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Da história econômica à cultural: a singular travessia de Stuart Schwartz

Da história econômica à cultural: a singular travessia de Stuart Schwartz1 01 Resenha crítica: Schwartz, Stuart. Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc, 2009.

José Jobson de Andrade Arruda2 02 Professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp)/Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade do Sagrado Coração (USC), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: jjarruda@usc.br.

"Fora Judeus e Pagãos!" — clama a paciência cristã. / "Maldito o

Cristão e o Pagão!" – murmura um barbudo Judeu. /Os Cristãos

ao espeto e os Judeus ao fogo! / — Canta um Turquinho troçando

Cristãos e Judeus. / Qual é o mais ‘sperto'? – Decide! Mas se loucos

destes/Há no teu palácio, Divindade, eu passo de largo.

(Goethe, 1749-1832. Epigramas. Veneza, 1790; trad. de Paulo Quintela).

Nesta epigrama, Goethe ironiza e repudia o sentimento de intolerância dominante na modernidade produzido pela lenda negra ibérica. Haveria lugar nesse mundo para um sentimento de tolerância como aquele que inspira o célebre escritor? A resposta por certo seria não. Menos para Stuart Schwartz, em seu texto recente sobre a história cultural religiosa ibero-atlântica, simbolizada na expressão que dá título ao livro Cada um na sua lei, publicado em co-edição pela Edusc e Companhia das Letras, título mais apropriado do que All can be saved, da edição inglesa da Yale University Press, publicado em 2008. Trata-se, portanto, de uma reflexão documentada sobre a gênese do espírito de tolerância, a proto-história de seu nascimento, uma espécie de Iluminismo ibérico avant la lettre. Tese ousada, que o talento desse brasilianista de escol lhe faculta realizar com propriedade ímpar, sustentado por pesquisa arquivística de fôlego. Resenhar este livro é um privilégio. Não sem um certo estranhamento, pois estou entre os distinguidos a quem o livro foi ofertado; além de ser o co-editor pela Edusc em parceria com a Companhia das Letras. Mas são tantas as virtudes carreadas pelo texto que essas restrições se convertem em pecadilhos veniais.

Basta percorrer a recepção do texto pela crítica especializada, um fervor inusitado que se traduz em qualificativos que não deixam margem a dúvidas quanto à convicção de quem as escreveu: eloquente, convincente, tenaz, penetrante, perspicaz, prolífero, original, audacioso, fluente, soberbo, iluminado. Para Natalie Zemon Davis, um livro fundamental que nos ajuda a compreender o que leva o povo comum a aceitar a diferença; uma fonte de esperança para nosso tempo. Nestes termos, um livro atual, um diálogo com a intransigência política e religiosa que vivenciamos. Tarefa que Stuart empreende com fino humor, recuperando as formulações chulas, vulgares, com as quais os homens incultos, mas dotados de um saber próprio, enfrentavam os inquisidores recusando-se a aceitar, por exemplo, que a prática do sexo consensual fosse pecado, afirmando sua crença de que fiéis sinceros de qualquer confissão religiosa poderiam salvar-se, como o salienta Geoffrey Parker.

Méritos que o fizeram merecedor do Cundill Historical Prize, oferecido pela Cundill Foundation do Canadá, destinado a historiadores de qualquer nacionalidade que tenham publicado um livro com profundo impacto literário e acadêmico na área de história, prêmio que, por sua expressiva dotação monetária e rígidos critérios seletivos, converte-se no Nobel da História. Escolha referendada pela American Academy of Religion, que também o elegeu para o prêmio de melhor livro de história da religião, a ser outorgado em novembro de 2009.

Como reconhece o grande historiador do Império espanhol, J. H. Elliot, em recensão publicada no The New York Review of Books, a grande tese do livro é a de que, no plano da cultura popular, o mundo ibérico era menos rígido em sua cristianidade do que se poderia supor, abrindo possibilidades outras no caminho para a salvação, certo grau de tolerância religiosa que se irradiou da península Ibérica, de Espanha e Portugal, para suas possessões coloniais americanas, totalmente em desacordo com a postura oficial do Estado e da Igreja, muito ao contrário do que as aparências sugeriam e do que os historiadores têm acreditado. Uma subcultura dissidente, pois, sob a camada daqueles que ousavam exprimir suas ideias, havia muitos outros que, por temor à repressão, mantinham-se em silêncio, deixando entrever a existência de uma cultura recôndita da tolerância, fruto da miscigenação, da convivência entre cristãos, mouros e judeus e, ainda mais, da hibridação cultural daí resultante, um conjunto de elementos que tornariam os reinos ibéricos mais propensos à aceitação e ao reconhecimento do outro. Predisposições estas que foram transportadas e transplantadas no Novo Mundo, onde o contato com as populações indígenas que jamais ouviram falar de cristianismo; ou com os escravos africanos detentores de seus próprios sistemas de crenças, resultou na criação de uma cultura vibrante e dissonante em relação aos rígidos preceitos políticos e ideológicos exarados pelo poder constituído.

