Acessibilidade / Reportar erro

Estratégias de Resistência de Negras Cotistas Lésbicas e Bissexuais

Strategies of Resistance of Black Quota Holder, Lesbian, and Bisexual Women

Estrategias de Resistencia de Cotistas Negras Lesbianas y Bisexuales

Resumo:

Neste artigo, analisamos estratégias de resistência de mulheres negras cotistas, lésbicas e bissexuais em uma universidade estadual no Centro-Oeste do Brasil, sob a perspectiva do “não-lugar social”. Alguns dos fatores interferentes na permanência dessas mulheres na universidade, assim como a maneira com que elas os enfrentam, foram evidenciados por meio de entrevistas semiestruturadas realizadas com quatro graduandas da instituição, no período de 2017 a 2018. A pesquisa baseou-se em referenciais que fazem a interface entre educação, gênero e relações raciais, feminismo negro e lésbico. Nas conclusões, delinearam-se processos que podem tornar a academia, desde a graduação, como um espaço social não acolhedor para as mulheres negras, ao subtender que estas mulheres são incapazes de exercer atividades intelectuais, o que as leva a procurar ações afirmativas e variadas redes de apoio.

Palavras-chave:
políticas afirmativas; permanência; mulheres negras; lésbicas; bissexuais

This article analyzes resistance strategies of black coeducated, lesbian and bisexual women in a state university in the Midwest of Brazil, from the perspective of "social non-place". Some of the factors interfering in the permanence of these women in the university, as well as the way they face them, were evidenced through semi-structured interviews conducted with four undergraduate students of the institution, in the period from 2017 to 2018. The research was based on references that interface education, gender and race relations, black and lesbian feminism. In the conclusions, processes were outlined that evoke the academy since graduation as an unwelcoming social space for black women, subtending that these women are unable to perform intellectual activities, forcing them to seek affirmative action and varied support networks

Keywords:
Affirmative policies; Permanence; Black women; Lesbians; Bisexuals


Resumen:

Este artículo analiza las estrategias de resistencia de las mujeres negras coeducadas, lesbianas y bisexuales en una universidad estatal del Medio Oeste de Brasil, desde la perspectiva del "no lugar social". Algunos de los factores que interfieren en la permanencia de estas mujeres en la universidad, así como la forma de enfrentarlos, fueron evidenciados a través de entrevistas semiestructuradas realizadas a cuatro estudiantes de pregrado de la institución, en el periodo comprendido entre 2017 y 2018. La investigación se basó en referencias que hacen la interfaz entre la educación, las relaciones de género y raza, el feminismo negro y el lesbiano. En las conclusiones, se esbozaron procesos que evocan a la academia desde la graduación como un espacio social no acogedor para las mujeres negras, subtendiendo que estas mujeres son incapaces de realizar actividades intelectuales, obligándolas a buscar acciones afirmativas y diversas redes de apoyo.

Palabras clave:
políticas afirmativas; permanencia; mujeres negras; lesbianas; bisexuales

Introdução

Este artigo é decorrente da análise sobre as estratégias de resistência de mulheres negras cotistas lésbicas e bissexuais, sobretudo no que se refere a um “não-lugar social” que opera no ambiente universitário, o qual, muitas vezes em função de posturas discriminatórias, é evocado para lembrar as estudantes em questão que ali não é um espaço social para elas e que às mulheres negras não caberia uma função de intelectuais. A pesquisa foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas com quatro mulheres negras, graduandas da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), no período de 2017 a 2018. A UEMS constitui-se em um lócus privilegiado por ser uma das pioneiras na implementação de cotas raciais para negros e negras, por meio da Lei nº 2.605, de 2003 (GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL, 2003GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. Lei nº 2.605, de 06 de janeiro de 2003. Reserva de vagas para negros na UEMS. Campo Grande/MS: Assembleia Legislativa, 2003. Disponível em http://flacso.org.br/?publication=lei-no-2-605-de-6-de-janeiro-de-2003-dispoe-sobre-a-reserva-de-vagas-para-negros-nos-cursos-de-graduacao-da-universidade-estadual-de-mato-grosso-do-sul-e-da-outras-providencias.
http://flacso.org.br/?publication=lei-no...
).

A trajetória acadêmica refere-se aqui em específico ao percurso destas mulheres negras cotistas lésbicas e bissexuais durante a graduação, sendo que memórias foram evocadas ao longo das entrevistas sobre o percurso destas na educação básica, bem como vivências em outros espaços sociais. Na época do contato com as graduandas, foram-lhes enviados convites via Facebook e WhatsApp. Para isso, contatou-se integrantes do Centro de Estudo, Pesquisa e Extensão em Educação, Gênero, Raça e Etnia (CEPEGRE) e de dois Coletivos Estudantis, um que atua na questão negra, e outro na diversidade sexual, todos na UEMS, que indicaram possíveis estudantes negras cotistas lésbicas e bissexuais na instituição.

Esse recorte de público-alvo foi desafiador, pois não houve respostas de muitos convites feitos. No entanto, as quatro estudantes que aceitaram também não responderam de imediato; houve sempre um período de silêncio até o aceite, o qual foi respeitado. Nesse momento, uma delas ficou preocupada se seria exposta publicamente, pois a família ainda não sabia que a pesquisada era bissexual. Explicou-se novamente o caráter de sigilo da pesquisa, e que os relatos de experiências que esta traria seriam de suma importância. O contato com uma delas, lésbica, que coordena um desses Coletivos Estudantis, foi fundamental para a indicação, a comunicação e a confiança estabelecida com as outras três entrevistadas. Com isso, a pesquisa se concentrou numa das unidades acadêmicas da UEMS, no interior do Estado, visto não ter havido retorno de estudantes de outras duas unidades que também compunham o campo empírico da pesquisa.

Era realizado, portanto, o primeiro contato pelo aplicativo de comunicação e, após o retorno da estudante, se combinava o local e o horário que ficaria mais adequado para a entrevista. As entrevistas foram gravadas e depois transcritas, sendo que as entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e tiveram seus nomes mantidos em sigilo, recebendo a nomenclatura: Entrevistada 1; Entrevistada 2; Entrevistada 3; e Entrevistada 4. Os perfis são descritos abaixo, conforme autodeclaração das mesmas (Quadro 1):

Quadro 1
Perfil das Estudantes Entrevistadas

As quatro estudantes entrevistadas informaram que estão fazendo a primeira graduação. Além disso, a Entrevistada 1 é natural da capital São Paulo e não trabalha fora, se mantém com ajuda financeira da família, que possui renda de dois a três salários mínimos; a Entrevistada 2 é natural do interior de Goiás, trabalha fora para se manter, possui renda de 1 a 2 salários mínimos; a Entrevistada 3 é natural do interior de São Paulo, se mantém com a bolsa do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), possui renda de meio a um salário mínimo, mora com a namorada e colegas; e a Entrevistada 4, que não é cotista, mas denuncia a discriminação racial que a afeta ao ser rotulada como cotista por ser preta, é natural do interior de Mato Grosso do Sul, da cidade onde as entrevistas ocorreram, trabalha fora e também é bolsista PIBID, possui renda de 1 a 2 salários mínimos e mora com colegas.

