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Reflexões sobre a promoção da saúde numa perspectiva bioética

Reflections about health promotion on a bioethics

Reflexiones sobre la promoción de la salud en una perspectiva bioética

Resumos

No artigo, discute-se a promoção da saúde numa perspectiva de modelo sanitário, entendido como conjunto de elementos de natureza teórica, cultural e técnica que se expressam nos espaços da organização do trabalho e das práticas de saúde. A evolução histórica das idéias de promoção da saúde apresenta diferentes interpretações que podem ser reunidas em duas principais tendências. A primeira, com enfoque comportamental, expressa-se em ações que visam à transformação de hábitos e estilos de vida, pontuando fatores de risco e transferindo a responsabilidade ao indivíduo. A segunda considera fundamental o papel protagonista dos determinantes gerais sobre as condições de vida e de saúde estando diretamente relacionada à qualidade de vida individual e coletiva. Nesta análise, buscamos refletir acerca das motivações éticas expressas nas duas tendências, enfocando os princípios da responsabilidade e da autonomia, tendo por referência a Bioética Cotidiana de Berlinguer e a Bioética da Proteção de Schramm.

Promoção da saúde; Bioética; Estilo de vida


The article discusses health promotion from the sanitary model perspective. It is known as a group of elements of the theoretical, cultural and technical nature, which are expressed in the areas of work and health practices organization. The historical evolution of the ideas of health promotion presented different interpretations. There are two major tendencies. The first is focused on behaviour, expressed through actions that change lifestyle and habits, emphasizing risk factors and transferring the responsibility to the individual. In the second, the role of general determinants about health and life conditions is fundamental, because it is directly relegated to collective and individual life quality. This analysis reflects on ethics motivations expressed in both tendencies: the autonomy and responsibility principles. The Daily Bioethics of Berlinguer and the Protection Bioethics of Schramm are used as reference analysis.

Health promotion; Bioethics; Lyfe style


En el artículo se discute la promoción de la salud en una perspectiva del modelo sanitario comprendido como un conjunto de elementos de naturaleza teórica, cultural y técnica los cuales son expresados en los espacios de la organización del trabajo y de la práctica de salud. La evolución histórica de las nociones acerca de la promoción de la salud presenta diferentes interpretaciones que pueden ser reunidas en dos tendencias principales. La primera tiene un enfoque comportamental y se expresa en las acciones con el objetivo de cambiar los hábitos y estilos de vida, señalando factores de riesgo y pasando la responsabilidad a los individuos. La segunda considera fundamental el rol protagonista de los determinantes generales sobre las condiciones de vida y de salud relacionadas con la calidad de vida individual y colectiva. El análisis permitió una reflexión sobre las motivaciones éticas expresadas en las dos tendencias enfocando los principios de la responsabilidad y de la autonomía teniendo por referencia la Bioética Cotidiana de Berlinguer y la Bioética de la Protección de Schramm.

Promoción de la salud; Bioética; Estilo de vida


REFLEXÃO

Reflexões sobre a promoção da saúde numa perspectiva bioética

Reflections about health promotion on a bioethics

Reflexiones sobre la promoción de la salud en una perspectiva bioética

Marta VerdiI; Sandra CaponiII

IEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Departamento de Saúde Pública e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública/UFSC

IIFilósofa, Doutora em Filosofia. Professora do Departamento de Saúde Pública e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública/UFSC

Endereço Endereço: Marta Verdi Rua Laurindo Januário da Silveira, 5125, casa 6 88062-200 - Lagoa da Conceição, Florianópolis, SC E-mail: verdi@mbox1.ufsc.br

RESUMO

No artigo, discute-se a promoção da saúde numa perspectiva de modelo sanitário, entendido como conjunto de elementos de natureza teórica, cultural e técnica que se expressam nos espaços da organização do trabalho e das práticas de saúde. A evolução histórica das idéias de promoção da saúde apresenta diferentes interpretações que podem ser reunidas em duas principais tendências. A primeira, com enfoque comportamental, expressa-se em ações que visam à transformação de hábitos e estilos de vida, pontuando fatores de risco e transferindo a responsabilidade ao indivíduo. A segunda considera fundamental o papel protagonista dos determinantes gerais sobre as condições de vida e de saúde estando diretamente relacionada à qualidade de vida individual e coletiva. Nesta análise, buscamos refletir acerca das motivações éticas expressas nas duas tendências, enfocando os princípios da responsabilidade e da autonomia, tendo por referência a Bioética Cotidiana de Berlinguer e a Bioética da Proteção de Schramm.

