Acessibilidade / Reportar erro

Capital de comércio de vendas: o trabalho de delivery sob o jugo dos capitais de plataforma

Sales dealing capital: the labor of delivery under the yoke of platform capital

Resumo

O trabalho mediado por plataformas digitais já produziu uma quantidade significativa de interpretações predominantemente descritivas. O objetivo deste artigo é analisar, com base na teoria de Marx, o ramo de entrega de comida e de produtos de supermercado a fim de compreender a relação teórica existente entre o entregador e as plataformas que medeiam o trabalho de entrega. A literatura marxista sobre o tema se fixa, em geral, na análise do fenômeno da subsunção do trabalho ao capital e caracteriza o entregador como trabalhador assalariado. Diferentemente disso, a hipótese aqui desenvolvida é que o entregador obtém sua renda por meio da Circulação Simples de Mercadorias, sendo a mercadoria vendida pelo entregador o transporte. O circuito realizado pelo entregador é subsumido pelo circuito do capital, o qual se caracteriza como Capital de Comércio de Vendas, cujo lucro é parte do lucro industrial dos restaurantes e/ou do lucro comercial dos supermercados.

Palavras-chave:
Delivery; Entregador; Capital de comércio de vendas

Abstract

Delivery labor has been the subject of a multitude of descriptive articles. Marxian theoretical approaches, on the other hand, have taken for granted that delivery labor is wage labor and that digital platforms represent a new and higher form of real subsumption of labor to capital. The present article restricts its analysis to the delivery of food and grocery shopping. Differently from the mainstream Marxian view, we argue that labor’s revenue accrues not from wages but from an activity of simple commodity circulation, that is the sale of transportation. Platform capital subsumes the first phase of the circuit C – M – C of the deliverer to its own activity as Sales Dealing Capital. Its profits derive not from the exploitation of labor but from a fraction of the profits of restaurants and supermarkets. It is argued, moreover, that the whole process has all the appearances of labor’s exploitation because lower transportation fares increase the size of the market and, thus, platform profits.

Keywords:
Delivery; Labor; Sales dealing capital

Introdução

Recente relatório da série World Employment and Social Outlook da OIT (2021) revela que as plataformas digitais mobilizam hoje em dia uma enorme variedade de tipos de trabalho. Parte deles são mobilizados em rede e a execução da tarefa é realizada em qualquer lugar do mundo e devolvida em rede, o chamado cloud work, ou trabalho em rede. Outros são mobilizados por aplicativos, mas requerem a realização das tarefas em locais específicos, o que poderíamos parafrasear como ground work, ou trabalho local. Esse relatório – cujo tema é o papel das plataformas de trabalho digital na transformação do mundo do trabalho – apresenta uma classificação das modalidades de plataforma digital dos quais nos interessa salientar apenas aqueles que envolvem a mobilização do trabalho, seja ele em rede ou local:

Figura 1
Tipos de plataformas digitais

Estatísticas sobre o número de pessoas engajadas em trabalho mobilizado por plataformas digitais são de difícil estimação, pois, por um lado, os trabalhadores podem apresentar cadastros múltiplos e, por outro, as plataformas são recalcitrantes em relação à divulgação do número de cadastrados. Contudo, as evidências indicam que essa forma de emprego é grande e está em franco crescimento em todo o mundo. Com base em 38.878 respostas coletadas em 16 países da Comunidade Europeia1 1 Espanha, Holanda, Portugal, Irlanda, Alemanha, Lituânia, Croácia, Romênia, Suécia, Itália, França, Finlândia, Hungria, Eslováquia, República Tcheca e Reino Unido. , um estudo realizado pela Comissão Europeia estima que, em 2018, 11% da população entre 16 e 74 anos teve algum rendimento ou trabalho de plataforma (Brancati et al., 2020, p. 14BRANCATI, U.; CESIRA, M.; PESOLE, A.; MACIAS, E. F. New evidence on platform workers in Europe, EUR 29958 EEN. Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2020.), enquanto para 1,4% deles o trabalho de plataforma representava mais do que 50% de sua renda (idem, p.17). Considerando que a população total daqueles 16 países soma 424.101.094 pessoas, estima-se que cerca de 67 milhões de pessoas tenham nas plataformas sua principal fonte de renda.

Mais próximos à nossa realidade, a plataforma Rappi informa possuir 200.000 entregadores cadastrados na América Latina (Sudré, 2020SUDRÉ, L. O dia a dia dos entregadores de apps: 12h de trabalho, sem apoio e sem direitos. Diário do Centro do Mundo, 30 jun. 2020.). Abílio (2021, p.119)ABÍLIO, L. C. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021., por sua vez, refere-se a uma estimativa de que existam mais de 900.000 motoboys no Brasil, sendo cerca de 200.000 deles concentrados na cidade de São Paulo. Ainda segundo Abílio (2020)ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avancados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, abr. 2020., dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019 contabilizavam cerca de 3,8 milhões de brasileiros engajados em trabalho por aplicativo como sua fonte principal de renda, enquanto pesquisa do Instituto Locomotiva revelava que aproximadamente 17 milhões de pessoas obtinham regularmente algum rendimento por meio do trabalho por aplicativo no Brasil. Uma parcela cada vez maior da classe trabalhadora ganha sua vida através da ocupação parcial ou integral nesse tipo de atividade. A sua importância, tanto em termos quantitativos quanto em termos das mudanças que representam nas relações de trabalho, tem atraído a atenção de inúmeros pesquisadores.

A literatura sobre o assunto já é tão extensa quanto o fenômeno sob investigação. A variedade de termos que brotaram com ela, tais como “capitalismo de supervisão”2 2 Zuboff (2015) apud Amorim e Moda (2020, p. 114). , “capitalismo de exposição”3 3 Cederström e Fleming (2012) apud Woodcock (2021, p. 41). , “capitalismo comunicativo”4 4 Brophy (2010) apud Woodcock (2021, p. 27). , “capitalismo de plataforma”5 5 Srnïcek (2016) apud Abilio (2020, p. 29). , revelam o seu caráter predominantemente descritivo. Como se verá na revisão da literatura que se segue a esta introdução, é comum, entre os marxistas, a identificação do pagamento do frete como forma do salário por peça, assim como a interpretação de que a administração por algoritmos representa uma nova etapa na história da subsunção do trabalho ao capital. Uma visão geral das interpretações não marxistas pode ser suprida pela leitura de Joyce (2020)JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020..

O presente artigo apresenta uma interpretação marxista alternativa do trabalho de delivery e, por esse motivo, o foco principal da revisão da literatura são os trabalhos de inspiração marxista. Estes últimos podem ser classificados de acordo com o recorte conceitual utilizado: nexo monetário (cash-nexus) e teoria da subsunção do trabalho, teoria do processo de trabalho e subsunção financeira do trabalho ao capital são alguns dos ramos interpretativos surgidos a partir da teoria de Marx.

Pela sua importância em termos de emprego e pelo fato de apresentar uma fisiologia que não se harmoniza com a opinião dominante de que os trabalhos de plataforma constituem formas de trabalho assalariado, este artigo optou por concentrar a análise sobre a natureza do capital e do trabalho aos aplicativos de entrega de comida e de compras de supermercado. Argumentamos que as plataformas, ou também chamadas de capitais-aplicativos, que mobilizam o trabalho de delivery configuram o que denominamos Capital de Comércio de Vendas (CCV), ou seja, capitais cuja atividade é realizar as fases operacionais envolvidas na própria compra e venda de mercadorias. Do recebimento de um pedido à mobilização do produtor (restaurante) ou do jobber que reúne a lista de compras no supermercado, passando pela notificação do entregador até a realização do crédito aos entregadores, esses capitais realizam as etapas envolvidas no processo de compra e venda, algo parecido ao que faz o capital de comércio de dinheiro ao executar as operações técnicas relativas à circulação do dinheiro no ciclo do capital industrial ou comercial, tal como descrito no capítulo 19 do livro terceiro d’O Capital sobre “O Capital de Comércio de Dinheiro” (Marx 2019, p.361MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.).

Este artigo se divide em oito seções incluindo esta introdução e as conclusões. A seção 1 apresenta uma revisão crítica das principais interpretações marxistas sobre o trabalho de plataforma. A seção 2 trata do tema da subsunção formal e real do trabalho ao capital. A seção 3 contrasta a circulação do capital com a circulação da renda como elementos teóricos básicos para a compreensão da fisiologia do capital de comércio de vendas. A seção 4 examina a origem do lucro do capital e da renda do entregador e apresenta o capital-aplicativo de delivery como uma forma de capital comercial. A seção 5 examina a relação entre valor do frete e escala de operações e de lucro do capital-aplicativo. A seção 6 se debruça sobre os mecanismos de controle sobre o trabalho postos em operação pela plataforma e mostra que toda a fenomenologia que se deriva das teorias alternativas resulta diretamente da tendência dos capitais-aplicativos de expandir o tamanho do mercado, assim como suas respectivas parcelas de mercado no interior da luta competitiva. Finalmente, as principais conclusões do trabalho.

1 Uma revisão crítica das interpretações marxistas

Para Joyce (2020)JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020., a quantidade de estudos empíricos sobre o trabalho de plataforma contrasta com a quase completa ausência de teoria. Para superar essa lacuna ele propõe conceber as relações sociais do trabalho de plataforma em termos da relação capital-trabalho ao invés do costumeiro esquema triangular cliente-plataforma-trabalhador. Segundo o autor, a relação capital-trabalho se manifesta de duas formas: o nexo monetário, que nada mais é do que a relação salarial, e a subsunção do processo de trabalho ao capital. Desse modo, Joyce toma como ponto de partida de sua análise aquilo que ele deveria demonstrar: que o nexo monetário constitui uma relação de assalariamento e que o processo de trabalho se encontra formalmente subsumido ao capital. Como a subsunção formal é definida como subordinação do processo de trabalho ao controle do capital, estaríamos presenciando, com o crescimento do trabalho de plataforma, um ressurgimento em grande escala da subsunção do trabalho. A existência de um nexo monetário entre plataforma e trabalhador e a consequente subsunção do processo de trabalho ao capital, tornam inteligíveis, para o autor, a emergência de movimentos organizativos como reação às condições de trabalho e de remuneração existentes. Uma vez interpretado o nexo monetário como salário por peça (Joyce, 2020, p. 547JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020.) e a sua utilização em benefício das plataformas como causa da penúria dos trabalhadores, os movimentos organizativos e reivindicatórios se tornam compreensíveis enquanto reação à exploração capitalista. No entanto, a relação capital-trabalho não é condição para a emergência de movimentos reivindicatórios. Estes podem resultar do fato de que são as plataformas que determinam o preço pelo serviço de delivery. O comando da plataforma sobre a definição do valor dos fretes de acordo com seus cálculos entre disponibilidade de entregadores e número de pedidos não é suficiente para fundamentar a existência de uma relação capital-trabalho. Como o capital na forma de um aplicativo aumenta exponencialmente o número de trabalhadores disponíveis, o valor dos fretes referentes à venda da mercadoria transporte são reduzidos da mesma forma que a superprodução de qualquer mercadoria reduz seu preço, fenômeno que ocorreria sem plataforma alguma, caso o número de entregadores competindo entre si aumentassem autonomamente. Ora, a diminuição dos fretes beneficia as plataformas, pois permite um aumento da escala de operações com o mesmo capital inicial adiantado e, assim, um aumento da lucratividade. Como são as plataformas que realizam todas as operações de comunicação, determinação do frete e pagamentos às partes envolvidas na relação de compra e venda, não é de estranhar que o protesto dos trabalhadores se dirija contra elas.

A interpretação baseada no nexo monetário, ou relação salarial, não é convincente porque ela toma a origem técnica do pagamento dos trabalhadores pela sua origem econômica: ainda que seja a plataforma que credita o valor do frete ao trabalhador é o cliente quem paga. Isso muda totalmente a compreensão do que seja o capital-aplicativo de delivery. A organização dos trabalhadores em defesa das suas condições de trabalho e remuneração, que Joyce deriva da suposta relação capital-trabalho representada pelo nexo monetário do salário por peça, pode emergir de quaisquer condições extremas de trabalho, mesmo quando eles são concebidos como trabalhadores autônomos.

