Acessibilidade / Reportar erro

30 anos de REF: resistimos e sobrevivemos

30 Years of REF: we Resist and Survive

Quando penso em mim mesma como uma teórica da resistência, não é porque penso na resistência como o fim ou a meta da luta política, mas sim como seu começo, sua possibilidade.

María Lugones (2014LUGONES, María. “Rumo a um feminismo descolonial”. Revista Estudos Feministas, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014., p. 939)

Esse ato de fala, de “erguer a voz”, não é um mero gesto de palavras vazias: é uma expressão de nossa transição de objeto para sujeito - a voz liberta.

bell hooks (2019hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante, 2019., p. 39)

Em tempos de riscos, negacionismos, recrudescimento de contágio, entrando em novo ciclo da pandemia de coronavírus, não podemos evitar o tema da morte, da finitude.

Quando falamos das contribuições da Revista Estudos Feministas na divulgação de pesquisas e estudos sobre a questão da violência, nos “21 Dias de Ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”, promovidos pelo Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC), entre os dias 25 de novembro e 09 de dezembro de 2021,1 1 As lives do evento continuam disponíveis no canal do IEG no YouTube, podendo ser acessadas através do site http//ieg.ufsc.br. Teresa Kleba, editora de Dossiê e Seção Temática da REF, ressaltou a importância das homenagens que a revista fazia às feministas que já nos haviam deixado, por meio da seção In Memoriam.

Na constante adaptação às normativas de indexadores, tivemos que abrir mão desta seção na edição da revista e o obituário da saudosa Luiza Bairros (Luzinete MINELLA, 2016MINELLA, Luzinete Simões. “IN MEMORIAN. Uma vida, muitas lutas: Luiza Helena Bairros”. Revista Estudos Feministas, v. 24, n. 3, p. 891-892, 2016.) está registrado apenas na edição online dos Portais de Periódicos da UFSC e do IEG, e não no Portal SciELO, aquele que alcança o maior número de downloads e acessos internacionais. Nesse processo contínuo do fazer da revista, temos incluído nossas memórias das feministas que perdemos no editorial e também em outras seções da revista, como neste número, com a Seção Temática dedicada à María Lugones, que nos deixou em 2019.

Agora precisamos registrar a perda sofrida pelo feminismo negro e por todos os movimentos feministas de bell hooks - feminista negra dos Estados Unidos que participou, com muitas outras teóricas militantes, de uma tomada de consciência do feminismo ocidental, do Norte Global, questionando a concepção da mulher universal. Para falar de bell hooks e do sentimento de perda que vivenciamos, desdobramos este editorial com a escrita de Sandra Azerêdo, nossa companheira feminista de Minas Gerais, ligada a hooks por antigos laços de amizade e convivência.

María Lugones, participando dos estudos descoloniais desenvolvidos nos Estados Unidos com a importante contribuição de teóricas/os de outros continentes construiu, no diálogo com as concepções de Aníbal Quijano (1991QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad, modernidad/racialidad”. Perú Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-29, 1991.), a categoria de “colonialidade de gênero” (LUGONES, 2014LUGONES, María. “Rumo a um feminismo descolonial”. Revista Estudos Feministas, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.), contribuindo para o descentramento dos estudos feministas, na consideração do pensamento produzido no Sul pelos povos nativos racializados no contato com o colonizador, e por aquela população sequestrada do continente africano para ser escravizada nos países do Norte e do Sul, como o Brasil. Representando este paradigma que valoriza as teorias feministas produzidas no Sul Global, esta importante expressão do pensamento atual não exclui as contribuições das feministas negras estadunidenses, elas próprias descendentes da escravização colonial dos povos africanos.

