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Narrativas de aborto na web: uma abordagem enativa acerca das alianças de gênero

Abortion Narratives on Web: an Enactive Approach on Gender Alliances

Narrativas del aborto en la web: una abordaje enativa sobre las alianzas de género

Resumo:

O artigo discute relações de gênero com base nos estudos da enação no campo da cognição social. Para tal, utilizamos dois conceitos principais: a “ética do cuidado” e a “sororidade”. A partir da abordagem enativa, procuramos indícios de como algumas narrativas de aborto provocado apontam uma maneira ética de vivenciar os conflitos morais, protagonizada não só, mas, principalmente, por mulheres. Como campo empírico, escolhemos dois sítios da web: o site Women on Web e o tumblr da campanha desenvolvida pelo Instituto de Bioética Anis, com o nome de “Eu vou Contar”. A inspiração cartográfica foi utilizada para rastrear a maneira pela qual as narrativas compartilhadas apontam, movimentam e redesenham alianças de cuidado. Muitas narrativas de aborto problematizam uma ética universalista, apontando outras maneiras de vivenciar a reprodução e o aborto, indicando uma potência inventiva de viver as alianças de cuidado nas suas diferentes formas de manifestação.

Palavras-chave:
Aborto; Enação; Ética do cuidado; Sororidade

Abstract:

This paper discusses how some gender relations are established based on the studies of enation in the field of social cognition. For this, we used two concepts that appear throughout the analysis: the “ethics of care” and “sorority”. From an enactive approach, we look for evidence of how some narratives of induced abortion point to an ethical way of experiencing moral conflicts, carried out not only, but mainly, by women. As an empirical field, we chose two websites: the website “Women on Web” and the tumblr of the campaign developed by the Instituto de Bioética Anis, with the name “Eu vou Contar''. Cartographic inspiration was used as a guideline to track how shared narratives point, move and redesign the way that care alliances are exercised. The study showed that many abortion narratives problematize an ethics conceived in a universalist way, showing other ways of experiencing reproduction and abortion. The narratives call on an inventive power to experience the care alliances in their different forms of manifestation.

Keywords:
Abortion; Enaction; Ethics of Care; Sorority

Resumen:

Este artículo analiza cómo se establecen relaciones de género a partir de la teoría de la enación en el campo de la cognición social. Para ello, utilizamos dos conceptos en el análisis: la "ética del cuidado" y la "sororidad". Desde un enfoque enactivo, buscamos pistas sobre cómo algunas narrativas del aborto inducido apuntan a una forma ética de vivir los conflictos morales, protagonizados no solo, sino principalmente, por mujeres. Como campo empírico elegimos dos sitios web: "Mujeres en la Web" y el tumblr de la campaña desarrollada por el Instituto de Bioética Anis, con el nombre de "Eu vou contar". La inspiración cartográfica se ha utilizado como un faro para trazar la forma en que las narrativas compartidas señalan, mueven y rediseñan las alianzas de atención. El estudio mostró que muchas narrativas del aborto problematizan una ética universalista, apuntando a otras formas de vivir la reproducción y el aborto, apuntando a un poder inventivo para vivir las alianzas de cuidado en sus diferentes formas de manifestación.

Palabras Clave:
Aborto; Enación; Etica del cuidado; Sororidad

Introdução

Este artigo parte dos estudos da teoria da enação no campo da cognição social, buscando discutir como se produzem formas de agir comumente atribuídas à condição da mulher. Para isso, nos valemos dos conceitos de “ética do cuidado” e de “sororidade” para pensar modos de subjetivação presentes na produção do feminino nas relações cotidianas. Procuramos nos afastar de uma ideia essencialista, apostando na coemergência de modos de ser que afirmam outras possibilidades de tratar os dilemas morais. A análise é feita a partir de narrativas de aborto provocado retiradas de dois sítios da web: o Women on Web1 1 A referência digital encontra-se no final deste artigo. e o tumblr da campanha desenvolvida pelo Instituto de Bioética Anis (Debora DINIZ, 2019DINIZ, Debora (Org.). Eu Vou Contar, 2019. Campanha iniciada pela Anis - Instituto de Bioética. Disponível em Disponível em https://eu-vou-contar.tumblr.com/ . Acesso em 16/04/2020.
https://eu-vou-contar.tumblr.com/...
), com o nome de “Eu vou Contar”. A escolha desses dois territórios digitais se deu pelo acesso público de seu conteúdo e pela característica que ambos os sítios carregam: oferecer um espaço de acolhimento às mulheres por meio do compartilhamento de narrativas. Não há, em nenhum dos sítios, como identificar a narradora da história, uma vez que a página é composta por administradores que dispõem o conteúdo sem a identificação das autoras, o que garante o anonimato das mesmas. O artigo foi elaborado a partir de extratos de histórias, narradas em português, de ambos os sítios. Cabe salientar que, para compor esse campo cartográfico, muitas outras histórias foram lidas e ajudaram na presente análise, que se apresenta como um recorte de uma pesquisa de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Talita MONTEIRO, 2020MONTEIRO, Talita Gonçalves. Ética e cuidado em narrativas de aborto na web. 2020. Mestrado (Psicologia Social e Institucional) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.).

A teoria enativa, que alicerçou nosso pensamento em torno da problemática aqui discutida, teve origem no trabalho conjunto desenvolvido por Humberto Maturana e Francisco Varela (2001MATURANA, Humberto; VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento. São Paulo: Palas Athena, 2001.), com posterior desdobramento do segundo autor em parceria com outros pesquisadores. Nessa abordagem, os processos cognitivos e, consequentemente, os modos de narrar, são incorporados, localizados e ligados às congruências operacionais que estabelecemos com os mundos que compartilhamos. Congruências operacionais são formas recorrentes das dinâmicas relacionais que derivam da história evolutiva e que produziram e continuam produzindo diferentes coordenações sensório-motoras, padrões perceptivos e linguagens.

Dessa maneira, aquilo que sabemos e o modo como narramos não decorrem de uma manipulação de símbolos com regras ad hoc, que representariam uma realidade externa e objetiva. As narrativas e os saberes são incorporados, produzidos em acoplamento às circunstâncias vividas através dos processos sensório-motores, perceptivos e linguageiros. Carlos Baum e Renata Kroeff (2018BAUM, Carlos; KROEFF, Renata Fischer da Silveira. “Enação: conceitos introdutórios e contribuições contemporâneas”. Revista Polis e Psique, v. 8, n. 2, p. 207-236, maio/ago. 2018. Disponível em Disponível em https://seer.ufrgs.br/PolisePsique/article/view/77979 . Acesso em 12/03/2020.
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) destacam dois pontos para o entendimento de uma cognição incorporada no sentido enativo:

1) a percepção consiste em uma ação guiada perceptualmente; e 2) as estruturas cognitivas emergem de padrões sensório-motores recorrentes que permitem que a ação seja guiada pela percepção. Assim, o ponto de partida não é a possibilidade de recuperação de informações referentes a um mundo pré-estabelecido (externo e objetivo), e sim a capacidade de um ator poder guiar perceptualmente suas ações em situações específicas, considerando que as situações mudam constantemente como resultado de suas ações (e das ações de outros organismos) (p. 209).

