes, configuradas em diversas dimensões, como gênero, classe e raça, e localizadas em contextos específicos. Nas considerações finais, resgata-se o argumento em defesa da potencialidade explicativa de pesquisas que busquem captar e apreender as formas pelas quais as mulheres pobres de centros urbanos constroem formas de autonomia feminina e a contribuição dessa perspectiva para programas de desenvolvimento humano.

Contribuições feministas para abordagens da agência e da autonomia

Desde seus primeiros escritos, os estudos feministas têm suscitado novos olhares enriquecedores para o conhecimento do mundo social, incluindo debates sobre a ação social, ou agência. Uma interpretação com esses propósitos deve considerar os contextos específicos nos quais são tecidos os entrecruzamentos entre individualização e classe social, em diálogo com o acúmulo dos estudos brasileiros que apontam para a situação de maior individualização nas camadas médias e maior ênfase em projetos ou interesses coletivos entre as famílias das camadas populares (SARTI, 2004SARTI, Cynthia. “O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 12, n. 2, p. 35-50, maio-agosto 2004.).

Discutir agência, bem como individualidade, é essencial para os estudos sobre autonomia. Como pensar a agência, aportando-se em uma teoria da individualidade, sem aderir a concepções que sustentam e legitimam a competitividade individual? Pelo menos desde Émile Durkheim (1977DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1977.), a teoria sociológica lida com a distinção entre liberdade individual e individualismo utilitarista, ou, ainda, como encontramos em John Rawls (2008RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.) e em Amartya Sen (2012SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação: Ricardo Doninelli Mendes. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.), a defesa da liberdade individual não pressupõe a adesão aos princípios da meritocracia. Portanto, são variadas as formas de teorizar e interpretar a noção de indivíduo. Interessam, para este texto, aquelas formas que conferem relevância ao indivíduo e reconhecem nele as possibilidades de agência, sem reificação e sem atomismo. As autoras mobilizadas se alinham nessa direção, como, por exemplo, Margaret Archer (2000ARCHER, Margaret S. “Realismo e o problema da agência”. Estudos de Sociologia, Recife, v. 2, n. 6, p. 51-75, 2000.; 2011), Martha Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.) e Patricia Hill Collins (2016COLLINS, Patricia Hill. “Aprendendo com a outsider whithin: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Revista Sociedade e Estado. Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016.; 2019COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro. Tradução de Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.), entre outras.

Martha Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.) oferece uma importante contribuição para a defesa do reconhecimento das mulheres em sua dimensão individual. Nussbaum (2002) analisa a situação das mulheres dos países em desenvolvimento, em comparação às mulheres de países com Estado de Bem-Estar Social consolidado, em estágio de convivência com as demandas pós-materialistas, e indica a necessidade de uma pauta feminista que abarque as experiências, as necessidades e os interesses também das primeiras. As reivindicações de mulheres em situação de pobreza estão comumente voltadas para o atendimento das condições materiais de interesse imediato. Daí a emergência, no feminismo internacional, motivado por feministas do Sul Global, de temas como fome, nutrição, alfabetização, direitos sobre a terra, acesso ao trabalho extradomiciliar e os direitos das crianças. Nos países em desenvolvimento, a pauta da autonomia das mulheres exige uma inversão da lógica das políticas de combate à pobreza e de desenvolvimento humano, tendo em vista que estas com frequência tomam as mulheres meramente como meio ou instrumento para os fins ou interesses dos outros (NUSSBAUM, 2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.), o que envolve a oferta de cuidado da parte das mulheres. Inverter tal lógica implica implementar programas que considerem as mulheres com um fim em si mesmo. Isso só é possível reconhecendo-as como indivíduos e afrouxando os elos que as prendem às funções sociais tradicionais, como, por exemplo, de mães e de cuidadoras. A responsabilização das mulheres pelo cuidado, juntamente com padrões genderificados e racializados de socialização, constitui limitadores importantes para o exercício da autonomia feminina.

Pensadoras feministas têm abordado o tema da autonomia considerando aspectos como poder e processos de socialização. Para Elizabeth Jelin (2004JELIN, Elizabeth. Pan y afectos. La transformación de las familias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 2004., p. 24), autonomia das mulheres corresponde à “capacidade de tomar decisões próprias, baseadas na informação e no conhecimento, mas em conjunto com o reconhecimento dos próprios desejos”. Na mesma perspectiva, para Vera Soares (2011SOARES, Vera. “Mulher, autonomia e trabalho”. In: DI SABBATO, Alberto et al (Org.). Autonomia econômica e empoderamento da mulher. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011. p. 281-301., p. 281), autonomia das mulheres é “a capacidade de tomar decisões livres e informadas sobre sua própria vida, de maneira a poder ser e fazer em função de suas próprias aspirações e desejos, num determinado contexto histórico”. As aspirações e os desejos próprios são formados em contextos materiais e simbólicos, configurados pelo processo de socialização e pelos recursos aos quais as mulheres têm acesso. Há, portanto, impactos da opressão e da dominação na formação das preferências e no exercício da agência das mulheres (NUSSBAUM, 2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.; Flávia BIROLI, 2012BIROLI, Flávia. “Agentes imperfeitas: contribuições do feminismo para a análise da relação entre autonomia, preferências e democracia”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 9, p. 07-38, 2012.).