Palavras-chave: Promoção da saúde. Bioética. Estilo de vida.

ABSTRACT

The article discusses health promotion from the sanitary model perspective. It is known as a group of elements of the theoretical, cultural and technical nature, which are expressed in the areas of work and health practices organization. The historical evolution of the ideas of health promotion presented different interpretations. There are two major tendencies. The first is focused on behaviour, expressed through actions that change lifestyle and habits, emphasizing risk factors and transferring the responsibility to the individual. In the second, the role of general determinants about health and life conditions is fundamental, because it is directly relegated to collective and individual life quality. This analysis reflects on ethics motivations expressed in both tendencies: the autonomy and responsibility principles. The Daily Bioethics of Berlinguer and the Protection Bioethics of Schramm are used as reference analysis.

Keywords: Health promotion. Bioethics. Lyfe style.

RESUMEN

En el artículo se discute la promoción de la salud en una perspectiva del modelo sanitario comprendido como un conjunto de elementos de naturaleza teórica, cultural y técnica los cuales son expresados en los espacios de la organización del trabajo y de la práctica de salud. La evolución histórica de las nociones acerca de la promoción de la salud presenta diferentes interpretaciones que pueden ser reunidas en dos tendencias principales. La primera tiene un enfoque comportamental y se expresa en las acciones con el objetivo de cambiar los hábitos y estilos de vida, señalando factores de riesgo y pasando la responsabilidad a los individuos. La segunda considera fundamental el rol protagonista de los determinantes generales sobre las condiciones de vida y de salud relacionadas con la calidad de vida individual y colectiva. El análisis permitió una reflexión sobre las motivaciones éticas expresadas en las dos tendencias enfocando los principios de la responsabilidad y de la autonomía teniendo por referencia la Bioética Cotidiana de Berlinguer y la Bioética de la Protección de Schramm.

Palabras clave: Promoción de la salud. Bioética. Estilo de vida.

INTRODUÇÃO

A promoção da saúde tem se constituído, na última década, num dos temas mais citados e reiterados nos diferentes espaços da produção do conhecimento e das práticas de saúde. É importante explicitar que promoção da saúde é compreendida, no âmbito deste estudo, como modelo sanitário caracterizado pelo conjunto de elementos de natureza teórica, cultural e técnica que se organizam numa determinada sociedade e num determinado momento histórico, com o propósito de responder às demandas do campo da saúde e cuja existência é possibilitada apenas na realidade concreta.1-2 Assim, modelos sanitários são construções sociais resultantes de relações de disputas e acordos entre diferentes segmentos da sociedade que confrontam seus interesses, seus valores, suas crenças nas diferentes arenas societais, como por exemplo, o espaço de formulação de políticas públicas de saúde, da organização do processo de trabalho em saúde e das próprias práticas de saúde. É relevante evidenciar, ainda, a importância de se reconhecer que, na prática, inexistem modelos puros, pois eles se apresentam desta forma apenas enquanto construções teóricas, servindo de referência para a análise da realidade e a identificação de diferenças, que possibilitam escolhas e decisões.

A produção acadêmica acerca da promoção da saúde mostra a diversidade de interpretações que surgiu ao longo deste período, evidenciando, de um lado, a grande fertilidade no mundo da construção das idéias de promoção da saúde, e de outro, a fragilidade com que se revelam na realidade das práticas de saúde. Estas diferentes interpretações podem ser reunidas em duas grandes tendências, uma, com enfoque predominantemente comportamental, referenciada pelos hábitos e estilos de vida, e a outra, guiada pela concepção de qualidade de vida, direcionada pelos determinantes gerais das condições de vida e saúde da sociedade.