A abordagem enativa possibilita flagrar ações éticas que se estabelecem quando uma situação demanda um agir incorporado e guiado perceptivamente. A situação do aborto provocado apela a uma competência a responder e compartilhar dilemas na vida cotidiana que estão ligados diretamente ao corpo e a todo o histórico de experiência vinculados a um contexto biopsicossocial.

Como guia metodológico, nos inspiramos na cartografia que nos é apresentada por filósofos como Gilles Deleuze e Félix Guattari, e difundida no Brasil por Suely Rolnik (1989ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.). Para os autores, o cartógrafo é aquele que dá passagem aos afetos, ressignificando-os, à medida em que, no escrever, constrói e desconstrói sentidos que lhe pareçam componentes possíveis da criação. Partimos da ideia de que cartografar histórias de aborto trará condições de possibilidade para produzir sentido no pesquisar, rastrear de que maneira as narrativas compartilhadas de mulheres apontam, movimentam e redesenham os modos que vivenciam mundos e que exercem as alianças de cuidado e a sororidade.

A ética enativa e a ética do cuidado

Carol Gilligan (1997GILLIGAN, Carol. Teoria psicológica e desenvolvimento da mulher. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.), no livro Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher, elabora uma crítica a autores como Sigmund Freud e Jean Piaget por suas posições teóricas. Para a autora, eles partem de um mesmo viés de observação, “tomando implicitamente a vida masculina como norma e tentando aplicá-la às mulheres” (GILLIGAN, 1997GILLIGAN, Carol. Teoria psicológica e desenvolvimento da mulher. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997., p. 17). A partir da crítica a tais autores, Gilligan desenvolve um trabalho com enfoque em uma ética feminina, que fica conhecida como ética do cuidado (ethics of care). A autora se contrapõe ao kantismo, vinculado a uma moral altruísta justificada pela razão e valores universais. Seu estudo aponta que a moral das mulheres se caracteriza por sentimento de empatia e compaixão em maior medida que dos homens, com ações mais colaborativas do que combativas, dado que coloca maior ênfase nas relações interpessoais do que na individualidade. Segundo ela, os homens tendem a destacar a imparcialidade, a aplicação de regras universais e a responsabilidade para com os códigos de conduta, enquanto as mulheres focam na responsabilidade e cuidado com os outros. Para a mulher, o problema moral é um problema de cuidado e responsabilidade nas relações e não no desfecho das regras (GILLIGAN, 1982 apud Gustavo ORTIZ MILLÁN, 2014ORTIZ MILLÁN, Gustavo. “Ética feminista, ética femenina y aborto”. Debate Feminista, Cidade do México, v. 49, p. 70-93, abr. 2014. DOI: 10.1016/S0188-9478(16)30004-4.
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).

Embora fale de uma forma geral em relação às diferenças entre homens e mulheres tomando os efeitos de processos enativos de modo naturalizado, é importante destacar sua crítica. A ética do cuidado considera a responsabilidade nas relações baseadas em três níveis: as necessidades do sujeito, os julgamentos sociais (proteção dos dependentes e desiguais) e os princípios universais (não violência). “A relação com a identidade pessoal aparece, segundo Gilligan, nas transições entre os três níveis, que sempre envolvem algum tipo de reformulação da maneira pela qual a pessoa vê a si mesma.” A passagem do primeiro para o segundo nível implica “uma valorização que o indivíduo faz de si mesmo” (GILLIGAN, 1977 apud Rafael PEREIRA, 2011PEREIRA, Rafael Rodrigues. “A importância da concepção de sujeito implícita na Ética do Cuidado”. Winnicott e-prints, v. 6, n. 1, p. 66-79, jan./jun. 2011., p. 69). Assim, o próprio sujeito está incluído na concepção de cuidado e a autovalorização requer um reconhecimento de si e abertura à mudança - a responsabilidade, então, passa a se aplicar tanto a si quanto aos “outros” (PEREIRA, 2011, p. 70). Pensar a ética do cuidado é pensar nas circunstâncias particulares e nas contingências entre o sujeito e seu mundo, em um movimento de não categorizar, julgar e/ou hierarquizar os modos de agir.

Críticas à noção de ética do cuidado apontam para o risco de a mesma assumir um caráter conservador, devido a seu foco contextual e particularista (ORTIZ MILLÁN, 2014ORTIZ MILLÁN, Gustavo. “Ética feminista, ética femenina y aborto”. Debate Feminista, Cidade do México, v. 49, p. 70-93, abr. 2014. DOI: 10.1016/S0188-9478(16)30004-4.
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). Há também carência de análise cultural dos valores, que são atribuídos por Gilligan ao feminino, fazendo parecer que qualidades como cuidado e empatia seriam inerentes a uma condição “natural” da mulher. Além disso, sua distinção entre mulheres e homens, no geral, também tem sido alvo de críticas. Concordamos com as críticas, pois Gilligan, ao tomar o conceito de mulher ocidentalizada, não se detém em outras experiências e maneiras de enatuar gênero em diferentes culturas.

Margaret Mead (1988MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1988.) já apontava como diferenças sexuais consideradas inatas em determinada cultura não são reproduzidas em outra, pois há um condicionamento social que opera diretamente nos indivíduos, no modo como vivem em sociedade. Na abordagem enativa, esse condicionamento pode ser entendido pois cada circunstância particular reforça ou inibe as congruências operacionais que configuram os esquemas sensório-motores, perceptivos e linguageiros. A própria condição física e ambiental diversificada das culturas é constitutiva da maneira como se vive. A autora estudou três povos distintos de Papua-Nova Guiné: Os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli, observando as personalidades atribuídas ao sexo biológico, e destacou:

Vimos que os Arapesh - homens e mulheres - exibiam uma personalidade que, fora de nossas preocupações historicamente limitadas, chamamos maternal em seus aspectos parentais e feminina em seus aspectos sexuais. Encontramos homens assim como mulheres, treinados a ser cooperativos, não agressivos, suscetíveis às necessidades e exigências alheias […] Verificamos em meio aos Mundugumor que homens e mulheres se desenvolviam como indivíduos implacáveis, agressivos e positivamente sexuados, com o mínimo de aspectos carinhosos e maternais em sua personalidade […] Nem os Arapesh nem os Mundugumor tiram proveito de um contraste entre os sexos […] Nos Tchambuli, deparamos com uma verdadeira inversão das atitudes sexuais de nossa própria cultura, sendo a mulher o parceiro dirigente, dominador e impessoal, e o homem a pessoa menos responsável e emocionalmente dependente […] (MEAD, 1988MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1988., p. 267-268).

Como assinalamos, Gilligan (1997GILLIGAN, Carol. Teoria psicológica e desenvolvimento da mulher. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.) não problematiza o fato de que algumas características atribuídas a mulheres e homens provêm da cultura na qual se constituem. A distinção pela qual pauta sua argumentação precisa ser questionada, uma vez que modos de agir, perceber e narrar se constituem culturalmente. Na tentativa de evitar tais naturalizações e generalizações, buscamos na teoria da enação um desdobramento da ética do cuidado, tomando o conceito de Gilligan no sentido estrito de pensar as alianças de cuidado experienciadas por mulheres em uma situação específica: a experiência do aborto.