Joyce não considera a possibilidade de que os entregadores possam ser vendedores de uma mercadoria que não seja a força de trabalho. No entanto, ele considera a perda de independência das atividades antes exercidas autonomamente tão logo a plataforma passa a mediar o trabalho. Essa independência prévia abre a possibilidade de concebermos o trabalho mobilizado pela plataforma como parte da circulação simples de mercadorias, ou seja, venda para comprar, cuja primeira metamorfose, a venda M – D (M, mercadoria, que se transforma em D, dinheiro), seria inteiramente subordinada ao ciclo do capital. A noção, apresentada pelo próprio autor, de que trabalhadores anteriormente independentes trabalham cada vez mais sob o domínio do capital (Joyce, 2020, p. 548JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020.) abre a possibilidade de conceber o trabalho de plataforma como a junção do ciclo do capital com o ciclo da circulação simples de mercadorias dos trabalhadores autônomos. Se por um lado Joyce põe o capital no centro da análise, por outro ele falha em não fazer o mesmo com o crescimento das formas da circulação simples que acompanham a expansão da superpopulação relativa e que são atraídas pelo ímã do capital-aplicativo. O conceito de subsunção é usado para colocar o capital no centro da análise, mas ao fazê-lo Joyce deriva o lucro da plataforma diretamente do trabalho não pago, isto é, da exploração da força de trabalho, interpretação que, como veremos a seguir, não se sustenta nos casos de delivery aqui analisados.

Gandini (2019)GANDINI, A. Labour process theory and the gig economy. Human Relations, v. 72, n. 6, p. 1039-1056, 2019. é um representante da corrente que tem na Teoria do Processo de Trabalho6 6 A TPT é um campo de pesquisa que se desenvolveu a partir da publicação do livro de Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital. Inicialmente de cunho marxista, as fronteiras desse campo de pesquisa se alargaram para abarcar autores não marxistas de diversos matizes. Smith (2015) faz uma revisão histórica dos trabalhos realizados no âmbito da Teoria do Processo de Trabalho desde o livro de Braverman até os dias de hoje. o instrumento para o estudo do trabalho sob plataforma. Gandini concentra sua análise em três pontos: 1. O ponto de produção; 2. O trabalho emocional e 3. O controle gerencial. Tal como Joyce (2020)JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020., Gandini assume que a força de trabalho, doravante FT, se transforma numa mercadoria assim que é mobilizada pela plataforma. Tendo sido adquirida pelo capital, o seu uso constitui o processo de trabalho, restando, então, detectar como se revelam os elementos básicos do processo de trabalho de acordo com as características de cada forma de trabalho. Esse procedimento o leva a definir a plataforma como o ponto de produção, pois é através dela que a FT se transforma numa mercadoria. Desse modo, as plataformas se constituem no veículo através do qual a relação capital-trabalho se estabelece e através do qual o trabalho é organizado e controlado, sendo isso válido para todas as formas de trabalho mobilizado por plataforma. Como locus da produção, a plataforma libera o trabalho de um local específico para abranger a totalidade dos espaços capazes de aderir à comunicação em rede. A concepção de que as relações de produção somente se estabelecem na plataforma e que, portanto, a plataforma é o locus onde se realiza o processo de trabalho é de difícil aplicação para o caso do trabalho de delivery no qual o ponto de produção é o restaurante ou a rua. Não obstante isso, Gandini engloba tanto o trabalho em rede quanto o trabalho in loco como manifestações de processos de trabalho no interior das plataformas. O controle das plataformas sobre o trabalho se baseia no sistema de “feedback, ranking and rating” (Gandini, 2019, p. 1039GANDINI, A. Labour process theory and the gig economy. Human Relations, v. 72, n. 6, p. 1039-1056, 2019.). No caso da AMT (Amazon Mechanical Turk) a plataforma oferece as tarefas, os trabalhadores escolhem as que desejam, a plataforma avalia o trabalho realizado e, uma vez aprovado, paga os trabalhadores retendo para si uma porcentagem do valor da tarefa. Todas essas etapas são realizadas no interior da plataforma e a avaliação do trabalhador, com base no número de tarefas completadas e a taxa de aprovação das tarefas, serve como parâmetro para as escolhas dos clientes (Gandini, 2019, p.1048GANDINI, A. Labour process theory and the gig economy. Human Relations, v. 72, n. 6, p. 1039-1056, 2019.).

No caso das plataformas de taxi e de trabalho freelancer como a Upwork, o sistema de avaliação obriga os trabalhadores a desdobrar-se num duplicato de trabalho, o trabalho emocional, através do qual procuram garantir avaliações positivas por parte dos clientes. Nesses casos, a existência de um sistema de avaliação que capta habilidades sociais aumenta a intensidade do trabalho uma vez que o trabalhador é obrigado a mobilizar sua emoção para garantir avaliações positivas.

No entanto, se as plataformas de delivery forem concebidas como uma forma de capital comercial a noção de ponto de produção perde o sentido, pois o objeto da plataforma passa a ser a realização das etapas operacionais da própria compra e venda. Ademais, se o custo do transporte é pago pelo cliente que faz o pedido, a relação salarial desaparece e com ela qualquer possibilidade de conceber o ganho dos entregadores como forma do salário por peça. Se o ganho dos entregadores se origina do gasto de renda dos clientes e não do adiantamento de capital variável, então o lucro da plataforma não pode originar-se do trabalho. Argumentaremos, a seguir, que o lucro das plataformas de delivery se origina de uma fração do lucro dos restaurantes, no caso da entrega de refeições, ou de uma fração do lucro dos supermercados, no caso das entregas de compras.

No Brasil, apesar de ter-se escrito muito sobre o tema, poucos são os artigos que desenvolvem uma análise a partir do arcabouço conceitual deixado n’O Capital. Aqui e ali depara-se com a utilização de um ou outro conceito emprestado de Marx, porém, mais como um recurso acadêmico descritivo do que como parte de um aprofundamento teórico. Conceitos como subsunção formal ou real do trabalho ao capital são utilizados mais como substantivos do que como conceitos. Assim, pode-se dizer que a literatura sobre trabalho de plataforma no Brasil permanece em grande parte a um nível descritivo. No que segue, procuramos revisar os trabalhos que mais substantivamente utilizam o arcabouço teórico de Marx.

Prado (2018)PRADO, E. Subsunção financeira do trabalho ao capital. Revista Princípios, n. 154, maio/jun. 2018., por exemplo, interpreta as plataformas de entrega de produtos e transporte de passageiros como uma forma de capital a juros, enquanto a maioria tende a seguir a intuição mais imediata de que se trata de trabalho assalariado, especificamente na forma de salário por peça, ou por tarefa. Pires e Pinto (2020)PIRES, G. N.; PINTO, J. P. G. Gig economy, austerity and “uberization” of labor in Brazil (2014-2019). Argumentum, v. 12, n. 3, p. 237-255, 2020. amalgamam capital portador de juros e sistema de pagamento salarial por peça como a forma de exploração estabelecida pelas plataformas. Como Pires e Pinto baseiam parte de sua argumentação em Prado, apresentaremos primeiramente as proposições de Prado (2018)PRADO, E. Subsunção financeira do trabalho ao capital. Revista Princípios, n. 154, maio/jun. 2018..

Prado (2018)PRADO, E. Subsunção financeira do trabalho ao capital. Revista Princípios, n. 154, maio/jun. 2018. apresenta uma interpretação bastante inusitada segundo a qual as plataformas funcionariam vis-à-vis o trabalho dos transportadores como capitais portadores de juros. Um taxista autônomo gera valor de uso e valor, mas não mais-valor e, portanto, não é produtivo de capital. Quando trabalha para o capital, produz valor a mais para o capital e, portanto, se transforma em trabalhador produtivo, seguindo a definição do próprio Marx de que trabalho produtivo, no capitalismo, é o trabalho que produz mais-valia para o capital (Marx, 1969, p. 152MARX, K. Theories of surplus value: Part I. Moscou: Progress Publishers, 1969.). Entretanto, no caso dos motoristas que trabalham para o Uber, que não são assalariados, Prado se pergunta a que forma de subsunção do trabalho ao capital eles estão submetidos. Como enfrentar o desafio dessa nova forma de capital que não se adapta às figuras do capital comercial e tampouco do capital industrial? Para resolver esse dilema, Prado apresenta a teoria de Marx acerca do capital portador de juros como transformação do próprio capital em mercadoria, cujo valor de uso de produzir o lucro médio é alienado temporariamente em troca do recebimento de uma fração daquele lucro médio, fração essa que constitui o juro (Marx, 2019, p. 398MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.). É preciso analisar, portanto, como se dá esse pagamento de juro e verificar se o pagamento de uma tarifa configura juro sobre o uso da plataforma enquanto capital tomado de empréstimo.

Quando se obtém dinheiro emprestado, ou uma máquina, ou um terreno, sabe-se perfeitamente o valor que se está tomando emprestado e é esse valor que dá lugar ao juro de acordo com a taxa de juros vigente. Os entregadores não usam o capital da plataforma enquanto massa de valor, mesmo porque não saberiam a qual montante de valor estão tendo acesso. Como capital portador de juros, as plataformas se configurariam numa espécie de capital portador de juros despótico no qual o juro seria fruto de uma relação arbitrária na qual os prestatários não teriam acesso ao valor do empréstimo.

No caso do capital portador de juros, o proprietário do capital aliena o valor de uso da capacidade daquele capital produzir uma taxa média de lucro. O prestatário toma o empréstimo de dinheiro na qualidade de produtor do lucro médio a ser repartido com o prestamista. Somente mediante o seu refluxo, depois do retorno da quantia emprestada, pode aquele capital funcionar novamente como capital portador de juros através de uma nova cessão do seu valor de uso. Assim, o empréstimo não pode ser simultâneo como teríamos que admitir caso a plataforma se configurasse como um capital de empréstimo aos cadastrados nos seus aplicativos. O pagamento de uma taxa para cadastrar-se na plataforma também não significa que os entregadores tomem o capital da plataforma em empréstimo e, muito menos, na perspectiva de obtenção de uma taxa média de lucro. Porém, o problema se agrava se considerarmos que o cadastramento de entregadores nas plataformas pode ser feito sem a cobrança de nenhuma taxa.

Segundo Prado, as empresas-aplicativo seriam uma forma de capital portador de juros uma vez que alugariam a plataforma para os entregadores em troca do recebimento de um pagamento pelo uso daquele capital. Dessa maneira, teríamos agora uma nova forma de subsunção do trabalho ao capital: a subsunção financeira. As plataformas permitem que os entregadores desfrutem o valor de uso da plataforma o que implica que o montante do empréstimo tem que ser devolvido com juros. Mas quanto cada entregador toma emprestado? Como o valor de uso da plataforma é sua totalidade, em princípio o montante do empréstimo corresponderia ao capital da plataforma. Ou será que o valor do empréstimo é o valor da plataforma dividido pelo número de utilizadores? Isso implicaria a existência de um cálculo contínuo do principal e do juro a ser pago, de acordo com a variação do número de trabalhadores efetivamente engajados em entregas. E se esse algoritmo estiver em prática, qual a relação do seu cálculo com a taxa de juros corrente na economia? Ou seria essa uma taxa de juros especial, sem relação com a taxa de juros determinada no mercado de dinheiro? A interpretação do capital-aplicativo como capital portador de juros encontra obstáculos variados e de difícil superação.

Pires e Pinto (2020)PIRES, G. N.; PINTO, J. P. G. Gig economy, austerity and “uberization” of labor in Brazil (2014-2019). Argumentum, v. 12, n. 3, p. 237-255, 2020. também baseiam sua análise em Marx, mas parecem tomar as aparências pela essência: dado que os trabalhadores de plataforma são remunerados por tarefa, os autores tomam essa forma de ganho como evidência do estabelecimento de uma relação capital-trabalho. Eles não consideram a possibilidade de que, sendo pagos pelos clientes finais, sua forma de remuneração não poderia ser outra senão por tarefa. A semelhança do pagamento por tarefa com a análise empreendida por Marx na Seção VI sobre o Salário do primeiro livro d’O Capital os leva a caracterizar a forma de pagamento das plataformas como um sistema de salário por peça. Isso os conduz a uma licença poética ao comparar as figuras dos subcontratantes que se interpunham e exploravam o trabalhador direto no sistema de trabalho por peça do século XIX, às figuras que hoje em dia se acoplam ao trabalho dos entregadores e motoristas, como por exemplo, as empresas de aluguel de veículos. Repetem a máxima de Marx de que o salário por peça é a forma mais adequada de pagamento no sistema capitalista, o que é verdade, mas sob condições que a relativizam sobremaneira. Primeiro porque o salário por peça depende de que o produto assuma a forma de um produto do trabalho individual, algo que não se verifica, sempre que os trabalhadores efetuem, simultaneamente ou sequencialmente, diversas tarefas sobre o mesmo objeto de trabalho. Nesses casos, o pagamento de prêmios condicionados à obtenção de certas metas regidas por parâmetros de absenteísmo, retrabalho, desperdício, produtividade, pontualidade, passa a ser o sistema de exploração mais adequado. Mesmo quando o sistema de pagamento por peça é possível, sua permanência depende da estabilidade da produtividade. Sempre que novos instrumentos de trabalho mais produtivos aumentam o número de peças produzidas na jornada, a remuneração por peça tem que ser reduzida para adequá-la ao valor da força de trabalho. Desse modo, aumentos de produtividade regulares levariam a conflitos igualmente regulares em torno do “preço” da peça, o que tornaria a transformação do salário por peça em salário por tempo uma forma de contornar a reiteração de dissídios.