Considerando as possíveis contradições existentes entre as duas tendências, buscamos refletir sobre as motivações éticas que nelas se expressam, evidenciando-se diferenças e aproximações, mas, sobretudo, tomando por referência os princípios da responsabilidade da autonomia. Deste modo, o trabalho propõe-se a discutir a promoção da saúde à luz de dois referenciais da bioética contemporânea preocupados com questões da saúde pública, quais sejam, a Bioética Cotidiana3 e a Bioética da Proteção.4

SOBRE A PROMOÇÃO DA SAÚDE: A EVOLUÇÃO DE MODELOS

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que as diferentes concepções de promoção da saúde não são formulações recentes, mas são construções cuja evolução histórica mostra momentos de aproximação e distanciamento com outros modelos do campo da saúde como o modelo preventivo. Efetivamente, promoção da saúde não se apresenta como um conceito inédito, nem como uma estratégia desconhecida, mas tem estado presente em diversos estudos, ao longo do último século. Embora o termo seja o mesmo, seu significado tem mudado, conforme a estrutura conceitual e as estratégias operativas a que se liga, expressando uma verdadeira evolução do conceito.

Nas últimas décadas do século XX, observou-se uma rápida e expressiva evolução no campo da promoção da saúde, tanto em nível da construção teórica, como na formulação de estratégias inovadoras de implementação. Dois eventos representam verdadeiros marcos desta evolução: o Informe Lalonde1 1 Publicação do Ministro da Saúde Canadense, Marc Lalonde, que se constituiu na primeira manifestação teórica da saúde pública que buscou questionar a abordagem exclusivamente médica para as doenças crônicas. Com motivação política, econômica e técnica, o documento possibilitou passar de uma noção tradicional que reduz a saúde aos limites da medicina para uma idéia de campo de saúde mais amplo. , de 1974, e a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada em 1986, cujo documento final, a Carta de Ottawa, tornou-se emblemático para o movimento que se aglutinava em torno da promoção da saúde.5

Entretanto, muito antes de Lalonde e da Carta de Ottawa, outros autores já haviam dirigido seu olhar para a promoção da saúde, inserindo-a na discussão de outras temáticas, como é o caso do médico francês Henry Sigerist e de Charles-Edward Winslow, médico e líder da saúde pública americana.6 Sigerist foi um dos primeiros autores a referir o termo promoção da saúde em seu artigo The place of the phisician in modern society, de 1946, no qual indicou as quatro tarefas essenciais da medicina: a promoção da saúde, a prevenção da doença, a recuperação dos enfermos e a reabilitação. Para ele, promover a saúde implicava proporcionar condições de vida e de trabalho decentes, educação, cultura física e formas de lazer e descanso, invocando, para tanto, o esforço coordenado de políticos, setores sindicais e empresariais, educadores e médicos. A estes últimos imputava um papel social de proteger as pessoas e guiá-las para uma vida cada vez mais saudável e feliz.

Na mesma época, a promoção da saúde também era foco de atenção nos trabalhos de Winslow que, no artigo The Evolution of Public Health and its Objectives, apresentou sua definição de saúde pública como a ciência e a arte de evitar doenças, prolongar a vida e promover a saúde física e mental. À semelhança de Sigerist, referiu-se à promoção da saúde como um esforço da comunidade organizada para efetivar políticas de melhoria das condições de saúde da população e programas educativos dirigidos à saúde individual, bem como para desenvolver mecanismos sociais que assegurem a todos níveis de vida adequados para a manutenção e melhoria da saúde.7

Contudo, a formulação teórica mais reconhecida, dentre aquelas que incorporaram o conceito de promoção da saúde, é, sem dúvida, a baseada no modelo da História Natural das Doenças apresentado no livro Medicina Preventiva.8 Neste modelo, o processo evolutivo de uma doença subdivide-se em período pré-patogênico (anterior ao início da doença, porém considerando a suscetibilidade) e período patogênico (quando a doença já iniciou seu curso). A estes foram ajustados três diferentes níveis de prevenção com suas respectivas medidas ou ações preventivas: prevenção primária, com ações de promoção da saúde e proteção específica, prevenção secundária, com o diagnóstico precoce e o tratamento e limitação da invalidez; e prevenção terciária, com ações de reabilitação. Considerando os elementos que integram o período pré-patológico do processo evolutivo de uma doença, a promoção da saúde é composta por medidas ou ações de saúde como educação sanitária, alimentação e nutrição adequadas, moradia adequada, lazer, condições de trabalho adequadas, entre outras, que buscam desenvolver uma saúde geral melhor. Em relação à educação sanitária, são enfatizadas as ações de educação, orientação e aconselhamento, relativas às situações de saúde que envolvem, de maneira geral, o comportamento dos indivíduos, tais como a educação sexual e a orientação de hábitos saudáveis.