Junto com Angela Davis, bell hooks tem sido uma das autoras mais traduzidas para o português do Brasil, mesmo que com significativo atraso. Sua obra Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade (2017hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.), editada nos Estados Unidos em 1994 pela editora Routledge, só foi publicada no Brasil em 2013, ou seja, duas décadas depois, pela editora Martins Fontes. Um livro muito importante não só para o feminismo negro, pois toca a todas as mulheres, independente da sua classe, cor, raça, etnia, incluindo as feministas acadêmicas militantes brasileiras, devido à influência de Paulo Freire no pensamento da educadora bell hooks, expressa no subtítulo da obra. Mais recentemente, hooks tem merecido publicações de várias editoras nacionais: Rosa dos Tempos, Editora Elefante, Perspectiva, Boitempo (com a tradução de dois livros dedicados a crianças). Ela é lida por crianças e pela juventude também, participando da recente recuperação da literatura negra no comércio editorial brasileiro, em que teóricas brasileiras fundamentais têm sido reeditadas ou trazidas a público, como Lélia González (2020GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.), Beatriz Nascimento (2021NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2021. (Compilação de Alex Ratz)), Neusa Santos Souza (1983SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.; 2021SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.), e outras pensadoras negras contemporâneas, como Sueli Carneiro (2018CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. Belo Horizonte: Letramento, 2018.), sem deixarmos de nos referir, na literatura, ao reconhecimento e à valoração das obras de mulheres como Conceição Evaristo, presidente da 19ª Festa de Literatura Internacional de Paraty (2017), e Carolina de Jesus, merecedora do título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro no mesmo ano. Sem esquecermos de destacar a força editorial de publicações devidas à atuação de coletivos negros, mesmo com as dificuldades que o setor vem enfrentando na profunda crise atual do país.

Em meio a todas as questões que assolam nosso mundo já pelo terceiro ano, temos motivos de comemoração de nossas sobrevivências e nossas resistências, pois 2022 é o ano em que a Revista Estudos Feministas completa três décadas de publicação ininterrupta. Temos comemorado os quinquênios e decênios da edição da REF desde 20022 2 Os 10 anos da publicação da revista coincidiram com a organização, por suas editoras e o coletivo que assumiu sua continuidade na UFSC, do I Encontro Brasileiro de Publicações Feministas, em 2002, seguido do I Encontro Internacional e II Encontro Nacional de Publicações Feministas, em 2003, em Florianópolis. e dessas efemérides resultaram inúmeros artigos sobre a revista, de autoria de suas criadoras na região sudeste e de várias de suas editoras, no Rio de Janeiro e aqui em Santa Catarina (REF v. 11, n. 1, 2003: REF v. 12, N. Especial, 2004: REF v. 16, n. 1, 2008; REF v. 21, n. 2, 2013).

A comemoração dos 30 anos da revista merece ser realizada, apesar do contexto continuado da pandemia e, no Brasil, em meio aos desmontes das políticas públicas e de inúmeras conquistas dos movimentos sociais feministas, negros, de mulheres rurais, de mulheres indígenas, movimentos LGBTQIA+, anticapacitistas e inúmeros outros, pela igualdade de direitos e pelos direitos humanos de todas/os/es. Com os ataques ao gênero que temos vivenciado e a desconstrução das políticas de educação, saúde, cultura, sobreviver tem sido um esforço coletivo de crescente significação. Esforço de trabalho voluntário e coletivo que caracteriza a feitura e a maturidade da REF e tem sido foco dos seus editoriais nos últimos anos. No momento, a equipe da revista está planejando a comemoração desses trabalhosos e gratificantes 30 anos da publicação, que em breve será divulgada no seu site e redes sociais.

Em 2021, foi realizado o 12º Seminário Internacional Fazendo Gênero; de forma virtual, tendo-se estendido de 19/07 a 30/07/2021, período precedido pela apresentação virtual das 8ª Mostra Audiovisual Fazendo Gênero (https://mostravideosfazgen.paginas.ufsc.br/programacao/) e 9ª Mostra Fotográfica do Seminário Internacional Fazendo Gênero (https://mostrafotosfazgen.paginas.ufsc.br/), que aconteceram entre 01/03 e 31/03/2021, seguidas quatro meses depois, pela III Exposição Internacional de Arte e Gênero (https://www.projetoarmazem.com/exposicoes-virtuais), realizada de 26/07 a 29/10/2021.