É óbvio que a convivência produtora da tolerância pode igualmente produzir a intolerância. Diferentes etnias, crenças e culturas podem conviver longamente em paz e, subitamente, explodir num espasmo de violência espontânea, orgia destrutiva, que interrompe a continuidade produzida por circunstâncias supervenientes e incontroláveis: crises econômicas, mudanças de orientação política, retóricas demagógicas, choque entre vizinhos ou regiões, conflitos armados entre nações, como bem percebeu James Amelang, no prefácio para a edição espanhola de Cada uno en su ley.

Stuart Schwartz tem consciência dessas dificuldades. Sente o terreno movediço em que se meteu, bem ao contrário das estatísticas sobre produção açucareira no Recôncavo baiano, solo firme sobre as quais trabalhou, bem mais confiáveis e ponderáveis. Sabe da complexidade que é operar documentos inquisitoriais, processos ou listagem de processos, pois sabe da dificuldade que é encontrar a verdade em falas extraídas pela violência. Somente na Espanha foram produzidos 40 mil processos inquisitoriais entre 1570 e 1750, incluindo-se neste número os processos da Inquisição do México, Lima e Cartagena. Em Portugal foram outros 40 mil, dentre os quais encontram-se dois mil processos referentes às inquisições realizadas no Brasil. Sem contar a Inquisição de Goa, cujos processos foram perdidos, restando apenas as listagens dos mesmos. Dessa massa documental, foram compulsados aproximadamente três mil processos, de onde emergiram cerca de 300 casos em que os indiciados pelos tribunais inquisitoriais manifestaram sensibilidade para o universalismo ou relativismo religioso. Portanto, uma minoria, mas expressiva por serem os porta-vozes de um número certamente muito maior de adeptos dessas ideias que se preservavam em cauteloso silêncio.

O foco da atenção dos Tribunais variava. Na Espanha, 66% dos perseguidos eram cristãos-velhos. Em Portugal, 80% eram judaizantes, isto é, judeus conversos recaídos em suas práticas originais. Dentre aqueles que manifestaram suas opiniões tolerantistas inscrevem-se camponeses, artesãos, mercadores, funcionários, clérigos, acadêmicos, cristãos novos, mouriscos e um número reduzido de mulheres. Suas principais proposições heréticas envolviam dúvidas sobre a eucaristia, a eficácia dos santos, a virgindade de Maria, o pecado do sexo, a existência do céu, do purgatório e do inferno. Uma de suas formas mais típicas de expressão era a blasfêmia, pois ela "humanizava o sagrado, mas também representava uma espécie de resistência à pureza doutrinária e aos ditames da autoridade" (p. 41), exatamente por isso era vigiada cautelosamente pelos inquisidores. A blasfêmia era uma "demonstração de grosseria, rusticidade ou ignorância; uma prática nascida do hábito, da ironia, do humor, da raiva ou da decepção" – por isso mesmo "talvez fosse uma das poucas áreas num mundo sob controle religioso onde era possível uma fuga para a fantasia" (p. 42).

Do ponto de vista da salvação, a principal questão que se punha era se judeus, muçulmanos, protestantes e indígenas do Novo Mundo, que viviam corretamente sob sua lei, estariam inexoravelmente condenados? Somente os católicos teriam recebido a verdadeira revelação? Deus teria feito bem seu serviço "fazendo a uns mouros, outros judeus e outros cristãos" (p. 62)? Será que Deus, no fundo, "não pretendia salvar a todos" (p. 162)? Pois, se eu cumprir todas as leis estarei salvo, "pois todas as leis eu segui" (p. 93).