A teoria da enação contribui para ponderar as condições de possibilidades nas quais práticas de cuidado podem emergir, considerando o corpo, a linguagem e as congruências operacionais nele e com ele operadas. Na teoria enativa, o mundo não é preexistente e independentemente dos sujeitos; ambos coemergem em um processo de coprodução. Assim, a experiência em contingência não é fruto de um sujeito ou mundo anterior, como estabelecem algumas teorias representacionistas da cognição, e sim dependente do sujeito da percepção em uma situação. Desse modo, somos sujeitos cognitivos habitantes de um presente que cria as condições de mudança, de onde emergem pontos de vista, não de modo arbitrário, mas coerentes com o mundo que nos é relevante, e inseparáveis de nossa corporificação (VARELA, 1992VARELA, Francisco J. Sobre a competência ética. Lisboa: Edições 70, 1992.).

A ética, nessa perspectiva, não é um julgamento que valora as ações sobre esse pretenso mundo independente. Trata-se de uma disposição para a ação que se configura, momento a momento, a partir de uma coimplicação entre sujeito e mundo, por processos que incluem a atenção, a extensão e uma consciência inteligente. Esses são termos de Meng Tzu, citado por Varela (1992VARELA, Francisco J. Sobre a competência ética. Lisboa: Edições 70, 1992.), que compõem a competência ética. Para Meng Tzu, a atenção é entendida em sua dupla face: atenção ao mundo e atenção a si. A extensão é definida como a aprendizagem trazida por cada situação e passível de se constituir em uma ferramenta para a ação. A consciência inteligente se produz no momento em que a experiência e a competência para agir, adquiridas no decorrer da história dos acoplamentos, ultrapassam o comportamento deliberado, tornando-se ações disponíveis e virtuosas. Sendo assim, as ações éticas não dependem de um julgamento racional, nem são vistas como processos simples de estímulo-resposta, e sim são corporificadas através da atenção, extensão e consciência inteligente.

O fazer ético, nessa abordagem, não está separado da prática cotidiana e do sujeito localizado, bem como na ética do cuidado, sendo um posicionamento perante um mundo. Trata-se de uma ética do fazer, em que o agir é fundado no acontecimento, sem uma hierarquização moral (VARELA, 1992VARELA, Francisco J. Sobre a competência ética. Lisboa: Edições 70, 1992.). A competência ética está ligada à percepção da situação, em um saber-fazer incorporado, que é atravessado por várias intersecções que nosso corpo maneja para agir no mundo. Essas intersecções se manifestam e constituem-se na história de vida dos sujeitos, nas políticas de controle nas quais estão inseridos, nos coletivos em que participam, no corpo que possuem, em suas crenças e em tudo que alicerça seu estar em um mundo, que faz parte de seu corpo cognitivo. Assim, as características atribuídas às mulheres são apreendidas em acoplamento a seus modos de vida, às histórias que compartilham, às instituições que se vinculam e aos padrões coletivos instituídos socialmente.

A ética, na perspectiva enativa, ajuda a pensar como emerge o cuidado nas relações femininas que se estabelecem no patriarcado, no qual o corpo da mulher se constitui em um dos alvos do controle. A ética do cuidado aponta para uma racionalidade contextualizada e não para uma emoção irracional que tanto é atribuída às mulheres (Tânia KUHNEN, 2014KUHNEN, Tânia Aparecida. “A ética do cuidado como teoria feminista”. In: SIMPÓSIO GÊNERO E POLÍTICAS PÚBLICAS, 3., 2014, Londrina. Anais ... Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2014. p. 1-9. Disponível em Disponível em http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arquivos/GT10_T%C3%A2nia%20Aparecida%20Kuhnen.pdf . Acesso em 30/03/2020.
http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/arqu...
). Na enação, poderemos pensar como corpos situados possibilitam ações deliberadas e criação de mundos, para além dos papéis sociais atribuídos às mulheres. Trata-se de atentar para o modo como se performa esse saber-fazer feminino no encontro com o outro, feminizando a ética (KUHNEN, 2014), para que ações hoje tidas como alicerces das relações femininas, como o cuidado, possam ser entendidas como um reconhecimento do outro, em uma sociedade de cooperação, e não apenas como características que adjetivam as relações das mulheres, mas as mantêm na subalternidade.

A sororidade em um olhar COM o outro: Construindo possibilidades éticas nas alianças de gênero

A sororidade é uma noção empregada por movimentos feministas embora, muitas vezes, esteja ligada à noção de empatia. A ideia de “colocar-se no lugar do outro” dificulta a compreensão das práticas enatuadas e das condições que instauram ao se efetivarem. Marcela Lagarde y de Los Ríos (2012LAGARDE Y DE LOS RÍOS, Marcela. El feminismo en mi vida: hitos, claves y utopías. Ciudad de México: Instituto de las Mujeres de la Ciudad de México, 2012.) fala de sororidade como a criação de irmandade e aliança entre as mulheres, que só são possíveis quando reconhecidas suas diferenças. A autora trabalha a noção de sororidade a partir do movimento feminista, pois acredita ser o espaço onde há possibilidade de desdobramento de outras formas de vida, já que se predispõe à escuta, à crítica e ao afeto.

A partir de Lagarde, trazemos dois pontos importantes para pensar a sororidade, não só no espaço de militância, mas também como uma ética de colocar-com, ética da lateralidade, nas ações cotidianas e nas suas formas mais cotidianas de manifestação. O primeiro ponto trazido pela autora é a afirmação de “olhar através do olhar do outro”, que é muitas vezes tomada como sinônimo de empatia. Evan Thompson (2013THOMPSON, Evan. A Mente na Vida: Biologia, Fenomenologia e Ciências da Mente. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.), em suas investigações sobre a empatia, fala de uma consciência estruturalmente aberta ao outro, o que pressupõe também um entendimento de si. Para ele, a maneira como nos colocamos no mundo se faz através de um processo de enculturação - em que se constituem modos de viver, configurados pela rede cognitiva e distribuída pela rede simbólica. A abertura ao outro transcende a consciência individual, pois alarga as possibilidades de coemergência, tendo como efeito experiências intercambiáveis, constitutivas de coletivos. A abertura intersubjetiva implica a experiência perceptual de si e do outro (uma experiência intencional), da presença corporal expressiva e dos estados mentais; ela seria, portanto, uma “consciência da experiência da outra pessoa” (STEIN, 1989, p. 6-11 apudTHOMPSON, 2013THOMPSON, Evan. A Mente na Vida: Biologia, Fenomenologia e Ciências da Mente. Lisboa: Instituto Piaget, 2013., p. 446).

