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O trabalho interdisciplinar: aproximações possíveis na visão de enfermeiras de uma unidade de emergência

Interdisciplinary work: possible appproaches in the view of nurses in an emergency unit

El trabajo interdisciplinario: aproximaciones posibles en la vision de enfermeras de una unidad de emergencia

Resumos

Estudo qualitativo que objetivou compreender a visão dos enfermeiros acerca do trabalho interdisciplinar no contexto do atendimento de emergência de um hospital público. Os dados foram coletados por meio de entrevista e a análise apontou para uma apreensão de concepções de interdisciplinaridade relacionadas às possibilidades concretas do exercício do trabalho em equipe, permeada pelas idéias de papéis individuais, finalidades das ações e dos potenciais de troca, parceria e respeito nas relações entre os trabalhadores. Limites teóricos e práticos são apontados, bem como perspectivas que ainda não se efetivaram no cotidiano do trabalho, mas que são significativas dos atuais desafios no campo da saúde.

Serviço hospitalar de enfermagem; Enfermagem em emergência; Equipe de enfermagem; Equipe de assistência ao paciente


This objective of this qualitative study was to understanding the view of nurses regarding interdisciplinary work in the context of emergency care in a public hospital. The data was collected by means of interview. The analysis pointed out the gathering of the concept related to the concrete possibilities in carrying out the work in teams, permeated by the ideas of individual roles, objectives of the action and of the potential of exchange, partnership and respect in relationships among the workers. Theoretical and practical boundaries are pointed out, as well as perspectives which have not yet been affected in the day to day, and they are meaningful considering the current challenges in the field of health.

Nursing service hospital; Emergency nursing; Nursing team; Patient care team


Estudio cualitativo que se propuso comprender la visión de los enfermeros acerca del trabajo interdisciplinario en el contexto del atendimiento de emergencia de un hospital público. Los datos fueron colectados por medio de la entrevista y el análisis señaló una aprehensión del concepto relacionado con las posibilidades concretas del ejercicio del trabajo en equipo, orientado por las ideas de los roles individuales, metas de las acciones y de los potenciales de intercambio, parceria y respeto en las relaciones entre los trabajadores. Los limites teóricos y prácticos son indicados así como las perspectivas que todavía no se efectuaron en el cutidiano, siendo significantes de los actuales retos en el campo de la salud.

Servicio de enfermería en hospital; Enfermería de urgencia; Grupo de enfermería; Grupo de atención al paciente


ARTIGO ORIGINAL

PESQUISA

O trabalho interdisciplinar: aproximações possíveis na visão de enfermeiras de uma unidade de emergência

Interdisciplinary work: possible appproaches in the view of nurses in an emergency unit

El trabajo interdisciplinario: aproximaciones posibles en la vision de enfermeras de una unidad de emergencia

Marília AlvesI; Flávia Regina Souza RamosII; Cláudia Maria de Mattos PennaIII

IDoutora em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem Aplicada e do Programa Pós-graduação da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (EEUFMG). Coordenadora Acadêmica do Doutorado da EEUFMG. Líder do Núcleo de Pesquisa Administração em Enfermagem (NUPAE)

IIDoutora em Filosofia em Enfermagem. Pesquisadora (CNPq) do Grupo de Pesquisa Saúde, Trabalho e Cidadania (PRAXIS/UFSC) na temática Trabalho e Subjetividade, Ética, Bioética e Trabalho em Saúde. Professora do Departamento de Enfermagem e Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSC

IIIDoutora em Filosofia em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública e do Programa de Pós-graduação da EEUFMG. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa Administração em Enfermagem (NUPAE)

Endereço Endereço: Marília Alves R. Teixeira de Freitas, 140, Apto 302 30350-180 - Santo Antonio, Belo Horizonte, MG. E-mail: marilix@enf.ufmg.br

RESUMO

Estudo qualitativo que objetivou compreender a visão dos enfermeiros acerca do trabalho interdisciplinar no contexto do atendimento de emergência de um hospital público. Os dados foram coletados por meio de entrevista e a análise apontou para uma apreensão de concepções de interdisciplinaridade relacionadas às possibilidades concretas do exercício do trabalho em equipe, permeada pelas idéias de papéis individuais, finalidades das ações e dos potenciais de troca, parceria e respeito nas relações entre os trabalhadores. Limites teóricos e práticos são apontados, bem como perspectivas que ainda não se efetivaram no cotidiano do trabalho, mas que são significativas dos atuais desafios no campo da saúde.