Esta concepção tem sido alvo de severas críticas por parte de diferentes autores. Dois aspectos interrelacionados são alvo de questionamentos. O primeiro, refere-se ao reducionismo do foco de atenção da medida de promoção da saúde no âmbito individual, uma vez que as ações dirigem-se, via de regra, para o indivíduo, podendo projetar-se, às vezes, para a dimensão da família e, mais raramente, para os grupos sociais. Já na segunda questão, é apontada a inadequação do modo de conceituar promoção da saúde para o caso das doenças crônicas não-transmissíveis, pois, com o advento da segunda revolução epidemiológica, esta passou a associar-se a medidas preventivas sobre o ambiente e o estilo de vida da população. Deste modo, ampliava-se o enfoque da promoção da saúde para além do indivíduo e família, passando a incorporar uma atenção dirigida a outros atores sociais.6

As formulações conceituais sobre promoção da saúde passaram, nas últimas décadas, por um intenso processo evolutivo, apresentando-se em diferentes interpretações. Considerando que não é pretensão deste estudo esgotá-las, apenas apontaremos, que, de um modo geral, estas formulações podem ser reunidas em duas grandes tendências. A primeira, centrada no comportamento dos indivíduos e seus estilos de vida, e a segunda, dirigida a um enfoque mais amplo de desenvolvimento de políticas públicas e condições favoráveis à saúde.9

Uma das características da primeira tendência é o seu enfoque fortemente comportamental, expresso por meio de ações de saúde que visam à transformação de hábitos e estilos de vida dos indivíduos, considerando o ambiente familiar, bem como o contexto cultural em que vivem. Nesta ótica, a promoção da saúde tende a priorizar aspectos educativos ligados a fatores de riscos comportamentais individuais, e, portanto, processo potencialmente controlado pelos próprios indivíduos. Para exemplificar, basta pensarmos na complexa questão do hábito de fumar. As campanhas educativas, em geral, são pautadas na abordagem que focaliza no próprio fumante as causas e, porque não dizer a culpa, de seu ato, transferindo ao sujeito a responsabilidade de sua saúde. Esta situação se aproxima muito da visão da culpabilização da vítima, reduzindo o âmbito do problema ao nível do indivíduo e sua extensão ao nível do comportamento.10 Desta maneira, não fariam parte da promoção da saúde os fatores e condições que estivessem fora do controle dos próprios indivíduos.

Por outro lado, a segunda tendência, considera fundamental o papel protagonista dos determinantes gerais sobre as condições de saúde, cujo amplo espectro de fatores está diretamente relacionado com a qualidade de vida individual e coletiva. Logo, promover a saúde implica considerar padrões adequados de alimentação, de habitação e de saneamento, além de boas condições de trabalho, acesso à educação, ambiente físico limpo, apoio social para famílias e indivíduos e estilo de vida responsável. Promover a saúde implica, também, dirigir o olhar ao coletivo de indivíduos e ao ambiente em todas as dimensões, física, social, política, econômica e cultural. Por fim, promover a saúde implica uma abordagem mais ampla da questão da saúde na sociedade.

Nesta lógica, à promoção da saúde correspon-deriam alguns campos privilegiados de ação tais como: políticas públicas saudáveis, ambientes favoráveis à saúde, fortalecimento da ação comunitária, bem como o desenvolvimento de habilidades e atitudes favoráveis à saúde.

Através das políticas públicas saudáveis, fica clara a intenção de inserir a idéia de promoção da saúde na pauta dos programas políticos, em todos os setores da sociedade e em todos os níveis da organização social, como forma dos políticos, dirigentes, lideranças, enfim, responsáveis pelas políticas públicas, tomarem consciência das conseqüências de suas decisões sobre a saúde da população e assumirem a sua responsabilidade neste amplo espectro. As políticas públicas saudáveis podem efetivar-se por meio de diversas ações complementares, que englobam desde a legislação e medidas fiscais, passando pelas mudanças organizacionais, até as ações intersetoriais coordenadas, visando à distribuição mais eqüitativa de renda, as políticas sociais e a eqüidade em saúde.