Pires e Pinto seguem a pista lançada por Prado de que as plataformas funcionam como capital portador de juros ao permitir que os cadastrados as usem em troca do pagamento de uma taxa. Segundo Pires e Pinto, as plataformas extraem valor dos trabalhadores na forma de juro uma vez que recebem, pela cessão do direito de uso do seu capital, uma taxa entre 20 e 25 % dos ganhos dos trabalhadores no que parece ser uma referência ao caso Uber (Pires e Pinto 2020, p.244PIRES, G. N.; PINTO, J. P. G. Gig economy, austerity and “uberization” of labor in Brazil (2014-2019). Argumentum, v. 12, n. 3, p. 237-255, 2020.). No entanto, a mera definição das plataformas enquanto formas do capital portador de juros não é suficiente para resolver o problema da natureza desse capital. Seria preciso descrever a lógica subjacente à extração desses valores: acima de tudo, mostrar que a taxa de 25% se coaduna com o valor do empréstimo da plataforma. A complementação do argumento demonstraria logo que seria preciso o desenvolvimento de novos conceitos e relações para que se explicasse o ganho das plataformas como sendo oriundo do empréstimo do seu capital. Como poderiam os 25% de uma corrida de Uber corrresponder à taxa de juros sobre o valor do capital da plataforma? E como explicar que o mesmo tempo de uso gere taxas diferentes de acordo com os diferentes períodos do dia? E como explicar que diferentes distâncias percorridas, que usam a plataforma exatamente do mesmo modo, gerem ganhos diferentes para a plataforma? Essa diferença se deveria à diferença de tempo de uso da plataforma? E o que dizer quando o custo do transporte é pago pelos clientes, como tudo indica ser o caso dos trabalhos de delivery de refeições e compras de supermercado? Nesse caso não se configuraria uma dedução a partir do trabalho, sendo necessário divisar a origem do lucro da plataforma numa fonte alternativa. Mas uma dificuldade ainda maior se apresenta: uma vez que o salário por peça revela a platafoma como momento da relação capital-trabalho, seria preciso coadunar essa relação capital-trabalho com a relação prestatário-prestamista implícita na definição da plataforma enquanto capital portador de juros. Estaríamos diante de uma forma de capital portador de juros que paga salários aos tomadores de empréstimo!

Os autores complementam sua análise utilizando-se das contribuições de Saad-Filho (2015)SAAD-FILHO, A. Neoliberalismo: uma análise marxista. Marx e o Marxismo, v. 3, n. 4, jan./jun. 2015. e Lapavitsas (2013)LAPAVITSAS, C. Profiting without producing: how finance exploit us all. London: Verso, 2013., de que o neoliberalismo se baseia na hegemonia financeira e que as plataformas, enquanto formas do capital portador de juro, seriam uma manifestação do domínio das finanças sobre a produção. Por domínio das finanças na alocação de recursos entende-se o viés que a superioridade dos rendimentos financeiros vis-à-vis os rendimentos produtivos ocasiona em favor das diversas formas de capital fictício existentes. No entanto, isso é uma impossibilidade teórica no contexto da teoria de Marx uma vez que o juro é uma fração do lucro e a taxa de juro é sistematicamente inferior à taxa de lucro. Os momentos nos quais a taxa de juro supera a taxa de lucro são momentos de crise que freiam os investimentos e voltam a criar uma acumulação de capital monetário que reconduz a taxa de juros a níveis inferiores à taxa de lucro. Por fim, é preciso salientar que, como a maioria dos autores marxistas que se debruçaram sobre o tema, também eles concebem o emprego de algoritmos pelas plataformas como uma nova forma de subsunção real do trabalho ao capital (Pires; Pinto, 2020, p. 243PIRES, G. N.; PINTO, J. P. G. Gig economy, austerity and “uberization” of labor in Brazil (2014-2019). Argumentum, v. 12, n. 3, p. 237-255, 2020.).

Amorim e Moda (2020, p. 106)AMORIM, H.; MODA, F. Work by app: algorithmic management and working conditions of Uber drivers in Brazil. Work Organisation, Labour & Globalisation, v. 14, n. 1, p. 101-118, 2020. vêm uma continuidade entre as fases do taylorismo-fordismo, do toyotismo e a fase atual na qual o uso de algorítimos como forma de controle do processo de trabalho representa um ulterior aprofundamento da subsunção real do trabalho ao capital. Esse aprofundamento da subsunção do trabalho tem quatro dimensões: a intensidade e duração da jornada de trabalho; o controle ideológico; a administração por algoritmo; e o controle de qualidade. Se o número de viagens realizadas por um motorista Uber durante uma jornada normal é insuficiente para cobrir os custos de reprodução de sua capacidade de trabalho, que nesse caso inclui também a manutenção do veículo, então o número de viagens deve ser aumentado, o que nada mais é do que o modo padrão de funcionamento do salário por peça. No entanto, os autores não fazem uma distinção clara entre duração e intensidade da jornada de trabalho, superpondo os dois conceitos ao fazerem referência ao aumento da jornada como aumento da intensidade. A distinção entre intensidade e duração da jornada se mostra necessária quando se compara o trabalho de delivery com o trabalho de táxi por plataforma. No caso do trabalho de delivery, os baixos valores dos fretes podem ser compensados por um aumento no número de entregas dentro de uma mesma jornada através do aumento da velocidade de entrega, o que configura um aumento da intensidade do trabalho. No caso do motorista Uber, a velocidade é um fator de risco para o cliente, monitorada pela plataforma e avaliada pelo cliente. A compensação da tarifa baixa pelo número de viagens não pode se dar dentro de uma jornada de duração normal, mas somente através do aumento do número de horas à disposição da plataforma, o que resulta num aumento da jornada de trabalho.

A administração por algoritmos, através dos quais as tarefas são distribuidas, os preços são fixados e o trabalho é continuamente medido e avaliado, tem ocasionado um aprofundamento da subsunção do trabalho ao capital, segundo os autores. Acrescentam que essas novas formas de exploração do trabalho serviram para mitigar o decréscimo da taxa de lucro causado pela crise de 2007-2008. No entanto, se estivermos diante de uma forma de capital comercial, como parece ser o caso dos aplicativos de delivery, teríamos apenas uma ulterior repartição da mesma massa de maisvalia produzida e, portanto, nenhum efeito sobre a taxa média de lucro da economia. Se o trabalho de delivery fosse produtivo de mais-valia ele funcionaria, nos dias de hoje, como uma das contratendências discutidas por Marx no item sobre “A Superpolução Relativa” no qual ele se refere à abertura de ramos nos quais “o capital variável constitui uma proporção significativa do capital total” (Marx, 2019, p. 276MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.).

Antunes (2021, p. 21-22)ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021. apresenta a hipótese de que com o uso de recursos digitais o capital estaria ingressando numa etapa de intensificação da subsunção real do trabalho não apenas no domínio da indústria 4.0, mas também nos ramos de atividade governados pelas plataformas digitais, como as apresentadas na tipologia acima. Abílio (2017)ABÍLIO, L. C. Uberizaçao do trabalho: subsunçao real da viração. Passa Palavra, São Paulo, 19 fev. 2017. Disponível em: http://passapalavra.info/2017/02/110685. Acesso em: 28 out. 2021.
http://passapalavra.info/2017/02/110685...
também argumenta que o trabalho de plataforma deu vida a uma nova forma de subsunção real do trabalho ao capital. A autora afirma que a Uber estabeleceu um novo patamar na subsunção real do trabalho ao capital e em artigo mais recente refere-se ao “novo passo na subsunção do trabalho” definido, agora, como a redução do assalariado a um trabalhador just-in-time (Abílio, 2021, p. 112ABÍLIO, L. C. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021.), termo cunhado no Brasil por Oliveira (2000, p.16)OLIVEIRA, F. Passagem na neblina. In: OLIVEIRA, F.; STEDILE, P.; GENOINO, J. Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo. São Paulo: Fundaçao Perseu Abramo, 2000., mas também empregado por De Stefano (2016)DE STEFANO, V. The rise of the “just-in-time workforce”: on-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy”. International Labour Organization, 2016. (ILO Working Papers, 994899823402676).. No entanto, a subsunção real assume que haja pelo menos uma subsunção formal, ou seja, que se esteja em face de uma relação assalariada, cuja confirmação requer a análise detalhada das várias formas de remuneração existentes nos trabalhos de plataforma. Abílio (2021, p. 120)ABÍLIO, L. C. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021. aponta agudamente para fenômenos de consequências abrangentes para a relação entre entregadores e plataformas, mas que não encontram a devida ressonância no seu arcabouço teórico: o efeito negativo da concorrência entre aplicativos de entrega sobre o valor dos fretes e a relação entre o rebaixamento desses valores e o tamanho de mercado. Como será explicado em maiores detalhes a seguir, a exploração que a plataforma exerce sobre o entregador é permitir que o consumidor o explore, ou seja, que a parte excedente de sua jornada seja apropriada gratuitamente pelo consumidor. O caráter pérfido dessa relação está no fato de que sendo o lucro das plataformas originário de uma parcela do lucro industrial ou comercial de restaurantes e supermercados, respectivamente, o valor do frete é sacrificado não para a apropriação direta de mais-valia, mas em favor de uma maior escala de operações que o menor frete possibilita. Isso aparece como uma exploração direta da plataforma e, portanto, a iniciativa de organização dos entregadores por maiores valores de remuneração, como na greve conhecida como o Breque dos Apps de 2020, é tomada como evidência ulterior de que se trata de uma relação capital-trabalho.

A referência reiterada da literatura ao assim chamado novo patamar da subsunção do trabalho ao capital realizado pelas formas de controle numérico do trabalho, sem a apresentação de qualquer aprofundamento do tema, requer que se preencha essa lacuna.

2 Sobre a subsunção do trabalho ao capital

A opinião unânime entre marxistas de que a administração via plataformas de trabalho representa um novo e mais profundo estágio na história da subsunção real do trabalho ao capital se soma a um outro fetiche que associa a subsunção real do trabalho ao capital apenas à fase da indústria à base de máquinas. Ambas não levam em consideração que por subsunção real Marx designa a sujeição do processo de trabalho a modificações técnicas que aumentam a exploração de mais-valia relativa. Joyce (2020, p. 545)JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020., Paulani (2001, p. 699)PAULANI, L. M. O papel da força viva de trabalho no processo capitalista de produção – Uma análise dos dilemas contemporâneos. Estudos Econômicos, v. 31, n. 4, p. 695-721, 2001. e Prado (2002, p. 75)PRADO, E. Geração, adoção e difusão de técnicas de produção – um modelo baseado em Marx. Revista Análise Econômica, ano 19, n. 36, p. 67-80, 2002., são uma amostra respeitável da visão comum entre marxistas de que a subsunção real do trabalho ao capital se dá somente na maquinofatura.

Marx se referiu explicitamente à subsunção real do trabalho a todos os processos que produzem mais-valia relativa. Subsunção real inclui, portanto, todas as formas de produção capitalista apresentadas na seção IV do primeiro livro d’O Capital onde Marx analisa A Produção do Mais-Valor Relativo, quais sejam a Cooperação, a Manufatura e a Maquinofatura. Em todas essas formas operam mecanismos que reduzem o valor das mercadorias e, portanto, aumentam a mais-valia pela via relativa: na Cooperação capitalista originária, porque a mera reunião de artesãos de mesmo ofício ou de ofícios combinados produz emulação positiva, o uso comum dos equipamentos e estruturas, trabalho simultâneo sobre o objeto de trabalho, etc.; na Manufatura, porque o processo de trabalho é separado em suas partes constitutivas transformando o trabalhador num elo de uma sequência de trabalhos parciais; na Maquinofatura, ou indústria à base de máquinas, porque uma quantidade muito menor de trabalho é necessária para produzir a mesma quantidade de produto. Todas essas modificações no processo de trabalho resultam na diminuição do valor das mercadorias, terminam por afetar o valor da força de trabalho e, portanto, concorrem para a produção de mais-valia relativa, com o que se apresentam como formas da subsunção real do trabalho ao capital. É necessário ressaltar que a mera subsunção formal, como no caso da cooperação, produz subsunção real, modificações que, embora não sejam técnicas, incidem sobre a produtividade do trabalho.