Deste modo, são estudantes negras que, em sua maioria, se deslocaram geograficamente de suas localidades de origem, compõem as classes E (que ganham de meio a um salário mínimo) e D (que ganham de dois a quatro salários mínimos), conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2010. Características da população e dos domicílios. Resultado do Universo. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
), que precisam trabalhar fora, pois a renda que possuem é insuficiente para que possam se manter como estudantes. São mulheres negras universitárias que, em suas estratégias de resistência, como apontaremos, quebram silêncios frente ao racismo, machismo e lesbofobia. Elas rompem com uma socialização que se deu em processos de ensino-aprendizagem racistas, machistas e heteronormativos, problematizam o espaço universitário e nos desafiam na democratização da educação superior, visto que, como destaca Sandra Marcelino (2016MARCELINO, Sandra Regina de Souza. “Entre o racismo e a lesbofobia: relatos de ativistas negras lésbicas do Rio de Janeiro”. Gênero, Niterói, v. 16, n. 2, p. 111-129, 1 sem. 2016., p. 123), essa presença questiona discursos construídos em relação às mulheres, às negras, às lésbicas, pois “[...] a negra lésbica subverte o feminino, rompe com a heteronormatividade e transgride o espaço destinado à mulher negra em uma sociedade racista”.

Democratização do acesso à educação superior pública brasileira

No contexto de expansão da educação superior pública brasileira, após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN (BRASIL, 1996BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado Federal, 1996. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), o desafio que se coloca é a democratização da mesma. As políticas de ações afirmativas voltadas para estudantes oriundas e oriundos de escolas públicas, negras e negros, indígenas, entre outros, têm possibilitado que grupos historicamente alijados da universidade ocupem esse espaço, problematizando com sua presença a ideia elitista de educação, centrada no padrão hegemônico do homem branco de classe média e alta tido como rico, heterossexual, urbano, cristão, sem deficiência. Portanto, a categoria de acesso é aqui entendida de modo ampliado enquanto ingresso, permanência, conclusão e formação de qualidade na educação superior (Maria das Graças Martins da SILVA, 2011SILVA, Maria das Graças Martins da. “Expansão na educação superior e a política de democratização: avanços e contradições”. In: SILVA, Maria das Graças Martins da (Org.). Políticas educacionais: faces e interfaces da democratização. Cuiabá: Universidade Federal do Mato Grosso, 2011. p. 13-37.), e a categoria permanência como sendo “[...] as políticas, os programas e ou as ações assumidas pela instituição que visam garantir, atender e ou sanar aspectos não apenas de ordem socioeconômica, mas também pedagógicas e culturais” (Maria José de Jesus Alves CORDEIRO; Ana Luisa Alves CORDEIRO; Maria Lucia Rodrigues MULLER, 2016CORDEIRO, Maria José de Jesus Alves; CORDEIRO, Ana Luisa Alves; MULLER, Maria Lucia Rodrigues. “A permanência de estudantes na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)”. Revista da Faculdade de Educação UNEMAT, Cáceres, v. 25, ano 14, n. 1, p. 131-153, jan./jun. 2016., p. 134).

Com isso, não são esses grupos historicamente alijados da universidade pública brasileira que devem se encaixar num processo de ensino-aprendizagem elitista, machista, racista, heteronormativo, não laico, mas a cultura universitária que precisa se reeducar para as questões raciais, de gênero, sexualidade e classe, ou seja, para a perspectiva do respeito, da valorização e do reconhecimento do direito que a outra e o outro têm de ser diferente e ter acesso a conhecimentos e saberes diversos, sem ter de passar por processos de epistemicídios no ambiente universitário. Portanto, as cotas raciais se referem a processos de igualdade de oportunidades no acesso a direitos sociais, entre eles a educação, bem como de igualdade de realização no sentido de se ter condições para usufruir dessas oportunidades.

Para Sueli Carneiro (2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011., p. 92-93), intelectual negra brasileira, o epistemicídio é o “aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual”, o modo como o racismo e a discriminação racial afetam pessoas no cotidiano escolar. Esse processo tenta retirar das negras e dos negros a condição de sujeitos de conhecimento, omite as contribuições da cultura africana e afro-brasileira, impõe o embranquecimento cultural e leva ao fracasso e à evasão escolar, ou seja, à exclusão escolar.

As mulheres negras lésbicas e bissexuais se veem em processos de resistência dentro da universidade, do início ao fim do curso, o que faz da resistência aqui uma categoria de análise. Para bell hooks (2017hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.),1 1 A pedido da autora, “bell hooks” é escrito em letras minúsculas, sendo um pseudônimo de Gloria Jean Watkins. intelectual negra estadunidense, a resistência precisa de uma linguagem política e, muitas vezes, que se crie uma solidariedade política para resistir. A autora aponta que novas teorias permitem compreender a situação em que nos encontramos, bem como por quais meios podemos tecer engajamentos coletivos numa resistência que transforma a nossa realidade. Ela afirma ainda que a classe social informa não apenas questões econômicas, mas molda valores, atitudes, relações sociais e preconceitos que indicam como o conhecimento deve ser distribuído e recebido na universidade. Alunas e alunos pobres ou oriundas e oriundos da classe trabalhadora devem, por iniciativa própria, abandonar os valores associados à sua origem social e aquelas e aqueles com origem racial não podem dar voz à sua cultura nos ambientes de elite. Essas reflexões nos trazem elementos importantes para pensarmos a educação brasileira como prática da liberdade a partir de um conhecimento libertador. Sendo que tais aspectos estão presentes na pesquisa, as mulheres negras entrevistadas fogem da norma heteronormativa e adentraram a universidade por meio das cotas raciais, com o critério de que sejam oriundas de escola pública, possuindo renda que as situam entre a população com vulnerabilidade social.

Angela Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 34), outra intelectual negra estadunidense, ao analisar a escravidão nos Estados Unidos e os processos de desumanização das mulheres negras, destaca que uma das estratégias da supremacia branca masculina era pregar, a partir da ideologia dominante, a incapacidade intelectual da população negra, privando-a por séculos da educação. O anseio pelo conhecimento, por educação, sempre esteve presente na população negra, sendo que, além das revoltas, fugas, sabotagens, a resistência à escravidão envolvia “[...] aprender a ler e a escrever de forma clandestina, bem como a transmissão desse conhecimento aos demais”.

Historicamente, a universidade não é vista como um lugar social para as mulheres negras, seja como discente ou docente. Ocupar esse espaço é se apropriar de um direito social garantido em lei, tanto na Constituição Federal (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
), como na LDBEN (BRASIL, 1996). Nas décadas de 1980 e 1990, intelectuais negras brasileiras já apontavam as intersecções que afetam a especificidade de ser mulher negra no Brasil. Lélia Gonzalez (1983GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, Luiz Antônio Machado da et al. Ciências Sociais Hoje: Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Brasília, ANPOCS, n. 2, p. 223-244, 1983., p. 223) destacava o “lugar” em que a mulher negra é situada na sociedade brasileira e como o fenômeno do racismo e sexismo a afeta, evidenciando com isso, no discurso de denúncia feito por mulheres negras, as noções que as perseguem de “mulata, doméstica e mãe preta”. Luiza Bairros (1995BAIRROS, Luiza. “Nossos feminismos revisitados”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 458-463, 1995.) pontuava que existem diferentes experiências de ser pessoa negra, vivenciadas no gênero, e de ser mulher, experienciadas na raça, sendo que raça, gênero, classe social, orientação sexual, entre outras, afetam as inúmeras experiências de ser mulher negra. Para hooks (1995hooks, bell. “Intelectuais negras”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 464-478, ago./dez. 1995., p. 468-470), a cultura patriarcal, em sua supremacia branca, interdita o trabalho intelectual para as mulheres negras, ao propagar um padrão de mulher negra que está no mundo unicamente para servir aos outros. Esta última autora continua dizendo que ora as mulheres negras são vistas como “símbolo sexual”, corpo sem mente, o que legitimou a exploração masculina branca e o estupro das mulheres negras no período da escravidão; ora como a “mãe preta” disposta a servir abnegadamente, a limpar a sujeira de todos; e ora como “empregada doméstica”, sendo que, independente do status de trabalho ou da carreira escolhida, esses padrões e (anti)modelos são evocados para deslegitimar suas escolhas como intelectuais.