O reconhecimento da complexidade da sociedade, bem como das relações de interdependência entre os diversos setores que a compõem, apresenta-se como condição essencial ao desenvolvimento de ambientes favoráveis à saúde. Considerando que as formas de vida, de trabalho e de lazer devem ser fontes de saúde, e que o trabalho deve constituir-se num recurso para a criação de uma sociedade saudável, é apontada como prioridade estratégica o desenvolvimento de ambientes que facilitem e favoreçam a saúde, como o trabalho, o lazer, o lar, a escola e a própria cidade.

Outro campo de ação da promoção da saúde, o fortalecimento da ação comunitária, expressa-se através do incremento do poder técnico e político das comunidades (empowerment)2 2 Empowerment, traduzido como empoderamento, é entendido como o processo de capacitação para a aquisição de poder técnico e político por parte dos indivíduos e da comunidade. , visando a sua participação efetiva e concreta na escolha de prioridades, tomada de decisões e na elaboração e implementação de estratégias para alcançar um melhor nível de saúde. Neste sentido, deve ser garantido o acesso total e contínuo às informações e às oportunidades de aprendizagem sobre as questões de saúde.

Entendendo que a promoção da saúde deva fortalecer o desenvolvimento pessoal e social, o quarto campo de ação focaliza a questão de habilidades e atitudes favoráveis à saúde. Como estratégias para o desenvolvimento de habilidades e atitudes pessoais são apontadas a informação e a educação em saúde, visando incrementar as possibilidades da população exercer um maior controle sobre si mesma e o ambiente, e definir-se por opções mais favoráveis à saúde.

A PROMOÇÃO DA SAÚDE SOB O OLHAR DA BIOÉTICA

A promoção da saúde enquanto campo de formulações teóricas, mas, sobretudo, como espaço de manifestações práticas na realidade social, impõe a uma aproximação analítica das possíveis implicações éticas resultantes de sua aplicação. Neste sentido, acreditamos que tanto a Bioética Cotidiana como a Bioética da Proteção mostram-se referenciais de análise consistentes para produzir tal reflexão. A primeira, porque busca refletir sobre as situações da vida cotidiana que envolvem milhões de pessoas e que são permanentemente ocultadas, omitidas ou negligenciadas. A segunda, porque se ocupa com as questões relativas ao fortalecimento das ações que visam a proteção da qualidade de vida e da saúde humana. Em ambos referenciais da bioética, dois elementos se apresentam e se aproximam, quais sejam, os princípios da responsabilidade e da autonomia.

Como todo processo em construção, riscos se apresentam e críticas são necessárias às formulações conceituais de promoção da saúde. Nesta ótica, um dos riscos mais evidentes trata da possibilidade de políticas públicas de saúde serem construídas de modo reducionista, transformando problemas sanitários complexos em desvios de conduta individuais, deslocando tanto o cerne da questão do corpo social para o corpo biológico ou físico, quanto a responsabilidade da produção de respostas efetivas do nível do Estado para o próprio indivíduo. Este reducionismo ajudaria a explicar porque tantos programas de promoção de saúde orientam suas estratégias para a promoção de uma conduta sadia.11

Entretanto, sabemos que promover a saúde depende da melhoria de condições sociais, tais como educação, habitação, trabalho e salário dignos. E são justamente estas condições sociais que influem na modificação do estilo de vida. De fato, é difícil modificar o modo de habitar uma cidade, a forma de viver dos sujeitos, numa sociedade onde faltam sistemas educativos completos e acessíveis a todos; a higiene pessoal, certamente, é utopia em casas que carecem de água encanada, bem como, é impossível explicar uma dieta saudável a pessoas que passam fome.

Concordamos com os críticos desta visão reducionista, os quais ressaltam que produzir uma nova visão de promoção de saúde na sociedade latino-americana significa situá-la num amplo contexto social, como uma estratégia que permite buscar um maior compromisso de todos para diminuir as desigualdades sociais e aumentar o bem-estar coletivo.12 Desta maneira, a expressão políticas públicas saudáveis poderá assumir um outro papel, o de árbitro das políticas públicas, julgando sua atuação, conforme os efeitos sobre a saúde das populações. Este novo olhar poderá provocar uma evolução no monitoramento das políticas públicas, passando de uma postura reativa, isto é, impedir que tais políticas provoquem danos à saúde, para uma postura proativa, induzindo políticas que produzam saúde.