Se o olhar atento das autoridades poderia ser mais constritor, no mundo ultramarino de portugueses e espanhóis, "a autoridade era mais restrita, o anonimato grande e as identidades e fronteiras imperiais e étnico-religiosas permeáveis" (p. 177) facilitando os comportamentos desviantes, até mesmo aceitos pelas autoridades no caso específico dos índios que vivessem em sua lei natural e nela "se salvariam até o momento da pregação cristã" (p. 189). O arrocho dos tribunais a partir de 1571, sob Filipe II, procurando fortalecer o poder monárquico nas Índias, utilizando a Inquisição como instrumento de controle ideológico, não impediu o germinar de "uma cultura vibrante que contrariava as ideologias dominantes da Igreja e do Estado" (p. 193). A ideia de que cada um poderia salvar-se em sua própria lei atravessou o Atlântico juntamente com outras "opiniões dissidentes" (p. 205). A verbalização ou a escrita sobre conceitos dissidentes germinavam em pessoas de "posições sociais e culturais intermediárias", e as ideias por elas propostas "circulavam de cima para baixo e de baixo para cima, e mesmo que o povo simples não tivesse instrução ou base para escrever uma peça ou sermão ou para formular um dogma, tinha sua própria compreensão do certo e do errado, do bem e do mal" (p. 263).

Qual seria o limite extremo do sentimento de tolerância? A descrença absoluta, por certo, o ateísmo, termo criado no século 16, com significado menos circunscrito do que o atual, pois incluía não apenas os descrentes de Deus, mas também aqueles que consideravam a crença nele uma coisa supérflua. Haveria incréus no século 16? Esta possibilidade já se tornara uma preocupação para os teólogos nos finais deste século. Dentre os inquiridos pela Inquisição, pelo menos em alguns casos, confirma-se esta possibilidade ao exprimirem uma "descrença absoluta", pois as pessoas simplesmente nasciam e morriam e, tudo o mais, céu, inferno, purgatório, "eram invencionices dos padres para manter o povo na linha". Noutros termos, inferno era ter que dar esmolas, o paraíso recebê-las, nível de descrença que aproximava da impiedade aqueles que assim se manifestavam (p. 121). Eram homens que se consideravam "demasiadamente pobres para se permitir tal luxo" (p. 113), isto é, seguir qualquer lei. Essas manifestações eram relativizadas nas barras dos tribunais pois os inquisidores tendiam a considerá-los quase inimputáveis, por sua pobreza, por sua inexpressividade social e, portanto, por sua incapacidade de influenciar outras pessoas com suas ideias heréticas, punindo-os com penas leves ou, simplesmente, deixando passar.

Bastariam essas descobertas para tornar este livro obrigatório. Elas vão exatamente na contramão da celebrada interpretação de Lucien Febvre em seu clássico O problema da incredulidade no século XVI, no qual afirma não haver lugar para ateus no século 16, instituindo a concepção da crença absoluta, agora relativizada pelas pesquisas de Stuart, que afirmam, sim, a existência de um sentimento de incredulidade gestado no bojo do sentimento de intolerância.

Quais as implicações que tal achado teria para a história do desenvolvimento capitalista na modernidade? Ou, mais especificamente, sobre a relação entre a ética protestante e o espírito do capitalismo, na formulação de Max Weber? Se a credulidade era absoluta, como deixou entrever Lucien Febvre, a relação de sentido estabelecido por Weber entre o êxito material e o calling divino, está plenamente configurada. Se, porém, existe um sentimento difuso de credulidade que alarga o campo da incredulidade e alcança as fronteiras da impiedade, talvez que volte a ter nexo a interpretação de Amintore Fanfani em seu Capitalismo, catolicisrmo e protestantismo (Lisboa: Áster, 1970), para quem o espírito do capitalismo existiu muito antes da Reforma protestante, exatamente pelo progressivo abandono da moral católica na prática, admitindo-se o enriquecimento, mas não a fortuna pessoal à custa dos outros. Equivale dizer, foi exatamente a ruptura de liames entre a ação humana terrestre e as recompensas eternas que fertilizou a ética econômica, "abrindo caminho a uma pluralidade moral, todas naturais, todas terrenas, todas fundadas sobre os princípios inseridos nas coisas humanas". Reflexões essas que provam quanto a história cultural, do sentimento de religiosidade, pode fertilizar a história econômica.

Um segundo desdobramento das proposições analisadas é a transformação do sentimento de incredulidade em mensagem política. Quando a tolerância deixa de ser sentimento que sai pela boca das camadas populares, expressão cultural imanente que transcende a cultura popular e é captada pela cultura letrada dos filósofos do século 18; decantada, codificada, escapa ao nicho do sentimento e alça voo rumo à cultura política dos ilustrados.