Tendo sido adiado por um ano e, mesmo assim, sem a possibilidade de realização presencial, o evento contou com a participação de cerca de 3.500 inscritos, realizando as costumeiras conferências com feministas de destaque nos campos de estudos feministas e de gênero, mesas-redondas sobre variados temas, contando com participantes de todas as regiões do Brasil e de diferentes países do Sul e do Norte Global, além dos costumeiros simpósios temáticos propostos por pesquisadoras/es de variadas nacionalidades e áreas disciplinares, oficinas, posters, lançamentos de livros, rodas de conversas, crianças no FG. Destacamos a Tenda das Mulheres, com extensa programação voltada aos movimentos sociais, espaço trazido ao evento em 2017, quando o Seminário Fazendo Gênero11 abrigou a realização do 13º Mundo de Mulheres, encontro intercontinental que reforçou a intersecção entre os estudos e pesquisas acadêmicas e os movimentos sociais de mulheres.

Ressaltamos ainda três aspectos desse megaevento, do qual a equipe editorial da Revista participou ativamente: primeiro, apesar de um certo estranhamento inicial, pois estávamos todas/os/es nos adaptando a um novo modus operandi, a realização da programação de forma virtual nos surpreendeu positivamente em todos os aspectos. A comissão de web transmissões se encarregou de garantir as condições de trabalho compatíveis à escala do evento, planejando com rigor e clareza na comunicação as regras de participação em cada atividade, e a alta frequência nos surpreendeu, bem como o comprometimento do público. Segundo, militantes, artistas e artivistas - embora presentes nas edições anteriores da série Fazendo Gênero - tiveram a oportunidade de se integrar a todas atividades do evento, passando a ocupar espaços antes protagonizados apenas pelas acadêmicas, atuando nas mesas-redondas, simpósios temáticos etc., ora apresentando trabalhos, ora como debatedoras/es. Terceiro, o apoio de várias instâncias da UFSC e da UDESC mostrou-se mais uma vez fundamental, evidenciando a importância das instituições públicas de ensino no acolhimento ao debate, à diversidade, à circulação de novas ideias, à produção do conhecimento, apesar das dificuldades financeiras e operacionais que enfrentavam em tempos de pandemia. Como foi em formato virtual, o evento de certa forma continua e pode ser acessado através de sua página na web em http://www.fazendogenero.ufsc.br/12/, ou no canal do Instituto de Estudos de Gênero no YouTube.

Esta edição da REF se inicia com o artigo “Exploring women’s resistance against occupation and war in Ukraine”, no qual as autoras fazem uma categorização e uma análise das resistências das mulheres no contexto da Ucrânia a partir de 2013 e 2014. Foram utilizadas entrevistas, dados provenientes de ONGs e da imprensa para compreender o impacto de movimentos de resistência de mulheres em mudanças de estereótipos e desigualdade de gênero no exército ucraniano e na sociedade em geral.

Em “Tres mujeres bíblicas capaces de construir una identidad femenina alternativa”, a autora, a partir de uma perspectiva da teologia feminista, busca encontrar na Bíblia elementos que permitem construções identitárias que escapem da ideologia patriarcal, através de três personagens mulheres: Débora, Judite e a amada do cântico dos cânticos. Segundo a autora, essas personagens rompem com os clichês femininos e possibilitam uma leitura atualizada da Bíblia.

O artigo “La comunidad de mujeres en Republica de Platón” discute a interpretação tradicional do texto do filósofo, focada na ambiguidade com que Platão articula seu discurso, em momentos defendendo os direitos das mulheres, sem deixar, no entanto, de situá-las como propriedade dos homens. A autora propõe uma interpretação que procure superar a questão das intenções de Platão pelo foco no efeito retórico de seu discurso, contextualmente marcado pelo caráter patriarcal da linguagem que compõe a própria instituição do oikos.