Todavia, o que assistimos é a uma verdadeira hipertrofia de um dos campos de ação da promoção da saúde, o desenvolvimento de hábitos e estilos de vida saudáveis, conseqüente do reducionismo da complexidade do modelo, com repercussões éticas importantes manifestas nas estratégias de intervenção. Tais estratégias dirigem seu foco de ação ao comportamento individual considerado de risco, indicando, assim, uma dupla responsabilização do sujeito. Primeiro, porque o indivíduo passa ser responsável pelo possível adoecimento, caso desconsidere o risco, e segundo, como desdobramento, este passa a ser responsabilizado pelo desenvolvimento do arsenal de condutas e hábitos que evitarão o risco.

A análise das similaridades entre a promoção da saúde e a prevenção de doenças mostra que prevenir é antes de tudo vigiar, antecipar a emergência de acontecimentos indesejáveis em populações indicadas como de risco, enquanto que promover a saúde, quando não se trata de controlar politicamente as condições sanitárias, de trabalho e de vida da população em geral, mas quando busca criar hábitos saudáveis, é também uma vigilância, uma vigilância que cada um de nós deve exercer sobre si mesmo.13 Resulta que, em ambos modelos, as estratégias podem gerar ações inócuas ou benéficas para a saúde, mas podem também criar modos de controle e de exclusão.

A depender do modo como se estruturam, as estratégias de promoção da saúde podem se tornar estratégias de vigilância que muitas vezes limitam ou restringem liberdades e decisões individuais, com a motivação do bem estar coletivo ou da evitabilidade de conseqüências danosas à saúde e à sociedade. Se de um lado, se evidencia a tendência de responsa-bilização dos indivíduos pelo eventual risco de adoecer caso não adotem os padrões indicados como saudáveis, chegando, muitas vezes a ponto de culpabilizá-los pela doença, por outro gera a subalternidade às medidas médicas, frente às quais o indivíduo pode articular o consenso ou o dissenso, porém sem a possibilidade de construir a autonomia.

No modelo da promoção da saúde, a autonomia se coloca como um dos princípios sobre o qual se ancora a definição dos campos de ação deste modelo. Esta questão se evidencia, sobretudo, nas estratégias ligadas ao campo do fortalecimento da ação comunitária, porém torna-se frágil quando analisamos as estratégias do campo do desenvolvimento de hábitos, atitudes e estilos de vida favoráveis à saúde, as quais reiteram o caráter de vigilância de comportamentos.

Neste ponto, cabe resgatar a origem comum entre o modelo preventivo e a promoção da saúde, ou seja, o propósito da vigilância, sendo que na prevenção esta se dirige aos riscos de adoecer e na promoção se focaliza nos comportamentos favoráveis à saúde. De um modo ou de outro, o controle se faz presente, em um caso sobre a doença e a saúde, em outro, sobre a própria vida das pessoas.14

Portanto, existe um risco real de expropriação da saúde, em virtude da tendência de delegar ao profissional de saúde a definição dos problemas de saúde, a escolha das estratégias a seguir e as decisões a tomar, como se tratasse de decisões de valor puramente técnico. Há também o risco real presente nas próprias medidas preventivas, que em grande parte é ocultado ou minimizado, o que interfere diretamente na decisão e escolha das pessoas, pois restringem seu acesso à informação, limitam seu poder de decisão sobre seu próprio corpo e vida.

É importante referir que tanto o campo das estratégias preventivas como o daquelas de promoção da saúde não são zonas francas em relação ao direito de escolha das pessoas, deveriam superar o caráter paternalista, transfigurando a compreensão de "paciente" para a de sujeito detentor de direitos e poder de decisão.

É importante ressaltar a compreensão de que tais estratégias não são medidas puramente técnicas, mas que carregam em si componentes éticos fundamentais. Resulta em compreender o que Berlinguer caracteriza como motivação ética de tais medidas (no caso da prevenção, a virtude antecipatória dos eventos, na promoção da saúde, o caráter protetor) porém sem descaracterizar o princípio da autonomia dos sujeitos, o que pressupõe a capacidade de aproveitá-la tendo a sua disposição tanto conhecimentos quanto condições psicofísicas e sociais adequadas.

