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Johnny vai à guerra

RESENHA

Trumb D. Johnny vai à guerra. Rio de Janeiro: Relume Dumará; 2003.

Denize Bouttelet MumariI; Marcelo MedeirosII

IEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás

IIEnfermeiro. Doutor em Enfermagem. Professor Adjunto da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás

Endereço Endereço: Denize Bouttelet Mumari Rua 227, Qd 68 s/n (FEN/UFG) 74605 080 - Setor Leste Universitário, Goiânia, Go E-mail: denize@fen.ufg.br

O propósito desta resenha é apresentar e discutir as interfaces que identificamos entre a mensagem da obra e a área de (Enfermagem em) Saúde Mental, no que se refere ao atendimento à pessoa. Esta obra literária nos traz, na perspectiva do personagem central da trama Johnny, a atitude sensível de uma enfermeira frente a uma pessoa sem condições de se comunicar com o mundo exterior e sua disposição em cuidar, através da sua intuição e escuta às necessidades do outro, independentemente da sua condição de saúde ou prognóstico. Embora o lançamento do livro tenha ocorrido no final da década de 30 nos EUA, a temática da obra é bastante atual. Foi traduzida para o português e editada no Brasil pela primeira vez em 1976, pela Editora Civilização Brasileira e reeditada em 2003 pela Relume Dumará.

Os pensamentos, memórias e sensações de um jovem mutilado é a base para o desenvolvimento da história do personagem que, devido a explosão de uma granada nas trincheiras durante a Primeira Guerra Mundial, perdeu todos os membros e os sentidos, exceto o tato. Elaborado sob os pressupostos huma-nistas e firme convicção contra os horrores da guerra, este romance evoca o leitor para os dilemas éticos e valores humanos, sinalizando a importância da humanização da assistência em saúde, à semelhança do roteiro explorado pelos filmes "O homem Elefante" (David Lynch), "Um estranho no ninho" (Milos Forman), entre outros.

Escrito pelo norte-americano Dalton Trumbo, o livro teve uma história política confusa, segundo o próprio autor. Foi publicado pela primeira vez em 03 de setembro de 1939, dois dias após ter sido declarado o início da Segunda Grande Guerra Mundial, com uma mensagem contundente em defesa da paz, expressando as idéias da esquerda norte-americana contrária à entrada dos EUA na guerra. A obra, banida pelo governo daquele país na época, era cada vez mais procurada nas livrarias, conforme o conflito se acentuava no front, por expor de modo muito particular os questionamentos sobre os motivos da guerra e da exposição da humanidade às atrocidades dos generais e comandantes. Alvo do FBI, o autor não esmoreceu aos seus propósitos de questionar as razões da guerra e as circunstâncias criadas que para homens e jovens fossem enviados para os combates, em detrimento de suas famílias, e de clamar pela paz.

Nos Estados Unidos, foi reeditado ainda algumas vezes, recebendo um adendo na Introdução em 1970, quando retomou a crítica sobre a posição do país na guerra do Vietnã e chamando a atenção para que os leitores questionassem também as forças armadas sobre o real sentido de tantas perdas e tanto sofrimento. Este aspecto em particular, nos permite transportar o livro para o contexto atual deste início de século/milênio, tendo em vista a realidade frente à violência urbana diária a que estamos expostos e, particularmente, nos países vítimas do terrorismo, consistindo assim em um chamado à atenção sobre os rumos e futuro da humanidade.

O autor nasceu em 1905 na cidade de Montrose EUA e escreveu seis romances, destacando-se como roteirista de filmes como "Papillon", "Exodus" e "Espartacus". Foi vencedor do prêmio Oscar de Melhor Roteiro por "The Brave One", que assinou com um pseudônimo, devido à perseguição política maccarthista. Esse fato fez com que fosse receber seu prêmio apenas na cerimônia de 1974, dois anos antes de sua morte. Dirigiu apenas um filme em 1971, "Jonhny got his gun", com roteiro adaptado do romance homônimo, que pôde ser visto nos cinemas brasileiros no início da década de oitenta. Após exaustivas buscas, localizamos cópia do filme em VHS apenas em uma vídeo locadora da cidade de São Paulo.

O texto é dividido em duas partes. Na primeira (Livro I Morrer) é contada, em cerca de 100 páginas, detalhadamente e com grande sensibilidade, a saga de um jovem nos dias que antecedem seu embarque para a guerra, as situações vividas nas despedidas de familiares e amigos, as dificuldades para entender o porquê da guerra e o seu envolvimento compulsório nela. Ainda nesta parte, o personagem mescla suas lembranças com aquilo que deixou para trás, suas (in)experiências e seus dilemas diante dos horrores das batalhas, até o dia em que é atingido por uma granada numa trincheira que lhe tira quatro dos seus sentidos e todos os membros. O autor passa a explorar então o drama do personagem, para entender os primeiros dias após a explosão, a sua busca em compreender o que restou de seu corpo, assim como de sua autonomia como ser humano, já que o que lhe restou foi apenas o tato. Levado para um hospital de guerra, o personagem descreve com sutileza e riqueza de detalhes, o contato com profissionais que lhes prestava cuidado, tendo particular descrição a atuação das enfermeiras, assim como os efeitos das drogas que eram testadas no seu corpo mutilado. Nesse ponto, a obra se torna uma excelente estratégia para a discussão no processo de formação de profissionais de saúde, em particular os de enfermagem, sobre a importância da intuição, do toque e da comunicação humana entendida em todas as suas possibilidades como recurso terapêutico indispensável para o cuidado em saúde1-2.