No fim dos anos 1980, a presença de negras e negros na educação superior brasileira era praticamente nula. Nos anos 2000, as políticas de ação afirmativa são implementadas como políticas públicas num cenário em que o Estado brasileiro passou a pautar a questão racial há muito demandada pela sociedade civil organizada e por pressões internacionais. Kabengele Munanga (2003MUNANGA, Kabengele. “Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas”. In: SILVA, Petrolina Beatriz Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto. Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: INEP/MEC, 2003. p. 115-128., p. 117) cita diversos países que já tinham implantado ações afirmativas como, por exemplo, Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia e Malásia, com a intenção de “[...] oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas do racismo e de outras formas de discriminação”.

As pressões históricas do movimento negro e movimento de mulheres negras fizeram com que o então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1998; 1999-2002) assumisse publicamente que o Brasil é um país racista, rompendo com discursos governamentais que enfatizavam uma democracia racial, como se todas as pessoas convivessem harmoniosamente no país. Em 2001, as pressões o levaram a participar da III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada pela ONU, em Durban, na África do Sul, assinando a Declaração de Durban e assumindo perante o mundo o compromisso com a implementação de ações afirmativas como medidas positivas de enfrentamento ao racismo e violências correlatas, entre elas, a de gênero. Nos anos seguintes, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) pautou em seu governo uma gestão voltada para a implementação das ações afirmativas, que tiveram sua continuidade com a então presidenta Dilma Rousseff (2011-2016, cujo segundo mandato foi interrompido). Nesses anos, houve a criação de órgãos como a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), em 2003, com status de Ministério, bem como de planos, programas e leis (Ex.: Lei nº 10.639 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Cultura e História Afro-brasileira e Africana. Brasília: Presidência da República, 2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm#:~:text=L10639&text=LEI%20No%2010.639%2C%20DE%209%20DE%20JANEIRO%20DE%202003.&text=Altera%20a%20Lei%20no,%22%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), Estatuto da Igualdade Racial (BRASIL, 2010 BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: Presidência da República, 2010. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), Lei nº 12.7211 (BRASIL, 2012BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Lei das Cotas. Brasília: Presidência da República, 2012. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), Lei nº 12.990 (BRASIL, 2014BRASIL. Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas nos concursos públicos. Brasília: Presidência da República, 2014. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), Portaria Normativa nº 13 (BRASIL, 2016BRASIL. Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016. Ações Afirmativas na Pós-graduação. Brasília: MEC, 2016. Disponível em https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/21520493/do1-2016-05-12-portaria-normativa-n-13-de-11-de-maio-de-2016-21520473.
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_pu...
), sendo que após a interrupção do mandato de Dilma Rousseff se iniciou um cenário de desmonte de secretarias com pautas sociais (CORDEIRO, 2017CORDEIRO, Ana Luisa Alves. Políticas de ação afirmativa: implicações na trajetória acadêmica e profissional de afro-brasileiros/as cotistas egressos/as da UEMS (2007-2014). 2017. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação) - Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, Brasil.).

As ações afirmativas são, a partir de Joaquim Gomes (2005GOMES, Joaquim Barbosa. “A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro”. In: SANTOS, Sales A. dos (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC/UNESCO, 2005. p. 47-82.), um conjunto de políticas públicas e privadas no enfrentamento às diversas discriminações (raça, gênero, deficiência, orientação sexual, origem nacional, entre outras), que buscam corrigir efeitos atuais de discriminações também praticadas no passado visando concretizar o ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais, entre eles, a educação e o emprego. E ainda, leis ou intervenções, conforme Ahyas Siss (2003SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, cotas e ação afirmativa: razões históricas. Rio de Janeiro: Quartet, 2003.), enquanto ações do Estado direcionadas a grupos específicos historicamente em desvantagem, que devem acompanhar as políticas universalistas. A política de cotas, conforme Munanga e Nilma Lino Gomes (2006MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Editora Global, 2006., p. 191-192), é “a prática de estabelecer uma proporção ou número de vagas para estudantes em instituições educativas e para trabalhadores no mercado de trabalho a partir de critérios sociais”. As cotas raciais são, portanto, uma das estratégias de ações afirmativas.

Essa mudança na forma de o Estado brasileiro enfrentar as desigualdades raciais, como afirma Carneiro (2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011., p. 116), rompe com fatores que perpetuam a subalternidade social da população negra, num “[...] círculo vicioso em que a falta da escolaridade exigida torna-se motor da exclusão do emprego e a ausência do emprego é mais uma fonte de impedimento do acesso, da permanência e da conquista dos níveis superiores de escolaridade”.

Nessa perspectiva, a Lei nº 12.711 (BRASIL, 2012) dispõe sobre ações afirmativas na graduação e a Portaria Normativa nº 13 (BRASIL, 2016) trata da indução de ações afirmativas na pós-graduação. Com base nesta Portaria, diversas universidades públicas vêm implementando ações afirmativas na pós-graduação, para negras e negros, quilombolas, indígenas, pessoas com deficiência, transexuais, travestis e transgêneros, como, por exemplo, a Universidade Federal do Sul da Bahia, Universidade Federal do Cariri, Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, entre outras. A UEMS aprovou, em agosto de 2018, norma nesse sentido. Importante destacar que, recentemente, em meio ao contexto de pandemia da covid-19, o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, dias antes de sua saída, publicou a Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020 (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020. Revoga a Portaria Normativa MEC nº 13, de 11 de maio de 2016. Brasília: MEC, 2020a. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-545-de-16-de-junho-de-2020-262147914.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
a), a qual revogava a Portaria nº 13 (BRASIL, 2016), o que gerou inúmeras manifestações por parte da sociedade brasileira, fazendo com que fosse publicada a Portaria nº 559, de 22 de junho de 2020 (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 559, de 22 de junho de 2020. Torna sem efeito a Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020. Brasília: MEC, 2020b. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-559-de-22-de-junho-de-2020-262970520.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/porta...
b), tornando sem efeito a Portaria nº 545, o que expressa as tensões presentes no corrente cenário brasileiro e as perspectivas do trato que se dá para a questão racial no atual governo federal de Jair Messias Bolsonaro.

Concordamos com Carneiro (2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.) que as políticas universalistas no Brasil caminharam junto com o mito da democracia racial, cobrindo com o manto da democracia e igualdade a exclusão racial e social que perpetua privilégios. Deste modo, as cotas raciais rompem com o ciclo de alijamento da população negra no acesso à educação superior. Para Gomes (2002GOMES, Nilma Lino. “Educação e Identidade Negra”. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p. 38-47, 2002., p. 42), as diferenças raciais são transformadas em desigualdades raciais no âmbito escolar, estereótipos são criados em torno da identidade negra, na ideia de um “não-lugar social” imposto aos negros, isolando-os nas injustas condições socioeconômicas da classe trabalhadora, impedindo que sejam vistos enquanto sujeitos históricos, sociais e culturais.

