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Barreiras e enfrentamentos de mulheres em carreiras predominantemente masculinas

Barriers and coping of women in predominantly male careers

Barreras y enfrentamientos de mujeres en carreras predominantemente masculinas

Resumo:

As mulheres permanecem historicamente sub-representadas em carreiras predominantemente masculinas (Ciências, Tecnologia, Engenharias e Matemática), desde a formação até a inserção no mercado de trabalho. Nestas carreiras, elas são submetidas a mecanismos de exclusão que dificultam o enfrentamento das barreiras encontradas. O presente artigo teve como objetivo analisar, por meio de um estudo qualitativo com 15 mulheres, as barreiras e as estratégias de enfrentamento utilizadas por estudantes e profissionais femininas em carreiras predominantemente masculinas. Os resultados demonstram que as barreiras são mais percebidas do que as estratégias, em especial as relativas a assédio, discriminação de gênero e cobranças excessivas. Conclui-se serem necessárias ações de intervenção que ofereçam estratégias de permanência para mulheres em carreiras nas quais permanecem minoria.

Palavras-chave:
mulheres; carreira; barreiras; estratégias

Abstract:

Women in predominantly male careers (Science, Technology, Engineering & Math) have historically been underrepresented, from formation to entering the job market. Women in such careers are subjected to exclusion mechanisms that make it difficult to face the encountered barriers. The present paper aimed to analyze, through a qualitative study with 15 women, how female students and professionals in predominantly male careers perceive barriers and use coping strategies. The results demonstrate that barriers are perceived more predominantly than coping strategies, especially harassment, gender discrimination and excessive demands. We conclude that interventive arrangements are needed for offering more permanence strategies for women in careers in which they remain minority.

Keywords:
Women; Career; Barriers; Strategies

Resumen:

Históricamente, las mujeres están infrarrepresentadas en carreras predominantemente masculinas (ciencia, tecnología, ingeniería y matemáticas), desde la formación hasta la entrada en el mercado laboral. En estas carreras, las mujeres están sujetas a mecanismos de exclusión que dificultan el enfrentamiento de las barreras encontradas. Este artículo tuvo como objetivo analizar, a través de un estudio cualitativo con 15 mujeres, las barreras y estrategias de afrontamiento utilizadas por estudiantes y profesionales en carreras predominantemente masculinas. Los resultados demuestran que las barreras se perciben más que las estrategias, especialmente las relacionadas con el acoso, la discriminación de género y las acusaciones excesivas. Se concluye que son necesarias acciones de intervención que ofrezcan estrategias de permanencia a las mujeres en carreras que siguen siendo minoría.

Palabras-clave:
mujeres; carrera profesional; barreras; estrategias

Introdução

Os campos STEM (da sigla Science, Technology, Engineering & Math, traduzida como Ciências, Tecnologia, Engenharias e Matemática) representam, historicamente, locais de trabalho extremamente hostis para mulheres (Katie L. BURKE, 2017BURKE, Katie L. “Harassment in science: recent studies demonstrate an unwelcoming workplace for people of color and women in STEM fields, point to a need to raise awareness among men and leaders, and elicit calls for cultural change”. American Scientist, v. 105, n. 5, p. 262, set./out. 2017. Disponível em Disponível em https://go.gale.com/ps/anonymous?id=GALE%7CA504340269&sid=googleScholar&v=2.1⁢=r&linkaccess=abs&issn=00030996&p=AONE&sw=w . Acesso em 08/04/2020.
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). Em áreas de rápido crescimento, como ciência da computação, estudos indicam que a representação feminina declinou nos últimos anos, com redução do percentual de mulheres ingressando em cursos superiores da área de tecnologia (Bianca Caetano da Silva Martins FRANCO; Aimar Martins LOPES; Vivaldo José BRETERNITZ, 2019FRANCO, Bianca Caetano da Silva Martins; LOPES, Aimar Martins; BRETERNITZ, Vivaldo José. “Gestão da Tecnologia da Informação: preconceitos de gênero prejudicam a carreira de mulheres que atuam na área?”. Revista Brasileira em Tecnologia da Informação, Campinas, v. 1, n. 1, p. 22-34, jan./jun. 2019. Disponível em Disponível em https://www.fateccampinas.com.br/rbti/index.php/fatec/article/view/10 . Acesso em 20/07/2021.
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). Portanto, a sub-representação feminina em campos STEM, principalmente naqueles de alta demanda e mais bem remunerados, contribuiria para perpetuar a segregação ocupacional entre homens e mulheres.

A literatura internacional vem, nos últimos anos, apontando e discutindo várias barreiras enfrentadas pelas mulheres nas áreas de STEM (Laura McCULLOUGH, 2011McCULLOUGH, Laura. “Women’s leadership in science, technology, engineering and mathematics: Barriers to participation”. Forum on Public Policy Online, v. 2011, n. 2, ago. 2011. Disponível em Disponível em https://eric.ed.gov/?id=EJ944199 . Acesso em 09/04/2020.
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). Na literatura nacional, os estudos são mais escassos, porém se destacam contribuições como as de Maria Rosa Lombardi (2018LOMBARDI, Maria Rosa. “Carreiras femininas nas engenharias: barreiras intransponíveis?”. In: OLIVEIRA, Juliana Andrade de; MATSUO, Myrian. Condições de trabalho das mulheres no Brasil. São Paulo: Fundacentro, 2018. p. 27-37. Disponível em Disponível em https://www.researchgate.net/publication/330369807_Condicoes_de_Trabalho_das_Mulheres_no_Brasil_-_II_Seminario_de_Sociologia_da_Fundacentro . Acesso em 20/07/2021.
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), que reflete sobre os desafios para inserção, permanência e ascensão de mulheres nas áreas de engenharia. Segundo a UNESCO (2018UNESCO. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. “Decifrando o código: educação de meninas e mulheres em ciências, tecnologia, engenharia e matemática (STEM)”. UNESDOC Digital Library. Brasília: UNESCO, 2018. Disponível em Disponível em https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000264691 . Acesso em 09/04/2020.
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), a nível global, elas representam 35% dos estudantes de STEM, sendo apenas 27% nas engenharias e 28% nas tecnologias. Ao analisar os dados brasileiros, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) aponta que mais mulheres estão nos cursos de pedagogia, serviço social, nutrição, enfermagem e psicologia, enquanto os homens são maioria nos cursos de engenharia, como é o caso da engenharia mecânica, ocupada, em média, por apenas 10% delas (BRASIL, 2019BRASIL. Resumo Técnico: Censo da Educação Superior 2017. Brasília: INEP, 2019. Disponível em Disponível em http://portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_publisher/6JYIsGMAMkW1/document/id/6725796 . Acesso em 09/04/2020.
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). Tal cenário é agravado ao se observar o fator racial, uma vez que dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2016IBGE. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2016. Disponível em Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/genero/20163-estatisticas-de-genero-indicadores-sociais-das-mulheres-no-brasil.html?=&t=o-que-e . Acesso em 10/09/2019.
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) ressaltam que, enquanto 79,3% das mulheres brancas concluem o ensino médio, essa porcentagem cai para 65,2% em relação às negras. Já no ensino superior, esse número se torna ainda mais discrepante, com mulheres brancas apresentando 23,5% da taxa de conclusão de curso, contra 10,4% das mulheres negras.