As vozes de mulheres precisam ser sempre ouvidas no tempo e no espaço das publicações feministas. Neste número, o Brasil dialoga com a América Central e com o continente africano, no que podemos chamar de falas de resistência. O artigo “Silêncios e resistências na contística de mulheres em Cuba: um panorama” inclui um percurso iniciado com o silenciamento das mulheres precursoras no século XIX de uma escritura feminina, passa pela contística surgida e praticada durante as primeiras décadas da Revolução Cubana, até chegar ao ressurgimento da narrativa escrita por mulheres no chamado Período chamado Especial, como representativo dos movimentos de resistência das escritoras cubanas. Por sua vez, um romance de personagem escrito por Dinah Silveira de Queiroz (1991QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios. Rio de Janeiro: Record, 1991(1949). [1949]) intitulado Margarida La Rocque: a ilha dos demônios, se torna instrumento para compreender a identidade narrativa construída no espaço da ficção brasileira no artigo “A identidade narrativa em Margarida La Rocque, de Dinah Silveira de Queiroz”. Numa perspectiva da teoria e da crítica feminista, o estudo analítico procura mostrar como a escritora - de certa forma esquecida pelo cânone literário - quebrou certos estereótipos no processo de representação das mulheres nas primeiras décadas do século XX. O artigo “Chimamanda Adichie, Mia Couto e o combate às expectativas de gênero” traz, nas africanidades narrativas da autora e do autor, as questões de gênero, mostrando nos enredos e nas personagens um novo rumo para a garantia dos direitos das mulheres, as formas como a mulher é representada e, numa perspectiva pelo viés da interpretação, o quão mais (in)felizes as personagens femininas se tornam quando não sentem o peso das expectativas de gênero.

Entre os vários temas abordados nesse número da Revista, não poderiam faltar aqueles relacionados aos corpos das mulheres, como pode ser visto no artigo que segue, intitulado “Narrativas de aborto na web: uma abordagem enativa acerca das alianças de gênero”, que analisa narrativas sobre o aborto provocado em sítios da web, rastreando a sororidade na dimensão ética das alianças de cuidado e no compartilhamento das vivências dos conflitos morais. Através de uma abordagem enativa, a cognição e a percepção são interpretadas como ações incorporadas pelas mulheres.

As autoras do artigo “Prontuários femininos do Sanatório Pinel/SP (1929-1944)” analisam os discursos médicos que sustentaram diagnósticos de internações de pacientes mulheres naquela instituição psiquiátrica, no período de 15 anos do século passado. Discutindo a atribuição de distúrbio mental como base das internações, refletem sobre temas como loucura, sexualidade, enfermidades femininas, padrões de feminilidade e seus desvios. O texto acrescenta contribuição ao estudo das estratégias utilizadas para o controle das mulheres nas sociedades patriarcais.

O artigo “O queer e a aids na exposição Queermuseu”, fundamentado em extensa e consistente bibliografia sobre o histórico da crise da aids e sua relação com a emergência do queer, traz uma análise dos textos constantes do catálogo da exposição Queermuseu: Cartografias da diferença na arte brasileira em Porto Alegre, no contexto de seu encerramento prematuro, provocado por manifestações conservadoras que se faziam (fazem) presentes no mundo da arte brasileira desde 2017. O autor critica a superficialidade dos textos do catálogo na construção de uma narrativa que se pretende pós-identitária, mas não consegue alcançar a radicalidade própria dos estudos queer, assim como seu distanciamento em relação ao tema da aids e às próprias dificuldades enfrentadas no tratamento de portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) no tempo da exposição.

Em um trabalho de pesquisa e análise muito original, o artigo “‘Na companhia de um homossexual’: trabalho e direito em corpo queer” utiliza dois processos judiciais relativos a assédio moral envolvendo estereótipos e sobre os corpos queer no mundo do trabalho. A partir da análise desses processos, o autor busca a compreensão da precariedade queer frente ao direito do trabalho, expondo mais uma faceta perversa de nossa sociedade diante da diversidade de gênero e à sexualidade.

As autoras do artigo “Revista íntima de mulheres visitantes em presídios: vidas normativamente não humanas” interpretam esse tipo de revista como uma forma de violência de gênero institucionalmente imposta às mulheres que visitam seus parceiros nos presídios. Violências que elas definem como penalização corporal, como uma estratégia de constrangimento e opressão das vidas consideradas não humanas.