Palavras-chave: Serviço hospitalar de enfermagem. Enfermagem em emergência. Equipe de enfermagem. Equipe de assistência ao paciente.

ABSTRACT

This objective of this qualitative study was to understanding the view of nurses regarding interdisciplinary work in the context of emergency care in a public hospital. The data was collected by means of interview. The analysis pointed out the gathering of the concept related to the concrete possibilities in carrying out the work in teams, permeated by the ideas of individual roles, objectives of the action and of the potential of exchange, partnership and respect in relationships among the workers. Theoretical and practical boundaries are pointed out, as well as perspectives which have not yet been affected in the day to day, and they are meaningful considering the current challenges in the field of health.

Keywords: Nursing service hospital. Emergency nursing. Nursing team. Patient care team.

RESUMEN

Estudio cualitativo que se propuso comprender la visión de los enfermeros acerca del trabajo interdisciplinario en el contexto del atendimiento de emergencia de un hospital público. Los datos fueron colectados por medio de la entrevista y el análisis señaló una aprehensión del concepto relacionado con las posibilidades concretas del ejercicio del trabajo en equipo, orientado por las ideas de los roles individuales, metas de las acciones y de los potenciales de intercambio, parceria y respeto en las relaciones entre los trabajadores. Los limites teóricos y prácticos son indicados así como las perspectivas que todavía no se efectuaron en el cutidiano, siendo significantes de los actuales retos en el campo de la salud.

Palabras clave: Servicio de enfermería en hospital. Enfermería de urgencia. Grupo de enfermería. Grupo de atención al paciente.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas as sociedades globalizadas vêm passando por importantes e profundas transformações, que exigem contextualização dos novos conhecimentos contextualizados dos trabalhadores de todas as áreas. Essas transformações têm desencadeado processos internos de mudanças organizacionais, como revisão dos modelos de gestão, marcados pela flexibilidade e descentralização dos processos de trabalho, aquisição de novos conhecimentos e habilidades por parte dos trabalhadores, além da busca permanente de formas de adaptação ao ambiente organizacional e à clientela. Assim, para responder às demandas oriundas do ambiente interno e externo torna-se necessária a incorporação de novos valores, atitudes e comportamentos pelos profissionais.

Inicialmente disseminou-se a crença de que os novos modelos de produção apontavam para um novo perfil de trabalhador, mais participativo e polivalente, mais escolarizado, com maior autonomia no trabalho e cujo conhecimento técnico seria valorizado. Ensejava-se, com isso, novas relações sociais em um processo de humanização no trabalho.1

No setor saúde, o hospital como organização destinada ao atendimento das necessidades físicas, emocionais e sociais do cliente se reveste de grande complexidade. Tal complexidade encontra-se relacionada ao aparato tecnológico, ao trabalho complementar das várias categorias profissionais que integram as equipes, às relações interpessoais no trabalho cotidiano, à necessidade de atendimento personalizado e, mais recentemente, ao reconhecimento de que nenhuma categoria profissional, isoladamente, detém saber necessário para responder às demandas.

Em relação aos hospitais que atendem clientes em situação de emergência, em função do ritmo frenético e constante de trabalho, torna-se visivelmente necessária a integração dos vários especialistas em equipes de trabalho coesas, com senso de cobertura e nas quais esteja clara a noção de complementaridade. No entanto, pensar o trabalho em equipe significa pensar o cuidado centrado no paciente e suas necessidades e não nas categorias profissionais, pois a diversidade de situações exige respostas imediatas, sob pena de colocar em risco a vida do cliente. Assim, a integração de diferentes categorias profissionais e ramos do conhecimento em torno de um objetivo comum torna-se fundamental para que a assistência ao cliente seja oportuna e livre de riscos.

No entanto, a hegemonia do modelo biomédico, tanto do ponto de vista tecnológico como cultural, reforça as especialidades e a centralidade do ato médico (diagnóstico e prescrição terapêutica médica), sendo determinante do modelo de atenção prestado por todos. Isso produz uma concentração quantitativa de profissionais médicos e pouca valorização e integração de outras categorias profissionais ao cuidado dispensado à clientela, sempre marginais ou secundárias às ações médicas. Além disso, seguindo a tradição, a clientela valoriza mais a atenção do médico, ou mais especificamente a consulta médica, mesmo que, naquele momento, a intervenção de outro profissional ou de vários profissionais seja a mais oportuna.