As dinâmicas familiares ocupam lugar de destaque para a autonomia e as condições de agência das mulheres. Para Jelin (2004JELIN, Elizabeth. Pan y afectos. La transformación de las familias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 2004., p. 26), família é uma organização da convivência, da sexualidade e da procriação e, enquanto tal, é uma “estrutura de poder e com fortes componentes ideológicos e afetivos”, cujos princípios básicos são idade, gênero e parentesco. As hierarquias de gênero, que operam nas diferentes dimensões da sociedade, “restringem o horizonte do possível para as mulheres (BIROLI, 2012BIROLI, Flávia. “Agentes imperfeitas: contribuições do feminismo para a análise da relação entre autonomia, preferências e democracia”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 9, p. 07-38, 2012., p. 17). Ademais, há a tensão entre autonomia pessoal e identidade coletiva, com implicações distintas para homens e mulheres. No caso das mulheres, Jelin (2004) chama a atenção para a ambiguidade, mais acentuada em mulheres de classes populares, entre o reconhecimento da individualidade e o papel da mulher-mãe como suporte familiar.

Por se tratar de relações sociais,

[...] a autonomia e a liberdade individual nunca podem ser totais, já que os indivíduos necessitam e encontram benefícios e satisfação nos vínculos de proteção, de solidariedade, de compromisso e de responsabilidade para o outro, começando pelo âmbito mais íntimo e cheio de afetos que é a família (Elizabeth JELIN, 2004JELIN, Elizabeth. Pan y afectos. La transformación de las familias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 2004., p. 31).

Considerando essa perspectiva de que a autonomia é sempre relativa, portanto, nunca é plena, a concepção de liberdade nas obras de Sen (2012SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação: Ricardo Doninelli Mendes. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.) e de Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.) contribui para a saída de eventual impasse ao interpretar a liberdade como ampliação das opções de escolha, mesmo entendendo que a escolha se processa em um emaranhado de constrangimentos, reflexividade e autodeterminação. Para compreender contextos limitadores da autonomia das mulheres, Nussbaum (2002) trata das condições em que ocorrem a deformação das preferências, quando as mulheres têm esse horizonte de possibilidades estreitados por valores e práticas sociais que limitam suas aspirações e desejos, logo, suas escolhas. Mulheres empobrecidas, sexualizadas e racializadas se deparariam mais frequentemente com a deformação das preferências.

A adoção de um recorte de classe, ao buscar a compreensão dos contextos das mulheres em situação de pobreza, exige a escolha de alguma concepção de classe social. hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015.) propõe que se pense classe fora do esquema de interpretação de Marx e que se considerem os comportamentos, as expectativas de futuro e as formas de ação. Nesse aspecto, segundo hooks, pensar classe social nos termos propostos por Pierre Bourdieu (2007BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.) abre possibilidades de análise capazes de apreender e explicar essas vivências de classe.

A sociologia de Bourdieu, ao privilegiar a classe em seu esquema de distinção social, secundariza as determinações de outros sistemas de classificação, como gênero e raça, por exemplo. Entretanto, quanto à conceituação de classe, concorda-se com hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015.) que esse é ainda um recurso fértil, na medida em que classe, para Bourdieu, não está restrita aos fenômenos econômicos e, consequentemente, não é mobilizada em um modelo dicotômico. Desse modo, o uso cuidadoso dos esquemas analíticos de Bourdieu pode auxiliar na direção proposta por hooks. Proponho, no entanto, seu uso sem compromisso com a adoção do conceito de habitus de classe, mesmo ciente de sua relevância na sociologia de Bourdieu.

A formulação de Bourdieu é promissora ao oferecer ferramentas analíticas para uma sociologia das práticas sociais. Isso confere certa relevância ao indivíduo ou agente, que se encontra, todavia, atado ao habitus de classe, que é um “princípio unificador e gerador das práticas” e diz respeito à “forma incorporada da condição de classe dos condicionantes que ela impõe” (Pierre BOURDIEU, 2007BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007., p. 101). Trata-se de um sistema de disposições que tende a produzir relativa homogeneidade de valores, expectativas, estratégias e práticas entre pessoas pertencentes a uma classe ou fração de classe. A ênfase de Bourdieu encontra-se, portanto, nas regularidades sociológicas. Para ele, a construção de classes, como recurso analítico adotado pelo sociólogo, deve “levar em consideração de modo consciente (...) a rede das características secundárias manipuladas (...) [e] apreender a origem das divisões objetivas, ou seja, incorporadas ou objetivadas em propriedades distintas” (BOURDIEU, 2007, p. 101). Classe social, para Bourdieu, corresponde à diversidade das práticas e à multiplicidade das determinações, ou sobredeterminações, incluindo, secundariamente, dimensões como identidade sexual e envelhecimento. Para compreender as formas de subjetivação das mulheres em situação de pobreza, precisa-se de uma noção fluida de classe social, como a de Bourdieu, que deve ser colocada no mesmo plano analítico de sexo ou gênero e raça. Uma análise nesses termos toma certa distância de Bourdieu, mesmo partindo dele, e se aproxima do pensamento interseccional.