A consciência da experiência da outra pessoa depende da experiência corpórea (que é facilitada quando possuímos um tipo similar de esquemas corpóreos) e da percepção do outro como uma orientação espacial diferente da nossa (o que abarca a compreensão de que esse outro experimenta o espaço de modo diferente do nosso). Considerando essa abordagem, fica difícil afirmar que podemos “olhar através do olhar do outro”, mas olhar-com-o-outro. Quando estou com o outro, imprimo um ritmo e recebo um retorno; configuramos um espaço compartilhado, um espaço de cooperação, tal como no jogo de cordas, a cama de gato, como expõe Donna Haraway (2016HARAWAY, Donna J. Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene. Londres: Duke University Press, 2016.). No jogo, recebemos padrões e os disponibilizamos a um outro que, ao tomá-los, os transforma. As ideias de sororidade e empatia, que desconsideram a cooperação, a troca e a transformação, se aproximam de uma análise cognitiva representacionista. Pressupõem que uma predisposição empática pudesse ser transferível entre sistemas corpóreos diferentes. Do modo como abordamos, a empatia pode ser entendida como um encadeamento de fazeres, no qual cada ação transforma um pouco a anterior.

A definição de sororidade de Lagarde (2012) também aponta a criação de irmandade e aliança entre as mulheres, que já se constituem historicamente em um “saber-fazer” feminino. Essa definição nos parece interessante, pois alianças podem ser criadas entre as mulheres, dentro ou fora do movimento feminista, quando conseguimos reconhecer o outro como legítimo outro - diferente de nós (MATURANA, 2002MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2002.), com o qual podemos com-viver. Trata-se, portanto, de uma congruência operacional que produz emoções e fazeres compatíveis. Thompson (2013THOMPSON, Evan. A Mente na Vida: Biologia, Fenomenologia e Ciências da Mente. Lisboa: Instituto Piaget, 2013.) fala na empatia reiterada, que é “aprender de forma empática a vossa experiência empática da minha pessoa” (THOMPSON, 2013THOMPSON, Evan. A Mente na Vida: Biologia, Fenomenologia e Ciências da Mente. Lisboa: Instituto Piaget, 2013., p. 452). Essa definição de empatia ajuda a pensar nas manifestações de cuidado femininas fora de uma ideia essencialista, fazendo com que possamos olhar a ética manifesta nas narrativas de aborto sobre uma ótica de congruências construídas no fazer conjunto.

Criar irmandade entre as mulheres, nesse sentido, depende muito mais do reconhecimento do outro como diferente do que, ao fim, tentar achar um espaço onde a solidariedade, articulada a uma visão de caridade, nos faça seres fraternais. A sororidade vista como fraternidade é uma idealização, vinculada a princípios morais coloniais que designam o que é ser mulher na sociedade ocidental. Tal crença advém da ideia que estabelece para a condição feminina um papel dócil e passivo de “santa mãezinha” que a todos entende e perdoa (Mary DEL PRIORE, 1993DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia. Brasília; Rio de Janeiro: Editora da Universidade de Brasília; José Olympio, 1993.). Talvez tomar a sororidade como uma possibilidade ética a deixe mais próxima de operar um entendimento mútuo de coimplicação entre as mulheres, nas suas mais variadas formas de encontro.

As narrativas de aborto da web: Ética e cuidado

Ao considerarmos as práticas de abortamento provocado no Brasil por uma ótica da moral universalista, como a do direito, condenaremos as mulheres por cometerem uma ação ilegal. O aborto está historicamente ligado a valores morais/religiosos - de controle econômico da sociedade e de controle das mulheres - através de leis e escritos religiosos que regulam os espaços emocionais (MATURANA, 2002MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2002.). Mas, ao considerarmos essas práticas em uma abordagem enativa da ética do cuidado, ou seja, em uma política da convivência, podemos estimar efeitos dessas experiências que possibilitam a produção de um reconhecimento do outro, uma motivação ética com foco nas ações intencionais produzidas. Tal deslocamento do olhar possibilita pensar em uma outra abordagem da ética, na qual as dimensões inter-relacionais, interacionais e interativas estarão no foco da atenção (Petr URBAN, 2015URBAN, Petr. “Enactivism and Care Ethics: Merging Perspectives”. Filozofia, v. 70, n. 2, p. 119-129, fev. 2015.).

Para pensar-com e como as histórias apontam para esse outro modo ético das mulheres se relacionarem nas questões do aborto, trazemos fragmentos das narrativas que visibilizam o compartilhamento do cuidado. As narrativas foram retiradas, como mencionado, de dois sítios da web, o tumblr “Eu vou contar”, do instituto de bioética Anis (DINIZ, 2019DINIZ, Debora (Org.). Eu Vou Contar, 2019. Campanha iniciada pela Anis - Instituto de Bioética. Disponível em Disponível em https://eu-vou-contar.tumblr.com/ . Acesso em 16/04/2020.
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), e o site Women on Web.

As personagens que compõem com maior intensidade o campo narrativo são amigas, mães ou desconhecidas - da web ou não - que participam nas tramas de aborto provocado narradas nos sítios. As mulheres das nossas histórias de aborto são mulheres que muitas vezes abrem mão dos juízos morais e se colocam como um verdadeiro ponto de referência ao cuidado, que vivem a trama com as narradoras em um partilhamento da ética centrada no fazer, como nos fragmentos a seguir:

Fiz 4 testes de farmácia com uma amiga do lado. Eu não chorei na frente dela, mas já disse que não queria ter esse filho. Ela disse para pensar bem, mas que me apoiaria qualquer fosse a decisão […] Minha amiga acompanhou tudo segurando a minha mão. Me deu banho e me levantou do chão várias vezes. Nunca vou esquecer isso (Fragmento 1 - Women on Web, 2016WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 1. Women on Web, 2016. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 02/2019.
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).

Depois de passar o dia sem falar com ninguém, finalmente desabafei. Contei para duas amigas. Eu precisava falar com alguém, saber daquilo sozinha estava me matando, precisava de apoio e foi exatamente o que recebi delas (Fragmento 2 - Women on Web, 2014WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 2. Women on Web, 2014. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 02/2019.
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).

Minha amiga, muito preocupada me ligava todos os dias, conversava horas e horas comigo, sempre me confortando e apoiando, dizia que NÓS íamos sair dessa, ela se incluía a todo instante nessa luta, e graças a este apoio eu não cometi uma loucura maior (Fragmento 3 - Women on WebWOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 3. Women on Web. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 01/2019.
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).

Quando acabou a aula ela (amiga de escola) me perguntou o que estava acontecendo e eu desabei nessa hora a chorar e ela sempre me acalmando dizendo que iríamos resolver tudo (Fragmento 4 - Women on Web, 2016WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 4. Women on Web, 2016. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 04/2019.
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).

Podemos identificar um exercício da sororidade entre as personagens nas diferentes histórias, que pode ter sido facilitado pela proximidade e vínculo entre as mesmas - pessoas que provavelmente já se legitimam nas diferenças pela relação direta, em que tal acontecimento cria ações congruentes com seu histórico relacional. Também encontramos, entre as narrativas, pessoas que vivenciaram o aborto, facilitando o exercício da ética na perspectiva do cuidado, como no fragmento 5:

Uma amiga minha percebeu que estava super estranha [sic] e que algo tinha acontecido comigo, eu não queria contar por medo, todas as pessoas têm uma reação diferente quando se fala em aborto, não queria ser julgada ou ouvir sermão de alguém. Depois de tanto ela insistir eu acabei contando e por coincidência ela havia feito um aborto no começo do ano e ainda tinha uns comprimidos que sobraram (Fragmento 5 - Women on Web, 2014WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 5. Women on Web, 2014. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 04/2019.
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).