Profissionais formados de forma fragmentada, para atuar em seus nichos específicos se debatem no atendimento das urgências e emergências, em um exercício permanente de articulação de saberes e busca de reciprocidade e respeito para chegar a melhores resultados ou, simplesmente, para se desgastarem menos. O que se observa, no entanto, é a justaposição de conteúdos adquiridos no processo de formação, quando o que está implícito é a necessidade de uma nova postura diante do conhecimento, uma mudança de atitude em busca de uma relativa unidade de pensamento e ação. Não é raro haver confusão entre relações pessoais amistosas e relações profissionais voltadas para um trabalho em equipe, além de distanciamento das necessidades do cliente.

O termo estratégia de integração disciplinar é usado para reunir as "possibilidades de produção de conhecimento multidisciplinar, interdisciplinar ou transdisciplinar, significando o conjunto de propostas de integração de disciplinas científicas na produção do conhecimento, na análise de objetos complexos e na integração de produção do conhecimento com estratégias de intervenção em problemas particulares".2:339 Importante ressaltar que disciplina remete a preceitos e normas, para procedimentos corretos, para doutrina e para a autoridade de um saber organizado.3

A disciplinaridade lembra discípulo e se bifurca, em sua raiz, em dois sentidos, o dos religiosos, sábios, engenheiros ou artistas que tem seus seguidores e disciplina como área, campos de saber, de compreensão e de atividade.4 A interdisciplinaridade, no entanto, "implica um diálogo e troca de conhecimentos, de análises, de métodos entre duas ou mais disciplinas. Implica que haja interações e um enriquecimento mútuo entre vários especialistas; transferência de métodos de uma para outra disciplina",3:2 ou seja, que sua aplicação envolva métodos de uma disciplina utilizados por outra na solução de um problema, considerando que ela ultrapassa o previsto nas disciplinas, mas sua finalidade continua inscrita na investigação disciplinar.3

Neste sentido, na interdisciplinaridade há reciprocidade, enriquecimento mútuo e as relações de poder tendem a se horizontalizar. Diante de um problema comum, uma equipe busca soluções em comum a partir da troca de saberes, não como adição ou mistura, mas recombinando-os e assim gerando fecunda e mútua aprendizagem.5

Em unidades de referência para atendimentos de urgência e emergência é necessária a atuação de vários profissionais de saúde, como Médicos, Enfermeiros, Psicólogos, e Assistentes Sociais, entre outros, capacitados especificamente para atuar em situações críticas, que envolvem eminente risco de vida. Cada categoria mantém a sua especificidade, o seu saber, mas torna-se necessário ir além. O trabalho articulado é uma imposição para a assistência integral ao cliente, freqüentemente vítima de agravos diversos e que necessita de uma abordagem integrada, na qual exista troca e cooperação em prol da pessoa atendida, o que faz com que se torne também algo "orgânico". Questionamos, no entanto, como vem ocorrendo a interdisciplinaridade no contexto de trabalho de um hospital de referência para atendimento de urgência e emergência.

O simples juntar de pessoas com formações diferentes sem marcos de referência construídos de forma compartilhada e dispostos a dialogar pode trazer mais problemas que soluções, do ponto de vista da integração de conhecimentos e abordagens, resultando em posturas multidisciplinares fragmentadas e conflitos na equipe.2

Os enfermeiros que trabalham nessas unidades, em geral lidam com todas as especialidades e categorias profissionais, nas salas de politraumatismo, de observação, de centro cirúrgico, não raro, experimentando sua impotência diante de situações que não podem resolver sozinhos. Por isso consideramos que estes trabalhadores podem trazer informações importantes sobre o trabalho interdisciplinar em tais unidades. Os resultados podem ser utilizados como subsídios na capacitação de profissionais de urgência e na reorientação das políticas de pessoal, já que as urgências constituem um local crítico tanto para os clientes quanto para os profissionais, que se desgastam, muitas vezes desnecessariamente, por trabalhar de forma isolada. Os enfermeiros são mais duramente atingidos por estarem diretamente envolvidos com o cuidado e com a gerência de recursos e do processo de trabalho da equipe de enfermagem, além de serem também intermediários entre a família e a equipe de atendimento.

Assim, o enfermeiro, inserido neste complexo sistema, tem um papel relevante nos processos de mudança, pois interagindo continuamente com todos os setores obtém uma visão sistêmica da organização. A mudança é um processo que exige e estimula a aprendizagem dos indivíduos ao mesmo tempo em que gera conflitos, abrindo possibilidades para o salto qualitativo na atenção às necessidades do cliente.