Para a Bioética da Proteção, tanto a promoção da saúde como a prevenção de enfermidades são vistas como estratégias fundamentais da saúde pública, a qual é entendida como conjunto de disciplinas e práticas que têm por objeto a proteção da saúde das populações humanas. Deste modo, no caso da prevenção, se trata de proteção defensiva, concebida como proteção contra o adoecimento, enquanto que a promoção da saúde é uma proteção proativa, que se compromete com a proteção em prol de estilos de vida considerados saudáveis ou não-prejudiciais à qualidade de vida humana. Entretanto, o caráter protetor da saúde pública manifesto nas ações de promoção da saúde direcionadas ao incremento da qualidade de vida pode ser traduzido na responsabilidade individual, mas deve ampliar-se necessariamente ao universo da responsabilidade social, ou seja, do Estado frente aos indivíduos.

Neste sentido, as políticas públicas saudáveis assumem papel protagonista na perspectiva da promoção da saúde, o que implica uma abordagem mais complexa impondo a reformulação de conceitos e práticas, tanto no âmbito da saúde, quanto no âmbito do Estado e seu papel frente à sociedade, através das políticas públicas.

Em oposição à tendência de minimizar e empobrecer as políticas sanitárias, é preciso ressaltar que uma das tarefas das políticas públicas saudáveis "é equacionar adequadamente as relações entre saúde e economia, entre saúde e desenvolvimento. Tanto para fixar, em nome da saúde, limites éticos e humanitários à razão econômica, quanto para com ela estabelecer pactos, onde o tema da saúde possa ser redescoberto como um valor. Impõe-se que a saúde seja `descolonizada' da economia, inclusive superando o mito, hoje desmentido por diversos estudos, da vinculação inevitável entre desenvolvimento econômico e desigualdade social". 15:34

Para a construção das mudanças necessárias no cotidiano das práticas profissionais de saúde, é preciso refletir sobre as implicações éticas das ações dos trabalhadores como agentes morais. É preciso, também, compreender o caráter dinâmico da sociedade como um espaço em permanente disputa de interesses políticos e desejos individuais e coletivos, que envolvem forças díspares, valores diversos e crenças divergentes. Desta forma, pensar em promoção da saúde na nossa realidade concreta é pensar em políticas públicas voltadas para a diminuição das iniqüidades existentes na sociedade, em especial a brasileira, evidenciadas nas desigualdades em saúde, mas cujas raízes situam-se nas desigualdades de acesso ao conjunto de condições mínimas para a saúde. Pensar em políticas públicas saudáveis neste cenário, sem dúvida, implica, em primeiro lugar, ter como diretriz política a eliminação das múltiplas carências cotidianas da vida individual e coletiva, que passam pela pobreza, pela fome, pela exclusão social, inclusive de acesso aos serviços práticas de saúde. Implica, também, em situar estes objetivos no vértice da pirâmide de prioridades políticas, visto que são, os verdadeiros determinantes do desequilíbrio social e sanitário forjado em nossa sociedade.

Artigo original: Reflexão

Recebido em: 15 de agosto de 2004

Aprovação final: 16 de dezembro de 2004

  • 1 Barbosa PR, Carvalho AI de, Ribeiro JM. Modelos de atenção à saúde: conceitos básicos, aspectos históricos e desafios para práticas inovadoras [citado 2001 Jul 24]. Disponível em: URL: http://www.fiocruz.br .
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  • 3 Berlinguer G. Bioética cotidiana. Brasília: Ed. UnB; 2004.
  • 4 Schramm FR. A bioética da proteção em saúde pública. In: Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúde pública. São Paulo: Loyola; 2003. p. 71-84.
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  • 7 Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde. São Paulo: Hucitec; 1999.
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  • 1
    Publicação do Ministro da Saúde Canadense, Marc Lalonde, que se constituiu na primeira manifestação teórica da saúde pública que buscou questionar a abordagem exclusivamente médica para as doenças crônicas. Com motivação política, econômica e técnica, o documento possibilitou passar de uma noção tradicional que reduz a saúde aos limites da medicina para uma idéia de campo de saúde mais amplo.
  • 2
    Empowerment, traduzido como empoderamento, é entendido como o processo de capacitação para a aquisição de poder técnico e político por parte dos indivíduos e da comunidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Mar 2005

    Histórico

    • Recebido
      15 Ago 2004
    • Aceito
      16 Dez 2004
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