Nas narrativas acima, há uma concepção da ética como fazer, relacionada às ações em que não há julgamento moral a respeito do aborto, e sim um agir guiado pela demanda que a situação evoca (VARELLA, 1992). Quando a narradora da história 1 escreve: Ela disse para pensar bem, mas que me apoiaria qualquer fosse a decisão (…) ou na história 2: Eu precisava falar com alguém, saber daquilo sozinha estava me matando, precisava de apoio e foi exatamente o que recebi delas, evidenciam o que era desejável para aquela relação de amizade, onde as amigas respondem a esse desejo, criando um ambiente de responsabilização mútua e ética nas relações.

Gilligan (1997GILLIGAN, Carol. Teoria psicológica e desenvolvimento da mulher. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.) aponta, em seus estudos, sobre a ética do cuidado em que as mulheres articulam a experiência de modo que o dilema moral não é aquele da universalidade de direitos individuais, e sim de responsabilidade consigo mesma e com os outros, no reconhecimento das individualidades. Essas narrativas retratam o “colocar-se com”, onde a questão do aborto é compartilhada entre as mulheres com frases como NÓS íamos sair dessa (história 3), em que a própria narradora destaca o nós em letras garrafais para assegurar sua importância; ou, ainda, na frase dizendo que iríamos resolver tudo, da história 4, em que mais uma vez uma amiga se coloca na problemática. As histórias acima apontam para esse movimento ético das mulheres, que chamamos de sororidade, ao produzir a criação de irmandade, sendo uma responsabilidade perante a outra no partilhamento dos dilemas pessoais.

Os homens, por sua vez, aparecem no enredo das histórias como próximos às narradoras, o que possibilitaria um movimento de legitimação, assim como o das amigas que não necessariamente passaram pelo aborto, mas se dispuseram ao cuidado. Entretanto, nas histórias, eles raramente ocupam esse protagonismo - um personagem importante no desenvolvimento das narrativas passa muitas vezes para coadjuvante, figurante, e, em alguns casos, até mesmo antagonistas:

Quando estava tudo certo, no dia que havíamos combinado para o depósito o ex resolve não ajudar mais. A justificativa? “Não quero carregar a culpa da morte de alguém, se você quer fazer, faça sozinha! Além do mais, nem juntos estamos”. Mais uma vez ele me jogou nas masmorras dessa terra, me deixou desamparada e com o pior dos sentimentos! (Fragmento 6 - Women on WebWOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 6. Women on Web . Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 03/2019.
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).

Disse que me apoiaria, me ajudaria a criar a criança, mas como? Eu não poderia trabalhar e o que ele ganha mal dava para ele. Contei sobre a decisão de abortar e ele me disse que isto não apoiaria. Muito fácil! Não me ajudou com o dinheiro de nenhum exame nem do médico, e ainda acha que pode sustentar uma família. É fácil demais falar que não iria ajudar no aborto porque não concorda com isso. No fim acredito que ele não tinha intenção de me ajudar financeiramente com nada, assim seria fácil falar que não apoia o aborto e ficar distante na história (Fragmento 7 - Women on Web, 2015WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 7. Women on Web, 2015. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 03/2019.
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).

Para minha surpresa meu namorado reagiu super mal a [sic] minha decisão, brigou comigo, disse que eu não quis ao menos tentar, me chamou diversas vezes de egoísta e falou a seguinte frase: “Se você quer matar esse bebê, é isso que vamos fazer!!!” […] meu namoro tá bem abalado com essa história […] ele se distanciou muito e se não fosse essa minha amiga, eu não sei o que seria de mim. Não pretendo precisar fazer um aborto de novo, mas se eu me encontrar numa situação semelhante a essa, faria novamente sim (Fragmento 8 - Women on Web, 2017WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 8. Women on Web, 2017. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 05/2019.
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).

Os homens das histórias são relatados como produzindo julgamentos em relação à intenção de aborto das narradoras, não de ajuda. No decorrer da leitura, encontramos narrativas nas quais os homens apoiaram financeiramente a compra dos medicamentos, outros para conseguir um fornecedor. A ajuda masculina vinha em questões práticas e não como um movimento de apoio mútuo, como ocorre entre as mulheres. Mesmo quando estes decidem ajudar, há um distanciamento da situação, como se corporalmente não conseguissem oferecer um ponto de cuidado, como aponta a narradora do fragmento 9:

Neste momento eu estava me sentindo sozinha, muito sozinha. Meu namorado disse que ele também estava preocupado, mas que a diferença é que eu surtei e ele não. Ele tentou manter a calma. Mas só uma mulher grávida sabe o que é se sentir mal o dia inteiro […] (Women on Web, 2017WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 9. Women on Web, 2017. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 03/2019.
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).

Existem diferenças nas narrativas em relação aos modos de agir de homens e de mulheres. O distanciamento masculino da problemática reflete processos de corporificação em relação ao aborto. A frase só uma mulher grávida sabe o que é se sentir mal o dia inteiro evidencia as diferenças nesses processos. A gravidez é uma transformação que abarca várias dimensões, tanto de ordem corporal como social. Do mesmo modo, o distanciamento masculino é também um modo incorporado de aprendizagem (MATURANA, 2014MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Organização de Cristina Magro, Miriam Graciano e Nelson Vaz. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minhas Gerais, 2014.). Para além e aquém dessa corporificação feminina, existe a constituição de um corpo masculino a quem é possível utilizar-se de um julgamento moral para desresponsabilizar-se do enfrentamento da questão do aborto.

Os sentidos que os homens produzem em relação ao aborto, narrados por suas companheiras, estão ligados a uma cultura, na qual, prioritariamente, a responsabilização perante o filho é atribuída à mãe, cabendo ao homem o provimento financeiro e à mulher o cuidado. As relações diante do aborto reproduzem a organização da nossa sociedade. O fazer ético é diferente entre os sexos, uma vez que o que aparece nas relações são as microidentidades - modos de agir incorporados pelo indivíduo em seu histórico de acoplamentos, uma prontidão para a ação a partir de micromundos que emergem da práxis - fazendo com que se reiterem os padrões de gênero.

Dentre os relatos analisados nessa pesquisa, apenas em um deles uma figura masculina atuou como fonte de apoio. No fragmento 10, o companheiro da narradora esteve presente nos processos de decisão e procedimento e conseguiu, segundo ela, compartilhar a problemática:

[O parceiro] Acalmou-me, teve paciência com meu desespero e minhas dúvidas, me deu opções, caso eu optasse a continuar a gravidez e caso eu decidisse por interromper […] Tive sorte, João [nome fictício] esteve do meu lado o tempo todo, não me julgou, apoiou minha decisão e segurou minha onda (Fragmento 10 - Women on Web, 2016WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 10. Women on Web, 2016. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 02/2019.
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).