Para Marx, a produção de mais-valia é o objetivo do capital; o processo de trabalho é o meio. A subsunção do processo de trabalho ao capital significa que os elementos desse processo são comprados pelo capitalista e lhe pertencem. É isso que permite com que, uma vez subsumido o processo de trabalho sob a direção direta do capital, este possa continuamente modificá-lo para acelerar a sua valorização. Segue que a subsunção formal, que é o ponto de partida da subsunção real, requer a compra de FT. Assumir, como o faz Joyce, que há compra de FT porque a FT tem um rendimento, é acelerar demais a análise. Seria preciso mostrar que a FT é paga com capital variável e posteriormente mostar por que o CCV teria tido interesse em adquirir a FT se ele não pode modificar o processo de trabalho em benefício de sua valorização.

A subsunção formal do trabalho ao capital consiste na transformação do camponês independente em assalariado agrícola; na transformação do artesão das corporações de ofício em empregado da manufatura; na transfomação do escravo em trabalhador assalariado. O mesmo trabalho realizado anteriormente agora se dá sob a forma de trabalho assalariado e sob o comando do capitalista. O efeito imediato dessa sujeição é a pressão para que o trabalho se exerça de forma ininterrupta e que a jornada seja ampliada até o limite do possível, pois, o processo de trabalho, tal como herdado de modos de produção anteriores, só pode fornecer mais trabalho, principalmente, através da intensificação ou aumento da jornada de trabalho, ou seja, principalmente através de métodos de extração de mais-valia absoluta.

Ora, no trabalho de delivery, o interesse do capital na continuidade do trabalho não se estabelece em relação ao trabalho individualmente considerado, mas somente em relação à massa total de entregadores posta em prontidão para o uso pelo capital. De fato, quanto mais a massa como um todo aparece mobilizada para o trabalho, mais a jornada do entregador pode estar sujeita a lapsos de emprego, porosidades mais ou menos longas. Isso indica que não é o processo de trabalho que é subsumido ao capital, mas a disponibilidade do trabalho. A plataforma precisa assegurar-se de uma oferta continuamente disponível de entregadores. Para isso, ela usa diversos mecanismos, todos geridos por algoritmos, de modo que a produzir essa constante disponibilidade de trabalho: primeiro, como alternativa de emprego àqueles que estão desempregados e, segundo, através da pressão para que os cadastrados nas plataformas permaneçam continuamente conectados. Esse fato parece evidenciar que o processo de trabalho não é parte do processo do próprio capital, ou seja, que ele não é o meio de sua valorização, mas apenas uma etapa situada fora dele, que deve ser executada pela ocupação de uma massa de trabalho posta em disponibilidade, independentemente da desocupação de seus elementos constitutivos, os entregadores individualmente considerados.

Argumentamos que, contrariamente ao senso comum, no caso do trabalho de delivery, não há nem mesmo subsunção formal. A subsunção formal se refere à absorção pelo capital de processos de trabalho pré-capitalistas, cuja base técnica é herdada pelo capital. Essa forma de subsunção é chamada de formal porque somente a relação social sob a qual o trabalho se exerce muda, mas não sua base técnica. A subsunção formal é base para o advento da subsunção real que é o contínuo processo de simplificação do trabalho. Desse modo, assim que é submetido ao controle imediato do capital, o processo de trabalho começa a sofrer modificações cujo resultado é o barateamento do valor da força de trabalho e o aumento do trabalho não-pago. É por esse motivo que Marx associa a subsunção real ao processo de produção de mais-valia relativa. Como descrito na seção IV d’O Capital, sobre A Produção do Mais-Valor Relativo, o desenvolvimento da mais-valia relativa é o processo de separação do trabalho intelectual do trabalho manual e a redução, em última instância, da ocupação do assalariado ao trabalho de vigilância do funcionamento da máquina. O aumento do controle do capital sobre o processo de trabalho se dá, pois, pela contínua redução do trabalho a operações para as quais os trabalhadores se apresentam como peças intercambiáveis. Esse processo se inicia assim que a reunião de artesãos sob o domínio do capital começa a dar lugar a uma divisão manufatureira do trabalho, continua com a transposição da ferramenta da mão do trabalhador para o “braço” da máquina-ferramenta e se consolida com a operação realizada por meio de maquinário com força motriz mecânica, em relação à qual o trabalho interfere de forma apenas subsidiária enquanto monitor da máquina. No seu famoso Capítulo VI Inédito, não incluído n’O Capital, Marx é explícito ao dizer que “assim como a produção de mais-valia absoluta pode ser vista como a expressão material da subsunção formal, a produção de mais-valia relativa pode ser vista como a expressão material da subsunção real do trabalho ao capital” (Marx, 1978, p. 56MARX, K. O Capital, Livro I, Capítulo VI Inédito. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda, 1978.). Exceção feita da intensidade do trabalho, já que esta é controlada pelo sistema de pagamento por tarefa, o processo de trabalho de delivery não pode ser modificado pelas plataformas porque a base material para a subsunção real, que é a subsunçao formal, simplesmente não existe.

O algoritmo, de que tanto se tem falado, é a forma de gestão da empresa-aplicativo justamente porque o processo de trabalho não se encontra subsumido ao capital. Isso significa que ao invés de representar uma evolução no processo de subsunção do trabalho ao capital, o controle gerencial mecanizado pelo algoritmo resulta exatamente da ausência da subsunção formal, o prerrequisito da subsunção real.

A subsunção formal se desenvolveu no bojo de um processo de destruição de relações pré-capitalistas e, portanto, se deu em conexão com o desenvolvimento do capitalismo. Constituiu a base da subsunção real entendida como transformação do processo de trabalho como instrumento de aumento da mais-valia. Ora, se a mais-valia não advém do trabalho, mas da repartição do lucro industrial ou comercial, então, a subsunção formal não se aplica. Segue que as empresas-aplicativo de delivery não podem modificar o processo de trabalho e, portanto, tampouco pode haver subsunção real. Por outro lado, o aumento da intensidade do trabalho que resulta do baixo valor dos fretes não se apresenta como forma da mais-valia absoluta mas, como se verá a seguir, como forma de aumento do mercado e acicate da qualidade do serviço prestado pelo aplicativo. O trabalho de plataforma é uma manifestação de decadência do sistema capitalista. O emprego que já não pode ser criado na dimensão da força de trabalho mundialmente disponível é vampirizado pelas plataformas em troca de rendimentos aviltantes.

A interpretação alternativa que propomos é que as ditas plataformas atuam sobre as etapas operacionais associadas à própria compra e venda de comida e de itens de supermercado. Isso significa dizer que todas as fases necessariamente envolvidas numa operação de compra e venda são coordenadas pelo CCV. O CCV não compra o transporte do entregador: quem o compra é o cliente final; o CCV não compra a refeição ou os produtos de um supermercado: quem compra é o cliente. Esse fato o descaracteriza como capital de comércio de mercadorias propriamente dito. A interpretação que propomos faz eco à teoria de Marx sobre o capital de comércio de dinheiro, o antepassado direto do capital portador de juros. Marx argumenta que o Capital de Comércio de Dinheiro executa apenas as operações técnicas relacionadas à circulação do dinheiro, quais sejam: a guarda dos depósitos, a emissão de saldos, a realização de pagamentos, isto é, todas as tarefas relativas à contabilidade do dinheiro no seu processo de contínua circulação (Marx, 2019, p. 361MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.). A analogia pode ser utilizada aqui apenas para efeitos de apreensão do fenômeno, uma vez que se trata de algo novo: os capitais-plataforma, ou empresas-aplicativo na terminologia de Abílio (2021)ABÍLIO, L. C. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo Editorial, 2021., coordenam todas as atividades envolvidas na compra e venda: o recebimento do pedido do cliente, a mobilização do transportador, a cobrança do cliente, o depósito nas contas dos restaurantes e na conta dos entregadores. Assim, esses capitais não fazem comércio de dinheiro, de crédito ou de mercadorias. E tampouco podem ser classificados como capital industrial. Eles constituem, portanto, capital de comércio de vendas (CCV) no sentido de que comercializam as etapas operacionais do próprio processo de compra e venda. O CCV não compra e vende comida, não compra e vende transporte, mas operacionaliza todas as etapas envolvidas nessas transações.

O capital de comércio de vendas conecta, então, os pontos de produção (restaurantes) ou de vendas (supermercados) com os pontos de consumo (os clientes finais) através do trabalho de produção do transporte realizado pelos entregadores que são os substitutos do trânsito do cliente entre seu local de consumo e de compra. O capital de comércio de vendas deve, portanto, mobilizar transportadores que, estando fora da relação direta com qualquer capital, têm que vender seu trabalho de transporte como mercadoria. As plataformas de delivery executam o seu próprio circuito de expansão do capital por meio da integração de inúmeros circuitos da circulação simples de mercadorias – vender para comprar – representadas pela venda da atividade de transporte por parte do entregador.

Assumiremos neste trabalho que o entregador embolsa a totalidade do valor do frete. Em assim sendo, é claro que o lucro da plataforma não pode advir da exploração direta do trabalho. Ele deve originar-se de uma fração do lucro industrial dos restaurantes ou do lucro comercial dos supermercados. Nos dois casos, a plataforma atua como capital comercial, mas não como capital de comércio de mercadorias nem como capital de comércio de dinheiro. O objeto do seu comércio é efetivação da própria compra e venda, isto é, promovem a transação entre cliente e ponto de compra e é essa a base para a fixação da literatura nas triangularidades envolvidas no processo sem nunca tocar no âmago da relação, como ressaltado por Joyce (2020)JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020.. Por serem capitais que atuam sobre as etapas operacionais da compra e da venda recebem a denominação de Capital de Comércio de Vendas (CCV). Antes de nos aprofundarmos na análise dessa forma de capital, no entanto, é necessário explicitar a imbricação entre os circuitos do capital, da renda e da circulação simples de mercadorias.

3 Renda assalariada e renda capitalista

Na sociedade mercantil capitalista plenamente desenvolvida, a sobrevivência dos indivíduos e suas famílias depende da compra das mercadorias necessárias ao seu consumo. Parece algo óbvio, mas não é. A mediação da sobrevivência pelo mercado é um fenômeno relativamente recente quando comparado com a história da humanidade. Hoje isso é inescapável porque quase todos os produtos da sociedade se apresentam como mercadorias que precisam ser adquiridas com dinheiro. Mas para ter o dinheiro para comprar é preciso primeiro ter vendido algo para obter o dinheiro. A propriedade dos meios de produção (MP), por outro lado, se concentra nas mãos de uma diminuta minoria, enquanto a maioria, despojada de quaisquer meios para produzir a sua subsistência, é obrigada a vender a única mercadoria que possui: a sua força de trabalho ou capacidade de trabalho, referida pelo acrônimo FT. A polarização crescente da estrutura de classe em diversos países, inclusive o Brasil, está documentada em Aquino (2017)AQUINO, D. C. A lei geral da acumulação capitalista e suas implicações sobre a estrutura de classe. In: CIPOLLA, F. P.; AQUINO, D. C. (Org.). 150 anos d’O Capital: a atualidade de Marx. Curitiba: CRV, 2017..

Do valor produzido durante a jornada de trabalho, os assalariados recebem em dinheiro apenas o equivalente ao valor dos meios de consumo necessários à sua sobrevivência, enquanto os capitalistas se apropriam daquela parte da produção cujo valor representa a mais-valia. Com o dinheiro (D) que recebem da venda de sua FT, os trabalhadores compram os meios de consumo necessários à reprodução de sua capacidade de trabalho (MN). Esse movimento de venda e compra pode ser representado pela fórmula FT – D – MN, movimento que descreve a venda da força de trabalho (FT – D) e a subsequente compra de meios de consumo necessários (D – MN) (Marx 2020, p.111MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro II. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.). Os capitalistas, por sua vez, – assumindo para efeitos de simplificação que consomem todo o excedente – vendem o sobreproduto (m) e com o dinheiro (d) compram os meios de consumo excedente ou de luxo (MX). O movimento completo é, portanto, m – d – MX (Marx 2020, p.145MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro II. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.). Poderíamos agora representar nossos resultados num diagrama já conhecido, a fórmula do capital dinheiro, adicionada das duas formas da circulação simples:

Figura 2
O ciclo do capital e a circulação simples de mercadorias

A fração da população que não é capitalista nem tampouco logra vender sua FT ao capital necessariamente tem que vender algo para poder comprar: o seu movimento econômico fora da relação de emprego com o capital deve ser igualmente descrito como M – D – MN, vender para comprar, o movimento da circulação simples de mercadorias, mas no qual o primeiro M não corresponde à venda da FT, mas sim à venda de alguma mercadoria por ela produzida. Assim, temos três movimentos de circulação simples de mercadorias: Dois deles emanam do circuito do capital, isto é, do pagamento dos salários e da venda do sobreproduto equivalente a m. Eles correspondem, respectivamente, ao rendimento da parcela assalariada da classe trabalhadora e ao rendimento do capitalista. Os circuitos da circulação simples que não emanam diretamente do ciclo do capital têm que obter o dinheiro D como rendimento derivado dos salários ou dos lucros, já que supomos aqui, como o faz Marx na análise dos esquemas de reprodução, que todo o dinheiro lançado em circulação pertence à classe capitalista. É claro que um circuito M – D – M pode se nutrir de outro realizado anteriormente, mas isso apenas distancia o dinheiro de sua origem última, o capital. O movimento da circulação simples de mercadorias realizado com a venda do transporte será representado por MT – D – MN, através do qual o entregador vende o transporte (MT) para obter meios de subsistência.