O conceito de raça enquanto constructo social evoca, portanto, o reconhecimento da diferença, o sentido social e político da luta, o respeito à história da população negra (MUNANGA; GOMES, 2006MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Editora Global, 2006.), sendo que atua também como “mecanismo de estratificação social fundamentado na percepção da diversidade fenotípica, como cor da pele e textura de cabelo” (SISS, 2003SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, cotas e ação afirmativa: razões históricas. Rio de Janeiro: Quartet, 2003., p. 21). Por isso, a discriminação racial é “[...] a prática do racismo e a efetivação do preconceito” (MUNANGA; GOMES, 2006, p. 184).

Em seu estudo, Marcelino (2016MARCELINO, Sandra Regina de Souza. “Entre o racismo e a lesbofobia: relatos de ativistas negras lésbicas do Rio de Janeiro”. Gênero, Niterói, v. 16, n. 2, p. 111-129, 1 sem. 2016., p. 23) aponta que a universidade, para muitas mulheres negras, é um divisor de águas e espaço de organização, formação e negociações políticas que as levaram/levam à tomada de consciência crítica, compreensão da questão racial e da identidade negra, embora, para muitas outras, isso ocorra na militância ou, ainda, nos dois espaços. Ela destaca que, nas narrativas de algumas de suas entrevistadas, a opressão em relação à orientação sexual se expressava em função da performance corporal; já para outras, na cor que não podia ser camuflada, e as colocava em lugares de subordinação. O taxativo questionamento emerge: “além de preta é sapatão?”. Como Geanine Escobar e Maria Baptista (2016ESCOBAR, Geanine Vargas.; BAPTISTA, Maria Manuel Rocha Teixeira. “O pensamento das mulheres negras e a lesbianidade negra em contexto lusófono”. In: BAPTISTA, Maria Manuel Rocha Teixeira; LATIF, Larissa (Coords.). Género, Direitos Humanos e Ativismos: atas do V Congresso Internacional em Estudos Culturais. Coimbra: Gracio, 2016. p. 290-298., p. 296) pontuam, “a lesbianidade negra é resistência. As lésbicas negras resistem todos os dias à supremacia-eurocêntrica, à supremacia-heterossexista e à supremacia-machista”.

A experiência de vida das mulheres negras desafia a estrutura sexista, classista e racista (bem como heteronormativa). É importante que as mulheres negras reconheçam essa experiência e seu papel na contra-hegemonia, na construção de uma teoria feminista (hooks, 2015hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, jan./abr. 2015.). Portanto, nos embasamos no feminismo negro, em sua categoria analítica “interseccionalidade”, no sentido da interação de dois ou mais fatores de subordinação, do modo como o racismo, patriarcado, opressão de classe e demais sistemas discriminatórios produzem desigualdades que estruturam posições de mulheres, raças, classes, entre outras (Kimberlé CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.).

A categoria gênero, na perspectiva de Daniela Auad (2003AUAD, Daniela. Feminismo: que história e essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.), é compreendida como algo que:

[...] não é apenas sinônimo de sexo, masculino ou feminino. Gênero também é o conjunto de expressões daquilo que se pensa sobre o masculino e o feminino. Ou seja, a sociedade constrói longamente, durante os séculos de sua história, significados, símbolos e características para interpretar cada um dos sexos (AUAD, 2003AUAD, Daniela. Feminismo: que história e essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003., p. 57).

Auad (2003AUAD, Daniela. Feminismo: que história e essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.) destaca ainda que gênero é um conceito que caminha ao lado do conceito de patriarcado, no contexto do movimento de luta pelos direitos das mulheres. Para Heleieth Saffioti (2015SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015., p. 47, grifos da autora), gênero diz respeito ao “[...] conceito de patriarcado, que, como o próprio nome indica, é o regime da dominação-exploração das mulheres pelos homens”.

Gênero, além de ser uma categoria de análise, é uma categoria histórica, que Joan Scott (1988 apudSAFFIOTI, 2015SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015., p. 47) concebe como “símbolos culturais evocadores de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva”. Porém, haveria um consenso entre as feministas de que “gênero é a construção social do masculino e do feminino” (SAFFIOTI, 2015, p. 47). Além das questões raciais, de gênero e classe, observaremos a intersecção da orientação sexual, sem desconsiderar outros fatores de opressão evocados pelas entrevistadas como, por exemplo, a gordofobia.

A sexualidade é aqui também entendida como uma construção social, a partir de Guacira Louro (2010LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.), que se dá ao longo da vida. Além de uma questão pessoal, é social e política, sendo definida por processos culturais que querem conceber o que é ou não natural. Os corpos possuem sentido social e historicamente construído. As possibilidades da sexualidade, ou seja, de como expressar desejos e prazeres, serão estabelecidas pela sociedade e por ela codificadas. As identidades de gênero e sexuais são definidas por relações sociais e moldadas por redes de poder constituídas socialmente. É a partir da cultura e da história que identidades sociais se constituem, sejam as sexuais, de gênero, raciais, de nacionalidade, de classe, entre outras. Em relação à sexualidade, a heterossexualidade é generalizada e naturalizada como referência e norma para todas e todos. Essas diversas determinações que constituem as identidades das mulheres negras lésbicas e bissexuais, que acessam a educação superior como cotistas, são observadas no sentido que destaca Saffioti (2015SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 2 ed. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015., p. 123), como determinações que “tornam a situação destas mulheres muito mais complexas”.

Na universidade, de acordo com hooks (2017hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017., p. 246), “[...] os privilégios de raça, sexo e classe dão mais poder a alguns alunos que a outros, concedendo mais ‘autoridade’ a algumas vozes que a outras”. Nos relatos das entrevistadas que apresentaremos nos tópicos a seguir, é possível observar essa dimensão do direito de falar, da quebra do silêncio quando espaços tentam deslegitimá-las, sendo o espaço universitário um local de constantes enfrentamentos e resistências. Acreditamos, como enfatiza Marcelino (2016MARCELINO, Sandra Regina de Souza. “Entre o racismo e a lesbofobia: relatos de ativistas negras lésbicas do Rio de Janeiro”. Gênero, Niterói, v. 16, n. 2, p. 111-129, 1 sem. 2016., p. 126, grifos da autora), que “quebrar o silêncio no universo das mulheres é um exercício político, uma vez que o gênero, a cor, a classe e a orientação sexual implicam em estigmas e preconceitos [...] aquelas que se desviam da lógica socialmente construída tendem a compor o quadro estatístico da violência”.

Fatores interferentes na permanência de mulheres negras cotistas lésbicas e bissexuais

Em relação à permanência na universidade, procuramos detectar os fatores interferentes no âmbito das questões socioeconômicas, pedagógicas e culturais, que no caso das mulheres negras cotistas lésbicas e bissexuais são demarcados e atravessados pelas questões raciais, de classe, gênero e orientação sexual. A complexidade das identidades dessas alunas, das intersecções que as constituem estão correlacionadas aos enfrentamentos que se veem tendo de fazer do início ao fim do curso, para obter o almejado diploma. Um processo que, para algumas delas, trouxe desgaste e afetou os estudos, mas que se mostra necessário na defesa de direitos e da dignidade de ser humano.

Quando indagadas, de modo geral, sobre o que afetava a permanência delas, emergiram algumas questões importantes. A condição social delas implica diretamente a permanência na universidade, diz respeito às condições básicas de sobrevivência, de manutenção da vida. Assim, enfatizaram questões financeiras, a importância da ajuda da família, as dificuldades de ter que trabalhar e estudar, as poucas bolsas de permanência, o fato de a instituição ainda não ter restaurante universitário e nem moradia estudantil.