O sentido adotado por Bourdieu para tratar da construção das classes sociais é útil para os propósitos de uma sociologia interessada nas práticas sociais, na medida em que articula as dimensões econômicas e culturais. Contudo, o conceito de habitus da perspectiva realista, ou morfogenética, de Archer (2000ARCHER, Margaret S. “Realismo e o problema da agência”. Estudos de Sociologia, Recife, v. 2, n. 6, p. 51-75, 2000.; 2011), oferece maior fluidez para o tratamento da relação entre estrutura e agente. Desse modo, quando se substitui a noção de “determinação”, empregada por Bourdieu, pela noção de “condicionamentos sociais”, adotada por Anthony Giddens (2009GIDDENS, Anthony. A constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.) e Archer (2000; 2011), encontra-se melhor amparo analítico sobre agência e autonomia. Na mesma direção, a perspectiva das “interseccionalidades” (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.), no lugar de “sobredeterminação”, propicia maior faixa para a compreensão das formas de ação e de resistência dos sujeitos.

Com base na abordagem intersecional, a análise ganha mais complexidade ao tratar da agência a partir do que Collins (2016COLLINS, Patricia Hill. “Aprendendo com a outsider whithin: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Revista Sociedade e Estado. Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016.) exemplifica como o problema do encaixe entre consciência e atividade. Alguns ramos das ciências sociais, segundo a autora, pressupõem que certas medidas do comportamento humano correspondam a certos tipos de consciência humana de si e da estrutura social. Collins alerta que esse pressuposto não é um recurso competente para compreender a experiências das mulheres negras, pois “essas talvez se conformem abertamente aos papéis sociais impostos a elas, mas secretamente se opõem a estes, oposição moldada pela consciência de se estar no escalão mais baixo da estrutura social” (COLLINS, 2016COLLINS, Patricia Hill. “Aprendendo com a outsider whithin: a significação sociológica do pensamento feminista negro”. Revista Sociedade e Estado. Brasília, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016.). Ocupar a posição de ser localizada no “escalão mais baixo da estrutura social” confere outra perspectiva das estratégias dessas mulheres e, inclusive, outra perspectiva do que se entende por ação ou ativismo. Essa abordagem ajuda a compreender que as regras sociais não são simplesmente reproduzidas ou reiteradas pelas agentes, pois a capacidade de fazer uso das regras envolve muitas vezes sua reinvenção ou ressignificação. Mesmo a relação entre obediência e resistência, isto é, estar em conformidade com um padrão ou em conflito com ele, são interações intersubjetivas que não se limitam ao encaixe entre consciência e atividade ou à polarização entre reprodução e mudança. Desse modo, quem está posicionada no “escalão mais baixo da estrutura social” não se encontra na condição de impotência.

A noção de reflexividade formulada por Archer (2000ARCHER, Margaret S. “Realismo e o problema da agência”. Estudos de Sociologia, Recife, v. 2, n. 6, p. 51-75, 2000.; 2011) contribui para esse entendimento acerca da agência e produz alguns avanços em relação à sociologia de Bourdieu e de Giddens, por exemplo. A despeito das promessas, a sociologia de Bourdieu se revela ainda predominantemente determinista, enquanto a sociologia de Giddens, em contraposição, exageraria a capacidade de agência do indivíduo. Archer pretende avançar nesse terreno com a análise morfogenética, operando com o entrelaçamento da estrutura, da cultura e da agência. Essas são coisas que se entrelaçam, mas não são inseparáveis. Uma concepção desse tipo oferece contribuições para explicar a relação entre mudança e conservação social, além de entrelaçar também diferentes níveis de análise, o micro, o meso e o macrossocial.

O entrelaçamento entre objetividade e subjetividade, para as feministas, tem, ainda, a implicação de buscar, no plano epistemológico, a valorização de análises mesossociológicas que tratam do cotidiano, do contexto, da situação ou da contingência, a depender do referencial adotado. Os estudos feministas estão entre aqueles que difundiram as críticas às noções de “objetividade” e “neutralidade” e à relação entre sujeito e objeto, quando esta é tomada como relação de separação ou de superação. Os estudos orientados por essas novas perspectivas contribuíram para a compreensão dos diversos modos de opressão, distanciando-se, assim, de perspectivas anteriores pautadas por abordagens universalistas consideradas a-históricas.

Em fases posteriores, incluindo algumas críticas internas ao feminismo, as investigações feministas passaram por diferentes modulações entre a ênfase na “opressão” ou na autonomia. Como muitas vezes ocorre nesse meio, se a pesquisa feminista buscar sempre a “opressão”, enxergará somente opressão. Para ser capaz de apreender a agência das mulheres, é preciso dispor de sistemas analíticos aptos a captar suas ações, estratégias e escolhas, para além de parâmetros hegemônicos de classificação.

Para esses fins, é salutar tratar da autonomia tanto em sua dimensão sociológica quanto política, considerando-se as contribuições feministas que têm levado a cabo a abordagem crítica e desconstrucionista do termo. Concordando com hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015.), tomo em conta sua crítica ao uso da noção de opressão, como oposição à autonomia. Pensando no contexto norte-americano, hooks propõe que “exploração” e “discriminação” seriam termos mais apropriados para abarcar a realidade da maioria das mulheres. “Opressão”, para a autora, supõe uma universalidade entre as mulheres que não deixa espaço para a diversidade de experiências, como as de classe e de raça. A autora entende, ainda, “opressão” como “ausência de opções” e, nesta sociedade, muitas mulheres têm escolhas, mesmo que possam ser inadequadas. Mulheres brancas, escolarizadas e de classes abastadas têm certas opções disponíveis, quando comparadas às mulheres negras, pobres e de baixa escolaridade (hooks, 2015).