FT – D – MN enquanto venda da FT ao capital e MT – D – MN enquanto venda do transporte ao consumidor não se distinguem enquanto formas da circulação simples, mas somente em relação à mercadoria vendida. O CCV do ramo delivery integra o movimento MT – D – MN, no movimento próprio de seu capital. A realização de um pedido de transporte gera a renda de um trabalhador através da venda da mercadoria transporte, MT – D, que é paga pelo consumidor. Tanto FT – D – M quanto MT – Dc – M (em que Dc é o dinheiro do consumidor, diferente de D que é dinheiro dispendido pelo capitalista) são circuitos da circulação simples, mas a primeira fase FT – D da primeira equação representa a venda da capacidade de trabalho ao capital, enquanto a primeira fase MT – Dc da segunda equação representa a venda do transporte ao consumidor. Neste último caso, o pagamento Dc se dá após a realização do transporte, momento no qual o CCV encerra seu ciclo já que o comércio da venda se completa com a realização da entrega. Em contraste, a fase FT – D, vista do ângulo do capital, representa a fase de abertura do ciclo do capital dinheiro, pois pressupõe a utilização da FT para a produção de mais valia. A produção do transporte é realizada como uma etapa do ciclo do capital de comércio de vendas e ao mesmo tempo é a realização da circulação simples de mercadorias para o transportador.

O movimento total da circulação da renda compreende, pois, a circulação dos rendimentos primários, quais sejam, os salários e os lucros, assim como a circulação da renda derivada daqueles rendimentos primários, isto é, a renda que se origina da circulação simples de mercadorias realizada pelos trabalhadores não engajados na relação-capital. A hipótese do presente trabalho é que o CCV subordina ao circuito do capital a atividade daqueles que não logram inserir-se na relação com o capital enquanto vendedores da força de trabalho.

As restrições impostas ao crescimento do emprego pela mecanização da produção somadas ao decréscimo secular das taxas de acumulação global, tudo isso agravado pela mundialização da oferta de força de trabalho realizada pela mobilidade do capital (IMF 2007INTERNATIONAL MONETARY FUND. World Economic Outlook: chapter 5 – The globalization of labor. Apr. 2007, p. 161-192.), implica que a parcela da população mundial em idade economicamente ativa que precisa se engajar no circuito M – D – M é crescente. Relatório da OIT (2018) indica que mais que 61% da população mundial empregada se encontra em ocupações informais, constituindo um conjunto de 2 bilhões de pessoas. Se considerarmos que mais da metade da população mundial está conectada à internet (Graham e Anwar, 2021GRAHAM, M.; ANWAR, M. A. Trabalho digital. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021.) podemos inferir que a massa de pessoas potencialmente disponíveis para o CCV é verdadeiramente volumosa. As plataformas se nutrem desse crescente manancial de FT incapaz de se inserir na relação-capital e que, portanto, tem que se inserir na relação-renda, entendida aqui como extração de uma fração da renda primária oriunda do ciclo do capital industrial, ou seja, oriunda dos salários ou da renda capitalista. Nessas condições não é difícil compreender como o CCV logra reduzir o preço do trabalho de transporte a níveis mínimos.

Se o circuito M - D - M, venda para comprar, é a forma de vida de milhões de indivíduos que não logram vender sua FT ao capital e devem sobreviver através de atividades que buscam extrair do circuito da renda assalariada ou capitalista o dinheiro necessário para sua sobrevivência, o CCV, por sua vez, se insere como provedor de novas formas de viabilização daquele circuito. Esse é o arcabouço básico para a compreensão do trabalho sob o jugo das plataformas digitais ou CCV, particularmente aquelas relacionadas ao transporte de comida e compras.

Apesar de realizar parte do seu circuito MTDcMN como função do CCV, os entregadores preservam o status de produtores simples de mercadorias: vendem para comprar. A subordinação da fase MT - DC ao capital não os transforma em trabalho assalariado. A venda do transporte que fazem para os clientes é apenas mediada pelo CCV. Isso é o que permite que o CCV se autodesigne como empresa de tecnologia. Essa é também a base material para a ideologia de independência e a autogestão comumente expressa pelos entregadores.

O que o CCV faz é submeter como parte de sua própria função de comerciante de vendas, a fase da produção simples de mercadoria correspondente à venda do transporte MTDc, o que pode ser representado pelo ciclo do capital produtivo da plataforma como:

P ( M T D c ) P

onde DC representa o dinheiro do consumidor e P o capital produtivo da plataforma. Nesse movimento, o entregador recebe do consumidor o custo do transporte e, portanto, não pode haver nenhuma produção de mais-valia dentro do circuito P … P’. Os lucros do CCV devem provir de fora da relação entre CCV e trabalho.

4 Lucro do capital de comércio de venda e ganho do entregador

É necessário, portanto, apresentar de onde se origina o lucro do capital e o rendimento do trabalhador de transporte. Consideraremos o caso na sua forma mais simples, no que tange a entrega de produtos, sejam eles refeições ou compras de supermercado, valendo-nos de um exemplo numérico arbitrário. As empresas envolvidas nesses mercados são conhecidas: iFood, Deliveroo, James, 99 food, Uber Eats, Rappi, para citar apenas algumas das marcas mais familiares aos consumidores brasileiros.

Suponhamos que o trabalhador receba o preço do frete pago pelo cliente e o CCV receba do restaurante uma porcentagem do valor das mercadorias transportadas. Por exemplo, num pedido de refeição cujo preço é R$50 pelo qual o cliente paga R$57 para recebê-la em casa, R$7 serão transferidos ao entregador e R$50 serão repartidos entre restaurante e CCV na proporção combinada em contrato. Se o CCV retém uma taxa de 20% do valor transportado, apenas R$40 serão transferidos ao restaurante, enquanto R$10 serão retidos pelo CCV. Nesse caso o CCV funciona como um capital comercial, pois retém uma parcela do lucro industrial gerado pela atividade produtiva do restaurante. Porém, é preciso cuidado, pois o CCV não compra e vende refeições, ele apenas faz a função de operacionalizar as fases envolvidas na operação de compra e venda. Por isso, ele não pode ser caracterizado como um capital de comércio de mercadorias, no caso, de refeições. Ele faz o comércio das próprias vendas. Por isso, capital de comércio de vendas é a melhor denominação que podemos dar a esse capital, ecoando a definição de capital de comércio de dinheiro, na análise da origem do crédito bancário realizada por Marx. O exemplo numérico acima pode ser representado, do ponto de vista do ciclo do capital produtivo, como:

P ( 1000 ) C R = 50 F = 7 P 57 40 R 7 F P ( 1000 + 10 )

onde F se refere ao Frete e R se refere ao Restaurante. P, o capital produtivo na forma de estruturas computacionais e assalariados permanentes, recebe o pedido e o crédito do consumidor, repassa o custo do transporte para o entregador, faz o pagamento para o restaurante e, finalmente, retém a sua porcentagem do valor do pedido. O que em essência é o pagamento do frete pelo consumidor, agora aparece como o pagamento do frete pela plataforma, uma vez que ela coordena e centraliza as fases e pagamentos de todas as transações envolvidas na compra e venda: o CCV de 1000 recebe um pedido de refeição no valor de 50 que de acordo com a localização do cliente determina um frete (F) de 7; recebe do cliente (C) 57; repassa 7 ao entregador e 40 ao restaurante, ficando com 10. Desconsiderando os custos incorridos, o capital da plataforma teria crescido de 1000 para 1010, agora dividido entre 1000 de capital produtivo e 10 de capital dinheiro, cujo uso se situa além da descrição do ciclo de valorização descrito pela fórmula.

No caso dos aplicativos de entregas de compras em supermercado, a origem do lucro advém de uma partilha do lucro comercial dos supermercados, mas a fórmula é idênntica, requerendo apenas a substituiçao de R de Restaurante por S de Supermercado. Um exemplo dessas empresas de aplicativos de entrega de compras é o Rappi. De acordo com Di Giorgi (2019)DI GIORGI, F. Delivery de supermercado, visão sistêmica de um Super Aplicativo. 2019. Disponível em: http://www.fernandodigiorgi.blog.br/2020/03/15/delivery-de-supermercado-visao-sistemica-de-um-super-aplicativo. Acesso em: 12 mar. 2020.
http://www.fernandodigiorgi.blog.br/2020...
, assim que um cliente cadastrado faz o pedido, este é separado na loja mais conveniente da rede escolhida, por um shopper que é um assalariado; ao término da separação, com ou sem modificações consentidas pelo cliente, este último confirma o pedido; o Rappi, por exemplo, credita o supermercado. Em seguida, o frete é oferecido a um grupo de entregadores segregado de acordo com localização e níveis de desempenho. Uma vez aceito por um entregador inicia-se a contagem do tempo de entrega. O shopper é informado sobre o entregador encarregado de realizar a entrega e lhe transfere as compras. Uma vez entregue ao cliente, o Rappi é comunicado e dispara o crédito do cliente na sua conta. A taxa de entrega é creditada ao entregador de acordo com a distância e o tipo de veículo usado. O supermercado credita ao Rappi parte do faturamento.

Os produtos são cobrados pelo exato valor que têm na superfície do supermercado. O ganho do Rappi é oriundo da renúncia de uma parte da margem de lucro dos supermercados. Suponhamos que o cliente faça uma compra de R$500 cujo frete lhe custará R$7. Na entrega, o cliente credita ao Rappi R$507. O supermercado credita ao Rappi, por exemplo, em 5% do valor das vendas. O Rappi paga os R$7 de taxa de entrega ao entregador e obtém um benefício bruto de R$25 relativo à taxa de 5% sobre as vendas no valor de R$500.7 7 Esse é o caso puro, no qual não há nenhuma disputa quanto ao destino da taxa de entrega. Possíveis divergências entre taxa de entrega e montante pago ao entregador deveriam ser objeto de escrutínio detalhado.

O CCV, Rappi no caso, se configura, pois, num segundo capital comercial que absorve no seu movimento de intermediação uma parte do lucro comercial do supermercado. No entanto, a natureza da relação no que tange ao entregador não muda quando comparada com os aplicativos de entrega de refeições. Nos dois casos, o trabalho de entrega produz uma mercadoria, o transporte e, portanto, são trabalhos produtivos de valor, mas não de mais-valia, justamente porque está inscrito na produção simples de mercadorias na qual a FT não se troca por capital variável.

Assim, as plataformas subordinam ao seu movimento de valorização do capital inúmeros atos M – D – M da circulação simples de mercadorias. No seu movimento de comércio de vendas, as plataformas absorvem uma fatia do lucro industrial, no caso dos restaurantes, ou comercial, no caso dos supermercados: não lograriam fazê-lo sem a incorporaçao da atividade de transporte dos entregadores como momento do seu ciclo. A porcentagem cobrada pela plataforma sobre o preço do produto produzido pelo restaurante ou sobre o valor das compras no supermercado constitui, pois, a receita do CCV, da qual, uma vez subtraídos os custos, provém o lucro do CCV. O lucro do CCV se configura como um lucro comercial derivado da mais-valia previamente produzida nos restaurantes ou do lucro comercial repartido entre supermercado e CCV.

O valor total do trabalho de entrega deve ser computado como a soma do tempo de trabalho no processo de entrega mais os materiais consumidos durante a entrega, notadamente a depreciação e combustível no caso de veículos a combustão. Façamos abstração, inicialmente, dos custos materiais envolvidos no processo produtivo de entrega do produto ao cliente. Para efeitos de análise, consideremos que o entregador trabalhe, como qualquer outro trabalhador, uma jornada de duração normal e que produza em termos de valor o que outro trabalhador sob a égide do capital produziria, ou seja, a soma do tempo de trabalho equivalente ao valor das mercadorias necessárias à sua manutenção mais o tempo de trabalho que excede o tempo de trabalho necessário. Marx simbolizou o tempo de trabalho necessário como v e o tempo de trabalho excedente como m, de modo que o valor total produzido numa jornada média é igual a soma v+m. É preciso entender como é possível que o entregador não receba o valor relativo ao total de horas trabalhadas, v+m, mas apenas o correspondente ao valor de sua força de trabalho, fenômeno esse que faz com que muitos definam apressadamente o entregador como um assalariado da plataforma, a qual se apropriaria da mais-valia por ele produzida.8 8 Filgueiras e Antunes (2021, p. 74), por exemplo, afirmam categoricamente que a fração do valor produzido pelo entregador que é apropriada pela plataforma é conhecida. No entanto, a comprovação disso requereria demonstrar que as plataformas se apropriariam sistematicamente de um percentual do valor do transporte pago pelo consumidor, demonstração essa ainda não realizada.