[...] eu nunca tive bolsa na faculdade, nenhum auxílio... nada. Meus pais me enviam o que podem e se faltar, tipo acontecer alguma coisa dentro de casa e precisa pagar, sei lá, cem reais de conserto, eu vou ter que dar meus pulos. Então, eu faço bico, faço unha, faço cabelo, maquiagem [...] fico com idoso na Santa Casa, às vezes, quando aparece. Tudo! (ENTREVISTADA 1, 2017).

[...] por mais que seja uma universidade do interior e as coisas acabam sendo bem próximas, mas não ter um RU (menção ao Restaurante Universitário) [...] não ter a moradia estudantil, isso acaba desmotivando um pouco, porque mesmo que, por exemplo, na casa onde eu moro a gente consegue, já que são bastantes pessoas não fica tão pesada as contas pra todo mundo, viver com quatrocentos reais [...] a bolsa ser tão pouca e eu ter que viver desse modo, tem gente que não consegue, aí tem que morar em pensão, alugar casa sozinho, acaba desistindo. Eu tive vários amigos que entraram comigo nas Ciências Sociais, pelo sistema de cotas, mas que desistiram já no primeiro ano porque não conseguiram permanecer. Eu tive a sorte de chegar aqui e já ter onde morar, já ter uma casa e tal, e essas pessoas que entraram junto comigo tiveram que se virar (ENTREVISTADA 3, 2017).

No caso da Entrevistada 3, que mora com a namorada e colegas, ela pontua como isso foi importante para sua permanência: chegar na cidade e ter onde morar. Ela continua destacando questões pedagógicas e culturais:

[...] fora esse problema com o dinheiro, não ter essa assistência, ainda tem essa relação com os professores que não é muito boa porque eles sempre acham que a gente tem capacidade de fazer todos os trabalhos que eles mandam a gente fazer. E aí quando a gente não consegue, não se sente capaz, e isso deixa a gente muito ruim, muito mal, poucos deles se sensibilizam com isso, se sensibilizam com essa nossa dificuldade, essa angústia, acho que bate uma depressão assim, acho que em muitos, a maioria cotistas, acaba acontecendo isso. Acho que com todo mundo da universidade que não tem muitas condições, aqui o curso de Ciências Sociais ele é bem, como que eu posso falar, ele é bem da classe trabalhadora mesmo, que ocupa mesmo esse curso [...] o Direito aqui é muito diferente do curso de Ciências Sociais e da Pedagogia, na minha sala a maioria trabalha, se não são os trabalhadores que são da cidade, é o pessoal, os jovens da minha sala é o pessoal que vem de fora, que nem eu que vem de São Paulo, que vem do interior aqui ao redor, de Brasília (ENTREVISTADA 2, 2017).

O fato de ela apontar que no curso de Ciências Sociais a maioria vem da classe trabalhadora expressa o perfil das/os estudantes que ingressam na UEMS e as contradições inerentes à ocupação de vagas em cursos tidos como elitizados, como o Direito. O Relatório Parcial da Comissão Própria de Avaliação - CPA 2012-2015 (UEMS, 2014UEMS. Relatório parcial da Comissão Própria de Avaliação. Ciclo de 2012-2015. UEMS: CPA, 2014.) pontua que, em 2014, 85% do corpo discente da UEMS era composto por pessoas oriundas de escolas públicas, de famílias com até três salários mínimos; taxa que se mantém em 80% no ciclo 2016-2018. E a Entrevistada 2 relatou ainda que é bolsista PIBID e que, no momento da entrevista, estava recebendo uma bolsa emergencial que havia solicitado para a coordenação do curso, mas que ambas as bolsas acabariam em poucos meses. As dificuldades pedagógicas apontadas demandam a necessidade de estratégias institucionais de nivelamento e de acompanhamento de estudantes que ingressam especialmente após diversas chamadas ou que possuem uma defasagem educacional de etapas de ensino anteriores.

A Entrevistada 2 enfatizou o fato de ser mulher, negra e pobre, sendo que, em diversos momentos, expressou cansaço de ter que escolher no dia se vai estudar ou trabalhar, e como gostaria de ter mais tempo para se dedicar ao estudo.

[...] não consegui bolsa permanência, eu tive alguns problemas, eu tive um projeto ano passado de extensão e eu tive muitos problemas com o meu orientador, e hoje olhando fora de todo aquele estresse, eu entendo que por eu ser mulher, ser negra e por ser pobre [...] eu não consigo me manter se eu não trabalhar, só que também eu não sei se eu consigo me manter na universidade trabalhando. É muito complicado [...] O PIBID, por exemplo, me trouxe pra realidade da escola [...] além do auxílio, da grana pra se manter, ele também te leva lá pro chão da escola, pra você ter aquele choque de realidade (ENTREVISTADA 2, 2017).

A Entrevistada 2 compartilhou ainda que o fato de o professor orientador tentar barrar sua intervenção num caso de machismo, que ela e outras estudantes estavam vivenciando em sala de aula, pesou na desistência da bolsa de extensão. Já a Entrevistada 4 relatou que tinha bolsa desde que ingressou na universidade, mas que passava por dificuldades financeiras. Afirmou que teve o vale universidade por um ano, quando conseguiu a Bolsa PIBID, e o deixou, pois via na iniciação à docência algo importante para sua formação. Destacou que a bolsa foi importante, pois permitiu que ela permanecesse em um curso matutino, que não abandonasse a universidade, apesar do valor de quatrocentos reais ainda ser pouco: [...] sempre precisei trabalhar, e eu tive vários problemas até na questão de aprendizagem mesmo, de conhecimento. Eu tive uma formação que não foi tão boa por conta disso, de ser uma estudante trabalhadora.

A Entrevistada 4 seguiu no apontamento de fatores pedagógicos e culturais, ao pontuar questões de racismo e machismo, e expressou a dificuldade de se manter num espaço em que se está sujeita a diversas violências.

[...] ouvir de professor que não vai orientar aluno cotista porque ‘não tem tanta inteligência, vai dar muito trabalho’, ter que ouvir de professor que ‘nossa, vocês mulheres negras, vocês são tão emocionais, vocês não dominam a oratória, vocês não conseguem falar sem chorar, sem gritar’ [...] essas e outras coisas acabam dificultando a nossa permanência nesse espaço e já é tão difícil entrar, permanecer se torna uma missão impossível, uma saga (ENTREVISTADA 4, 2017).

Permanecer é uma saga! Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.), ao abordar a história do movimento abolicionista, do movimento antiescravagista, nos Estados Unidos, destaca como as mulheres, em especial as mulheres negras, eram hostilizadas e agredidas ao falarem em público, visto que a oratória era considerada uma atividade masculina. A Entrevistada 4 foi a que não optou pelas cotas na época em que fez a seleção para ingresso na UEMS. Ela contou: quando eu saí do ensino médio, o que eu ouvia das professoras da escola e que todos à minha volta diziam era ‘olha você tem que entrar sem precisar das cotas, pra provar que você é uma pessoa inteligente’. Das quatro entrevistadas, ela é a que possui o fenótipo com a pele mais escura. O fenótipo desta mulher que não era cotista foi usado para que ela fosse rotulada como cotista, de forma pejorativa por parte de um professor. Como Carneiro (2011CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011., p. 92) nos alerta muitas vezes, o aparelho educacional se constitui como “fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual” da população negra.