Percebe-se, portanto, o mecanismo de exclusão horizontal, que ilustra a escassez delas em diversas esferas. A exclusão vertical, por sua vez, refere-se às barreiras que dificultam a progressão em suas carreiras, resultando na escassez delas em posições de poder. Esse fenômeno também se faz presente em áreas consideradas femininas, entretanto, é intensificado nas áreas de STEM (Betina Stefanello LIMA; Maria Lúcia de Santana BRAGA; Isabel TAVARES, 2015LIMA, Betina Stefanello; BRAGA, Maria Lúcia de Santana; TAVARES, Isabel. “Participação das mulheres nas ciências e tecnologias: entre espaços ocupados e lacunas”. Revista Gênero [online], Niterói, v. 16, n. 1, p. 11-31, 2015. Disponível em Disponível em https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/31222 . ISSN 2316-1108. DOI: 10.22409/rg.v16i1.743. Acesso em 09/04/2020.
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). Neste contexto, tem-se a metáfora do “teto de vidro”, que atua como um mecanismo de discriminação praticamente invisível, que limita a promoção de mulheres no mercado de trabalho ao colocar barreiras sutis, porém efetivas, ao avançarem na carreira (Elisabete Figueroa SANTOS; Maria Fernanda DIOGO; Lia Vainer SHUCMAN, 2014SANTOS, Elisabete Figueroa; DIOGO, Maria Fernanda; SHUCMAN, Lia Vainer. “Entre o não lugar e o protagonismo: articulações teóricas entre trabalho, gênero e raça”. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho [online], v. 17, n. 1, p. 17-32, 2014. Disponível em Disponível em http://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/112330 . ISSN 1981-0490. DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v17i1p17-32. Acesso em 09/04/2020.
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). Já o “efeito tesoura” ajuda a ilustrar as frequências desiguais de homens e mulheres ao longo da carreira, em decorrência do corte delas na medida em que avançam nas hierarquias, de forma que, quanto mais avançado o nível, menos mulheres serão encontradas (Carolina BRITO; Daniela PAVANI; Paulo LIMA JR., 2015BRITO, Carolina; PAVANI, Daniela; LIMA JR., Paulo. “Meninas na ciência: atraindo jovens mulheres para carreiras de ciência e tecnologia”. Revista Gênero, Niterói, v. 16, n. 1, p. 33-50, jan. 2015. Disponível em Disponível em https://www.if.ufrgs.br/cbrito/publicacoes/RevistaGenero_Brito2015.pdf . Acesso em 08/04/2020.
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). No mesmo sentido, o leaky pipeline discute o “escoamento” de mulheres no decorrer da carreira em STEM, uma vez que ele se concentra nos momentos de escolhas e transição (Marina RESMINI, 2016RESMINI, Marina. “The ‘Leaky Pipeline’”. Chemistry: A European Journal [online], v. 22, n. 11, p. 3533-3534, 2016. Disponível em Disponível em https://chemistry-europe.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/chem.201600292 . ISSN 1521-3765. DOI: 10.1002/chem.201600292. Acesso em 09/04/2020.
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).

A escassez feminina em carreiras de STEM representa um problema social e de gênero. Várias explicações são oferecidas para tal sub-representação, sendo uma das mais comuns o suposto menor interesse das mulheres em matérias de STEM (Thomas A. DIPRETE; Claudia BUCHMAN, 2013DIPRETE, Thomas A.; BUCHMAN, Claudia. The Rise of Women: The Growing Gender Gap in Education and What It Means for American Schools. Nova York: Russell Sage Foundation, 2013.). Esta tem sido duramente criticada, principalmente por aqueles que também desafiam a premissa de que elas saem de empregos devido a baixos níveis de comprometimento ou preferências pelo cuidado familiar (Susan McRAE, 2003McRAE, Susan. “Constraints and choices in mothers’ employment careers: a consideration of Hakim’s preference theory”. The British Journal of Sociology, v. 54, n. 3, p. 317-338, ago. 2003. Disponível em Disponível em https://europepmc.org/article/med/14514461 . DOI: 10.1080/0007131032000111848. Acesso em 09/04/2020.
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). Questiona-se a concepção de que o comprometimento das mulheres no trabalho é afetado pelo “perfil materno”, quando, na verdade, as suas habilidades são rebaixadas porque são percebidas como mães em potencial (Shelley J. CORRELL; Stephen BENARD; In PAIK, 2007CORRELL, Shelley J.; BENARD, Stephen; PAIK, In. “Getting a job: is there a motherhood penalty?”. American Journal of Sociology, Chicago, v. 112, n. 5, p. 1297-1338, mar. 2007. Disponível em Disponível em https://www.jstor.org/stable/10.1086/511799?origin=JSTOR-pdf&seq=1#metadata_info_tab_contents . DOI: 10.1086/511799. Acesso em 08/04/2020.
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).

Outras explicações para a escassez de mulheres em STEM apontam para diferenças de gênero nas expectativas de emprego, o papel da ideologia de gênero nas noções de empregos desejáveis ​​ou viáveis, diferenças nos objetivos de longo prazo em relação à constituição de família e ao impacto da autoconfiança na persistência educacional e ocupacional (Erin CECH; Brian RUBINEAU; Susan SILBEY; Caroll SERON, 2011CECH, Erin; RUBINEAU, Brian; SILBEY, Susan; SERON, Caroll. “Professional role confidence and gendered persistence in engineering”. American Sociological Review [online], v. 76, n. 5, p. 641-666, 2011. Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0003122411420815 . DOI: 10.1177/0003122411420815. Acesso em 08/04/2020.
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). A despeito da diversidade de fatores considerados, o consenso é que, nas áreas de STEM, as mulheres enfrentam barreiras que vão desde o ingresso no ensino superior até o progresso na carreira (Jacob BLICKENSTAFF, 2006BLICKENSTAFF, Jacob Clark. “Women and science careers: leaky pipeline or gender filter?”. Gender and Education [online], v. 17, n. 4, p. 369-386, 2006. Disponível em Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09540250500145072 . ISSN 1360-0516. DOI: 10.1080/09540250500145072. Acesso em 08/04/2020.
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; RIDGEWAY, 2011RIDGEWAY, Cecilia L. Framed by Gender: How Gender Inequality Persists in the Modern World. Oxford: Oxford University Press, 2011.). Novamente, ao se levar em conta as questões raciais, o cenário é agravado, uma vez que a interseccionalidade de discriminação de gênero, raça e classe social vivenciada pelas mulheres negras impacta diretamente no planejamento e ascensão de suas carreiras. Vale lembrar, ainda, que gênero representa uma categoria de análise histórica, cultural e política, que expressa relações de poder e que deve ser utilizada no que diz respeito a outras categorias, como raça e classe, tendo em vista a possibilidade da mudança e desnaturalização (Joan SCOTT, 1990SCOTT, Joan. “Gênero: Uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, jul./dez. 1990. Disponível em https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721/40667.
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).

Adicionalmente, enfatiza-se que estereótipos de gênero são reproduzidos e internalizados desde a infância, afetando as brincadeiras “apropriadas” para meninas e o que elas devem desejar para o futuro, o que tem forte influência na sua maneira de agir, de se relacionar com os outros e de entender o mundo (María Sánchez MUNILLA, 2018MUNILLA, María Sánchez. “A ausência de mulheres nas carreiras de STEM: um problema social e de género”. Adolescência: Revista Júnior de Investigação, v. 5, n. 1, p. 12-22, nov. 2018. Disponível em Disponível em https://www.adolesciencia.ipb.pt/index.php/adolesciencia/article/view/262 . Acesso em 09/04/2020.
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). Os comportamentos discriminatórios advêm de vieses inconscientes sobre estereótipos de gênero, sendo internalizados pelas pessoas e aparecendo mesmo quando acreditam ter crenças igualitárias (Sarah M. JACKSON; Amy L. HILLARD; Tamera R. SCHNEIDER, 2014JACKSON, Sarah M.; HILLARD, Amy L.; SCHNEIDER, Tamera R. “Using implicit bias training to improve attitudes toward women in STEM”. Social Psychology of Education [online], v. 17, n. 3, p. 419-438, 2014. Disponível em Disponível em https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11218-014-9259-5 . ISSN 1381-2890. DOI: 10.1007/s11218-014-9259-5. Acesso em 09/04/2020.
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). Os vieses dos empregadores, por sua vez, resultam em viés implícito nas avaliações, o que dificulta que elas recebam ofertas iniciais de emprego ou promoções subsequentes, gerando redes de trabalho segregadas (Cecilia L. RIDGEWAY, 2011RIDGEWAY, Cecilia L. Framed by Gender: How Gender Inequality Persists in the Modern World. Oxford: Oxford University Press, 2011.). Porém, é particularmente importante avaliar os padrões de gênero nas transições para a empregabilidade em STEM, e uma das maneiras de fazer isso é através da comparação de barreiras percebidas entre estudantes e profissionais. Assim, amplia-se a compreensão dos fatores que perpetuam as disparidades de gênero no desafio da empregabilidade e ascensão de mulheres em STEM, possibilitando mudanças.

Frente ao exposto, destaca-se a necessidade de pesquisas que investiguem o contexto da inserção profissional e desenvolvimento de carreira de mulheres em áreas de STEM, principalmente no Brasil. Logo, este estudo teve como objetivo mapear as barreiras vivenciadas por mulheres brasileiras em carreiras de STEM, considerando tanto estudantes quanto profissionais e investigando as possíveis estratégias de enfrentamento diante de tais barreiras.

Percurso Metodológico

Foi realizada uma pesquisa qualitativa, na qual se utilizou a técnica do grupo focal, cuja escolha se fundamentou na possibilidade trazida pela interação grupal de produzir o compartilhamento de experiências e o efeito “cascata”, que dificilmente seriam obtidos apenas via entrevistas individuais. A decisão de realizar grupos separados com estudantes e profissionais consistiu na necessidade de investigar possíveis diferenças ou semelhanças nas vivências das mulheres em diferentes estágios de carreira, além de analisar a transição da faculdade para o mercado de trabalho.