As estratégias para a ampliação das opções das mulheres, porém, podem envolver uma série de possíveis arranjos. hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015.), por exemplo, critica certo viés feminista que vê no mundo do trabalho a ampliação da liberdade das mulheres e levanta questões sobre o tipo de trabalho e sobre o trabalho doméstico e de cuidado, tendo em mente que as reivindicações pela inserção das mulheres no mercado de trabalho têm viés de classe e de raça. Mulheres pobres e negras sempre exerceram atividade remunerada extradomiciliar. A condição de ser dona de casa, vista como opressora em obras como de Betty Friedan (1971FRIEDAN, Betty. A mística feminina. Petrópolis: Vozes, 1971.), pode ser vista como um desejo por parte das mulheres negras e pobres, como nos alerta hooks (2015).

Tratar objetividade e subjetividade em uma perspectiva relacional, como propõem essas correntes feministas, é um desafio semelhante ao que Archer formula em termos da relação entre habitus e reflexividade. Como essas mulheres agem em seus respectivos contextos? Como suas trajetórias são marcadas por constrições sociais, como também por escolhas? Como tratar do peso dos sistemas de classe, de gênero e de raça? Para Archer (2011), as influências da ordem social sobre a conduta do indivíduo não são nem inteiramente interior aos agentes nem inteiramente exterior a eles. O arcabouço de Archer oferece, portanto, uma estrutura analítica para as formas de ação de agentes inseridos em contextos configurados por múltiplos condicionantes sociais, a exemplo das mulheres negras e pobres.

Quando a dedicação é com as investigações sobre autonomia feminina e ou sobre desenvolvimento humano em contextos de pobreza urbana, tem-se como cenário uma agenda de pesquisa interessada na mudança social. As formulações de Archer, na companhia dos estudos feministas, são úteis para esse interesse. Para a autora, ainda que as propriedades estruturais sejam continuamente dependentes da atividade, por meio do dualismo analítico é possível separar estrutura e agência e examinar suas relações com a finalidade de dar conta da reprodução e da mudança, ou, ainda, da estruturação e da reestruturação da ordem social (ARCHER, 2011ARCHER, Margaret S. “Habitus, reflexividade e realismo”. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 157-206, 2011.).

Nesse processo, ocorre uma dupla morfogênese, a transformação da estrutura e da agência, o que deve ser explicado tanto em termos diacrônicos como sincrônicos. Ainda para Archer (2011ARCHER, Margaret S. “Habitus, reflexividade e realismo”. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 157-206, 2011.),

Para dar conta tanto da variabilidade como da regularidade nos cursos de ação tomados por aqueles situados em posições similares, é preciso reconhecer nossa singularidade como pessoas, sem negar que nossa socialidade seja essencial para que sejamos reconhecíveis como pessoas humanas.

Essa noção de agência, mesmo em suas variações entre Giddens e Archer, está próxima do conceito de capacidades desenvolvido por Amartya Sen (2012SEN, Amartya Kumar. Desigualdade reexaminada. Tradução e apresentação: Ricardo Doninelli Mendes. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.) e Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.), conceito que contribuiu para a inserção das mulheres no centro dos debates sobre desenvolvimento humano,2 2 Embora Sen tenha alcançado grande notoriedade com a abordagem das capacidades, interessam igualmente os aportes de Nussbaum para essa abordagem. Aqui não há espaço e oportunidade para discorrer sobre as aproximações e distanciamentos entre as duas propostas. debate relevante para mulheres em situação de pobreza. Um aspecto que Nussbaum destaca em sua obra é a vinculação que faz entre a abordagem das capacidades e o liberalismo político. Com isso, vale chamar atenção para o fato de que essa abordagem, a exemplo das teorias da agência, concede valorização especial às escolhas, ou preferências. Portanto, o indivíduo é um tópico especial de reflexão nessas concepções. Ao tratar das capacidades humanas e seu vínculo com os desafios para o desenvolvimento humano, Nussbaum defende uma análise que considere os aspectos econômicos, institucionais e emocionais. Tal abordagem é compatível com aquela defendida por Archer que opera com o entrelaçamento entre estrutura, cultura e agência.

Frequentemente as mulheres não são tratadas com um fim em si mesmo e não são reconhecidas como pessoas, o que afeta negativamente o reconhecimento de sua dignidade e o respeito aos seus direitos da parte das leis e das instituições. Encarregadas dos cuidados, vistas ora como objetos sexuais e ora como representante dos interesses da família ou da comunidade (e não pessoais), as mulheres são assim instrumentalizadas, colocadas à disposição dos outros. Essa instrumentalização algumas vezes porta valores positivos e outras vezes negativos (NUSSBAUM, 2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.).

Esse enfoque das capacidades pressupõe a consideração das mulheres como indivíduos e exige, como centro normativo de sua teoria, que se tomem as mulheres como um fim em si mesmas. Considerando a constatação de que as desigualdades entre os sexos é um fenômeno global, bem como as indicações das fortes correlações entre desigualdades de gênero e pobreza, Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.) incita que “os temas da pobreza e do desenvolvimento sejam enfrentados a partir dos pensamentos político e econômico feministas, pois as mulheres, em quase todo o mundo, sintetizam o entrelaçamento dessas duas questões e formulam interpretações sobre esses desafios”.

Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.) também tem alertado para a importância de se compreender como o contexto marca tanto a escolha como a aspiração na formação das preferências adaptativas ou deformação das preferências. Se desenvolvimento significa ampliação das liberdades e se as liberdades são dimensionadas com referências às opções de escolhas ao alcance dos indivíduos, considerando-se aí as desigualdades na distribuição dessas oportunidades, decorre então que uma teoria da agência é indispensável e incontornável para o tratamento dessas questões. Essa agenda coloca em evidência também as peculiaridades dos grupos sociais que historicamente encontram mais obstáculos para o reconhecimento de seu status de indivíduo, no que se incluem as mulheres, os negros e os pobres.

A base filosófica universalista de Martha Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.), sensível ao pluralismo e às diferenças culturais, é fundamental para se entender sua preocupação com a relação entre justiça social e mulheres. Ao elencar uma série de aspectos nos quais as mulheres se encontram em desvantagem - maior desnutrição, piores índices de saúde, maiores vulnerabilidades à violência, desigualdade no mercado de trabalho, entre outros -, a autora sustenta o argumento de que as mulheres necessitam de maior apoio no que se refere ao desenvolvimento das capacidades. Assim, segundo ela, em termos gerais, as circunstâncias sociais e políticas, ao se fundamentar no gênero, oferecem às mulheres capacidades humanas desiguais, comparadas às oferecidas aos homens (NUSSBAUM, 2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.). Desse modo, impulsionar o desenvolvimento humano passa, necessariamente, pelo reconhecimento das mulheres como indivíduos, agentes capazes de participar deste processo e nele incluir seus interesses. Tal condição só pode ser alcançada quando se deixa de ter visões homogeneizadoras sobre a pobreza e sobre as mulheres pobres e quando se é dotado da capacidade de compreender suas práticas sociais.

Considerando avanços mais recentes da modernização brasileira, considerando, inclusive, o feminismo como uma das fontes dessa modernização, uma ampla agenda de pesquisa tem se consolidado para interrogar sobre a individualização das mulheres em situação de pobreza nos grandes centros urbanos do país. Esse debate se cruza com os temas da agência e da autonomia.

Esta seção desenvolve os elementos que permitem argumentar pela validade das análises que buscam equacionar as dualidades entre as determinações sociais e o voluntarismo, ou entre vitimização e heroísmo, em vista de concepções de agência e de autonomia que dialoguem com preocupações acerca das experiências das mulheres que são empobrecidas, sexualizadas e racializadas. Na seção seguinte, reflete-se na escala de análise mais adequada para este tipo de investigação que se propõe e advoga-se pelos benefícios do estudo mesossociológico ancorado nos contextos materiais e simbólicos.

A importância dos contextos

A construção e o exercício da autonomia das mulheres são temas entrelaçados com a formação das preferências. Conforme Nussbaum (2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.) demonstra, as mulheres podem nem desejar determinados direitos, bens e serviços se elas não visualizam como tangíveis. As circunstâncias moldam e modificam tanto as opções como as preferências. Mulheres que não conhecem experiências, por exemplo, como o fornecimento de água tratada e encanada, não o terão como objeto de desejo, não produzirão reivindicações a esse respeito e adaptarão suas preferências a essa realidade. Na medida em que essa carência possa ser assumida como um caso de injustiça social, tal adaptação é um exemplo de preferência deformativa.

Assim também acontece com o tema da integridade corporal das mulheres. A ruptura com um pensamento de que os maus-tratos são o destino das mulheres só se viabiliza em contextos nos quais esteja disponível a interpretação, por exemplo, de direitos individuais e de dignidade humana para as mulheres. A crítica a estruturas discriminatórias no mercado de trabalho, inclusive quanto aos salários, requer a presença do valor da igualdade nessa esfera. Esse postulado de que preferências são deformadas em virtude de injustiças sociais incrustadas em estruturas econômicas, institucionais e emocionais fornece um aporte analítico capaz de produzir distinções críticas que desvendem as baixas expectativas das mulheres (NUSSBAUM, 2002NUSSBAUM, Martha. Las mujeres y el desarrollo humano. Barcelona: Herder Editorial, 2002.), dado que se encontram no escalão mais baixo da estrutura social.

Ao expor as limitações das abordagens abstratas, generalizantes e universalizantes, os estudos feministas invocaram a necessidade de abordagens contextualizadas e informadas, que levem em consideração as relações de poder que afetam as liberdades individuais, logo, condicionam a autonomia e, por conseguinte, circunscrevem as próprias possibilidades de realização das escolhas. Desse modo, as reflexões sobre autonomia feminina podem se apoiar em abordagens que tomem em consideração os contextos materiais e simbólicos nos quais as práticas sociais das mulheres são produzidas, vivenciadas e transformadas. Conforme Mary Dietz (1999DIETZ, Mary G. O contexto é o que conta: feminismo e teorias da cidadania. Debate Feminista. São Paulo: Cia. Melhoramentos, Edição Especial (Cidadania e Feminismo), p. 03-28, 1999.), “se o contexto é o que conta, o feminismo, em suas diversas formas, está obrigado a descobrir o que nos rodeia e a nos revelar as relações de poder que constituem as criaturas que vamos ser”.