Mais surpreendente ainda é a forma como o autor retrata, por meio do personagem, a esperança na vida e no contato com o mundo externo, o que certamente lhe garante o mínimo de saúde mental para ter forças para lutar pela sua sobrevivência, que é então o eixo condutor do Livro II Viver. Nessa segunda parte, Johnny descreve a sua busca pela vida, tentando a comunicação com os profissionais de saúde e as tentativas frustradas em se fazer entender. Descobre em um certo momento, que apenas o movimento da cabeça foi preservado, já que não tem disponível nenhum membro e nenhuma outra forma de comunicação. Em uma troca de plantão, percebe que uma enfermeira nova, não se apressa durante os cuidados, nem os faz de modo automático. Percebe também a sensibilidade e o zelo dessa profissional que busca através dos procedimentos executados lhe oferecer "cuidado", citado aqui na complexidade e completude do termo3-4.

A observação, os contatos e as experiências nas relações com essa enfermeira encorajam Johnny a buscar formas de mostrar seu contentamento por ter alguém que acredita que ele não é apenas um amontoado de carne, exposta aos experimentos dos "estudiosos" médicos da guerra. Uma noite, Johnny percebe que a enfermeira, após terminar os seus cuidados, quando já estava de saída, retorna e levanta o lençol que lhe cobre o peito escrevendo com seus dedos as palavras: FELIZ NATAL. Esse contato foi o suficiente para que o jovem se esforçasse para manter contato o maior tempo possível com essa profissional e ter a idéia de fazer do Código Morse sua boca e seus ouvidos. Johnny passou então a sinalizar com a cabeça, utilizando esse código sempre que alguém entrava para algum procedimento. Alguns, por acreditar que ele estava agitado ou tendo algum ataque, solicitavam que ele fosse medicado para se acalmar.

Apenas aquela enfermeira compreendeu suas mensagens e, com calma, começa seu contato através do código e dos sinais mostrados por Johnny, usando a testa do jovem como guia para a comunicação. A enfermeira então, coloca o ocorrido ao chefe da equipe, que à primeira vista não acredita na veracidade do fato. Mas, por intermédio da enfermeira, foi possível a Johnny comunicar-se com as outras pessoas e, em particular, com o chefe do serviço, que lhe pergunta através da linguagem codificada: qual seu desejo? O pedido foi simples: queria sair para sentir o ar fresco fora do hospital e as pessoas. Dias depois, chegou a resposta que nos surpreende pela crueldade da subserviência e inflexibilidade humanas. Sugerimos que o leitor busque a resposta em detalhes ao ler o livro que não está muito distante do que vemos repetir no dia a dia dos nossos serviços de saúde.

No entanto, a expressão de Johnny a partir do contundente NÃO do chefe do serviço, nos faz entender melhor como podemos tornar as coisas mais difícies para aqueles que estão sob nossos cuidados nos serviços de saúde: "enquanto sinalizava sentia na testa a mão da enfermeira alisando-o, acalmando-o. Pensou consigo mesmo gostaria de ver-lhe o rosto. Deve ser um rosto bonito ela tem mãos tão bonitas. Então sentiu algo úmido e frio no toco do braço esquerdo. O homem que sinalizara a resposta estava passando algodão com álcool. Oh, Deus pensou ele, sei o que isso significa, não o façam por favor não. Depois sentiu a picada fina e mortal da agulha. Estavam lhe dando outra vez entorpecentes. Oh, Deus pensou nem sequer me deixam falar. Nem sequer me ouvem mais. Tudo o que querem é fazer de mim um louco a fim de que quando sinalize as minhas mensagens possam dizer, ele é apenas um louco não lhe dêem atenção pobre diabo está maluco. É isso que estão tentando fazer Deus, estão tentando me enlouquecer e lutei tanto e fui tão forte que é a única maneira que têm para fazê-lo é me dar entorpecentes"5: 221.

Através dessa transcrição ressaltamos que a leitura dessa obra se presta a todos os profissionais de saúde e outros seres humanos que desejam e buscam a humanização do processo de cuidar, tais como estudantes da área da saúde, em particular, os de Enfermagem, por mostrar o real significado do cuidado humano. Da mesma forma, por nos inspirar a questionar os padrões, regras e regulamentos institucionais que nós mesmos criamos.

Finalmente, o texto nos remete aos motivos da nossa escolha profissional, aos pressupostos do nosso posicionamento ético diante da vida e ainda da noção que temos de saúde mental e de como preservá-la. Para alguns, que como nós, tiveram a oportunidade de assistir ao filme nos idos de 1980, será uma deliciosa experiência em reviver a saga desse personagem e de seus interlocutores, principalmente, aqueles que nos tornam mais próximos da nossa natureza como ser humano e, em nosso caso em particular, também como enfermeiros.

Recebido em: 15 de maio de 2004

Aprovação final: 25 de agosto de 2004

  • 1 Remen N. O paciente como ser humano. São Paulo: Summus; 1993.
  • 2. Maldonado MT, Canella P. Recursos de relacionamento para profissionais de saúde: a boa comunicação com clientes e seus familiares em consultórios, ambulatórios e hospitais. Rio de Janeiro: Reichmann & Affonso Editores; 2003.
  • 3. Waldow VR. Cuidado humano: o resgate necessário. Porto Alegre: Sagra Luzzato; 1998.
  • 4. Boff L. Saber cuidar: ética do humano compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes; 1999.
  • 5. Trumb D. Jonhny vai à guerra. Rio de Janeiro: Relumé Dumará; 2003.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
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