A complexidade da identidade e o modo como este professor deslegitima esta aluna enquanto sujeita histórica, no ambiente universitário, expressa que ela, por ser uma mulher preta lésbica periférica (como ela mesma se afirma), logo seria cotista, o que ele relaciona como alguém sem inteligência suficiente e que lhe daria muito trabalho, logo, com um foco de estudo não digno de interesse. A pesquisa da Entrevistada 4 foi sobre o movimento de mulheres negras. Quebrar o silêncio num ambiente historicamente elitizado no Brasil, a universidade pública, é ser taxada de emocional, como alguém que não tem oratória, é ouvir isso de um professor. A estratégia que auxiliou em sua permanência foi a participação em dois coletivos estudantis.

[...] dentro do Coletivo (nome omitido) eu começo a conhecer vários gays, lésbicas, bis, nossa, eu conheci uma travesti que foi incrível para mim [...] quando começaram a se acirrar os casos de racismo dentro da universidade, a gente criou o Coletivo (nome omitido), pensando na questão das cotas dentro da universidade; esse foi o intuito e de dar suporte para esses alunos negros (ENTREVISTADA 4, 2017).

Para a Entrevistada 4, a participação nos coletivos estudantis foi uma estratégia fundamental para sua permanência. Desabafa que a gente vai se ajudando, a gente compra as brigas, a gente luta, a luta é junto e a vivência também é coletiva, a vivência nesse espaço também é coletiva, e a luta política. Esse espaço coletivo de fortalecimento, de uma força social para as lutas sociais, foi destacado como importante por outras entrevistadas, bem como o apoio de professoras/es com uma perspectiva antirracista, não machista e não LGBTfóbica.2 2 A sigla LGBT, adotada nas conferências nacionais LGBTs, se refere a ‘lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros’. A LGBTfobia significa aversão e ódio direcionados à população LGBT.

[...] se acontecer um racismo na faculdade, o pessoal que é do Coletivo já fica sabendo [...] tem apoio tanto dos alunos, tanto quanto de alguns professores. Alguns professores estão bem presentes, ainda mais se for professores que dão aula sobre direitos humanos (ENTREVISTADA 1, 2017).

[...] os coletivos, eles têm uma importância gigantesca nisso, até pra saber que você tem pra onde correr em algum momento, principalmente de fragilidade que é quando você passa por tudo isso, e pra mulher principalmente que é diário [...] essa união que as alunas do curso de Ciências Sociais tiveram ao enfrentar esses professores, esses alunos machistas, a gente não tinha um nome mas a gente era um coletivo porque a gente estava junto, a gente estava lá todas juntas com o mesmo objetivo e isso é um coletivo, a gente tinha um objetivo que era acabar com aquilo, pelo menos denunciar aquilo (ENTREVISTADA 2, 2017).

Os coletivos estudantis possibilitam a essas mulheres negras uma força social para as lutas sociais, para que estas saibam que não estão sozinhas e a quem recorrer como proteção e auxílio, tendo uma rede de apoio e militância que compartilha concepções políticas e uma solidariedade política.

Da imposição do “não-lugar social” às estratégias de resistência

Nos relatos sobre casos de racismo ou de discriminação racial que tinham sofrido por serem negras, chama atenção que, para a Entrevistada 1, isso está interligado ao fato de ser cotista. Para outras, ocorreu coletivamente, ou ainda se viram afetadas por uma discriminação muito direcionada à sexualização e invisibilização do corpo da mulher negra e à deslegitimação da fala, o que também se correlaciona com o fato de serem mulheres.

[...] uma coisa bem latente nesse espaço que é a invisibilização do corpo negro dentro da universidade, tanto na questão afetiva, a gente se acostuma a ser sozinha, a gente se acostuma a uma solidão dentro desse ambiente. O corpo negro é deixado de lado nesse espaço, tanto nas falas, tanto em momentos políticos de discussões e debates, houve casos que quando eu fui falar alguma coisa dentro do debate político, dentro do ambiente, as pessoas simplesmente ignoravam o que eu estava dizendo, e quando vinha uma pessoa branca e falava a mesma coisa que eu tinha dito a pessoa era ovacionada. Há uma invisibilização mesmo do corpo negro, da mulher preta principalmente, ou ridicularização da fala, porque o racismo se dá de várias formas e dentro desse espaço ele é bem mais velado, está bem mais nas entrelinhas das relações, do que mais explícito (ENTREVISTADA 4, 2017).

Isso rememora o “aprendizado do silêncio” para o qual Eliane Cavalleiro (2000CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2000.) chama nossa atenção, no qual a população negra é socializada desde criança em espaços escolares. A discriminação acontece desde a educação infantil, a partir da qual se introjeta que não adianta contar nada à professora ou ao professor porque nada será feito, e na prática quase sempre nada é feito mesmo. O conflito racial é desconsiderado como algo que implica nas questões pedagógicas. No entanto, a ruptura de processos de silenciamento se dá inclusive porque nossos processos de socialização ocorrem também em espaços não escolares, como em movimentos sociais, coletivos, entre outros espaços. Esses relatos expressam como a mulher negra ainda é concebida como corpo sem mente, como alguém que está única e exclusivamente neste mundo para servir, para limpar a sujeira de todos (hooks, 1995hooks, bell. “Intelectuais negras”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 464-478, ago./dez. 1995.) e o quanto a quebra do silêncio é um exercício político, cotidiano, para romper com estigmas e preconceitos, num campo de tensão e poder, de embate contra o domínio patriarcal e heteronormativo (MARCELINO, 2016MARCELINO, Sandra Regina de Souza. “Entre o racismo e a lesbofobia: relatos de ativistas negras lésbicas do Rio de Janeiro”. Gênero, Niterói, v. 16, n. 2, p. 111-129, 1 sem. 2016.).

As intersecções nas identidades das entrevistadas vão evidenciando assim a complexidade que as envolve e como uma série de violências por serem mulheres, negras, pobres, lésbicas e bissexuais, marca o terreno das relações de poder na universidade. Fenômenos como o da criminalização da juventude negra, da incapacidade intelectual, da sexualização do corpo da mulher negra, do corpo sujo, da objetificação deste corpo e deslegitimação da fala, são evocados para demarcar a universidade como um “não-lugar social” ou como um lugar que não é apropriado para a população negra. Cavalleiro (2000CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2000.) também aborda como desde a educação infantil as crianças negras são afetadas pelo estigma de serem rotuladas como “sujas”.

A violência contra as mulheres também ocorre dentro das universidades. Auad (2012AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012., p. 56) nos alerta para um “aprendizado da separação” entre os gêneros que começa desde muito cedo na escola e pontua que “não há educação para a democracia sem coeducação. A escola só será uma instituição comprometida com o fomento da solidariedade e desenvolvimento da dignidade quando também estiver comprometida com o término das desigualdades entre o masculino e o feminino”. E isso também serve para universidade.

O trajeto da universidade para a casa foi mencionado como perigoso. Segundo a Entrevistada 2: [...] várias vezes eu voltando da UEMS a pé eu sou seguida de moto, homens insinuando e tentando alguma coisa, já ter que correr e tocar a campainha de outra casa com medo do que vai acontecer. Para a Entrevistada 3 isso se acentua por ser lésbica: [...] medo de ir embora por ser mulher e tal, e ainda ir de mãos dadas, a gente até evita, infelizmente, porque isso atrai eles, a gente sendo mulher eles já mexem, e ainda quando vê duas mulheres de mãos dadas. A discriminação por conta da orientação sexual se evidencia em relação às lésbicas; mesmo quando bissexuais, os casos que marcam são aqueles de ataques às colegas lésbicas. A Entrevistada 2, bissexual, expressou: eu vi muitas pessoas passando por isso.