Como explicar que a remuneração seja reduzida ao equivalente do tempo de trabalho necessário se os entregadores não estão subsumidos à relação salarial? No caso da parcela assalariada da FT, os salários flutuam ao redor do valor da FT de acordo com o equacionamento entre fração ativa e passiva da FT, isto é de acordo com o peso do exército industrial de reserva sobre a parte ocupada da FT. No caso dos entregadores qual é a baliza em relação à qual os salários são puxados para cima ou empurrados para baixo? O custo de reprodução da FT deve ser o valor de referência sobre o qual o excesso de FT tem um efeito depressivo sobre o nível de remuneração oferecido pelas plataformas como observam Graham e Anwar (2021, p. 51)GRAHAM, M.; ANWAR, M. A. Trabalho digital. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021.. Estudo da OIT (2021) mostra que o número de trabalhadores “bem sucedidos” em plataformas de trabalho digital, isto é, aqueles com mais de 10 projetos realizados ou renda superior a US$1000, é uma diminuta fração dos trabalhadores cadastrados.

Tabela 1
Número de trabalhadores cadastrados e ativos em plataformas de trabalho digital, setembro de 2020

No caso do CCV não é diferente. A oferta praticamente ilimitada de FT diminui o valor do frete a níveis compatíveis ou mesmo inferiores à normal reprodução da capacidade de trabalho. Em condições normais, o valor do frete multiplicado pelo número de entregas seria a forma monetária do tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho. Ao pagar apenas v e não v+m, a plataforma exime o cliente final do pagamento de uma parcela de valor, aquela correspondente ao trabalho que excede a reprodução do valor da força de trabalho, a parte m. O entregador trabalha uma parte da jornada gratuitamente para o cliente final, ou seja, poupa ao cliente uma parte do pagamento pelo seu serviço. O CCV funciona, então, como um instrumento através do qual se poupa ao cliente a despesa equivalente à parte do trabalho não pago realizado pelo entregador. O valor do trabalho excedente não pago pelo cliente é igual ao valor produzido pelo trabalho de transporte menos o preço do transporte, o frete.

A remuneração do CCV percorre uma trajetória diversa. O seu lucro não advém da exploração do trabalhador que realiza a entrega. No caso do CCV de itens de supermercado, a renda do capital advém de uma fração do lucro comercial que o supermercado deve repassar ao CCV, enquanto no caso do CCV de refeições a renda do capital advém de uma parcela do lucro industrial do restaurante enquanto capital produtivo. Assim, o lucro desses CCV advém, seja do lucro industrial (restaurante), seja do lucro comercial (supermercado). Os CCV forçam a redução do ganho do entregador não para se apropriar de uma parcela do valor por ele produzido, mas para expandir o seu mercado e, assim, poder aumentar a fração dos lucros industriais e comerciais de que se apropriam.

A redução do frete ao valor correspondente ao custo de reprodução da FT amplia a demanda pelo serviço de pedidos de delivery. Quanto menor o custo do transporte, mais aumenta o raio de ação da atividade do CCV e, por conseguinte, seu lucro. Daí segue que os CCV se utilizem da superoferta de FT para reduzirem ao máximo possível as tarifas pagas aos entregadores, levando a situações nas quais as remunerações se situam abaixo do valor da força de trabalho, como revelou a pauta de reinvindicações da greve de primeiro de julho de 2020 (Sodrana, 2020SODRANA, P. Entregadores organizam paralisação e movimento chega a capitais latinas. Folha de São Paulo, 29 jun. 2020. Disponível em: https://www.folha.uol.com.br.
https://www.folha.uol.com.br...
). Mas não só.

No caso dos entregadores, a reprodução da capacidade de trabalho contém um elemento material que não existe no trabalho assalariado puro. Estes últimos trabalham sobre meios de produção que não lhes pertencem, sendo a sua reposição o resultado da rotação do valor do capital constante permitido pela natureza útil do trabalho enquanto conservador de valor. Na fórmula FT – D – M, a reprodução da capacidade de trabalho comporta, portanto, somente a compra de meios de consumo. No caso dos entregadores, a reprodução da capacidade de trabalho inclui a reprodução dos meios de produção com os quais trabalham, de modo que em MT – D – M, à venda da atividade de transporte deve seguir-se um duplo movimento de compra: a compra dos meios de consumo necessários à reprodução da FT mais os dispêndios relativos à manutenção dos instrumentos de trabalho. Ora, como sugerido por Filgueiras e Antunes (2021, p.65)FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021., para a plataforma (CCV), a manutenção dos instrumentos de trabalho se situa fora de sua relação com o entregador, cabendo a este último prover suas condições de trabalho. O trabalho de transporte produz valor equivalente aos custos materiais envolvidos na atividade de transporte mais a adição de trabalho novo representado pela soma v+m. Dado o número de entregas numa jornada de trabalho de duração e intensidade normais, um rendimento equivalente a v seria insuficiente para permitir a normal reprodução da capacidade de trabalho do entregador uma vez que esta inclui tanto a manutenção de sua pessoa como da coisa com a qual trabalha, o que implica que seu rendimento requereria o equivalente à soma v + c, qual seja, o valor correspondente à reprodução do indivíduo mais o valor correspondente às necessidades de manutenção e reposição dos meios de transporte. Assim, mesmo que o número médio de entregas gerasse uma renda igual a v, ela estaria abaixo das condições de reprodução da capacidade de trabalho porquanto não permitiria reproduzir conjuntamente os elementos materiais envolvidos no processo de transporte, forçando o entregador a aumentar a jornada de trabalho ou a intensidade do trabalho através do cadastramento simultâneo em mais de um aplicativo (Abílio et al., 2020, p.6ABILIO, L. C.; ALMEIDA, P. F.; AMORIM, H.; CARDOSO, A. C. M.; da FONSECA, V. P.; KALIL, R. B.; MACHADO, S. Condiçoes de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região, v. 3, 2020.). Essas contradições do trabalho autônomo em habitat de forte concorrência se manifestam de forma dramática na precariedade da reprodução da capacidade de trabalho dos entregadores. Em última análise, o consumidor se “apropria” gratuitamente não só do trabalho que excede o equivalente a v, mas também do excesso de consumo da FT que a reposição dos meios de trabalho impõe aos entregadores.

5 Ganho do entregador, escala dos capitais de comércio de vendas e intensidade do trabalho

Sob a égide do CCV, todos trabalham sob regime de ganho por tarefa, entendendo-se por tarefa cada uma das entregas realizadas. Apesar de não serem assalariados, o entendimento da relação entre salário por peça e salário por hora permite esclarecer o modo pelo qual o ganho por tarefa disciplina e intensifica o trabalho.

O salário por peça é uma transformação do salário por hora que por sua vez é uma transformação do valor da força de trabalho, doravante VFT (Marx, 2015MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.). Suponhamos que a força de trabalho tenha um valor equivalente a R$160 numa jornada de 8 horas e que esse valor represente a metade do valor produzido pelo trabalho na jornada. Assim, temos uma produção de valor de R$320, dos quais a FT se apropria de somente R$160. Para calcularmos o salário por hora, basta dividirmos R$160 por 8 e obtemos um salário/hora igual a R$20. Para calcular o salário por peça é preciso saber o número de peças produzidas numa jornada de 8 horas de intensidade normal, suponhamos 10 peças. A conversão do salário por tempo para salário/peça nos daria um valor pago por peça equivalente a R$16, ou seja R$160 divididos por 10 peças. Desse modo, quando tratamos do trabalho dos entregadores, temos que supor que eles são submetidos à mesma relação: no transporte está uma remuneração por frete que numa jornada normal de trabalho lhe produziria o equivalente ao valor de sua FT.

Marx observou agudamente que o salário/hora permite romper a unidade entre trabalho necessário e trabalho excedente quando o número de horas de trabalho oferecido pelo enpregador é inferior ao número de horas da jornada integral. Com uma jornada menor do que a jornada normal, o salário/hora permite ao capital obter mais valia, mas impede a FT de obter o rendimento equivalente ao seu custo de reprodução. Algo similar ocorre quando o entregador não atinge o número de entregas necessárias para obter o seu custo de reprodução; ainda mais quando a remuneração das entregas varia com a distância, o horário e os dias da semana; e ainda mais quando sua mobilização pela plataforma para as melhores entregas depende do seu índice de recusas de entregas e do grau de disponibilidade nos períodos de maior necessidade da plataforma, por exemplo, sua pontuação obtida nos domingos. Isso nos permite entender porquê a espera da chamada para entrega ou a espera pela finalização do produto no restaurante, por exemplo, representam para o entregador uma agonia. Cada período de interrupção representa uma redução da quantidade de produção capaz de lhe prover um salário condizente com suas necessidades.

O ganho por entrega/km também é uma figura ambígua uma vez que o trabalhador não sendo assalariado não pode receber um salário por peça propriamente dito. Não obstante isso, o seu ganho é definitivamente por tarefa. O salário por peça, como discutido por Marx (2015)MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015., explora a intensificação do trabalho na medida em que a remuneração do trabalhador passa a depender da quantidade que ele produz. É comum que o capital fixe o salário por peça a um nível tal que induza à intensificação máxima do trabalho ou o aumento da jornada de trabalho necessária para a obtenção do equivalente ao valor da força de trabalho. No entanto, como a obtenção do correspondente ao valor da FT se dá através de um nível de desgaste superior ao normal, o valor obtido através de um nível maior de desgaste acaba representando um preço abaixo do valor da força de trabalho correspondente ao novo nível de desgaste. No caso dos transportadores, a definição de um ganho por quilômetro obedece o mesmo princípio e, ademais, se adapta perfeitamente à necessidade de transportadores em prontidão, condição da qualidade do serviço de delivery para o cliente, mas despótica para aqueles que precisam compensar o baixo valor das tarifas pela quantidade de entregas realizadas.

Quanto mais barato o preço do frete, maior o volume de negócios do aplicativo. Pagar pouco faz parte da estratégia de aumento do raio de ação do CCV. Assim, o aumento da escala de cobertura do CCV significa para o entregador trabalho mais intenso ou mais extenso. Desse modo, quanto menor a remuneração por tarefa, maiores são os lucros do CCV e mais se expande a oferta de trabalho mesmo não se expandindo o número de trabalhadores disponíveis, uma vez que cada um deles é obrigado a permanecer conectado por mais tempo, fato que explica as longas jornadas de trabalho vigentes entre transportadores (Helena, 2020HELENA, D. Quem são os entregadores de Apps que estiveram na paralisação de 1o. de julho? Ideias de Esquerda, jul. 2020.). Isso aponta para o fato de que os CCV tendem a cobrar dos clientes o mínimo necessário para a sobrevivência dos entregadores e esse mínimo pode situarse abaixo das condiçoões de reprodução da atividade se a oferta disponível permite a imediata substituição daqueles que se retiram da atividade, seja por acidente, seja por doenças psicológicas.

Como o número de pedidos aumenta com a redução do valor do frete, o ganho bruto do CCV aumenta com a redução do ganho do entregador. Isso gera a aparência de que o lucro do CCV advém de uma forma de mais-valia absoluta extorquida dos entregadores. Mas, como vimos, o lucro dos CCV advém de uma forma específica de lucro comercial. Considere o exemplo fornecido anteriormente. Suponhamos que a redução do frete de R$7 para R$5 aumente para 10 o número de pedidos. O CCV terminaria a jornada com um ganho de 100. A taxa de valorização do seu capital teria subido de 1% para 10% do seu capital produtivo de 1000. O CCV se beneficia da redução do frete até o nível aceitável pelo entregador, nível esse que pode se situar abaixo do VFT se a concorrência entre os entregadores for grande.

Como o tamanho de mercado aumenta com a redução do frete, a parcela de mercado de cada CCV passa a ser uma disputa crivada pelo preço pago pelo transporte e pela qualidade do serviço que, para o consumidor, se compõe da rapidez da entrega e condições do produto entregue.