O estudo foi realizado com 15 mulheres das áreas de STEM. Segundo Sônia Gondim (2002GONDIM, Sônia Maria Guedes. “Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos”. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161, 2002. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2002000300004 . DOI: 10.1590/S0103-863X2002000300004. Acesso em 08/04/2020.
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), o tamanho do grupo focal pode variar entre quatro a dez participantes. Portanto, as participantes foram divididas em dois grupos. O primeiro foi composto por 8 profissionais que já estavam empregadas e/ou atuando no mercado de trabalho em suas respectivas áreas de formação, intitulado “grupo profissionais”, sendo constituído por mulheres das seguintes áreas: medicina veterinária (1 participante), gestão da informação (2 participantes), sistemas da informação (1 participante), engenharia química e mecânica (1 participante, com ambas as formações), engenharia ambiental (2 participantes) e ciências biológicas (1 participante). O segundo grupo, intitulado “grupo estudantes”, foi composto por 7 (sete) que ainda estavam cursando a graduação nos seguintes cursos: ciência da computação (3 participantes), sistemas de informação (1 participante), química (1 participante), engenharia aeronáutica (1 participante), engenharia ambiental (1 participante), sendo que duas estavam no primeiro ano de formação, uma no segundo ano, e quatro no último ano. Com relação à faixa etária, dez participantes tinham entre 18 e 25 anos (sendo seis estudantes e quatro profissionais), três tinham entre 26 e 35 anos (duas estudantes e uma profissional) e duas profissionais entre 35 e 45 anos.

O convite para a participação nos grupos focais foi feito através de e-mail enviado para a coordenação de cursos de graduação e pós-graduação em STEM de uma universidade federal do sudeste do país, solicitando que repassassem o convite às alunas. Além disso, foi divulgado um convite on-line pelo Facebook em grupos de mulheres em STEM, visando captar aquelas já inseridas no mercado de trabalho. Nestes convites, foi solicitado que as interessadas enviassem um e-mail para as pesquisadoras, informando sua área de formação e se eram estudantes ou profissionais, o que permitiu a divisão dos grupos. Como complemento, também foi utilizada a técnica bola de neve, na qual as participantes indicaram colegas da faculdade ou do trabalho. Ao todo, 26 mulheres entraram em contato demonstrando interesse, sendo treze estudantes e treze profissionais.

Os encontros foram agendados para dois sábados pela manhã, entre setembro e outubro de 2018. Duraram cerca de duas horas e vinte minutos cada, e foram realizados em um laboratório do Instituto de Psicologia. Foi apresentado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que garantia o anonimato e a confidencialidade das informações, o qual foi assinado por todas as participantes, juntamente com o Termo de Autorização para Gravação de Voz e Imagem. Em seguida, foram explicitados os papéis das mediadoras e recomendações para a discussão em grupo, conforme orientações de Gondim (2002GONDIM, Sônia Maria Guedes. “Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos”. Paidéia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 24, p. 149-161, 2002. Disponível em Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-863X2002000300004 . DOI: 10.1590/S0103-863X2002000300004. Acesso em 08/04/2020.
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). Finalmente, foi delimitado o tema da discussão, que consistiu no relato das experiências das participantes em relação às barreiras encontradas na carreira em STEM, assim como as estratégias de enfrentamento utilizadas ou preconizadas.

Utilizou-se um questionário sociodemográfico, aplicado antes do início da conversa, para fins de caracterização da amostra. Para conduzir a discussão, foi utilizado um roteiro semiestruturado que continha os seguintes tópicos orientadores: apresentação das participantes, partilha das vivências em uma área predominantemente masculina, discussão das barreiras ligadas ao gênero, encontradas na faculdade ou trabalho, e das estratégias de enfrentamento utilizadas.

Análise de dados

Os áudios gravados nos dois grupos focais foram transcritos e lidos repetidas vezes, a fim de obter uma apropriação geral do conteúdo. As transcrições foram codificadas pela técnica de análise de conteúdo temática (Laurence BARDIN, 2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2011.), que corresponde a um conjunto de técnicas de análise de comunicação para obter, por meio de procedimentos objetivos e sistemáticos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (qualitativos ou quantitativos) que permitam a inferência de conhecimentos sobre as fontes de produção/recepção dessas mensagens.

Com a utilização do programa QDA miner (Provalis Research, 2016), um software de análise de dados qualitativos, as respostas foram divididas em unidades temáticas (UTs) ou temas, classificadas em grupos (subcategorias) a partir de suas dimensões semântica e sintática, levando-se em consideração as frequências das UTs. É válido pontuar que algumas participantes apresentaram em suas falas conteúdos pertinentes a mais de um tema. Logo, tais falas foram subdivididas e os respectivos trechos inseridos na subcategoria cujo tema determinante se aproximava mais do contexto geral da fala. Para a criação de cada UT, foram considerados, no mínimo, três exemplos de falas.

Barreiras e estratégias percebidas pelas mulheres

A análise das transcrições permitiu que o conteúdo fosse dividido em 2 (duas) grandes categorias: “barreiras” e “estratégias”. As barreiras dizem respeito às dificuldades percebidas pelas mulheres ao longo da formação e da carreira, já as estratégias foram apontadas como recursos utilizados por elas para lidar com as dificuldades, ou aspectos facilitadores encontrados no percurso. Após repetidas leituras da transcrição, ambas as categorias foram subdivididas em internas e externas (Gretchen Wade RAIFF, 2004RAIFF, Gretchen Wade. The influence of perceived career barriers on college women's career planning. 2004. Doutorado (Department of Psychology) - University Of North Texas, Denton, TX, Estados Unidos.). De modo geral, as discussões a respeito das estratégias foram menos espontâneas e exigiram maior intervenção das mediadoras, ao contrário das falas sobre as barreiras, que surgiram com maior naturalidade entre as participantes. Ao analisar a transcrição das discussões, constatou-se que as barreiras corresponderam a cerca de 60% das falas. Na sequência, os resultados serão apresentados em função das categorias e subcategorias criadas, assim como segundo os temas de cada uma.

Barreiras

Tanto no grupo das estudantes quanto das profissionais, já na apresentação pessoal, as participantes abordaram, espontaneamente, vivências ligadas às barreiras enfrentadas. As dificuldades apontadas giraram em torno dos temas: assédio, discriminação de gênero, cobranças e demandas exacerbadas, escassez de mulheres nas áreas de STEM, preconceitos e estereótipos, necessidade de se ajustar aos ambientes “masculinos”, teto de vidro, falta de apoio da família e de outras profissionais, insegurança, conflito família-trabalho, vontade de desistir da carreira, rejeição da feminilidade e dificuldade de ascender na área.

Barreiras internas

Entende-se por barreiras internas aquelas que, embora influenciadas por aspectos contextuais e ambientais, representam concepções internalizadas, atitudes ou comportamentos da mulher em relação a si mesma, à sua autoimagem e às suas capacidades (RAIFF, 2004RAIFF, Gretchen Wade. The influence of perceived career barriers on college women's career planning. 2004. Doutorado (Department of Psychology) - University Of North Texas, Denton, TX, Estados Unidos.; Nadya A. FOUAD et al., 2010FOUAD, Nadya A. et al. “Barriers and Supports for Continuing in Mathematics and Science: Gender and Education al Level Differences”. Journal of Vocational Behavior [online], v. 77, n. 3, p. 361-373, 2010. Disponível em Disponível em https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0001879110001168?via%3Dihub . ISSN 0001-8791. DOI: 10.1016/j.jvb.2010.06.004. Acesso em 08/04/2020.
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). Na categoria das barreiras internas, foram identificados 4 (quatro) temas, com base nas falas de 11 participantes, 7 (sete) profissionais e 4 (quatro) estudantes, sendo eles: necessidade de se ajustar, insegurança, vontade de desistir e rejeição da feminilidade e do feminino.