A prática do companheiro difere daquela da maioria dos relatos dos sites. Talvez essa postura perante o acontecimento tenha se efetivado em razão de breakdowns recorrentes em seu histórico de acoplamentos que modulam sua experiência, criando um modo diferente de cuidado daquele habitual a seu gênero. Breakdowns acontecem quando uma resposta usual não dá conta da situação presente, demandando a emergência de um novo micromundo e uma nova microidentidade correspondente (VARELA, 2003VARELA, Francisco J. “O reencantamento do concreto”. Cadernos de subjetividade, n. 11, p. 71-86, jan./dez. 2003.). Micromundos são constituídos pelo nosso histórico de ações recorrentes, e a cada um deles, que são múltiplos e particulares, corresponde uma microidentidade - ou modos de agir em cada um dos micromundos -, de modo que nossas atividades cognitivas, e isso inclui a ética, “não demandam reflexão deliberada, mas a emergência dessas microidentidades, que nos oferecem os recursos de que já dispomos em nosso repertório” (Laís RAMM; Carlos BAUM; Cleci MARASCHIN, 2019RAMM, Laís Vargas; BAUM, Carlos; MARASCHIN, Cleci. “Ética e enação: Pistas em uma ocupação secundarista”. In: MAURENTE, Vanessa; MARASCHIN, Cleci; BAUM, Carlos (Orgs.). Enação: percursos de pesquisa. 1 ed. Florianópolis: Edições do Bosque, 2019. p. 125-146., p. 135).

Apesar do fato de encontrarmos somente uma narrativa que demonstra coimplicação do companheiro no processo de abortamento, não significa que a falta de apoio seja somente masculina. Em algumas histórias, mulheres também não atuaram como fonte de apoio, como conta a narradora da história 11: Foi quando eu disse! Não quero esse bebê... Ela (minha amiga) falou: “Se for abortar não conte comigo, estará sozinha nessa!!!” (Women on WebWOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 11. Women on Web. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 06/2019.
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).

As experiências mostram que, apesar dos relatos enunciarem um determinado padrão de ação predominante entre homens e mulheres, existem exceções. Homens e mulheres, no contexto brasileiro, estão imersos em lógicas patriarcal-coloniais. Lógicas herdadas da colonização (Nathalie ITABORAÍ, 2005ITABORAÍ, Nathalie Reis. “A família colonial e a construção do Brasil: Vida doméstica e identidade nacional em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Nestor Duarte”. Revista AntHropológicas, v. 16, n. 1, jan./jun. 2005. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufpe.br/revistas/revistaanthropologicas/article/view/23628 . Acesso em 10/08/2020.
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) que designam a organização política que cada corpo ocupa nos laços sociais e na construção da nossa história. Ações de sororidade entre as mulheres só podem ser enatuadas em confronto a tais lógicas. As identidades de gênero são padrões enatuados que cada um ou uma de nós refaz, a partir de um certo constrangimento das possibilidades de transformação, podendo serem mais ou menos efetivas. O que identificamos a partir dos relatos é uma tendência ao cuidado vivenciada pelas mulheres a partir do seu histórico de confronto, seja de modo intencional ou não, àquelas lógicas patriarcais.

É importante considerar que o padrão de respostas ao aborto pode ser modificado se houver condições de emergência de outras microidentidades. As condições de possibilidade dessas emergências são mais efetivas quando coletivas, por exemplo, através de políticas públicas que apoiem discussões sérias sobre o aborto, para que este passe a ser encarado como um fator de saúde e não seja criminalizado, produzindo assim novas percepções e modificando a experiência cotidiana.

Movimentos sociais trabalham nessa direção em diversos espaços, produzindo breakdowns nas formas de concebê-los e propondo modificações nas pautas afetivas e cognitivas. Vários movimentos feministas, por exemplo, problematizam o papel designado à mulher na sociedade. Temas como sexualidade, maternidade e aborto são pautados em diversos discursos, a fim de modificar padrões de comportamentos herdados historicamente que se atualizam na convivência. Há, nos relatos, fragmentos que conotam a importância desses movimentos no fazer ético:

Fui a uma médica feminista que foi um grande anjo nesse processo todo. Disse que estava considerando um aborto, mas tinha muito medo por causa da endometriose. Ela me explicou o funcionamento dos medicamentos e conversou longamente comigo. Pediu exames e disse para não tomar nenhuma decisão sem conversar com ela antes. Ela foi realmente a pessoa mais incrível que poderia ter me acompanhado nesse processo […] (Fragmento 12 - Women on Web, 2016WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 12. Women on Web, 2016. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 03/2019.
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).

A narradora dá ênfase ao fato de a médica que a ajudou ser feminista, pois valorou essa informação na narrativa. A médica, por sua vez, a orientou respeitando seu direito à informação e fornecendo autonomia em sua decisão, reduzindo assim os riscos de complicação, sendo que sua posição política pode ter sido fundamental para a efetivação dessa prática de cuidado. Em contraste, outras narrativas evidenciam posicionamentos diferentes de profissionais da saúde, como no fragmento 13:

Chegando lá não falei nada só pedi uma ultrassom, minha mãe entrou comigo na sala, quando o meu ginecologista começou a fazer choro de bebê. Eu disse: o quê???? ah???? Minha mãe quase chorou no consultório, e o ginecologista soltou gravidinha de 13 semanas tão magrinha quem diria [sic] (Fragmento 13 - Women on Web, 2016WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 13. Women on Web, 2016. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 06/2019.
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).

Temos, no relato acima, uma postura profissional que desrespeita a ética profissional da autonomia na relação médico/paciente, uma vez que o médico anunciou a gravidez da narradora, já maior de idade, junto à mãe. Outro ponto a ser levantado é o “choro de bebê” reproduzido pelo profissional ao anunciar uma gravidez de 13 semanas e as observações do mesmo sobre a aparência da paciente. Existem vários relatos que conotam uma postura médica não condizente com um movimento de cuidado. O cuidado, aqui referido, é aquele da alteridade, do movimento de reconhecer que, apesar de casos recorrentes onde há necessidade de anunciar uma gravidez, eles compõem mundos com particularidades. Cada pessoa vive em um momento no qual a notícia de gravidez pode representar diferentes emoções - da alegria ao desespero - e os profissionais precisam atentar para condições únicas de cada situação. Essa não foi a única narrativa em que se relatou um processo de ultrassom doloroso para quem não desejava a maternidade, como nas histórias a seguir:

Tenho certeza que naquele momento [ultrassom] fiquei branca, gelada e senti meu mundo desabar em fração de segundos. Perguntei para ele com a voz trêmula a idade gestacional e ele falou “8 semanas e tem aproximadamente 1,75 cm” e quando eu achava que não podia mais piorar, ouvi os batimentos cardíacos e o médico virou o monitor pra mim dar uma olhada, não sabia se virava o rosto, pedia pra ele desligar tudo ou chorava (Fragmento 14 - Women on Web, 2014WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 14. Women on Web, 2014. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 03/2019.
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).

Quando chegou minha vez o médico iniciou o procedimento, eu nunca entendi ultrassonografia, vi algo estranho na tela na mesma hora. O médico deu um zoom exatamente naquela coisa estranha e disse “é gravidez” [...] Ele calculou que estava de 7 semanas, me informou o dia previsto do nascimento, e pediu que eu parasse de respirar para ouvir o coração do feto batendo (Fragmento 15 - Women on Web, 2017WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 15. Women on Web, 2017. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 02/2019.
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).