[...] tenho uma colega que é da minha turma, que é lésbica e é o tempo todo, principalmente homens que fazem comentários do tipo ‘que ela é lésbica porque nunca encontrou um homem que foi bom o suficiente pra que ela’ [...] a gente sempre, ela também sempre muito firme, nunca deixou que isso passasse batido, nenhum desses comentários, por mais horríveis (ENTREVISTADA 2, 2017).

Já a Entrevistada 3, que é lésbica, cuja namorada também faz o curso de Ciências Sociais, expressou que são os olhares incomodados, cotidianamente, dentro e fora da universidade. Ela colocou que na unidade acadêmica as pessoas sabem que ela é lésbica, que isso é público, é um posicionamento político dela: [...] eles sabem quem eu sou, sabem que eu sou lésbica. E ainda relatou um acontecimento recente que passou com a namorada fora da universidade, o qual explicita como a orientação sexual informa o gênero, a raça e a classe.

[...] foi no mercado, a gente passou numa calçada e tinha um cara sentado e aí ele foi e falou ‘é sapatão’, e aí eu fui e respondi porque eu não deixo barato, eu fui e falei ‘é isso mesmo, sapatão’, ele foi e falou ‘credo, que nojo, tenho nojo’ [...] olham muito, porque são pretas, o cabelo chama muita atenção [...] quando estamos com mãos dadas aí atrai todos os olhares possíveis [...] xingamentos que vira e mexe têm, igual desse cara, esse não foi o primeiro e nem o último (ENTREVISTADA 3, 2017).

Mais uma vez, para essa entrevistada, a rua é o espaço de exposição a toda sorte de violências, do medo que impacta na manifestação pública de afeto.

[...] passou um carro que tinha uns cinco caras e eles foram do nosso lado, acompanhando a gente até o final do quarteirão mexendo com a gente, a gente aqui de boa andando na calçada, de mãos dadas, e eles [...] chamando a gente de tudo quanto é nome, falando pra gente entrar no carro (ENTREVISTADA 3, 2017).

A Entrevistada 4 evocou a memória de vivências na educação básica. Por ser uma “mulher preta sapatão”, a escola foi um espaço de várias violências. Ela teve uma “adolescência solitária, de muita solidão e de falta de afetos”. O ingresso na universidade e nos coletivos estudantis mudou isso, o que mostra que o espaço universitário é também o espaço do paradoxo, ou seja, de lidar com preconceitos, mas também de possibilidades de estabelecer redes de afetos que afirmam vida.

[...] sou uma ‘mina’ preta, eu não sou uma ‘mina’ padrão, então os caras não me enchiam o saco e eu também vivia uma pilha muito doida que era em relação à minha sexualidade, até eu me entender enquanto uma mulher lésbica, foi um período longo, de muita solidão porque eu não conseguia entender o que era e o que não era, e eu sempre estava sozinha [...] fui começar a namorar eu já tinha 18 anos, depois que eu entrei na universidade [...] eu comecei a entender que... caramba, não é uma coisa ruim o que eu sinto, e foi quando eu comecei a me relacionar, porque eu não conseguia nem me relacionar com as pessoas (ENTREVISTADA 4, 2017).

Cavalleiro (2000CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2000.) destaca essa dimensão do afeto no processo de socialização das crianças negras. Afetos são distribuídos racialmente na escola, o que tende a se estender nos demais níveis de ensino. Por fim, nos relatos de outros tipos de discriminação que quisessem contar, a Entrevistada 1 trouxe o fato de “estudar em escola pública” e a Entrevistada 3 a gordofobia, por ser “gorda e preta”, “feminista”, sofrendo com muitos homens machistas, por andar como quer, ser quem é. Essa complexidade trazida por ela enquanto mulher, negra, cotista, lésbica, pobre, gorda e feminista expressa o quanto a luta por igualdade assumida pelo movimento feminista diz respeito ao fato de “as mulheres poderem escolher quem elas querem ser, quais características consideradas femininas pela sociedade querem manter e quais querem mudar, sem serem discriminadas por quaisquer escolhas que fizerem” (AUAD, 2003AUAD, Daniela. Feminismo: que história e essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003., p. 64).

Considerações finais

As mulheres negras cotistas lésbicas e bissexuais entrevistadas avaliaram a política de cotas raciais na instituição como importante, como uma reparação de desigualdades que afetam a população negra, o que aponta um imensurável impacto cultural das cotas ao transformar mentalidades. As cotas abrem caminhos para a população negra e pobre, para o acesso à educação superior, especialmente em cursos caracteristicamente elitizados. A universidade pública brasileira ainda é vista como um “não-lugar social” para a população negra, pobre e LGBT. A democratização da educação superior segue sendo nosso desafio contemporâneo. Avançar é preciso e a resistência necessita de uma linguagem política. A criação e a manutenção dessa linguagem e do diálogo a partir dela demandam solidariedade política. Assim, ao resistir, mulheres negras elaboram, com seu ingresso e estada na universidade, novas teorias sobre suas biografias e trajetórias na educação superior. Tais teorias permitem compreender a situação em que nos encontramos, bem como por quais meios podemos tecer engajamentos coletivos, numa perspectiva que transforma a nossa realidade. Como aponta hooks (2017hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.), é preciso problematizar como o conhecimento é distribuído e recebido na universidade; assim como é preciso refletir como podemos construir as resistências e tensionar na direção da ampliação de direitos e ocupação de espaços.

Na universidade brasileira, historicamente estruturada pela e para a elite, há um conjunto de fenômenos recorrentes a partir dos quais alunas negras e alunos negros ou oriundas e oriundos da classe trabalhadora recebem constantes e variadas demandas para que, por iniciativa própria, abandonem os valores associados à sua origem social, como se, com esses sucessivos (auto)apagamentos de sua raça, gênero, orientação sexual e classe social, pudessem ascender à outra condição e partilhar de outro status social, diferente daquele para o qual sua socialização primária as e os destinaria. Este destino manifesto seria pretensamente mais adequado ao conhecimento dominante das e para as elites, sendo aquele que parece que deve ser aprendido com o ingresso no meio acadêmico. Assim, a admissão na universidade acena sistemática e intensamente com a promessa de dar tratamento igualitário a todas as pessoas que nela estão inscritas, desde que estas se aproximem ao máximo dos moldes mais prestigiosos de nossa sociedade, ou seja, desde que todas as pessoas mais se assemelhem ao ideal de homem, branco, heterossexual, abastado e cristão. Como modo de eliminar esse aceno ilusório e como uma resposta ao racismo estrutural e aos variados desdobramentos do patriarcado nas relações sociais, se delineia a criação e a implementação da política de cotas raciais, cuja contribuição, dentre variados fenômenos, é o combate ao que se pode chamar de epistemicídio das mulheres negras, como demonstrado neste artigo. A presença das mulheres negras lésbicas e bissexuais quebra silêncios frente ao racismo, ao machismo e à lesbofobia, entre outras violências geradas por preconceitos baseados em gênero, raça e orientação sexual. A estada e trajetória acadêmicas dessas mulheres potencializa o questionamento e a transformação do espaço universitário, além de desafiar as instituições, na direção de efetivarem os tão propalados processos de democratização da educação superior.