A “necessidade de se ajustar” a um ambiente que não é amigável foi o tema de maior prevalência dentre as barreiras internas, abordado por 2 (duas) profissionais e 3 (três) estudantes. As mulheres relataram necessidade de se ajustarem à cultura de seus ambientes acadêmicos e de trabalho, principalmente no que tange aos comportamentos e crenças machistas. Para que consigam se adaptar e fazer parte do grupo, elas acabam por reproduzir as ideias que circulam nesses ambientes ou, simplesmente, deixam de questionar tais comportamentos, para “evitar” problemas. Tal comportamento já foi encontrado em outros estudos, que sugerem que as mulheres se adaptam para gerenciar os estereótipos na tentativa de se encaixar melhor à cultura do ambiente (Kathleen R. BUSE; Diana BILIMORIA; Sheri PERELLI, 2013BUSE, Kathleen R.; BILIMORIA, Diana; PERELLI, Sheri. “Why they stay: Women persisting in US engineering careers”. Career Development International [online], v. 18, n. 2, p. 139-154, 2013. Disponível em Disponível em https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/CDI-11-2012-0108/full/html . ISSN 1362-0436. DOI: 10.1108/CDI-11-2012-0108. Acesso em 08/04/2020.
https://www.emerald.com/insight/content/...
; Kathleen N. SMITH; Joy Gaston GAYLES, 2018SMITH, Kathleen N.; GAYLES, Joy Gaston. “‘Girl power’: Gendered academic and workplace experiences of college women in Engineering”. Social Sciences [online], v. 7, n. 1, 2018. Disponível em Disponível em https://www.mdpi.com/2076-0760/7/1/11/htm#cite . ISSN 2076-0760. DOI: 10.3390/socsci7010011. Acesso em 09/04/2020.
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). Tanto as estudantes quanto as profissionais demonstraram sentir a necessidade de mudar algo em seu comportamento para se adaptar, entretanto, para as profissionais, esta necessidade parece ser observada como algo já em superação, enquanto que, para as estudantes, é vivência mais próxima do momento presente ou de um passado próximo.

Eu aceitava coisas que eram contra os meus valores para integrar o grupo, brincadeiras machistas, eu ria, dava aquela risadinha para integrar o grupo. Então eu me sentia a pessoa mais hipócrita e falsa do mundo (E1 - 2018).1 1 Para preservar o anonimato, os nomes das mulheres foram codificados em função do grupo correspondente e do número de participantes do grupo, sendo E para estudantes e P para profissionais.

A sensação de “insegurança” foi mencionada por duas estudantes e uma profissional, representando o questionamento da própria competência. A crença (ou descrença) na capacidade de realizar certas ações está ligada à construção do interesse em determinadas atividades, tarefas e mesmo profissões, o que reflete, consequentemente, na intenção das pessoas em se envolver ou não em alguma área (José Tomás SILVA et al., 2017SILVA, José Tomás; PAIXÃO, Maria Paula; MACHADO, Teresa Sousa; MIGUEL, José Pacheco. “O papel do apoio social nas intenções de prosseguir profissões científico-tecnológicas”. Revista de Estudios e Investigación en Psicología y Educación [online], n. 3, p. 26-31, 2017. Disponível em Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/46938 . ISSN 2386-7418. DOI: 10.17979/reipe.2017.0.03.2331. Acesso em 09/04/2020.
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).

Eu sentia, no outro emprego, que eu lidava mais com homem, que eu recebia muito elogio, mas eu ficava assim ‘Gente, mas será que é porque eu sou boa mesmo no que eu faço ou é porque eu sou mulher?’ (P4 - 2018).

No tema “rejeição da feminilidade e do feminino”, referido por 3 (três) mulheres no grupo com as profissionais, constatou-se a necessidade de as participantes deixarem de lado aspectos que as identificavam enquanto mulheres, na tentativa de evitar que fossem resumidas a “futilidades” ou de que isso pudesse “atrapalhar” o reconhecimento da sua competência enquanto profissional. Destaca-se que as tentativas de adaptação envolvem também mudar a maneira de se vestir, a forma de arrumar o cabelo ou de usar maquiagem (BUSE; BILIMORIA; PERELLI, 2013BUSE, Kathleen R.; BILIMORIA, Diana; PERELLI, Sheri. “Why they stay: Women persisting in US engineering careers”. Career Development International [online], v. 18, n. 2, p. 139-154, 2013. Disponível em Disponível em https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/CDI-11-2012-0108/full/html . ISSN 1362-0436. DOI: 10.1108/CDI-11-2012-0108. Acesso em 08/04/2020.
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), fugindo do estereótipo que coloca a feminilidade enquanto algo inferior. Tal barreira não foi citada por nenhuma estudante, o que sugere que o receio de ser percebida enquanto “feminina” se faz presente principalmente em contextos de trabalho quando se ocupa uma posição importante e de poder, como é o caso das profissionais que abordaram esta dificuldade.

Eu sempre escondo a minha feminilidade, porque eu não quero que eles gostem de mim pela minha beleza, eu quero que eles me chamem pela minha competência (P6 - 2018).

A “vontade de desistir” foi mencionada por uma profissional e três estudantes. Há evidências de que o principal motivo que leva à evasão de mulheres das áreas de STEM é a extrema pressão de trabalho, ou seja, as demandas excessivas com as quais elas têm que lidar, o que inclui a cultura machista e hostil (Sylvia Ann HEWLETT et al., 2008HEWLETT, Sylvia Ann et al. The Athena Factor: Reversing the Brain Drain in Science, Engineering, and Technology. HBR Research Report, 2008.). De forma semelhante, o estudo de Buse, Bilimoria e Perelli (2013BUSE, Kathleen R.; BILIMORIA, Diana; PERELLI, Sheri. “Why they stay: Women persisting in US engineering careers”. Career Development International [online], v. 18, n. 2, p. 139-154, 2013. Disponível em Disponível em https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/CDI-11-2012-0108/full/html . ISSN 1362-0436. DOI: 10.1108/CDI-11-2012-0108. Acesso em 08/04/2020.
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) indicou que mulheres que abandonaram a engenharia culpam o ambiente de trabalho e a cultura de discriminação e assédio por sua saída. Uma das principais falas identificadas foi de uma participante do grupo das profissionais, segundo a qual “Às vezes dá vontade até de mudar de área, que é mais fácil do que lidar”. O mesmo sentimento também foi constatado na fala das estudantes.

Eu já estou pensando em desistir da engenharia, porque eu acho um meio muito machista e eu não sei se eu consigo, o meu psicológico é muito fraco, eu não sei se eu consigo encarar aquilo (E3 - 2018).

Barreiras externas

As barreiras externas correspondem às dificuldades advindas diretamente do contexto que atravessa a vivência das mulheres nas áreas de STEM. Representaram as principais dificuldades mencionadas, sendo apontadas por 14 das 15 participantes - todas as estudantes e sete profissionais. Foram consideradas situações vivenciadas na formação, no trabalho e no ambiente familiar, o que permitiu a identificação de 9 (nove) tipos de barreiras. Foram identificados os temas: assédio, discriminação de gênero, cobranças e demandas exacerbadas, conflito família-trabalho, desigualdade numérica, preconceitos e estereótipos, falta de apoio entre mulheres, falta de suporte familiar e teto de vidro.

O “assédio” foi a principal barreira externa apontada, aparecendo nas falas de cinco estudantes e quatro profissionais. Tanto situações de assédio sexual quanto moral foram relatadas. O assédio moral envolve a repetição de comportamentos de natureza psicológica, gestos e/ou falas que caracterizam situações de humilhação e constrangimento, que podem ferir a integridade física ou psíquica e que atrapalham ou a inviabilizam, sendo que as principais vítimas dessa forma de violência são as mulheres (BRASIL, 2011BRASIL. Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça - Assédio Moral e Sexual. Brasília: Senado Federal, 2011. Disponível em Disponível em https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/cartilha-assedio-moral-e-sexual . Acesso em 09/04/2020.
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). Já o assédio sexual pode ser caracterizado por palavras ou gestos no intuito de obter alguma vantagem sexual, caracterizado por atos de perseguição e importunação com finalidade sexual, tais como contato físico não desejado, insinuações explícitas ou veladas, convites impertinentes e com ausência de consentimento, os quais constrangem e intimidam a vítima e são considerados ofensivos e impertinentes (BRASIL, 2011).

Quando eu descia para a lanchonete era um inferno, eu estava com uma calça de couro e o menino me perguntou se eu não tinha uma calça mais larga, porque eu ia ao banheiro e ficava todo mundo me olhando. Era muito desrespeitoso, era um banheiro inteiro para mim, na hora que eu saía do banheiro tinha cinco caras na porta, ficavam perto do bebedouro me esperando sair do banheiro, eu morria de medo (E7 - 2018).

Eles fizeram reuniões e não queriam que eu entrasse. Fizeram uma reunião e falaram ‘Ela vai passar, é isso que a gente quer?’. Para eles era inadmissível ter uma mulher que ensinasse [disciplina de área de STEM] e trabalhasse com eles (P7 - 2018).