A doutora nem mexeu muito e logo vi aquela coisinha se mexendo, e ela, é claro, me deu parabéns pelo bebê que eu estava gerando e logo colocou para eu escutar o coraçãozinho. Ali meu mundo caiu, eu não tinha reação, estava de 9 semanas e 2 dias, e sem saber o que fazer. Saí do consultório chorando (Fragmento 16 - Women on Web, 2017WOMEN ON WEB. “Fiz um aborto”. Fragmento 16. Women on Web, 2017. Disponível em https://www.womenonweb.org/pt/page/488/fiz-um-aborto. Acesso em 04/2019.
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).

O modo padrão de prática de exame, conforme os relatos acima, provoca sofrimento para essas mulheres, sendo instrumento de uma tortura invisibilizada. Sabendo dessa condição, escutar os batimentos cardíacos fetais já foi cogitado como obrigatório no projeto de lei 01-00352/2019 (SÃO PAULO, 2019), do município de São Paulo, que visa diminuir o acesso ao aborto nos casos hoje já previstos em lei. Nesse, o artigo 3 dispõe:

Art. 3º - Antes de realizar o abortamento, a detentora do alvará aguardará o prazo mínimo de 15 (quinze) dias, em que se submeterá, obrigatoriamente, a: I - atendimento psicológico com vistas a dissuadi-la da ideia de realizar o abortamento; II - atendimento psicossocial que explique sobre a possibilidade de adoção em detrimento do abortamento; III - exame de imagem e som que demonstre a existência de órgãos vitais, funções vitais e batimentos cardíacos; IV - demonstração das técnicas de abortamento, com explicação sobre os atos de destruição, fatiamento e sucção do feto, bem como sobre a reação do feto a tais medidas. §1º - Obrigatoriamente, a detentora do alvará terá que passar por todos os procedimentos previstos nesta Lei, bem como ver e ouvir os resultados do exame de imagem e som (SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO (Município). Projeto de Lei nº 01-00352, de 28 de maio de 2019. Cria medidas de apoio à mulher gestante e à preservação da vida na rede municipal de saúde. Pl 352. São Paulo, SP: Câmara Municipal de São Paulo, 29 maio 2019. Projeto de lei apresentado pelo Vereador Fernando Holiday (DEM). Disponível em Disponível em https://www.saopaulo.sp.leg.br/iah/fulltext/projeto/PL0352-2019.pdf . Acesso em 01/11/2019.
https://www.saopaulo.sp.leg.br/iah/fullt...
, p. 01).

As leis são dispositivos estatais que deveriam atuar na assistência à saúde e à integridade física e psicológica da mulher. Entretanto, o artigo em tela explicita a criação de um regime de tortura e perpetuação de violências em relação às mulheres. A ação médica no manuseio de ferramentas de poder, nesse caso as que permitem escutar os batimentos fetais, é normalizada dentro das práticas de saúde, onde as questões inter-relacionais, interacionais e interativas do acoplamento entre a tecnologia, o médico e o indivíduo não estão no foco da experiência. O que versa a experiência ética, nesses casos, é a prontidão em passar um resultado diagnóstico, onde este é feito, muitas vezes, sem uma problematização prévia e considerado adequado pela sua recorrência. É nesse ponto que insistimos na importância da problematização dos discursos e das práticas dos profissionais de saúde, que podem desnaturalizar protocolos tidos como adequados, mas que são produtores e conservadores de violência.

A criminalização do aborto é mais um vestígio de nosso passado colonial, de exploração e expropriação do saber e do saber-fazer. A história das práticas abortivas, que hoje performam um uso exclusivo da medicina, nem sempre foram assim; elas descendem de um saber popular, sobretudo das mulheres negras e dos povos originários, transmitidos entre as mulheres. Em uma das histórias, a única retirada do tumblr do Instituto de Bioética Anis (DINIZ, 2019DINIZ, Debora (Org.). Eu Vou Contar, 2019. Campanha iniciada pela Anis - Instituto de Bioética. Disponível em Disponível em https://eu-vou-contar.tumblr.com/ . Acesso em 16/04/2020.
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), uma mulher negra narra sua experiência de aborto:

Para pagar os comprimidos, eu usei minha bolsa inteira de iniciação científica. Era uma bolsa que eu recebia para pagar coisas muito básicas e me manter vinculada à universidade. Depois de tudo acabar, eu contei à professora da bolsa sobre o aborto, ela fez um sermão horrível, falou do cara, e depois de uns dias perdi minha bolsa. Não posso dizer que ela me tirou a bolsa por isso, mas foi muita coincidência. Era a única estudante negra no grupo dela (Fragmento 17 - Instituto Anis).

Essa narrativa nos conta sobre um encontro entre uma professora e uma aluna negra em que ambas se situam em espaços hierárquicos e corporais diferentes. Cada um desses mundos permite maior ou menor exercício de sororidade. Uma ética enativa faz pensar nas condições de aculturamento e como nossa sociedade racista e patriarcal dificulta à professora uma escuta da alteridade. Questões como essa fazem com que a sororidade seja problematizada dentro de vários movimentos feministas. Como criar condições de irmandade entre as mulheres, se há pautas e intersecções tão distintas e inerentes às posições que os corpos ocupam no mundo?

Na situação anterior, talvez a única possibilidade no operar dessa professora foi a de não denunciar a aluna, o que não impediu a interrupção de sua bolsa. Esse padrão relacional não está apartado da história e do apagamento da humanidade por que os povos não brancos passaram e ainda passam. Podemos pensar, por hipótese, que talvez tivesse sido mais fácil para a professora branca manifestar um cuidado, se a história tivesse sido narrada por uma outra aluna, não negra, de seu grupo de pesquisa. Há também na postura da professora uma lógica pautada na cultura punitivista, ao retirar a bolsa de pesquisa da aluna. O punitivismo é sistematicamente uma maneira de individualizar a culpa, o que se mostra recorrente em temas como o aborto, onde há um afastamento do debate enquanto política pública e desresponsabilização do estado. Podemos observar, nas estatísticas de encarceramento das mulheres no Brasil, onde 68% são negras e 50% não terminaram o ensino fundamental (Luciana BOITEUX, 2016BOITEUX, Luciana. “Encarceramento feminino e seletividade penal”. Boletim da Rede Justiça Criminal, ed. 9, p. 5-6, 2016. Disponível em Disponível em https://redejusticacriminal.org/pt/portfolio/encarceramento-feminino-e-seletividade-penal/ . Acesso em 30/06/2020.
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), que a tendência na lógica punitivista insurge diretamente sobre os corpos não brancos, sendo esses mais passíveis de punição.

Tal fato revela que a sororidade não é uma essência da condição de mulher. Há, portanto, a necessidade de considerar as condições que possibilitam ou dificultam a prática da sororidade e de uma ética do cuidado, atentando ao fato de que o racismo estrutural e o passado colonial operam nas relações que as mulheres estabelecem entre si. Não há como discutir a legalização do aborto e as irmandades criadas nas alianças de gênero sem um retorno crítico a esses processos.