Em geral, a concorrência dentro de um ramo de produção, definido como conjunto de capitais produzindo uma mercadoria homogênea, se dá através da redução de custo na fabricação do produto, com o que os capitais que usam métodos de produção mais produtivos conseguem obter lucros mais abundantes que os concorrentes. Marx denominou a redução de valor individual abaixo do valor de mercado como a lei fundamental da concorrência capitalista (Marx, 2019, p. 63MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.).

No caso do ramo em pauta, por exemplo, delivery de comida, o produto em questão é o próprio transporte. Ocorre que o custo do transporte decorre de uma atividade fora do circuito do capital, ou dito de outra forma, o produto-transporte não é resultado de seu processo de produção, mas sim do processo de produção no interior da produção e circulação simples de mercadorias. Como o processo de trabalho se dá fora do controle técnico do CCV, os custos materiais do transporte estão fora do seu alcance de manipulação e não podem ser reduzidos. No entanto, o ganho por tarefa pode.

Como a parcela de mercado de cada CCV evolui de acordo com sua capacidade de oferecer vantagens aos consumidores, estes últimos se beneficiam da concorrência através da manutenção do preço dos fretes em níveis mínimos. Assim, a luta competitiva entre os CCV conduz a valores de frete a níveis mais baixos, compatíveis com a oferta de entregadores. O que está na natureza do capital de comércio de vendas se manifesta como o resultado da concorrência entre estes capitais de um mesmo ramo e da concorrência entre entregadores. Se a remuneração mínima compatível com a reprodução da capacidade de trabalho não compensa o maior desgaste sofrido pelas jornadas mais longas e mais intensas, então o ganho do entregador cai abaixo do valor de reproduçao de sua capacidade de trabalho.

No Brasil, o sistema de pontuação nos momentos de pico também é uma manifestação da concorrênia entre os CCV, uma vez que força os entregadores a estarem disponíveis nos momentos de maior demanda de pedidos, condição básica da competitividade da plataforma. Assim, o CCV se assegura – através da imposição de penalidades, tais como supensões e bloqueios – da disponibilidade de entregadores e, por conseguinte, da rapidez da entrega.

6 Controle do trabalho e condições de trabalho

Na análise do processo de produção capitalista, constituído da unidade do processo de trabalho e do processo de valorização, Marx apontou duas dimensões do controle do capital sobre o trabalho: uma qualitativa e outra quantitativa (Marx, 2015, p. 262, 272MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.). No âmbito do processo de trabalho, o controle qualitativo diz respeito à imposição à FT do uso adequado dos materiais e instrumentos comprados pelo capital. No âmbito do processo de valorização, o controle quantitativo diz respeito à utilização da força de trabalho durante todas as horas de trabalho a que corresponde a jornada pela qual ela foi adquirida. Essas duas formas de controle formam uma unidade na qual a formação do valor novo pelo dispêndio de trabalho abstrato, o aspecto quantitativo do trabalho, somente se materializa se esse trabalho na sua dimensão de trabalho útil transformar adequadamente os meios de produção em produto.

Nos locais de trabalho onde se realiza a fase produtiva do circuito do capital, o controle do capital sobre o trabalho, que se exerce sobre aquelas duas dimensões do trabalho, se dá sob formas diversas: na manufatura clássica, elas aparecem como despotismo gerencial direto, somado à redução do trabalho parcial a uma engrenagem do trabalho coletivo; na indústria à base de máquinas, se manifesta no controle do trabalho pelo ritmo da máquina; nas formas de remuneração, sejam elas o salário por peça ou o mercado de trabalho interno à empresa, funciona como mecanismos de disciplinamento militar do trabalho; mais recentemente, as formas de bonificação por cumprimento de objetivos se tornaram comuns como modo de pagar o trabalhador com as próprias economias que ele gera para a empresa (Cipolla, 2013CIPOLLA, F. P. Bonus wages: beyond piece wages. Review of Radical Political Economics, v. 45, n. 3, p. 369-383, Summer 2013.).

O controle do capital sobre o trabalho do ponto de vista do trabalho útil situa-se fora do alcance direto do CCV porque os instrumentos de trabalho pertencem à FT e a sua transformação adequada em novo produto, o transporte, é de interesse e responsabilidade exclusiva do seu proprietário. O controle sobre o trabalho do ponto de vista quantitativo tem uma dimensão um tanto quanto distinta. Ele não advém da pressão pela apropriação de trabalho excedente, mas da necessidade de existência de um exército de entregadores em prontidão, capaz de prover o CCV com um fluxo contínuo de trabalho, ainda que para o entregador individual isso implique em vazios de atividade durante a jornada.

O controle sobre a qualidade do produto-transporte tem duas dimensões: o tempo de entrega e as condições do produto entregue. O tempo de entrega é para o cliente uma dimensão da qualidade do CCV e não do entregador. Por isso o CCV procura se assegurar de uma reserva permanente de entregadores conectados. A mobilização just-in-time permite a redução ao mínimo do tempo de entrega do produto ao cliente. O frete fixado a níveis mínimos impõe uma maior disponibilidade de trabalho para a plataforma, o que tem um efeito imediato sobre a qualidade do serviço cujo aspecto central, para o cliente, é o tempo de entrega. O entregador é sacrificado em benefício da satisfação do cliente porque o cliente é a via de obtenção de lucros comerciais.

A disponibilidade contínua de entregadores é imposta pelas plataformas através de diversos mecanismos despóticos: o preço dinâmico, que nada mais é do que um algoritmo que recalcula a tarifa de acordo com os momentos de pico de negócios e a disponibilidade de transportadores; a escolha de entregadores via algoritmo para os locais mais vantajosos, como por exemplo a segregação de entregas para áreas centrais aos entregadores com pontuação mínima obtida por entregas realizadas em fins de semana; a priorização de chamadas para aqueles com menor percentual de recusas, forçando uma redução no percentual de recusas, ainda mais quando aceitações e recusas alimetam sistemas de cálculo contínuo da relação entre número de chamadas atendidas e recusas realizadas, cálculo que pode resultar no que veio a ser conhecido como dispensa por algoritmo. Todos esses mecanismos têm como objetivo adequar a oferta de entregadores às necessidades dos CCV.

É importante observar que o uso desses algoritmos como forma de gestão da força de trabalho varia de acordo com a empresa e o país, aspecto que deveria ser melhor investigado pelos especialistas no assunto. Woodcock (2021)WOODCOCK, J. O panóptico algorítimo da Deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021. nos fornece uma descrição pormenorizada do monitoramento que a Deliveroo, em Londres, realiza sobre os tempos e movimentos de cada entregador. Com base nesses dados, o CCV emite, em intervalos regulares, avaliações sobre o desempenho dos entregadores, sempre relativamente a uma média que jamais é revelada. É um sistema de incentivo despótico no sentido de que mantém os entregadores sob estado contínuo de alerta em relação ao padrão mínimo de eficiência exigido. No entanto, de acordo com o autor, ações disciplinares são raras, fato que contrasta com a experiência brasileira onde o despotismo adquire feições mais explicitamente autoritárias como a segregação das melhores entregas para entregadores melhor classificados ou mesmo o descredenciamento unilateral daqueles que infringem índices mínimos de avaliação.

Como se depreende da exposição acima, no caso dos trabalhadores em delivery, intensidade do trabalho e extensão da jornada de trabalho são determinados pela forma e magnitude da remuneração; pelos algoritmos de segregação e disponibilização de entregas de acordo com índices de recusas depois de desveladas a distância e valor do frete; pela disponibilidade para a plataforma nos fins de semana e nos momentos de pico.

Cálculos de pesquisa, apresentados por Helena (2020)HELENA, D. Quem são os entregadores de Apps que estiveram na paralisação de 1o. de julho? Ideias de Esquerda, jul. 2020., realizada entre os entregadores participantes da greve de 1° de julho, revelam que a remuneração por km entre os ciclistas situa-se na faixa de R$1 por quilómetro, enquanto para os motociclistas ela é ainda mais baixa: R$0,52 por quilómetro. Os cálculos foram obtidos pela divisão entre a declaração de rendimentos mensais e quilómetros percorridos ao longo do mês. Apesar de aproximativo e sujeito a viés de amostragem, esse cálculo não diverge muito de declarações de entregadores quanto ao ganho por quilómetro. Reproduzimos abaixo a distribuição dos entregadores segundo a duração de sua ocupação diária:

Tabela 2
Distribuição dos entregadores segundo o tamanho da jornada de trabalho

Estendidos esses resultados à toda a força de trabalho do setor, teríamos que ¾ dos trabalhadores ocupados pelos CCV trabalhariam mais do que 10 horas por dia. As consequências de longas jornadas são conhecidas em seus efeitos em termos de acidentes de trabalho. A necessidade de concentração contínua em condições de alta velocidade terminam por causar acidentes de trabalho em escala digna da revolução industrial: entre os motociclistas entrevistados, 57,22% declararam já ter sofrido acidente, enquanto entre os ciclistas a ocorrência de acidentes afetou 42,78% dos entrevistados. Além dos acidentes de trânsito, o trabalho sob pressão contínua leva a casos recorrentes de exaustão psíquica e depressão (Helena, 2020HELENA, D. Quem são os entregadores de Apps que estiveram na paralisação de 1o. de julho? Ideias de Esquerda, jul. 2020.).

Os CCV se aproveitam do excesso de força de trabalho disponível para reduzir o frete a níveis mínimos. As jornadas de trabalho dos entregadores precisam ser esticadas ao máximo com o que aumentam os custos de manutenção dos seus instrumentos de transporte junto com a privação de sono e de convívio familiar. Estresse financeiro permanente, doenças psíquicas e acidentes, eis o que colhem os entregadores por aplicativo na sua luta diária pela sobrevivência.

Conclusões

O trabalho mediado pelas plataformas é um fenômeno recente que produziu interpretações teóricas distintas sobre as relações de trabalho entre entregadores e plataformas. O presente trabalho propõe que o capital da plataforma seja caracterizado como Capital de Comércio de Vendas (CCV) e que o entregador seja caracterizado como trabalhador que realiza a circulação simples de mercadorias. Este tipo de capital, guarda uma semelhança com o capital de comércio de dinheiro descrito por Marx, no sentido que efetua as etapas operacionais da compra e da venda ligadas à efetivação de transações de compras por aplicativos e intermedia a atividade de produção do transporte realizado pelos entregadores. Como capital comercial, seu ganho assume a forma de lucro comercial, seja como parte do lucro industrial dos restaurantes, seja como parte do lucro comercial dos supermercados.

A origem do lucro do CCV se diferencia de acordo com a natureza da mediação que ela realiza. Por esse motivo, este trabalho não incluiu as empresas-aplicativo envolvidas com o transporte de passageiros. No caso das plataformas de entrega de refeições e itens de supermercado, o lucro se origina de uma fração do lucro de outros capitais, enquanto o custo do transporte é pago pelo consumidor. Nestes últimos casos, as interpretações que caracterizam o entregador como assalariado do capital de plataforma assim como as interpretações que caracterizam a plataforma como capital portador de juros não parecem adequadas.

A formação da consciência de classe dos entregadores sofre os percalços da nova forma de inserção do trabalho no circuito do capital. Enquanto parte do proletariado que não pode ser explorado diretamente pelo capital, os entregadores se apresentam no mercado como produtores autônomos. No entanto, o equacionamento entre parte ativa e parte inativa da força de trabalho leva à depreciação dos rendimentos a níveis até mesmo inferiores a certas camadas do proletariado industrial.

A greve realizada dia primeiro de julho de 2020 pôs a nu todas as agruras a que são submetidos os transportadores cuja atividade é mediada pelos capitais de comércio de vendas: suspensões e bloqueios, baixas tarifas de entrega, sistema de pontuação, ausência de pontos de alimentação durante a jornada, precariedade ou inexistência de auxílio durante a pandemia. A luta por aumento das tarifas de entrega confronta o setor como um todo, uma vez que a escala de “produção” dos CCV está em razão inversa à remuneração dos entregadores. O choque de interesses entre trabalhadores de entrega e CCV deverá dar lugar a uma sequência de conflitos trabalhistas uma vez que os CCV não abandonarão facilmente suas práticas lucrativas às custas das massas de transportadores.

O capital de comércio de vendas abre assim uma nova etapa na história do conflito entre capital e trabalho. A mística de que são empresas de tecnologia e que os entregadores são empreendedores autônomos que gozam da liberdade de trabalhar quando querem, não resistiu ao tempo. Rapidamente, os “autônomos” foram empurrados na luta pela defesa de melhores condições de trabalho e ganho. Rapidamente se desenvolve entre eles a percepção de que constituem trabalhadores como os outros, apenas em situação ainda mais precária, causada por esse novo tipo de capital.