Defendendo a importância do estudo e discussão do abuso sexual de crianças, a autora de “Pequenas cócegas: abuso sexual de meninas” faz uso da expressão cinematográfica, pelo alcance educativo do cinema, para tratar desse tema em que mães, pais, educadores estão inescapavelmente envolvidos. Narrando cenas do filme Inocência roubada (Les chatouilles, em francês), ela compõe um belo texto que entrelaça as experiências sofridas de abuso infantil da personagem, suas, da diretora do filme, numa constante atualização de afecções, que muitas vezes indicam intervenções terapêuticas e, sempre, a atenção, a escuta, os cuidados das pessoas adultas responsáveis pela criança.

O artigo “A Política de Educação em Sexualidade da Europa: breves considerações para o debate brasileiro” analisa a política europeia de educação em sexualidade com base em relatórios de avaliação do modelo Standards for Sexuality Education in Europe, implantado em vários países europeus. Considerando a abrangência da educação sexual escolar objetivada nos Standards e a legislação brasileira referente aos direitos de crianças e adolescentes, que incluem necessariamente a educação sexual, o autor postula uma maior abrangência de um modelo nacional com diretivas educacionais para as escolas, que deveria incluir a intersecção da sexualidade com outros marcadores sociais, como raça e classe.

Ao abordar a história da rota da cocaína entre a América do Sul e a Europa, o artigo “O novo açúcar: a rota da cocaína na perspectiva de gênero” articula elementos históricos, econômicos e sociais do mercado mundial da cocaína que, nas últimas décadas, tem utilizado o trabalho de numerosas mulheres pobres das periferias para viabilizar seu tráfico. A pesquisa, decorrente de uma tese doutoral, utiliza as noções de centro e periferia, partindo desta última, onde se localizam as mulheres usadas como mulas no comércio da droga, mas chegando às instituições financeiras que permitem as operações de mercado e a lavagem do dinheiro.

Na sequência, temos artigos que discutem dois tipos de feminismos: o anticapitalista e o popular. A análise crítica das crises do capitalismo elaborada por Nancy Fraser é debatida no artigo “Feminismo anticapitalista: articulando teoria e prática”, destacando suas implicações na abordagem das potencialidades do feminismo para 99%. A autora reflete sobre o alcance explicativo da proposta de Fraser, bem como acerca de seus limites na articulação entre teoria e prática, levando em conta o contexto das mulheres do Sul global.

Na intenção de ampliar o conceito de feminismo popular na América Latina, o artigo “Mulheres de favelas e o (outro) feminismo popular” se fundamenta num enfoque decolonial para analisar os dados de uma pesquisa empírica com mulheres residentes em várias favelas do Rio de Janeiro. Trata-se de mulheres que costumam se articular em rede para dar conta de vários compromissos assumidos com suas comunidades. Por meio da realização de entrevistas, entre outras questões, as autoras indagam até que ponto elas se consideram feministas, sondando como justificam essa condição.

Em 2016, o Brasil viveu uma onda de ocupações em escolas secundaristas e universidades. A autora do artigo “Primavera secundarista: uma convivência feminista, através de entrevistas, observação e narrativas autobiográficas de participantes das ocupações em escolas secundaristas da região de Curitiba, PR, faz uma reflexão sobre a importância desse movimento e sua articulação com a quarta onda do feminismo. A convivência das e dos estudantes nas ocupações passou por intensas negociações e discussões de gênero, constituindo um espaço de resistência e de construção de consciências privilegiado, sem o qual é impossível compreender o cenário do feminismo brasileiro atual.

A participação das mulheres no Parlamento também está entre os temas discutidos nesse número. No artigo “Representación descriptiva en la Asamblea de la Comunidad de Madrid (1983-2019)”, as autoras investigam quais as práticas que os partidos da Comunidade de Madrid vêm desenvolvendo para incorporar as mulheres no período considerado, avaliando, entre outros fatores, o efeito das cotas ou da lei de igualdade.

Partindo de considerar que as mulheres tem sido sub-representadas em carreiras predominantemente masculinas (Ciências, Tecnologia, Engenharias e Matemática), tanto na formação quanto na inserção no mercado de trabalho, as autoras do artigo “‘Dá vontade de mudar de área, é mais fácil que lidar’: Barreiras e enfrentamentos de mulheres em carreiras predominantemente masculinas”, através de entrevistas com algumas cientistas que atuam nessas carreiras, exploram suas percepções sobre as barreiras encontradas e as estratégias desenvolvidas ao longo das suas trajetórias para permanecer atuando.