Maria Silva (2010SILVA, Maria da Penha. “Mulheres negras: sua participação histórica na sociedade escravista”. Cadernos Imbondeiro, João Pessoa, UFPB, v. 1, n. 1, p. 1-8, jan./dez. 2010.) aponta que, no período pós-abolição da escravidão no Brasil, muitas mulheres negras se juntavam a mulheres brancas de baixa renda, não como uma maneira de coletivização e aliança de gênero, mas assumindo os trabalhos domésticos das segundas. Tal fato já demonstrava que a feminilidade da mulher negra não era a mesma atribuída às mulheres brancas. Deste modo, é importante desnaturalizar o cuidado e as alianças de gênero e atentar às suas intersecções, como raça e classe. Faz-se necessário entender que as alianças não estão apartadas do papel que cada corpo ocupa na história e reconhecer que, até mesmo nas pautas que carregam em comum, há mulheres que apresentam vulnerabilidades específicas.

Não há como tratar a problemática com um discurso de liberdade liberal “meu corpo minhas regras”, como pautado no capitalismo-colonialismo-patriarcado (Boaventura SANTOS, 2018SANTOS, Boaventura de Sousa. “El colonialismo insidioso”. La Biodiversidad [online], Paris, 2018. Disponível em Disponível em https://www.biodiversidadla.org/Documentos/El_colonialismo_insidioso. Acesso em 24/08/2020.
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). A discussão da descriminalização do aborto deve ser considerada a partir de um viés de equidade, já que, para muitas mulheres, mesmo onde a prática não é proibida, o status social garante maior proteção. Trata-se de considerar que os corpos são enatuados de modos distintos e, em alguns deles, há uma luta pelo reconhecimento de direitos e humanidade retirados pela exploração e escravização direta.

A particularidade do encontro é onde se instaura o modo de operar da sororidade e da ética do cuidado, sendo necessário pensar o acontecimento como sua possibilidade ética. Entretanto, o cuidado e as dimensões éticas manifestas em cada relação não estão somente circunscritas às particularidades de cada encontro, pois elas operam em suas condições de emergência, incluindo as macropolíticas. Dessa forma, faz-se necessário o constante combate a lógicas racistas e machistas, e um exercício crítico e de cuidado das ações deliberadas para que atuem na prática ética de reconhecimento do outro.

A ética do fazer não se relaciona a uma ética utilitarista, a fim de justificar e julgar condutas. Ela atenta ao encontro e indaga os diferentes vínculos que se estabelecem entre as mulheres, tanto questionando a manutenção de lógicas universalistas, como na afirmação da diversidade dos modos de existência. Isso ajudará a pensar nas vulnerabilidades e possibilidades dos corpos e no entendimento da sororidade, como a afirmação da potência de vivermos juntas. Por esse motivo, a ética do cuidado manifesta nas narrativas de aborto é propícia para pensar modos onde o fazer-com inventa maneiras de lidar com o tema, nas frestas das políticas de governamentalidade. Muitas narrativas de aborto problematizam a ética universalista, nos mostrando outras maneiras de vivenciar a reprodução, abrindo brechas nas políticas de dominação, uma vez que atuam na ilegalidade do sistema.

Considerações finais

A sororidade, apesar de ganhar ênfase no movimento feminista, anda desgastada no mesmo, uma vez que as pautas das mulheres são diversas e se articulam de acordo com a posição que elas ocupam na trama social: posição monetária, étnica, ambiental, biológica, geográfica etc. São tantas as diferenças existentes entre as mulheres que podemos afirmar que se produzem diferentes mundos de experiência. Assim, é preciso cautela ao tratar a sororidade como um simples exercício de empatia (no sentido comumente atribuído de colocar-se no lugar do outro), mas de tomá-la como um exercício de alteridade. Muitos movimentos de mulheres apontam pistas para se pensar saídas que evitem o estabelecimento de relações de poder verticalizadas por qualquer marcador social. Os movimentos feministas negros, por exemplo, atentam ao fato de que, na América Latina, não há como discutir pautas sobre direitos das mulheres sem racializar o discurso, uma vez que estamos reféns do processo colonizador que apaga a humanidade de uma parcela das mulheres - as mulheres não brancas. Ao concordar com a premissa desse movimento, trazemos para discussão a ética do cuidado por uma abordagem enativa, como maneira de se (re)pensar a sororidade entre as mulheres. A sororidade, na perspectiva enativa, está mais próxima dos laços de parentescos que podem ser estabelecidos na convivência com diferentes maneiras de enatuar mundos, que coexistem e são passíveis de transformação pela cooperação e pelo constrangimento. O constrangimento, ou breakdown, se refere à quebra de padrões habituais que acontecem nas interações, que transformam as maneiras de vivenciar determinada situação.

A ética do cuidado é evocada no trabalho para afirmar essa outra maneira de habitar questões como as do aborto, afastada da lógica ocidentalizada que herdamos do capitalismo-colonialismo-patriarcado (SANTOS, 2018SANTOS, Boaventura de Sousa. “El colonialismo insidioso”. La Biodiversidad [online], Paris, 2018. Disponível em Disponível em https://www.biodiversidadla.org/Documentos/El_colonialismo_insidioso. Acesso em 24/08/2020.
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) e, por isso, problematizada também por uma perspectiva enativa. A sororidade não traz uma maneira de adjetivar as relações femininas, mas sim de disponibilizar modos de criar alianças de cuidado, para além das dualidades do gênero. Esse modo de habitar os problemas visa convocar essa potência inventiva de produzir alianças de cuidado nas suas diferentes formas de manifestação. Os sites contendo narrativas de aborto provocado se mostraram um campo fértil para manifestação do cuidado como um colocar-se com, uma vez que disponibilizam, nas diferentes narrativas, alianças perpassadas pela legitimação do outro na convivência.

Por fim, vale ressaltar que as mulheres seguem resistindo a uma política ineficiente - o número de abortos provocados e as complicações decorrentes do aborto retratam esse cenário. Entretanto, para além de resistir, apontam para um outro modo de compor a problemática do aborto. Mais que resistência, os sites que abrigam narrativas como as aqui descritas inventam outros modos de viver o cuidado, que precisam ser considerados nas discussões sobre a saúde pública e dos direitos reprodutivos

Referências

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  • BOITEUX, Luciana. “Encarceramento feminino e seletividade penal”. Boletim da Rede Justiça Criminal, ed. 9, p. 5-6, 2016. Disponível em Disponível em https://redejusticacriminal.org/pt/portfolio/encarceramento-feminino-e-seletividade-penal/ Acesso em 30/06/2020.
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  • DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia Brasília; Rio de Janeiro: Editora da Universidade de Brasília; José Olympio, 1993.
  • DINIZ, Debora (Org.). Eu Vou Contar, 2019. Campanha iniciada pela Anis - Instituto de Bioética. Disponível em Disponível em https://eu-vou-contar.tumblr.com/ Acesso em 16/04/2020.
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  • GILLIGAN, Carol. Teoria psicológica e desenvolvimento da mulher Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
  • HARAWAY, Donna J. Staying with the trouble: Making kin in the Chthulucene Londres: Duke University Press, 2016.
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  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    MONTEIRO, Talita Gonçalves; MARASCHIN, Cleci. “Narrativas de aborto na web: uma abordagem enativa acerca das alianças de gênero”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e74719, 2022.
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    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
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    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2020
  • Revisado
    28 Jul 2021
  • Aceito
    29 Jul 2021
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