As técnicas que trabalhavam com os mecânicos ali no chão de fábrica, para mim sofriam ainda mais assédio, eu sei de caso que aconteceu de gestor virar para estagiária e falar “Nossa, seu perfume é perturbador”. Ela ia perfumada, usava perfume e ouvia isso. Essa palavra perturbador é forte, ele não tá falando que o perfume é cheiroso. Perturbador! Ou seja, ele está ali com desejo sexual, para mim o que eu entendi foi isso, ele tá ali com um desejo que ele tem que segurar para não avançar em cima dela por conta daquele cheiro perturbador. O problema não está nele, o problema está na mulher usar perfume (E1 - 2018).

A situação descrita pela participante P7 poderia se enquadrar como um assédio moral, já os relatos E7 e E1 se constituiriam como assédio sexual. Constatou-se que a maioria das participantes já havia vivenciado algo do tipo, o que demonstra a constância do assédio tanto na formação quanto no ambiente de trabalho. Segundo Smith e Gayles (2018SMITH, Kathleen N.; GAYLES, Joy Gaston. “‘Girl power’: Gendered academic and workplace experiences of college women in Engineering”. Social Sciences [online], v. 7, n. 1, 2018. Disponível em Disponível em https://www.mdpi.com/2076-0760/7/1/11/htm#cite . ISSN 2076-0760. DOI: 10.3390/socsci7010011. Acesso em 09/04/2020.
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), nas áreas de engenharia, as situações de assédio se dão com maior intensidade no contexto laboral. Entretanto, aqui, as estudantes relataram mais experiências de assédio do que as profissionais, o que pode levar à interpretação de que talvez as profissionais, numa tentativa de adaptação, não identifiquem devidamente as situações de assédio. Mesmo com o alto número de ocorrências, é comum que a maioria das mulheres não torne o assédio público (Juliana GRAGNANI, 2017GRAGNANI, Juliana. “11 motivos que levam as mulheres a deixar de denunciar casos de assédio e violência sexual”. BBC Brasil, Londres, 2017. Disponível em Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-41617235 . Acesso em 22/05/2020.
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) ou até mesmo o entenda como algo natural, que faz parte do seu trabalho/formação, muitas vezes na intenção de manter um bom relacionamento com os colegas. Nesses casos, elas tendem a ignorar ou buscar seus próprios mecanismos para lidar com o abuso (SMITH; GAYLES, 2018SMITH, Kathleen N.; GAYLES, Joy Gaston. “‘Girl power’: Gendered academic and workplace experiences of college women in Engineering”. Social Sciences [online], v. 7, n. 1, 2018. Disponível em Disponível em https://www.mdpi.com/2076-0760/7/1/11/htm#cite . ISSN 2076-0760. DOI: 10.3390/socsci7010011. Acesso em 09/04/2020.
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), tendo como primeira reação mudar algo em seu próprio comportamento para evitar que o assédio se repita.

Já aconteceu de produtor rural que eu atendo me assediar. A gente estava no mesmo carro e ele começou a colocar a mão na minha perna, e aí eu me sinto ridícula, mas eu pesquisei como evitar, como colocar barreiras para evitar o assédio. E aí eu sei que tem que colocar uma mochila no seu colo, ou a bolsa, sempre que você vai andar de carro com um homem, colocar mochila no seu colo para mostrar uma barreira física, eu faço isso sempre (P6 - 2018).

A segunda barreira externa mais discutida foi a “discriminação de gênero”, sendo que este foi um tema frequente nos dois grupos, abordado por cinco profissionais e cinco estudantes. Os relatos remetem a situações em que as participantes foram subestimadas e tiveram sua competência explicitamente questionada em função de serem mulheres, evidenciando atos de discriminação de gênero, uma vez que envolvem ações e comportamentos discriminatórios propriamente ditos. Smith e Gayles (2018SMITH, Kathleen N.; GAYLES, Joy Gaston. “‘Girl power’: Gendered academic and workplace experiences of college women in Engineering”. Social Sciences [online], v. 7, n. 1, 2018. Disponível em Disponível em https://www.mdpi.com/2076-0760/7/1/11/htm#cite . ISSN 2076-0760. DOI: 10.3390/socsci7010011. Acesso em 09/04/2020.
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) também citam essa problemática ao pontuarem que a discriminação envolve o tratamento desigual de grupos sub-representados, como é o caso das mulheres em STEM, tendo como base julgamentos preexistentes, estereótipos e o viés inconsciente.

Quando eu ia para as baladas os caras perguntavam ‘O que é que você faz? Deve fazer odonto, medicina’, aí eu dizia ‘Não, eu faço engenharia’, eles respondiam ‘Ah, não pode, mentira, não existe mulher bonita na engenharia’ (P7 - 2018).

Se você fala uma coisa eu percebo que eles procuram outros homens pra confirmar opiniões, o que você diz não tem tanta credibilidade quanto o que um homem diz (P1 - 2018).

Eles me subestimavam, me passavam coisas mais básicas porque era mulher, achavam que eu não ia dar conta porque é raro uma mulher querer ser desenvolvedora (E2 - 2018).

É perceptível que as vivências de assédio e discriminação acontecem proporcionalmente entre profissionais e estudantes. São barreiras que se fazem presentes desde o ingresso até as ocupações no mercado de trabalho. No estudo de Nilima Chowdhury e Kerry Gibson (2019CHOWDHURY, Nilima; GIBSON, Kerry. “This is (still) a man’s world: Young professional women’s identity struggles in gendered workplaces”. Feminism & Psychology [online], v. 29, n. 4, p. 475-493, 2019. Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0959353519850851 . DOI: 10.1177/0959353519850851. Acesso em 08/04/2020.
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) sobre mulheres em trabalhos marcados pela diferença de gênero, são comentados os efeitos emocionais da discriminação, principalmente quando aliada a outros tipos de barreiras. Na pesquisa, uma das participantes aponta a discriminação no trabalho e o sexismo como promotores de baixa autoconfiança e do sentimento de não ser digna. Pesquisas anteriores também indicam que a maioria das mulheres em STEM sofre com o assédio sexual e com a discriminação de gênero, havendo inclusive evidências sobre como estes influenciam negativamente a sua motivação nestas áreas e minam suas aspirações de carreira (Campbell LEAPER; Christine R. STARR, 2018LEAPER, Campbell; STARR, Christine R. “Helping and hindering undergraduate women’s STEM motivation: experiences with STEM encouragement, STEM-related gender bias, and sexual harassment”. Psychology of Women Quarterly [online], v. 43, n. 2, p. 165-183, 2018. Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0361684318806302 . ISSN 1471-6402. DOI: 10.1177/0361684318806302. Acesso em 09/04/2020.
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).

Outra barreira externa apontada pelas participantes, sendo cinco profissionais e duas estudantes, foram as “cobranças e demandas exacerbadas”, ou seja, a necessidade de fazer mais e se mostrar melhor do que os colegas homens para ser levada em consideração. Logo, elas veem necessidade de despender um esforço maior do que os homens para ter sua capacidade valorizada, seu trabalho ou competência equiparados ao de um colega na mesma função. Vale observar como as cobranças e demandas são mais percebidas pelas profissionais, que costumam precisar “provar” sua competência trabalhando até mais tarde e abraçando mais tarefas, por exemplo. Nesse cenário, a junção da cultura de alto desempenho com a discriminação de gênero impõe uma maior tensão emocional a elas (CHOWDHURY; GIBSON, 2019CHOWDHURY, Nilima; GIBSON, Kerry. “This is (still) a man’s world: Young professional women’s identity struggles in gendered workplaces”. Feminism & Psychology [online], v. 29, n. 4, p. 475-493, 2019. Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0959353519850851 . DOI: 10.1177/0959353519850851. Acesso em 08/04/2020.
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).

Tinha três pessoas no mesmo nível que eu, eu e dois meninos, dois seriam efetivados, foram os dois meninos. Infelizmente isso acontece, e a gente tem que superar isso mostrando serviço, você tem que ser melhor, provar que você é melhor (P1 - 2018).

A mulher só sai de casa se estiver 100% confiante, se o homem tiver 60% de confiança naquilo que ele fala ele já sai de casa, porque a gente sabe que a gente vai ser colocada à prova (P6 - 2018).