Uma vez que a liberdade individual, as escolhas e a formação de preferências devem ser compreendidas em seus contextos, as próprias experiências, ou práticas sociais das mulheres, devem ser compreendidas em sua especificidade. Considerando os desenvolvimentos da seção anterior, a análise em um nível mesossociológico é adequada para esse empreendimento. Assim, investigações com mulheres em situação de pobreza estarão interessadas nesses contextos formados por condições materiais e simbólicas e em processos que permitem explicar e compreender como essas mulheres são agentes em seu cotidiano e as estratégias que viabilizam esse próprio cotidiano. Um estudo desse tipo estará interessado tanto nas regularidades quanto nas variações que ganham forma nas práticas sociais. O conceito de reflexividade é chave para essa compreensão.

Em Giddens (2009GIDDENS, Anthony. A constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), um dos defensores do conceito de reflexividade para explicar as sociedades modernas, é relevante sua recusa dos paradigmas que concebem o comportamento humano como produto de forças que os atores não controlam e não compreendem. Por outro lado, são relevantes as contribuições de Archer com o intuito de evitar os riscos de uma sociologia que possa exagerar a capacidade de ação do agente e, ainda, o risco que Archer aponta em Giddens de nivelar todos os atores e ações. Conforme Archer (2011, p. 160-161),

Como uma moldura explicativa, a abordagem morfogenética endossa uma ontologia estratificada para estruturas (Archer, 1995), culturas (Archer, 1988) e agentes (Archer, 2000), dado que todas possuem propriedades e poderes emergentes e irredutíveis - e explica todo resultado social como o produto de suas relações. Os resultados, que podem ser amplamente reprodutivos ou largamente transformativos, dependem do entrelaçamento da estrutura, da cultura e da agência, mas sem considerá-las inseparáveis

Com esses referenciais, as pesquisas podem conciliar a dupla hermenêutica (GIDDENS, 2009GIDDENS, Anthony. A constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.) e a dupla morfogênese (ARCHER, 2011ARCHER, Margaret S. “Habitus, reflexividade e realismo”. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 157-206, 2011.) a fim de produzir uma “descrição densa” das práticas sociais das mulheres e, ao fazê-lo, a interpretação sociológica deve alcançar as dimensões pessoais, culturais e estruturais. Para Archer (2011ARCHER, Margaret S. “Habitus, reflexividade e realismo”. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 157-206, 2011.),

a única maneira de explicar com alguma precisão o que as pessoas fazem, em vez de recorrer a correlações entre pertencimento grupal e padrões de ação, cujo poder de explicação, via de regra, deixa a desejar, será atingir o equilíbrio certo entre poderes emergentes pessoais, culturais e estruturais.

Ao operar um estudo sobre o contexto em um nível mesossociológico, esse procedimento deixa de captar a riqueza das variações individuais, o que Bernard Lahire (2004LAHIRE, Bernard. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Tradução: Patrícia Chittoni Ramos Reuillard e Didier Martin. Porto Alegre: Artmed, 2004.) chega a acusar de “passar uma lixa” naqueles eventos ou situações que são divergentes ou contraditórios. No entanto, assume-se o prejuízo de perder o refinamento da abordagem disposicionalista, com a compreensão mais aprofundada dos retratos sociológicos, no intuito de alcançar tanto a variabilidade quanto a regularidade sociais.

Os relatos de vida são um meio privilegiado para que a analista ou o analista mobilize esses recursos conceituais e teóricos. O ato de se debruçar sobre os relatos de vida das participantes de uma investigação, permite apreender a vivência dessas mulheres, o modo como elas percebem sua situação e os significados que elas articulam.

As interpretações que as agentes fazem de sua condição social estão atravessadas pelos pertencimentos de classe, de gênero e de raça. A interseção entre esses três eixos já foi objeto de análise de sociólogas brasileiras, como, por exemplo, Heleieth Saffioti (2000SAFFIOTI, Heleieth I. B. “Quem tem medo dos esquemas patriarcais de pensamento?”. Crítica Marxista, Campinas, n. 11, p. 71-75, 2000.) e Maria Lygia Quartim de Moraes (2000MORAES, Maria Lygia Quartim de. “Marxismo e feminismo: afinidades e diferenças”. Crítica Marxista, Campinas, n. 11, p. 89-97, 2000.), quando mostraram que a sociedade é constituída por três contradições fundamentais que se reforçam mutuamente: gênero, raça/etnia e classe social. Como observa Saffioti (2000), esses três eixos formam o sistema “patriarcado-racismo-capitalismo”. Em certo ramo da literatura feminista contemporânea, especialmente a partir dos estudos de feministas negras, o entrelaçamento entre esses três eixos tem recebido a denominação de abordagem interseccional (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.), e essa abordagem tem sido produtiva para os estudos sobre desigualdades sociais que operam com perspectivas multifacetadas, sem atomizar ou reificar os agentes (MARIANO; Márcia MACÊDO, 2015MARIANO, Silvana; MACÊDO, Márcia. “Desigualdades e interseccionalidades: deslindando a complexa trama das hierarquias e agenciamentos”. Mediações-Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 20, n. 2, p. 11-26, 2015.). Como traço comum entre essas abordagens, destaca-se a recusa de qualquer hierarquização entre os três eixos, e, consequentemente, a recusa de qualquer essencialização dos sujeitos ou agentes.