Toda a fenomenologia registrada por Gandini, e pelos autores discutidos na revisão da literatura, é compatível com a análise aqui realizada. A plataforma certamente funciona como ponto de controle. Os sistemas de feedback, ranking and rating têm um efeito sobre a intensidade e disponibilidade do trabalho mesmo quando os entregadores são concebidos como agentes da circulação simples de mercadorias e não como trabalhadores assalariados.

O fato de que os algoritmos fixam fretes a níveis que beiram a mera subsistência, somado à semelhança do frete com a forma de salário por peça, levou muitos marxistas a concluir apressadamente que a exploração do trabalho do entregador é a origem do lucro da plataforma. Apesar dos lucros das plataformas serem inversamente proporcionais aos fretes, isso ocorre não porque as plataformas se apropriem de parte do trabalho de transporte, mas sim porque fretes baixos aumentam o número de pedidos a partir dos quais as plataformas obtêm suas porcentagens de ganho.

O entregador produz riqueza material, o transporte. O valor adicionado pelo trabalhador durante o transporte é regulado pelo tempo de trabalho socialmente necessário para produzir aquela mercadoria. Se o seu trabalho fosse assalariado, o valor agregado pelo trabalho se dividiria entre parte paga, v, e parte não-paga, m. Mesmo sendo proprietário ou alugador dos meios de produção, o entregador recebe somente o equivalente ao valor de sua reprodução, v. A economia de gastos para o consumidor, que paga v e não v + m, provoca um aumento na escala de operações do CCV uma vez que faz crescer a massa de pedidos. Assim, o lucro dessas empresas parece advir da apropriação direta de trabalho não-pago dos entregadores, produzindo, assim, a aparência de que esses entregadores estão submetidos a uma relação de assalariamento.

Estaria a interpretação proposta neste artigo reforçando “o elemento central da estratégia empresarial”, que segundo Filgueiras e Antunes (2021, p.60)FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021. é negar o assalariamento? Pouco provável. O que é certo é que a unanimidade acerca da existência de uma relação salarial nos trabalhos de plataforma se mostra infundada no caso do trabalho de delivery de comida e compras de supermercado. Essa exceção indica que as várias formas de trabalho baseadas em plataformas digitais devem ser estudadas em detalhe e classificadas de acordo com a origem dos ganhos das empresas e dos trabalhadores por elas mobilizados.

A atividade do capital de comércio de vendas, isto é, das empresas-aplicativo de delivery de comida e compras de supermercado, é tão ou mais pérfida que a exploração direta de mais-valia. A gratuidade para o consumidor de parte do trabalho de transporte é o instrumento dessas empresas para aumentar os seus lucros e intensificar o trabalho dos entregadores. O simples reconhecimento da existência de uma relação capital-trabalho que precisa ser assumida e submetida à regulamentação está aquém da complexidade dessa nova forma de capital. As empresas-aplicativo impõem a exploração sem explorar diretamente; impõem ao cliente final o consumo de trabalho excedente como mecanismo de expansão dos seus lucros. Se a luta para regulamentar essa relação não for capaz de explicitar esses fatos, se perderá uma ocasião de submeter o sistema como um todo a uma crítica radical.

  • 1
    Espanha, Holanda, Portugal, Irlanda, Alemanha, Lituânia, Croácia, Romênia, Suécia, Itália, França, Finlândia, Hungria, Eslováquia, República Tcheca e Reino Unido.
  • 2
    Zuboff (2015)ZUBOFF, S. Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. Journal of Information Technology, v. 30, p. 75-89, 2015. apud Amorim e Moda (2020, p. 114)AMORIM, H.; MODA, F. Work by app: algorithmic management and working conditions of Uber drivers in Brazil. Work Organisation, Labour & Globalisation, v. 14, n. 1, p. 101-118, 2020..
  • 3
    Cederström e Fleming (2012)CEDERSTRÖM, C.; FLEMING, P. Dead man working. Winchester/Washington: Zero Books, 2012. apud Woodcock (2021, p. 41)WOODCOCK, J. O panóptico algorítimo da Deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021..
  • 4
    Brophy (2010)BROPHY, E. The subterranean stream: communicative capitalism and call center labour. Ephemera, v.10, n. 3-4, 2010. apud Woodcock (2021, p. 27)WOODCOCK, J. O panóptico algorítimo da Deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021..
  • 5
    Srnïcek (2016)SRNÏCEK, N. Platform capitalism. London: Polity, 2016. apud Abilio (2020, p. 29)ABILIO, L. C.; ALMEIDA, P. F.; AMORIM, H.; CARDOSO, A. C. M.; da FONSECA, V. P.; KALIL, R. B.; MACHADO, S. Condiçoes de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região, v. 3, 2020..
  • 6
    A TPT é um campo de pesquisa que se desenvolveu a partir da publicação do livro de Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital. Inicialmente de cunho marxista, as fronteiras desse campo de pesquisa se alargaram para abarcar autores não marxistas de diversos matizes. Smith (2015)SMITH, C. Continuity and change in labor process analysis forty years after labor and monopoly capital. Labor Studies Journal, v. 40, n. 3, p. 222-242, 2015. faz uma revisão histórica dos trabalhos realizados no âmbito da Teoria do Processo de Trabalho desde o livro de Braverman até os dias de hoje.
  • 7
    Esse é o caso puro, no qual não há nenhuma disputa quanto ao destino da taxa de entrega. Possíveis divergências entre taxa de entrega e montante pago ao entregador deveriam ser objeto de escrutínio detalhado.
  • 8
    Filgueiras e Antunes (2021, p. 74)FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2021., por exemplo, afirmam categoricamente que a fração do valor produzido pelo entregador que é apropriada pela plataforma é conhecida. No entanto, a comprovação disso requereria demonstrar que as plataformas se apropriariam sistematicamente de um percentual do valor do transporte pago pelo consumidor, demonstração essa ainda não realizada.
  • JEL: J46.

Referências bibliográficas

  • ABÍLIO, L. C. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 São Paulo: Boitempo Editorial, 2021.
  • ABÍLIO, L. C. Uberizaçao do trabalho: subsunçao real da viração. Passa Palavra, São Paulo, 19 fev. 2017. Disponível em: http://passapalavra.info/2017/02/110685 Acesso em: 28 out. 2021.
    » http://passapalavra.info/2017/02/110685
  • ABILIO, L. C.; ALMEIDA, P. F.; AMORIM, H.; CARDOSO, A. C. M.; da FONSECA, V. P.; KALIL, R. B.; MACHADO, S. Condiçoes de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a Covid-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região, v. 3, 2020.
  • ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avancados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, abr. 2020.
  • AMORIM, H.; MODA, F. Work by app: algorithmic management and working conditions of Uber drivers in Brazil. Work Organisation, Labour & Globalisation, v. 14, n. 1, p. 101-118, 2020.
  • ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 São Paulo: Boitempo, 2021.
  • AQUINO, D. C. A lei geral da acumulação capitalista e suas implicações sobre a estrutura de classe. In: CIPOLLA, F. P.; AQUINO, D. C. (Org.). 150 anos d’O Capital: a atualidade de Marx. Curitiba: CRV, 2017.
  • BRANCATI, U.; CESIRA, M.; PESOLE, A.; MACIAS, E. F. New evidence on platform workers in Europe, EUR 29958 EEN. Luxembourg: Publications Office of the European Union, 2020.
  • BROPHY, E. The subterranean stream: communicative capitalism and call center labour. Ephemera, v.10, n. 3-4, 2010.
  • CEDERSTRÖM, C.; FLEMING, P. Dead man working Winchester/Washington: Zero Books, 2012.
  • CIPOLLA, F. P. Bonus wages: beyond piece wages. Review of Radical Political Economics, v. 45, n. 3, p. 369-383, Summer 2013.
  • DE STEFANO, V. The rise of the “just-in-time workforce”: on-demand work, crowdwork and labour protection in the “gig-economy”. International Labour Organization, 2016. (ILO Working Papers, 994899823402676).
  • DI GIORGI, F. Delivery de supermercado, visão sistêmica de um Super Aplicativo 2019. Disponível em: http://www.fernandodigiorgi.blog.br/2020/03/15/delivery-de-supermercado-visao-sistemica-de-um-super-aplicativo Acesso em: 12 mar. 2020.
    » http://www.fernandodigiorgi.blog.br/2020/03/15/delivery-de-supermercado-visao-sistemica-de-um-super-aplicativo
  • FILGUEIRAS, V.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 São Paulo: Boitempo, 2021.
  • GANDINI, A. Labour process theory and the gig economy. Human Relations, v. 72, n. 6, p. 1039-1056, 2019.
  • GRAHAM, M.; ANWAR, M. A. Trabalho digital. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 São Paulo: Boitempo, 2021.
  • GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 São Paulo: Boitempo, 2021.
  • HELENA, D. Quem são os entregadores de Apps que estiveram na paralisação de 1o. de julho? Ideias de Esquerda, jul. 2020.
  • HOCHSCHILD, A. R. The managed heart: commercialization of human feeling. Los Angeles: University of California Press, 1983.
  • ILO – International Labour Organization. World employment and social outlook: the role of digital labour platforms in transforming the world of work. Genebra: International Labour Office, 2021. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_771749.pdf Acesso em: 14 out. 2021.
    » https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/wcms_771749.pdf
  • ILO – International Labor Organization. Women and men in the informal economy: a statistical picture. 3. ed. 2018.
  • INTERNATIONAL MONETARY FUND. World Economic Outlook: chapter 5 – The globalization of labor. Apr. 2007, p. 161-192.
  • JOYCE, S. Rediscovering the cash nexus, again: subsumption and the labour-capital relation in platform work. Capital & Class, v. 44, n. 4, p. 541-552, 2020.
  • LAPAVITSAS, C. Profiting without producing: how finance exploit us all. London: Verso, 2013.
  • PRADO, E. Subsunção financeira do trabalho ao capital. Revista Princípios, n. 154, maio/jun. 2018.
  • MARX, K. Capitalist production as the production of surplus value. 1861-1864. Disponível em: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1864/economic/ch02.htm Acesso em: 12 set. 2021.
    » https://www.marxists.org/archive/marx/works/1864/economic/ch02.htm
  • MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro I. São Paulo: Boitempo Editorial, 2015.
  • MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro III. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
  • MARX, K. O Capital: crítica da economia política, Livro II. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.
  • MARX, K. Theories of surplus value: Part I. Moscou: Progress Publishers, 1969.
  • MARX, K. O Capital, Livro I, Capítulo VI Inédito. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda, 1978.
  • MOORE, P. V.; JOYCE, S. Black box or hidden abode? The expansion and exposure of platform work managerialism. Review of International Political Economy, v. 27, n. 4, p. 926-948, 2020.
  • PIRES, G. N.; PINTO, J. P. G. Gig economy, austerity and “uberization” of labor in Brazil (2014-2019). Argumentum, v. 12, n. 3, p. 237-255, 2020.
  • OLIVEIRA, F. Passagem na neblina. In: OLIVEIRA, F.; STEDILE, P.; GENOINO, J. Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo São Paulo: Fundaçao Perseu Abramo, 2000.
  • PAULANI, L. M. O papel da força viva de trabalho no processo capitalista de produção – Uma análise dos dilemas contemporâneos. Estudos Econômicos, v. 31, n. 4, p. 695-721, 2001.
  • PRADO, E. Geração, adoção e difusão de técnicas de produção – um modelo baseado em Marx. Revista Análise Econômica, ano 19, n. 36, p. 67-80, 2002.
  • SAAD-FILHO, A. Neoliberalismo: uma análise marxista. Marx e o Marxismo, v. 3, n. 4, jan./jun. 2015.
  • SMITH, C. Continuity and change in labor process analysis forty years after labor and monopoly capital Labor Studies Journal, v. 40, n. 3, p. 222-242, 2015.
  • SODRANA, P. Entregadores organizam paralisação e movimento chega a capitais latinas. Folha de São Paulo, 29 jun. 2020. Disponível em: https://www.folha.uol.com.br
    » https://www.folha.uol.com.br
  • SRNÏCEK, N. Platform capitalism London: Polity, 2016.
  • SUDRÉ, L. O dia a dia dos entregadores de apps: 12h de trabalho, sem apoio e sem direitos. Diário do Centro do Mundo, 30 jun. 2020.
  • WOODCOCK, J. O panóptico algorítimo da Deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 São Paulo: Boitempo, 2021.
  • ZUBOFF, S. Big other: surveillance capitalism and the prospects of an information civilization. Journal of Information Technology, v. 30, p. 75-89, 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Ago 2020
  • Aceito
    02 Maio 2022
Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Publicações Rua Pitágoras, 353 - CEP 13083-857, Tel.: +55 19 3521-5708 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: publicie@unicamp.br