Considerando tal contexto e tais possibilidades, o objetivo do estudo foi: Compreender a visão dos enfermeiros acerca do trabalho interdisciplinar no contexto de atendimento de emergência de um hospital de referência Estadual.

O CAMINHO METODOLÓGICO

Abordar a interdisciplinaridade no atendimento de emergência em uma unidade hospitalar terciária implica explicitar fatos e ações cotidianas que exigem reflexão e criação, sobretudo pela diversidade de ações desenvolvidas. Entre as especificidades desta unidade encontram-se tratamentos personalizados, trabalho diversificado e interdependente entre setores, além de grande variedade de situações.

No presente trabalho, optou-se por um estudo de caso qualitativo que, pela sua natureza, permite maior aprofundamento do objeto e maior flexibilidade no planejamento e condução da pesquisa. Adotou-se uma abordagem qualitativa, por "abarcar não somente o sistema de relações, mas também as representações sociais que constituem a vivência das relações objetivas pelos atores sociais, que lhe atribuem significados".6:11 Além disso, "a pesquisa qualitativa ocupa um reconhecido lugar entre as várias possibilidades de se estudar os fenômenos que envolvem os seres humanos e suas intrincadas relações sociais, estabelecidas em diversos ambientes".7:21

O estudo foi realizado em um hospital público, de grande porte, referência para o atendimento de emergências em Belo Horizonte (MG), no qual trabalham por dia em média 100 profissionais de especialidades diversas. É referência para casos de alta e média gravidade, provenientes da Região Metropolitana e estado de Minas Gerais. Atende em média 500 pessoas por dia, portadoras de urgências e emergências clínicas e cirúrgicas, sendo que as principais emergências envolvem traumas cranianos, abdominais, torácicos, queimaduras e intoxicações diversas.

Os sujeitos da pesquisa foram 12 enfermeiras dos ambulatórios do setor de emergências, dos plantões diurno e noturno, escolhidos aleatoriamente e que se dispuseram a participar da pesquisa. A unidade de emergência é dividida em setores de politraumas, ortopedia, ambulatório feminino, ambulatório masculino, pediatria, otorrinolaringologia e endoscopia, sala de emergência clínica e observação. Para a realização da pesquisa foi contatadas a direção do hospital e, posteriormente, as enfermeiras, para apresentar o projeto e solicitar a participação. Esta foi condicionada a manifestação de aceite, expresso mediante termo de consentimento informado, sendo garantida ampla liberdade para responder, o anonimato, a utilização dos resultados somente para fins científicos, além da autorização para gravar as entrevistas. A questão orientadora das entrevistas foi: como você percebe a interdisciplinaridade no contexto de trabalho desta unidade de urgência e emergência?

A utilização da entrevista como técnica de coleta de dados favoreceu o contato com os sujeitos da pesquisa, já que a técnica é adequada para a obtenção de informações acerca do que as pessoas sabem, crêem, esperam, sentem ou pretendem fazer, tornando-se uma forma de interação social.8 O número de entrevistas foi determinado pelo critério de saturação,6 ou seja, quando nenhum dado novo estava sendo acrescentado.

As entrevistas gravadas foram transcritas em sua íntegra e, em seguida, iniciou-se o processo de classificação e análise dos dados, utilizando-se a técnica de análise de discurso, de acordo com os passos propostos a seguir: "1) A ordenação dos dados, envolvendo a transcrição das entrevistas, releitura do material e a organização e ordenação dos relatos. 2) Classificação dos dados, envolvendo a leitura exaustiva e dos textos, com o fim de apreender as idéias centrais expressas pelos sujeitos e a constituição de um corpo de comunicação", 6:234 que originou as categorias empíricas. Foram extraídos trechos dos depoimentos, a partir dos temas identificados, que constituíram as unidades de registro. Após procedeu-se a um refinamento do movimento classificatório, em que as unidades de registro foram agrupadas em categorias empíricas.

Na análise final, a dinâmica entre o empírico e o teórico permitiu a sua captação e análise contextual. Os resultados emergiram, portanto, dos relatos dos sujeitos sobre o momento que estavam vivenciando, relacionado a várias situações de trabalho.

A ANÁLISE DOS DADOS

Quando se trata de apreender significados atribuídos por enfermeiros assistenciais ao termo interdisciplinaridade o que se pode perceber é uma grande dificuldade de abstração ou de conceituação. Isto é comum em relação a diferentes conceitos e apreensões que, embora amplamente divulgadas e utilizadas na linguagem acadêmica e científica, não sofreram o idêntico processo de incorporação ao discurso cotidiano. Do mesmo modo, são comuns incorporações de certos termos e expressões, novas ou não, desprovidas do substrato teórico, do sentido e missão de sua própria construção, produzindo certa superficialização ou banalização no uso de conceitos complexos. Não importa mais que a palavra diga "a que veio", mas que esteja ali, atribuindo certo valor - de atualidade, de profundidade, de legitimidade - ao discurso que a emprega, ao sujeito que a profere.