Às questões de identidade sexual vivenciada e construída, os estudos sobre sexualidade e gênero trazem sempre contribuições de metodologias e práticas de análise para futuras pesquisas. O artigo intitulado “Masculinidad en los libros de civismo de los Hermanos de la Salle en México (1953-1989)” vem dialogar com uma série de pesquisas sobre representações de gênero em livros didáticos no Brasil e na América do Sul em colégios especialmente religiosos e militares. O contexto mexicano aqui é trazido por um manual ou compêndio que objetivava a formação moral e cívica sob o signo da masculinidade de jovens estudantes que frequentaram este instituto religioso durante quase quatro décadas do século XX.

A teoria literária, quando aborda o ensaio como forma, nos ensina que todo ensaio é desejo da (a)ventura, do ter ponto de partida e não desejar imediatos pontos de chegada porque o ensaio está sempre aberto a travessias, desvios, mudanças de rota, novos mapas. É assim que merece ser lido o Ponto de Vista deste número, “Gótico & Queer: uma análise de Lost Souls, de Poppy Z. Brite”. O autor transgênero traz o romance Lost Souls e a teoria de Judith Butler para mostrar que a subcultura gótica apresenta uma disposição altamente performática, algo que se reporta a sexualidade, corpo e gênero e, assim, a cena propicia o surgimento de identidades queer.

As organizadoras desta homenagem à María Lugones destacam a importância da autora para as feministas brasileiras e latino-americanas, por seu papel na construção de uma teoria que significou o que elas definem como uma virada epistêmica, potencializadora dos questionamentos de teorias eurocêntricas que persistem nos países do Sul Global, ressaltando o papel de “uma teoria que desconstrói o cânone acadêmico (...) ao mesmo tempo em que alimenta práticas e utopias” (Ana VEIGA; Karina BIDASECA, 2022VEIGA, Ana; BIDASECA, Karina. “Lugones: um caminho no horizonte decolonial”. Revista Estudos Feministas, v. 30, n. 1, 2022.). Os artigos que compõem a seção dedicada a Lugones constituem um relevante aprofundamento na obra da autora, que marcou o gênero como um elemento interseccional inarredável nos estudos decoloniais.

Um dos grandes méritos da nossa seção de resenhas é o pluralismo dos livros escolhidos, dos temas abordados e dos registros interdisciplinares destas bibliografias do tempo presente. As leituras, motivadas em sua maioria por pesquisas acadêmicas, passam pela história, pela literatura, pela sociologia, pela psicologia, pela antropologia, pelas ciências médicas, pelo direito, pela crítica feminista, por abordagens instigantes como gênero e sexualidade, gênero e diversidade, cartografias militantes, feminismo marxista, o corpo e seus desdobramentos e, praticamente em todas elas, se afirmam cada vez mais as teorias feministas radicais e libertadoras.

Finalizamos nosso editorial deste número inicial dos 30 anos da REF com o sensível In Memoriam de bell hooks, escrito por sua amiga brasileira Sandra Azerêdo (2011AZERÊDO, Sandra M. M. Preconceito contra a mulher: diferença, poemas e corpos. 2 ed., v. 1. São Paulo: Cortez, 2011.),3 3 Sandra Maria da Mata Azerêdo é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, possui mestrado em Psicologia Clínica pela PUC/RJ e doutorado em History of Consciousness, pela University of California at Santa Cruz (1986). Professora Titular aposentada da UFMG, com extensa atuação nos temas identidade e processos de subjetivação, sexualidade, teoria feminista, relações raciais e de gênero, diferença e violência. É autora de Preconceito contra a mulher: diferença, poemas e corpos, livro já em segunda edição pela Cortez Editora, de São Paulo, 2011. Merece destaque, além de sua importante produção em periódicos acadêmicos como REF, Cadernos Pagu, e outros, a entrevista que realizou com Donna Haraway: “Companhias multiespécies nas naturezasculturas: uma conversa entre Donna Haraway e Sandra Azerêdo”, publicada no livro de Maria Esther Maciel (MACIEL, Maria Esther (Org.). Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2011). em Belo Horizonte, em 14 de janeiro de 2022:

bell hooks e eu nos conhecemos em março de 1982, na Universidade da Califórnia, Santa Cruz, onde estávamos começando nosso doutorado - ela no programa de Literatura e eu no programa História da Consciência. Logo nos tornamos grandes amigas. Para nós, na comunidade em Santa Cruz, ela era Gloria Watkins. Ela logo me deu o livro Ain’t I A Woman: black women and feminism (1981hooks, bell. Ain’t I A Woman: black women and feminism. Boston, MA: South End Press, 1981.), que tinha acabado de publicar, com uma dedicatória significativa: “Sandra, a pleasure to meet you. Perhaps our sharing will begin a new move towards global feminism”. Daí se seguiram quase 20 livros, com que ela sempre me presenteava, com dedicatórias muito amorosas. Realmente, nós partilhamos experiências fundamentais sobre feminismo e racismo em nossa vida, e podemos pensar essas experiências como fazendo parte de um “feminismo global”. Porém, essa partilha se deu apenas presencialmente nos Estados Unidos, seja quando morávamos em Santa Cruz, seja quando eu a visitava em Nova York, onde ela tinha um belo apartamento no Soho. Gloria não tinha e-mail e a gente só se comunicava muito raramente por telefone fixo ou carta. Eu a convidei para participar de um painel no 8 de março de 1998 na UFMG, mas ela não respondeu à minha carta. A partir de 2001, perdemos inteiramente o contato e só em dezembro de 2016, quando passei um semestre em Massachusetts, com uma bolsa da Fulbright, enviei um e-mail para ela através do bell hooks Institute, buscando reconectá-la e o Institute me respondeu imediatamente que “bell estava encantada de saber de mim” e pedia que eu ligasse para sua casa. Foi realmente maravilhoso ouvir de novo sua voz e fico engasgada agora, escrevendo sobre isso, sabendo que não vou mais poder falar com ela! Retomamos a conversa como se não houvesse passado tanto tempo e combinamos de nos encontrar em sua casa no Kentucky ou talvez em Nova York, mas não conseguimos fazer esse encontro e perdi novamente o contato. Nem sabia que ela estava doente e sua morte me pegou de surpresa! Ainda bem que ela continua presente nos mais de 30 livros que produziu sobre as relações do feminismo com o racismo e que estão sendo traduzidos no Brasil desde 2013! Espero que seja traduzido também Killing Rage: Ending Racism (1995hooks, bell. Killing Rage: Ending Racism. New York: Henry Holt and Company, Inc., 1995.), que considero um dos seus trabalhos mais incisivos! Devido a essa tradução sempre tardia aqui no Brasil, nos meus cursos sobre gênero e racismo usei apenas dois capítulos de livros dela, publicados como artigos: “Intelectuais Negras” (1995hooks, bell. “Intelectuais negras”. Revista Estudos Feministas, v. 3, n. 2, 1995.), cap. 9 de Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life (1991hooks, bell. Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life. Boston, MA: South End Press, 1991.) e “Linguagem: ensinar novas paisagens/novas linguagens” (2008), cap. 11 de Teaching to Transgress: Education as Practice of Freedom (1994hooks, bell. Teaching to Transgress: Education as Practice of Freedom. New York: Routledge, 1994.). Também, inspirada em seu trabalho, pude usar, nos seminários que fechavam os cursos da graduação, o romance de que ela mais gostava e que também usava em seus cursos, O Olho Mais Azul, de ToniMorrison (2003MORRISON, Toni. O Olho Mais Azul. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.), publicado pela Companhia das Letras. Além disso, emprestei todos seus livros a uma aluna que se encantou com seu trabalho e os usou na elaboração de sua tese de doutorado (Anna ClaudiaD’ANDREA, 2014D’ANDREA, Anna Claudia Batista. Movimentos e Articulações: uma análise das iniciativas de formação de educadoras/es em sexualidade da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (1989-2009). 2014. Doutorado (Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.).