A barreira identificada como “conflito família-trabalho”, por sua vez, foi discutida somente por duas profissionais. Porém, o conflito acerca da relação entre maternidade e carreira parece representar uma barreira considerável na vida de muitas mulheres, sentido de forma mais intensa quando se trata de áreas pensadas a partir do viés masculino, como é o caso de STEM. Ao mesmo tempo que se espera que se adéquem à cultura e às regras masculinas das áreas de STEM, exige-se que elas correspondam às expectativas sociais do feminino, como a maternidade, o cuidado da família e com o lar (CHOWDHURY; GIBSON, 2019CHOWDHURY, Nilima; GIBSON, Kerry. “This is (still) a man’s world: Young professional women’s identity struggles in gendered workplaces”. Feminism & Psychology [online], v. 29, n. 4, p. 475-493, 2019. Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0959353519850851 . DOI: 10.1177/0959353519850851. Acesso em 08/04/2020.
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).

Uma coisa que é uma barreira para mim é sempre ter que escolher entre a vida pessoal e a vida profissional, porque eu vejo a minha irmã que é professora, eu nunca vi ela tendo que escolher entre vida pessoal e profissional, sabe? (P6 - 2018).

As carreiras de STEM implicam exigências de áreas consideradas masculinas, o que envolve longas horas dedicadas exclusivamente ao trabalho e pouco espaço ou tempo para as demais obrigações sociais e familiares. O cenário apresenta-se como extremamente desafiador para as profissionais que atuam nestes setores, o que contribui para que decidam abdicar de algum aspecto no âmbito pessoal, dentre estes a maternidade (McCULLOUGH, 2011McCULLOUGH, Laura. “Women’s leadership in science, technology, engineering and mathematics: Barriers to participation”. Forum on Public Policy Online, v. 2011, n. 2, ago. 2011. Disponível em Disponível em https://eric.ed.gov/?id=EJ944199 . Acesso em 09/04/2020.
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; Luísa SAAVEDRA; Maria do Céu TAVEIRA; Ana Daniela SILVA, 2010SAAVEDRA, Luísa; TAVEIRA, Maria do Céu; SILVA, Ana Daniela. “A subrepresentatividade das mulheres em áreas tipicamente masculinas: Factores explicativos e pistas para a intervenção”. Revista Brasileira de Orientação Profissional [online], v. 11, n. 1, p. 49-59, 2010. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1679-33902010000100006 . ISSN 1984-7270. Acesso em 09/04/2020.
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).

Embora não seja possível aprofundar todos os 9 (nove) temas identificados, cabe apresentar suas definições. A questão da “desigualdade numérica” foi brevemente citada por grande parte das participantes, sete profissionais e três estudantes, e diz respeito ao incômodo com a desproporção entre homens e mulheres ocupando as áreas de STEM, sendo mencionada principalmente pelas profissionais. Isto pode ser explicado pelos fenômenos efeito tesoura (BRITO; PAVANI; LIMA JR., 2015LIMA, Betina Stefanello; BRAGA, Maria Lúcia de Santana; TAVARES, Isabel. “Participação das mulheres nas ciências e tecnologias: entre espaços ocupados e lacunas”. Revista Gênero [online], Niterói, v. 16, n. 1, p. 11-31, 2015. Disponível em Disponível em https://periodicos.uff.br/revistagenero/article/view/31222 . ISSN 2316-1108. DOI: 10.22409/rg.v16i1.743. Acesso em 09/04/2020.
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) e leaky pipeline (RESMINI, 2016RESMINI, Marina. “The ‘Leaky Pipeline’”. Chemistry: A European Journal [online], v. 22, n. 11, p. 3533-3534, 2016. Disponível em Disponível em https://chemistry-europe.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/chem.201600292 . ISSN 1521-3765. DOI: 10.1002/chem.201600292. Acesso em 09/04/2020.
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), ao passo que a escassez de mulheres nestas áreas contribui para diminuir o interesse e mantê-las fora das posições de poder (LIMA; BRAGA; TAVARES, 2015).

Os “preconceitos e estereótipos”, mencionados por quatro estudantes e quatro profissionais, correspondem à reprodução de crenças e ideias preexistentes a respeito das mulheres em STEM, que se faz presente na formação e no trabalho, atravessando as suas vivências. Tais crenças constituem os mecanismos que embasam a discriminação de gênero, sendo, porém, distintos desta, uma vez que a discriminação representa atos e/ou comportamentos. Estudos anteriores apontam que os preconceitos e estereótipos influenciam as intenções de mulheres e homens a se matricularem em um curso de STEM na universidade, mostrando o quanto áreas com uma imagem masculina menos pronunciada têm o potencial de aumentar as aspirações femininas (Elena MAKAROVA; Belinda AESCHLIMANN; Walter HERZOG, 2019MAKAROVA, Elena; AESCHLIMANN, Belinda; HERZOG, Walter. “The Gender Gap in STEM Fields: The Impact of the Gender Stereotype of Math and Science on Secondary Students’ Career Aspirations”. Frontiers in Education, v. 4. p. 1-11, jul. 2019. Disponível em Disponível em https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/feduc.2019.00060/full . DOI: 10.3389/feduc.2019.00060. Acesso em 09/04/2020.
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).

A “falta de apoio entre mulheres”, apontada por três estudantes e duas profissionais, se relaciona à percepção do quanto elas próprias, nas áreas de STEM, pouco se ajudam, por vezes reproduzindo o discurso machista de crítica às (poucas) colegas de trabalho. Isto é apontado na literatura como a síndrome da “abelha rainha”, segundo a qual mulheres em ambientes predominantemente masculinos tendem a enfatizar qualidades masculinas, distanciando-se de outras mulheres e legitimando a desigualdade (Naomi STERK; Loes MEEUSSEN; Colette VAN LAAR, 2018STERK, Naomi; MEEUSSEN, Loes; VAN LAAR, Colette. “Perpetuating Inequality: Junior Women Do Not See Queen Bee Behavior as Negative but Are Nonetheless Negatively Affected by It”. Frontiers in Psychology [online], v. 9, p. 1-12, 2018. Disponível em Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/30294289 . DOI: 10.3389/fpsyg.2018.01690. Acesso em 09/04/2020.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/3029...
). Três profissionais também mencionaram o “pouco suporte da família” para ingressarem e seguirem em suas profissões, o que se constitui como uma barreira para sua permanência.

O último tema, intitulado “teto de vidro”, diz respeito à impressão de haver obstáculos intransponíveis, porém sutis, para o avanço na carreira, o que também já havia sido anteriormente indicado pela literatura como um mecanismo de exclusão invisível (SANTOS; DIOGO; SHUCMAN, 2014SANTOS, Elisabete Figueroa; DIOGO, Maria Fernanda; SHUCMAN, Lia Vainer. “Entre o não lugar e o protagonismo: articulações teóricas entre trabalho, gênero e raça”. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho [online], v. 17, n. 1, p. 17-32, 2014. Disponível em Disponível em http://www.revistas.usp.br/cpst/article/view/112330 . ISSN 1981-0490. DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v17i1p17-32. Acesso em 09/04/2020.
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). Foi citado por duas estudantes e uma profissional; as participantes descreveram situações em que percebiam “bater no teto”, isto é, não conseguir avançar para determinados patamares na carreira, assim como a impossibilidade de alcançar cargos de gestão.

De forma geral, foram identificadas diferenças entre os dois grupos no tocante aos tipos de barreiras mencionadas. As barreiras internas foram mais apontadas pelas estudantes, exceto pela rejeição do feminino e da feminilidade, ponto discutido somente pelas profissionais. Já as barreiras externas apareceram de maneira bem distribuída, sendo abordadas de forma semelhante pelos dois grupos, com exceção do conflito família-trabalho e da falta de suporte familiar, percebidos e discutidos somente pelas profissionais. Percebe-se que todas as barreiras, internas ou externas, referidas pelas estudantes, foram também mencionadas pelas profissionais, considerando as especificidades das experiências de cada momento, de formação ou trabalho. Por sua vez, as profissionais mencionaram barreiras que não apareceram na conversa entre as estudantes, talvez por estas não terem se deparado ainda com tais dificuldades.

Estratégias

Após relatarem sobre as barreiras, foi requisitado pelas pesquisadoras que as participantes apontassem as principais estratégias que entendiam como úteis. O procedimento para categorização das estratégias seguiu a mesma lógica utilizada para as barreiras, com os temas associados às subcategorias internas e externas.

Estratégias internas

As estratégias internas representam formas de enfrentamento que dependem mais do esforço das próprias mulheres, ou seja, estão ligadas a processos internos que as ajudam a lidar com as barreiras ou mesmo diminuem a percepção das dificuldades. Estes recursos foram apresentados por três estudantes e sete profissionais. Foram identificados os temas: autoaceitação, autoconhecimento, terapia, persistência e resiliência, consciência política/educação e compartilhamento.