Que tipo de história transcende o texto? Sem dúvida, uma história vista de baixo, a partir do sentimento dos escalões populares, propriamente da cultura popular, e daí sobe ao cimo, à história condensada no alto, na produção intelectual do movimento iluminista. Uma experiência metodológica renovada, pois não o faz segundo as proposições de historiadores de formação marxista como Albert Soboul que, nos anos 1960, anunciavam uma histoire vue d'un bas, em lugar de uma histoire vue d'un haut. Nessa formulação, o andar de baixo era constituído pela classe, uma camada circunscrita, tendente à uniformidade, que não cedia lugar à individuação. Stuart dá vida à classe de baixo. Pulveriza a membrana de aplastamento e vai aos indivíduos, sujeitos corpóreos, carregados de vivência cotidiana, de necessidades, de sentimentos de solidariedade ao próximo, ao vizinho, ao amigo, ao companheiro. Atravessa a classe e surpreende o sujeito na classe, a menor partícula constitutiva da classe, a poeira da história que, incessantemente repetida, como disse Braudel, estruturaliza-se.

Revela-se, na trajetória intelectual de Stuart, um duplo movimento. Do historiador que parte do conceito de classes inscrito na teoria marxista e que, por via da pesquisa empírica detida, atinge os indivíduos e, sem o explicitar, talvez mesmo sem o perceber, retorna à classe recheada de vida, palpitante. Segue-se um terceiro movimento, de todo incomum. Aquele do historiador consagrado na produção em história econômica e social que migra para a história cultural em sua face mais complexa, o da história da religiosidade. O inverso dessa trajetória é raríssimo. A bem dizer, desconheço historiador da cultura consagrado que tenha se abalançado para os domínios da história econômica e social. Talvez porque a área da cultura se pense autônoma por conta da celebração que o campo experimenta no momento, pela fragmentação do conhecimento que recusa a totalidade. O certo é que Stuart escreveu um clássico da história socioeconômica, Segredos internos, e acaba de produzir outro no campo da história da religiosidade, realizado como fatura de história cultural.

No primeiro livro por ele publicado sobre o Brasil, Burocracia e sociedade no Brasil Colonial (1979), priorizou os juízes que compuseram o Tribunal da Relação na Bahia, mais do que seus cargos magistrais penetrando, a partir do estamento funcional, o substrato da sociedade colonial baiana. No segundo, Segredos internos (1988), focalizou a relação entre senhores, escravos e produtores de cana obrigada. No terceiro, Escravos, roceiros e rebeldes (2001), amplifica nosso conhecimento sobre a estratificação social do Brasil colônia. Caminhada que o leva das classes, das categorias mais formalizadas ao universo cultural as vozes emergentes das camadas inferiores, los de abajo, para daí viajar rumo às formações mentais estratificadas nas elites cultas. Finalmente, em Cada um na sua lei, elege as vozes oriundas das camadas inferiores do universo social ibero-atlântico como personagens centrais, encontrando não um Menocchio, como o fez Carlo Ginzburg, mas uma miríade de menocchios surpreendidos em sua faina diária, em sua vivência cotidiana, em sua forma peculiar de ver o mundo.

Mas isso não significa adesão de corpo e alma ao irridentismo da história cultural. Sua tipologia social inclui pessoas que circulam, mercadores, marinheiros, soldados, funcionários, clérigos, numa ampla rede de transações mercantis transoceânicas, que propiciava o contado com as diferenças culturais e religiosas e acabavam por conformar um pensamento dissidente. Stuart não abandonou a história econômica, nem mesmo os procedimentos estatísticos. "Faço micro-história seriada", disse-me ele, "preparei, inclusive, um apêndice estatístico que pensei anexar ao livro, mas desisti, porque jamais seria exaustivo, nem representativo, uma vez que as expressões de tolerância relatadas representam um universo social muito mais amplo do que a quantificação poderia expressar", afinal, "estou sempre buscando os interesses materiais atrás dos comportamentos".

  • 01
    Resenha crítica: Schwartz, Stuart.
    Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico. São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: Edusc, 2009.
  • 02
    Professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp)/Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação da Universidade do Sagrado Coração (USC), São Paulo, SP, Brasil.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Set 2009
    • Data do Fascículo
      Ago 2009
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