Ao planejar uma investigação dentro desses referenciais, a pesquisadora ou pesquisador deve tomar o cuidado necessário para que os tópicos abarcados em seus guias deem conta de acessar as interpretações que os sujeitos da pesquisa elaboram sobre os diferentes poderes de que trata Archer (2011ARCHER, Margaret S. “Habitus, reflexividade e realismo”. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 157-206, 2011.): pessoais, culturais e estruturais.

Nesse arranjo, o próprio modo de construir o objeto sociológico já será atravessado pelo tema da agência, o que terá efeitos para o modo de construir a interação com os sujeitos da pesquisa. Atribuir relevância especial ao contexto implica, portanto, em levar a sério as interpretações de que as mulheres, como sujeitos da pesquisa sociológica, elaboram sobre suas experiências. As contribuições das pesquisas feministas a esse tópico, incluindo a abordagem interseccional, reiteram a concepção de pesquisa como uma relação entre sujeitos, e não entre sujeito e objeto. A ancoragem da pesquisa em um certo contexto contribui para que a analista esteja mais apta a captar a experiência e as interpretações das agentes.

A valorização do contexto na pesquisa social, embora esteja presente em inúmeras escolas da sociologia contemporânea, tem significado especial quando se trata de pesquisar experiências de mulheres, especialmente aquelas subalternizadas. Isso ocorre porque o conhecimento canônico sobre o mundo social frequentemente invisibilizou as experiências das mulheres (Joan SCOTT, 1990SCOTT, Joan W. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5 -22, 1990.; 1998SCOTT, Joan W. “A invisibilidade da experiência”. Projeto História, São Paulo, n. 16, p. 297-325, 1998.), em diferentes campos disciplinares.

Investigações ancoradas no contexto tendem, por exemplo, a produzir mais elementos sobre as ambiguidades vivenciadas pelas mulheres entre as reivindicações por individualidade e o exercício de papéis como esposa e mãe, ambiguidades que, segundo Jelin (2004JELIN, Elizabeth. Pan y afectos. La transformación de las familias. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica de Argentina, 2004.), seriam mais pronunciadas entre mulheres das camadas populares e, acrescenta-se, entre mulheres racializadas, às quais, em uma sociedade racista como a brasileira, atribui-se mais obrigações com o cuidado.

Visando à explicação que pondere esses dois aspectos relevantes para as experiências das mulheres, Carol Gilligan propõe que a individualização possa ser interpretada tendo como referência uma “ética do cuidado” pela qual individualizar-se não se coloca em tensão com as responsabilidades com os outros, sendo essas equacionadas com a responsabilidade para consigo mesma (GILLIGAN, 1982, p. 94 apudBIROLI, 2016BIROLI, Flávia. “Autonomia, preferências e assimetria de recursos”.Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 31, n. 90, p. 39-57, 2016.).

Se o tema da individualização tende a enfatizar a capacidade de realizar escolhas, esse aspecto é matizado quando o olhar sociológico também se dirige aos condicionamentos vivenciados, o que se expressa com mais viabilidade com um “olhar situado e nucleado” (Lia MACHADO, 1994MACHADO, Lia Zanotta. “Campo Intelectual e Feminismo: alteridade e subjetividade nos estudos de gênero”. Série Antropologia, Brasília, p. 1-28, 1994.). De acordo com a literatura, em investigações com mulheres em situação de pobreza, elas discorrem e refletem sobre suas dificuldades geradas com a escassez de tempo para uso próprio, com o tempo dedicado aos cuidados, com a divisão sexual de papéis e a divisão sexual do trabalho, com a ausência de serviços públicos, notadamente as creches, e com as desigualdades no mercado de trabalho, entre outras (Bila SORJ, Adriana FONTES; Danielle MACHADO, 2007SORJ, Bila; FONTES, Adriana; MACHADO, Danielle Carusi. “Políticas e práticas de conciliação entre família e trabalho no Brasil”. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, p. 573-594, 2007.; MARIANO; Márcio SOUZA, 2015MARIANO, Silvana; SOUZA, Márcio Ferreira. “Autonomia feminina e concepções de direito entre mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família”. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 17, n. 44, p. 165-180, 2019.; 2019).

As condições de classe, de gênero e de raça são indissociáveis para a compreensão do fenômeno de mulheres negras e pobres responsabilizadas individual e privativamente pelos cuidados com os filhos e, ainda, pelos cuidados de outros dependentes, mesmo de pessoas saudáveis, como homens adultos, por exemplo. Ter em conta esse mesmo arranjo intrincado é necessário para a compreensão dos motivos pelos quais as mulheres negras e pobres recebem a designação para os cuidados pagos, como se destaca no trabalho doméstico remunerado no Brasil, e são maioria nos programas de combate à pobreza vinculados às políticas de desenvolvimento. Trata-se de um fenômeno que, além dos elementos que constroem a pobreza multidimensional, produzem a racialização do gênero e a generificação da raça, em diferentes contextos e circunstâncias, com efeitos para a agência e a autonomia das mulheres. Autoras como hooks (2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, 2015.), Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.) e Crenshaw (2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.) destacam o fato de que nem sempre gênero é o fator mais determinante da experiência das mulheres, incluindo as experiências de exploração e de discriminação. Novamente, na riqueza sociológica propiciada em uma análise de contexto, é possível apreender melhor esses processos e seus efeitos.