A “autoaceitação” e o “autoconhecimento” foram estratégias mencionadas por três profissionais e uma estudante. De forma geral, o debate sobre a autoaceitação girou em torno da ideia de reconhecer e aceitar as suas fragilidades, não negar possíveis limitações, fazer as pazes com as próprias dificuldades para, então, superá-las. O autoconhecimento, por sua vez, é complementar à autoaceitação, pois, para aceitar as próprias características, é preciso conhecê-las bem. As crenças dos indivíduos sobre sua competência e sobre os resultados esperados de suas ações ajudam na superação e persistência frente às barreiras (FOUAD et al., 2010FOUAD, Nadya A. et al. “Barriers and Supports for Continuing in Mathematics and Science: Gender and Education al Level Differences”. Journal of Vocational Behavior [online], v. 77, n. 3, p. 361-373, 2010. Disponível em Disponível em https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0001879110001168?via%3Dihub . ISSN 0001-8791. DOI: 10.1016/j.jvb.2010.06.004. Acesso em 08/04/2020.
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), o que é compatível com os resultados aqui apontados. No caso da estudante, essas estratégias foram transmitidas como forma de se reconhecer em uma área de estudos que ela gosta, apesar das barreiras. Para as profissionais, a autoaceitação e o autoconhecimento estavam mais relacionados com saber lidar e conviver bem com suas próprias limitações.

[Sobre provar sua competência] Hoje eu faço isso sem muita pressão, sem tanto peso quanto eu fazia antigamente. Eu tinha muita dificuldade de aceitar as minhas fraquezas e as minhas limitações (P6 - 2018).

Eu acho muito importante a gente trabalhar o nosso autoconhecimento, a nossa força interna, a gente se conhecer, o que eu faço de bom, o que eu faço de melhor, o que eu quero realmente fazer na minha vida. Se conhecer é fundamental (P7 - 2018).

Outra estratégia interna mencionada por profissionais consistiu no “compartilhamento” (13%). Reconheceu-se a importância de falar sobre as próprias experiências com mulheres em vivências semelhantes, enfatizando a importância da escuta compartilhada. Desta forma, seria possível perceber as questões que se repetem em diferentes vivências, o que ajuda a tirar o problema do nível individual e posicioná-lo como algo coletivo, que atinge todas. Há evidências de que compartilhar narrativas sobre como enfrentar as barreiras pode fazer com que outras mulheres aprendam novas formas de lidar com as dificuldades que encontram em suas áreas, além de promover o sentimento de que não se está sozinha (CHOWDHURY; GIBSON, 2019CHOWDHURY, Nilima; GIBSON, Kerry. “This is (still) a man’s world: Young professional women’s identity struggles in gendered workplaces”. Feminism & Psychology [online], v. 29, n. 4, p. 475-493, 2019. Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0959353519850851 . DOI: 10.1177/0959353519850851. Acesso em 08/04/2020.
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).

Eu escutava o discurso de cada uma e era o mesmo, da dificuldade, da barreira, falta de apoio na família, e eu achava que eu estava sozinha, aí quando a gente chega e vê que todo mundo tá no mesmo barco, a gente vê que tem algum problema nisso, tem alguma coisa acontecendo (P5 - 2018).

Foram mencionadas ainda a “consciência política/educação”, por três profissionais e duas estudantes. Uma das estudantes, por exemplo, considera suas leituras sobre gênero e sua participação em coletivos feministas um importante recurso para lidar melhor com as barreiras. A “terapia” apareceu como um recurso considerável para quatro estudantes e duas profissionais, que apontaram como é fundamental dispor de acompanhamento psicológico constante, principalmente para lidar com o assédio e manter a sanidade diante da tomada de consciência das desigualdades. Já a “persistência e resiliência” foram percebidas e utilizadas por três profissionais e uma estudante, significando se manter firme no caminho para aquilo que desejam, se adaptar ao ambiente, persistir e resistir, apesar de todas as adversidades.

É possível notar que as estudantes relatam poucos recursos internos, o que pode ser compreendido tendo em vista que os mesmos levam tempo para serem construídos e internalizados.

Estratégias externas

As estratégias externas foram abordadas por sete das profissionais e três estudantes, sendo compreendidas como formas de enfrentar as barreiras que dependem da participação de outras pessoas, para além das próprias mulheres, sendo identificadas como: busca por orientações e informações legais, planejamento e desenvolvimento de carreira, busca por modelos profissionais, união feminina, ajuda dos homens e apoio familiar. Mencionada por cinco profissionais e uma estudante, a “busca por orientações e informações legais” diz respeito a ter conhecimento e orientações sobre, por exemplo, como identificar assédio, quem procurar e o que fazer no caso de ser vítima de algum tipo de violência ou discriminação. Essa é uma estratégia voltada à mobilização de instituições, como universidades e empresas, assim como ONGs e coletivos de mulheres que auxiliem a espalhar informações, conscientizar sobre direitos e onde procurar ajuda jurídica.

Na universidade eu saberia mais ou menos para onde recorrer, mas agora que eu estou no mercado de trabalho eu não sei, eu não saberia se ligava para polícia ou para quem eu ligaria (P3 - 2018).

Eu consigo conceitualmente entender o que é assédio moral, sexual, então consigo compreender que desde a minha graduação, ou no mercado de trabalho, ou no mestrado, eu vivi os dois tipos de assédio. Eu sempre tentei entender, acho que nesses espaços tem uma diferença muito grande na forma como eu vejo e ajo e como as outras garotas, acho que elas não estão preparadas quanto ao conceito disso, então acho que elas têm uma aceitação [do assédio sofrido] muito maior do que eu (E5 - 2018).

Outra estratégia apontada foi o “planejamento e desenvolvimento de carreira” (destacada por duas profissionais e uma estudante). O planejamento de carreira é um processo que pode ocorrer ao longo de toda a vida, que envolve o estabelecimento de estratégias, metas e plano de ação para o futuro profissional. Isso implica buscar conhecimento sobre as próprias competências, interesses e preferências profissionais, de forma que planejar a carreira pode ajudar a diminuir barreiras internas e externas (SAAVEDRA; TAVEIRA; SILVA, 2010SAAVEDRA, Luísa; TAVEIRA, Maria do Céu; SILVA, Ana Daniela. “A subrepresentatividade das mulheres em áreas tipicamente masculinas: Factores explicativos e pistas para a intervenção”. Revista Brasileira de Orientação Profissional [online], v. 11, n. 1, p. 49-59, 2010. Disponível em Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1679-33902010000100006 . ISSN 1984-7270. Acesso em 09/04/2020.
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). Processos de orientação de carreira podem contribuir para o desenvolvimento da gestão da própria carreira, estimulando o autoconhecimento, a identificação de oportunidades, as decisões planejadas e a implementação e revisão periódica do projeto de carreira.

Identificar “modelos” em quem se espelhar foi discutido especialmente por cinco profissionais. Elas abordaram a questão em diferentes sentidos, que vão desde a necessidade de ter mulheres de referência em suas áreas, tão marcada pela presença de homens, quanto a importância de ter tido-as próximas como inspiração, incluindo também a necessidade de elas mesmas servirem como modelo para outras mulheres. Munilla (2018MUNILLA, María Sánchez. “A ausência de mulheres nas carreiras de STEM: um problema social e de género”. Adolescência: Revista Júnior de Investigação, v. 5, n. 1, p. 12-22, nov. 2018. Disponível em Disponível em https://www.adolesciencia.ipb.pt/index.php/adolesciencia/article/view/262 . Acesso em 09/04/2020.
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) destaca o impacto negativo da ausência de modelos em profissões de STEM, já que ter um modelo a seguir influencia muito no interesse das jovens para escolherem e permanecerem em carreiras predominantemente masculinas. Adicionalmente, a literatura internacional também vem sistematicamente apontando a importância de figuras de referência para o aumento e permanência de mulheres em STEM, enfatizando o papel dos pais e de professores (Sarah D. HERRMANN et al., 2016HERRMANN, Sarah D. et al. “The Effects of a Female Role Model on Academic Performance and Persistence of Women in STEM Courses”. Basic and Applied Social Psychology [online], v. 38, n. 5, p. 258-268, 2016. Disponível em Disponível em https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/01973533.2016.1209757 . ISSN 1532-4834. DOI 10.1080/01973533.2016.1209757. Acesso em 15/04/2020.
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).

Em termos de inspiração minha mãe foi professora universitária também, há trinta anos. Naquela época ela sofria muito preconceito porque ela tinha três filhos, e a gente ouvia “Mas sua mãe trabalha fora?”. Numa capital, uma mãe que trabalhasse numa universidade e tivesse três filhos, a própria família era contra, então foi uma inspiração. Na minha vida foi natural que as meninas trabalhassem (P2 - 2018).