Acho que o movimento em direção ao feminismo global que Gloria vislumbrou em 1982 deslanchou de vez por sua ligação estreita com todas as lutas pelos direitos humanos, especialmente com os movimentos antirracistas! Longa vida a esse movimento! A luta continua!

Referências

  • AZERÊDO, Sandra M. M. Preconceito contra a mulher: diferença, poemas e corpos 2 ed., v. 1. São Paulo: Cortez, 2011.
  • CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida Belo Horizonte: Letramento, 2018.
  • D’ANDREA, Anna Claudia Batista. Movimentos e Articulações: uma análise das iniciativas de formação de educadoras/es em sexualidade da Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte (1989-2009) 2014. Doutorado (Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.
  • GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
  • hooks, bell. Ain’t I A Woman: black women and feminism Boston, MA: South End Press, 1981.
  • hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
  • hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra São Paulo: Elefante, 2019.
  • hooks, bell. Killing Rage: Ending Racism New York: Henry Holt and Company, Inc., 1995.
  • hooks, bell. “Intelectuais negras”. Revista Estudos Feministas, v. 3, n. 2, 1995.
  • hooks, bell. Breaking Bread: Insurgent Black Intellectual Life Boston, MA: South End Press, 1991.
  • hooks, bell. Teaching to Transgress: Education as Practice of Freedom New York: Routledge, 1994.
  • LUGONES, María. “Rumo a um feminismo descolonial”. Revista Estudos Feministas, v. 22, n. 3, p. 935-952, 2014.
  • MINELLA, Luzinete Simões. “IN MEMORIAN. Uma vida, muitas lutas: Luiza Helena Bairros”. Revista Estudos Feministas, v. 24, n. 3, p. 891-892, 2016.
  • MORRISON, Toni. O Olho Mais Azul São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: Relações raciais, quilombos e movimentos Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2021. (Compilação de Alex Ratz)
  • QUEIROZ, Dinah Silveira de. Margarida La Rocque: a ilha dos demônios Rio de Janeiro: Record, 1991(1949).
  • QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad, modernidad/racialidad”. Perú Indígena, v. 13, n. 29, p. 11-29, 1991.
  • SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social Rio de Janeiro: Graal, 1983.
  • SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou As vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
  • VEIGA, Ana; BIDASECA, Karina. “Lugones: um caminho no horizonte decolonial”. Revista Estudos Feministas, v. 30, n. 1, 2022.
  • 1
    As lives do evento continuam disponíveis no canal do IEG no YouTube, podendo ser acessadas através do site http//ieg.ufsc.br.
  • 2
    Os 10 anos da publicação da revista coincidiram com a organização, por suas editoras e o coletivo que assumiu sua continuidade na UFSC, do I Encontro Brasileiro de Publicações Feministas, em 2002, seguido do I Encontro Internacional e II Encontro Nacional de Publicações Feministas, em 2003, em Florianópolis.
  • 3
    Sandra Maria da Mata Azerêdo é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, possui mestrado em Psicologia Clínica pela PUC/RJ e doutorado em History of Consciousness, pela University of California at Santa Cruz (1986). Professora Titular aposentada da UFMG, com extensa atuação nos temas identidade e processos de subjetivação, sexualidade, teoria feminista, relações raciais e de gênero, diferença e violência. É autora de Preconceito contra a mulher: diferença, poemas e corpos, livro já em segunda edição pela Cortez Editora, de São Paulo, 2011. Merece destaque, além de sua importante produção em periódicos acadêmicos como REF, Cadernos Pagu, e outros, a entrevista que realizou com Donna Haraway: “Companhias multiespécies nas naturezasculturas: uma conversa entre Donna Haraway e Sandra Azerêdo”, publicada no livro de Maria Esther Maciel (MACIEL, Maria Esther (Org.). Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2011).
  • Como citar este artigo de acordo com as normas da revista:

    LAGO, Mara Coelho de Souza; WOLFF, Cristina Scheibe; RAMOS, Tânia Regina Oliveira; MINELLA, Luzinete Simões. “30 anos de REF: resistimos e sobrevivemos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e85998, 2022
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2022
  • Aceito
    17 Fev 2022
Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: ref@cfh.ufsc.br