Referências

  • AUAD, Daniela. Feminismo: que história e essa? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
  • AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola 2 ed. São Paulo: Contexto, 2012.
  • BAIRROS, Luiza. “Nossos feminismos revisitados”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 458-463, 1995.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988 Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
  • BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: Senado Federal, 1996. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
  • BRASIL. Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Cultura e História Afro-brasileira e Africana. Brasília: Presidência da República, 2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm#:~:text=L10639&text=LEI%20No%2010.639%2C%20DE%209%20DE%20JANEIRO%20DE%202003.&text=Altera%20a%20Lei%20no,%22%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm#:~:text=L10639&text=LEI%20No%2010.639%2C%20DE%209%20DE%20JANEIRO%20DE%202003.&text=Altera%20a%20Lei%20no,%22%2C%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias
  • BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília: Presidência da República, 2010. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm
  • BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Lei das Cotas. Brasília: Presidência da República, 2012. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
  • BRASIL. Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas nos concursos públicos. Brasília: Presidência da República, 2014. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12990.htm
  • BRASIL. Portaria Normativa nº 13, de 11 de maio de 2016. Ações Afirmativas na Pós-graduação. Brasília: MEC, 2016. Disponível em https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/21520493/do1-2016-05-12-portaria-normativa-n-13-de-11-de-maio-de-2016-21520473
    » https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/21520493/do1-2016-05-12-portaria-normativa-n-13-de-11-de-maio-de-2016-21520473
  • BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020. Revoga a Portaria Normativa MEC nº 13, de 11 de maio de 2016. Brasília: MEC, 2020a. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-545-de-16-de-junho-de-2020-262147914
    » https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-545-de-16-de-junho-de-2020-262147914
  • BRASIL. Ministério da Educação. Portaria nº 559, de 22 de junho de 2020. Torna sem efeito a Portaria nº 545, de 16 de junho de 2020. Brasília: MEC, 2020b. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-559-de-22-de-junho-de-2020-262970520
    » https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-559-de-22-de-junho-de-2020-262970520
  • CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil São Paulo: Selo Negro, 2011.
  • CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil São Paulo: Contexto, 2000.
  • CORDEIRO, Ana Luisa Alves. Políticas de ação afirmativa: implicações na trajetória acadêmica e profissional de afro-brasileiros/as cotistas egressos/as da UEMS (2007-2014) 2017. Doutorado (Programa de Pós-Graduação em Educação) - Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS, Brasil.
  • CORDEIRO, Maria José de Jesus Alves; CORDEIRO, Ana Luisa Alves; MULLER, Maria Lucia Rodrigues. “A permanência de estudantes na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)”. Revista da Faculdade de Educação UNEMAT, Cáceres, v. 25, ano 14, n. 1, p. 131-153, jan./jun. 2016.
  • CRENSHAW, Kimberlé. “Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.
  • DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe São Paulo: Boitempo, 2016.
  • ESCOBAR, Geanine Vargas.; BAPTISTA, Maria Manuel Rocha Teixeira. “O pensamento das mulheres negras e a lesbianidade negra em contexto lusófono”. In: BAPTISTA, Maria Manuel Rocha Teixeira; LATIF, Larissa (Coords.). Género, Direitos Humanos e Ativismos: atas do V Congresso Internacional em Estudos Culturais Coimbra: Gracio, 2016. p. 290-298.
  • GOMES, Joaquim Barbosa. “A recepção do instituto da ação afirmativa pelo direito constitucional brasileiro”. In: SANTOS, Sales A. dos (Org.). Ações afirmativas e combate ao racismo nas Américas Brasília: MEC/UNESCO, 2005. p. 47-82.
  • GOMES, Nilma Lino. “Educação e Identidade Negra”. Aletria: Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v. 9, n. 1, p. 38-47, 2002.
  • GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. In: SILVA, Luiz Antônio Machado da et al Ciências Sociais Hoje: Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos Brasília, ANPOCS, n. 2, p. 223-244, 1983.
  • GOVERNO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL. Lei nº 2.605, de 06 de janeiro de 2003. Reserva de vagas para negros na UEMS. Campo Grande/MS: Assembleia Legislativa, 2003. Disponível em http://flacso.org.br/?publication=lei-no-2-605-de-6-de-janeiro-de-2003-dispoe-sobre-a-reserva-de-vagas-para-negros-nos-cursos-de-graduacao-da-universidade-estadual-de-mato-grosso-do-sul-e-da-outras-providencias
    » http://flacso.org.br/?publication=lei-no-2-605-de-6-de-janeiro-de-2003-dispoe-sobre-a-reserva-de-vagas-para-negros-nos-cursos-de-graduacao-da-universidade-estadual-de-mato-grosso-do-sul-e-da-outras-providencias
  • hooks, bell. “Intelectuais negras”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 464-478, ago./dez. 1995.
  • hooks, bell. “Mulheres negras: moldando a teoria feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193-210, jan./abr. 2015.
  • hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Demográfico 2010. Características da população e dos domicílios. Resultado do Universo Rio de Janeiro, 2011. Disponível em https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf
    » https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/93/cd_2010_caracteristicas_populacao_domicilios.pdf
  • LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
  • MARCELINO, Sandra Regina de Souza. “Entre o racismo e a lesbofobia: relatos de ativistas negras lésbicas do Rio de Janeiro”. Gênero, Niterói, v. 16, n. 2, p. 111-129, 1 sem. 2016.
  • MUNANGA, Kabengele. “Políticas de ação afirmativa em benefício da população negra no Brasil: um ponto de vista em defesa das cotas”. In: SILVA, Petrolina Beatriz Gonçalves e; SILVÉRIO, Valter Roberto. Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica Brasília: INEP/MEC, 2003. p. 115-128.
  • MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje São Paulo: Editora Global, 2006.
  • SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência 2 ed. São Paulo: Expressão Popular; Fundação Perseu Abramo, 2015.
  • SILVA, Maria das Graças Martins da. “Expansão na educação superior e a política de democratização: avanços e contradições”. In: SILVA, Maria das Graças Martins da (Org.). Políticas educacionais: faces e interfaces da democratização Cuiabá: Universidade Federal do Mato Grosso, 2011. p. 13-37.
  • SISS, Ahyas. Afro-brasileiros, cotas e ação afirmativa: razões históricas Rio de Janeiro: Quartet, 2003.
  • UEMS. Relatório parcial da Comissão Própria de Avaliação. Ciclo de 2012-2015 UEMS: CPA, 2014.
  • 1
    A pedido da autora, “bell hooks” é escrito em letras minúsculas, sendo um pseudônimo de Gloria Jean Watkins.
  • 2
    A sigla LGBT, adotada nas conferências nacionais LGBTs, se refere a ‘lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros’. A LGBTfobia significa aversão e ódio direcionados à população LGBT.
  • 3
    Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: CORDEIRO, Ana Luisa Alves; AUAD, Daniela. “Estratégias de Resistência de Negras Cotistas Lésbicas e Bissexuais”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 3, e82622, 2021
  • Financiamento: BOLSA PÓS-DOC PNPD - CAPES. Portaria nº 086, de 03 de julho de 2013, da CAPES
  • 5
    Consentimento de uso de imagem: Não se aplica
  • 6
    Aprovação de comitê de ética em pesquisa: CAAE: 76453417.2.0000.5147. Número do Parecer: 2.362.133

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2021
  • Revisado
    19 Ago 2021
  • Aceito
    30 Ago 2021
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br