Eu tô aqui porque eu acho que a gente precisa ajudar as meninas que estão começando, e eu não quero que as pessoas desistam dessa profissão que é tão necessária, a visão da mulher é tão necessária no campo (P6 - 2018).

O “apoio familiar” também foi discutido exclusivamente pelas profissionais - duas -, o que faz sentido, uma vez que, nas discussões sobre barreiras, as estudantes não apontaram a falta de suporte familiar como um problema, diferente das profissionais que demonstraram encontrar dificuldades com a ausência de apoio vindo da família. Isto encontra respaldo no estudo de Nadya A. Fouad, Mary Anne Fitzpatrick e Jane P. Liu (2011FOUAD, Nadya A.; FITZPATRICK, Mary Anne; LIU, Jane P. “Persistence of women in engineering careers: a qualitative study of current and former female engineers”. Journal of Women and Minorities in Science and Engineering [online], v. 17, n. 1, 2011, p. 69-96. Disponível em Disponível em http://www.dl.begellhouse.com/journals/00551c876cc2f027,2848c8c3108acb0d,676a2cde69594e0c.html . ISSN 1072-8325. DOI: 10.1615/JWomenMinorScienEng.v17.i1.60. Acesso em 08/04/2020.
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), que discutem a relevância do suporte vindo de familiares, incluindo companheiros e demais membros da família. Segundo as autoras, ter uma estrutura de apoio é essencial para que mulheres continuem em suas carreiras e superem as barreiras para a ascensão.

A estratégia identificada como “ajuda dos homens” se refere a ter colegas homens como aliados frente às dificuldades, entendendo que não precisa existir uma competição constante com eles e que os mesmos também podem ajudar, nem que seja para ter uma convivência mais “tranquila”; tal estratégia foi mencionada por duas participantes de cada grupo. Por fim, “a união feminina”, que dizia respeito à busca por sororidade e apoio mútuo entre elas, foi mencionada por três profissionais e uma estudante enquanto algo potente na busca por enfrentar as barreiras, de forma que, principalmente as profissionais percebem que, apoiar, defender e se aliar a outras mulheres funciona como um importante recurso para não desistir da carreira em STEM.

Vale a pena destacar que aquelas que já estão no mercado de trabalho demonstraram desenvolver e dispor de mais estratégias do que as estudantes. As estratégias de compartilhamento, apoio familiar e modelos foram citadas unicamente pelas profissionais, enquanto que todas as estratégias mencionadas pelas estudantes foram também abordadas pelas mulheres profissionais. A exceção foram as estratégias de consciência política e ajuda dos homens, que foram debatidas de forma semelhante nos dois grupos.

Ressalta-se, portanto, que o assédio ainda representa a principal barreira que as mulheres enfrentam nos contextos predominantemente masculinos, seguido pela discriminação de gênero. Constatou-se que elas percebem e falam muito mais sobre as barreiras enfrentadas do que sobre as estratégias, o que é compatível com os estudos de Nikki A. Falk et al. (2017FALK, Nikki A. et al. “Expanding Women’s Participation in STEM: Insights from Parallel Measures of Self-Efficacy and Interests”. Journal of Career Assessment [online], v. 25, n. 4, p. 571-584, 2017. Disponível em Disponível em https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1069072716665822?journalCode=jcaa . ISSN 1552-4590. DOI: 10.1177/1069072716665822. Acesso em 08/04/2020.
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), que demonstram que as mulheres não só apresentam baixo nível de autoeficácia, como também reportam poucas estratégias de enfrentamento. Isto indica que ser mulher em STEM envolve se deparar com barreiras em diversos campos da formação e do trabalho, e que as estratégias para lidar com as dificuldades vivenciadas ainda não são claras, sendo que se deparam com maior frequência com barreiras externas, contudo, suas estratégias tendem a ser direcionadas ao âmbito interno ou pessoal.

Considerações Finais

O presente artigo buscou mapear as barreiras e estratégias encontradas por mulheres estudantes e profissionais em carreiras de STEM, sendo este objetivo alcançado. Consideramos que os achados contribuem para uma visão ampla e aprofundada sobre as problemáticas existentes, especialmente por se tratar de uma pesquisa qualitativa com grupos focais. Os resultados aqui encontrados ajudam a compreender melhor o panorama da realidade brasileira, constatando-se que uma parcela considerável deles tinha sido identificada na literatura internacional. A compreensão das principais barreiras de mulheres em STEM permite que sejam formuladas políticas públicas e institucionais que visem desenvolver ferramentas e estratégias mais específicas para ajudá-las a permanecer e ascender profissionalmente. O presente estudo também contribui para o desenvolvimento de ações de intervenção, tais como cursos, treinamentos e workshops, uma vez que considera quais estratégias as mulheres em STEM apontam como efetivas.

No tocante aos estudos de gênero, a presente pesquisa é relevante, uma vez que ressalta as peculiaridades e especificidades de mulheres que buscam se adaptar em ambientes ainda masculinos, uma vez que este pode representar um desafio um pouco mais complexo do que aqueles enfrentados por elas em áreas predominantemente femininas. Enfatiza-se a necessidade de empatia e, principalmente, análise cuidadosa dos motivos e do contexto que podem levá-las, em STEM, a eventualmente não enxergar ou minimizar o impacto do sexismo na sua vida ocupacional. Logo, urge refletir sobre táticas que considerem a necessidade de “sobrevivência” das mulheres em STEM e que possam contribuir para o aumento de mulheres politicamente engajadas e conscientes dos entraves que enfrentam por estarem nestas áreas.

Apesar de o foco ser nas áreas de STEM, este estudo contribui para enfatizar a importância das ciências humanas e sociais, especialmente da Psicologia, para a entrada, permanência e ascensão de mulheres em áreas predominantemente masculinas. Ao se retomar as barreiras e estratégias apontadas, verifica-se que a grande maioria delas envolve questões psicológicas e sociais, que devem, portanto, obter o apoio de profissionais destas áreas. Desta forma, proporciona-se o intercâmbio entre saberes diversos, favorecendo a interdisciplinaridade e, consequentemente, a equiparação de status entre as diversas ciências e campos do conhecimento.

O estudo apresenta limitações acerca do equilíbrio de representantes na amostra, uma vez que houve a completa ausência de participantes da área de matemática ou exatas, a baixa prevalência de representantes das ciências e a pouca diversidade quanto às múltiplas áreas da engenharia. Não houve representantes, por exemplo, das engenharias civil, agronômica, elétrica e mecatrônica. Finalmente, todas as participantes eram da mesma cidade, o que pode implicar viés regional dos valores e visões de mundo das participantes. Outra limitação diz respeito à ausência de ênfase na questão étnico-racial, pois, apesar de haver participantes não brancas e pretas nos grupos, as mulheres não foram questionadas em relação à sua autodeclaração racial. Embora este tópico tenha vindo à tona em algumas das falas, ele apareceu apenas em breves menções, o que indica que provocações mais explícitas voltadas a esta questão seriam necessárias por parte das mediadoras, principalmente ao se considerar as diferenças nas barreiras na carreira de mulheres brancas e pretas. Finalmente, a realização de apenas um grupo focal com cada uma das categorias (estudantes e profissionais) também pode ser compreendida com uma limitação.

Estudos futuros poderiam envolver outros tipos de delineamentos metodológicos, tais como pesquisas longitudinais, quantitativas, com fins de generalização e pesquisas-ação que avaliem o impacto de estratégias como programas de mentoria, cursos e treinamentos específicos. Aspectos como a questão étnico-racial e diferenças de classes sociais também devem ser contemplados, de maneira a melhor contextualizar a realidade brasileira. Por fim, pesquisas que analisem isoladamente o papel de cada uma das barreiras e estratégias aqui apontadas também são necessárias, visando identificar como estas são mais representativas e aplicáveis a determinadas características sociodemográficas ou estágios de carreira das mulheres.

Referências

  • 1
    Para preservar o anonimato, os nomes das mulheres foram codificados em função do grupo correspondente e do número de participantes do grupo, sendo E para estudantes e P para profissionais.
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    OLIVEIRA-SILVA, Ligia Carolina; PARREIRA, Vanessa Aparecida Diniz. “Barreiras e enfrentamentos de mulheres em carreiras predominantemente masculinas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e74161, 2022.
  • Financiamento:

    A referida pesquisa recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais, Universidade Federal de Uberlândia - FAPEMIG, Edital 001/2017 - Demanda Universal, Processo nº. CHE-APQ-00648-17.
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2020
  • Revisado
    30 Jul 2021
  • Aceito
    21 Set 2021
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