Considerando o acúmulo da literatura sobre pesquisas empíricas acerca da autonomia feminina, algumas propostas se destacam quanto a tópicos vantajosos para a operacionalização da noção de autonomia e a identificação das margens de escolha das mulheres, tendo em conta seus contextos, como, por exemplo, saída da casa dos pais, familiares ou patrões para a formação de um novo núcleo familiar; formação e dissolução de casamentos ou uniões; relações amorosas e sexuais; decisões sobre a reprodução; manejos do ciclo de violência doméstica; experiência com a violência sexual; decisões relativas à organização do espaço doméstico; consumo ou planejamento financeiro individual e familiar; formas de inserção no trabalho pago; responsabilidades com o cuidado; autoavaliação e autodefinição.

A dimensão temporal também é um recurso analítico potente para que a pesquisadora apreenda indícios de mudanças sociais. Esse recurso permite, especialmente, captar sinais de mudanças nos padrões de gênero, segundo as percepções das mulheres, e são promissores para estudos sobre autonomia das mulheres.

Mesmo em contextos de vulnerabilidades, as mulheres atuam como agentes e dispõem de alguma faixa de autonomia, o que pode se explicitar, por exemplo, nas comparações intergeracionais. A proposição de Archer (2011ARCHER, Margaret S. “Habitus, reflexividade e realismo”. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 157-206, 2011.) é útil para a compreensão dessa dualidade entre constrangimentos ou incentivos:

Três condições são necessárias para que as influências condicionantes das propriedades estruturais e culturais possam exercer seus poderes na forma de constrangimentos ou incentivos. (...)

  1. 1. “tais poderes dependem da existência de projetos humanos”.

  2. 2. “deve haver uma relação de congruência ou incongruência, respectivamente, com os projetos agênticos particulares.”

  3. 3. “os agentes precisam reagir a essas influências que, sendo mais condicionais que determinísticas, estão sujeitas a deliberações de natureza reflexiva com relação à natureza da resposta, e seus poderes pessoais incluem as habilidades de resisti-las ou driblá-las”.

Os aportes analíticos aqui articulados são viáveis e promissores para o aprofundamento das interpretações das narrativas de mulheres de modo que a sociologia possa apreender tanto os condicionantes estruturais, culturais, institucionais e emocionais como as disposições de ação das mulheres.

Considerações finais

Visões sobre as mulheres em situação de pobreza tendem a polarizar os enfoques na vitimização ou no heroísmo. Essa tendência atravessa tanto os estudos sociológicos quanto os programas de desenvolvimento formulados para o combate à pobreza. O primeiro enfoque dá lugar a políticas que tutelam as mulheres, contribuem com formas de promoção da impotência e as concebe como dependentes. O segundo dá lugar às narrativas, por exemplo, sobre a mulher negra e pobre como “guerreira”, algo comum no imaginário social brasileiro e que Sueli Carneiro (2015CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2015.) criticou ao apontar a exclusão, discriminação e rejeição social que produzem o “matriarcado da miséria”. Esse enfoque resulta em desproteção social.

Rejeitando as visões de vitimização ou de heroísmo (ou voluntarismo) sobre as mulheres, especialmente as mulheres em situação de pobreza, neste artigo argumentei em favor de um arcabouço que valoriza a agência e a autonomia como recursos conceituais e teóricos necessários para a compreensão das experiências das mulheres consideradas em contextos particulares. Em termos teóricos, sustentei que, mesmo em contextos de vulnerabilidades, os indivíduos atuam como agentes e dispõem de alguma faixa de autonomia, e, dadas as desigualdades de gênero, de classe e de raça, isso é ainda mais relevante para as mulheres sexualizadas, empobrecidas e racializadas.

Adicionalmente, foi argumentado em favor de análises que escapem da dicotomia entre o microssociológico e o macrossociológico e valorizem o nível meso, a fim de apreender e explicar tanto os condicionantes estruturais, culturais, institucionais e emocionais como as disposições de ação dessas mulheres. Análises mesossociológicas podem ser empreendidas considerando o contexto no qual se localiza a ação e podem, assim, compreender tanto as regularidades como as variações por meio de percepções e intersubjetividades constituídas no cotidiano.

Com recursos teóricos adequados, é possível escapar das interpretações e das intervenções que infantilizam as mulheres ou as tomam como heroínas, como têm sido as abordagens predominantes nos programas de desenvolvimento voltados às populações em situação de pobreza. Conceber essas mulheres como sujeitos autônomos, com desejos e interesses próprios, produz visões mais adequadas sobre os contextos de pobreza, com melhores condições de construir respostas às necessidades das mulheres.

Agradecimento

Agradeço o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo financiamento desta pesquisa

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  • 1
    Parte das críticas à agenda do desenvolvimento pode ser encontrada em: Cornwall et al. (2012). Sobre um diálogo entre as críticas ao colonialismo e a defesa de uma concepção feminista de desenvolvimento universalista, ver Nussbaum (2001).
  • 2
    Embora Sen tenha alcançado grande notoriedade com a abordagem das capacidades, interessam igualmente os aportes de Nussbaum para essa abordagem. Aqui não há espaço e oportunidade para discorrer sobre as aproximações e distanciamentos entre as duas propostas.
  • 3
    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MARIANO, Silvana Aparecida. “Agência e autonomia feminina: aportes para estudos sociológicos em contextos de pobreza urbana”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 3, e68075, 2021
  • Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), bolsa PQ2
  • 5
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 6
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2019
  • Revisado
    29 Abr 2021
  • Aceito
    24 Maio 2021
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