Não se pode negar que o discurso sobre interdisciplinaridade possui uma maior explicitação nos cenários acadêmicos, que são por excelência os "reinos" das disciplinas, até mesmo por sua efervescência no campo educacional. Considerar a importância dos estudos e projetos educacionais, incluindo desde reformas políticas de caráter nacional até práticas pedagógicas, na relevância que a interdisciplinaridade tem alcançado na atualidade, não significa que sua emergência possa ser atribuída exclusivamente a este campo. Ao contrário, a busca por saberes unitários, tanto quanto a busca por saberes cada vez mais especializados e fragmentados, sempre esteve presente na história do pensamento humano.9,10

Ao percebermos, na análise dos dados, esta dificuldade conceitual, também percebermos que o conceito mostrou-se "tomado pela prática" e foi assim que pudemos passar a compor um entendimento sob o ponto de vista das entrevistadas. Há também que se considerar que a interdisciplinaridade não emergiu do discurso de forma espontânea, mas foi provocada, problematizada e, na dificuldade de ser proferida (foi raro o entrevistado se referir diretamente ao termo) foi relacionada, mergulhada no contexto da experiência, rondada, como que tomada pela tangente, pelas "proximidades e vizinhanças". Mas que proximidades são essas, que permitem ao enfermeiro expressar o significado de interdisciplinaridade?

Um sentido inicial pode ser identificado à idéia de conjunto, onde os componentes são percebidos como diferentes, mas agrupados. A diferença é reconhecida pela função, papel ou atribuição que cada um ocupa no conjunto, sempre em relação ao papel do outro. Num sentido não limitado à mera execução de ações esperadas, a tarefa pode adquirir maior amplitude, como a dada pela abordagem de Grupos Operativos desenvolvida por Pichon-Rivière, em que a tarefa é organizadora dos processo de pensamento, comunicação e ação que ocorrem entre os participantes de um grupo. Nesta vertente, grupo é conjunto limitado e articulado, no tempo e espaço, por representações internas e por objetivos de efetuar uma ou mais tarefas comuns.11

Fazer parte do conjunto indica possuir e reconhecer papeis, sejam os seus próprios ou os dos outros. A própria noção do seu papel se faz em relação ao que é o outro; como imagem construída na relação com o outro e com o tempo/espaço vivido. Pessoas e Instituições (serviços e organizações, mas também saberes, profissões e disciplinas) entram nesta rede simbólica, que combina elementos reais e imaginários; que lembra limites, subordinações, conformações; que são alvos do mesmo olhar lançado sobre si mesmo, refletindo e lembrando as diferenças, o que une e o que distancia, o que identifica, o que se pode ou não aceitar.12

A emergência é o local onde a interdisci-plinaridade é mais clara e automática. Mas não acontece do trabalho estar centralizado no médico, não está mesmo, e eles sabem disso! [...] é em conjunto os trabalhos, juntos conseguimos a estabilidade hemodinâmica do paciente, é vital essa atuação. Isso é interdisciplinaridade (E8).

[...] no plantão noturno temos apenas a categoria médica, assistente social e enfermagem e outras áreas básicas como lavanderia, serviços gerais, portaria. As outras áreas só existem de dia, não há fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, nutrição[...] (E9).

[...] fazer aquilo que toque a família é o trabalho do serviço social. Não deixamos que bombeiro e socorristas dêem as notícias para famílias. Vamos até o serviço social e eles sabem como abordar a família, pois estão preparados para isto. A fisioterapia trabalha a parte respiratória e sempre buscamos a avaliação [...] (E6).

A idéia de conjunto também imprime a necessidade de adjetivar este conjunto, acrescentando a qualidade que os elementos conseguem dar ao mesmo, nunca uniforme e sim especial para aquele agrupamento, "equipe", "plantão". Embora as referências também remetam ao espaço do saber sistematizado e dos campos de prerrogativas profissionais legais, um outro tipo de referência diz respeito ao do espaço de negociação, arranjos mais ou menos consensuais ou consentidos, que são assumidos como regras de comportamento e modos próprios de lidar com o conjunto, ou se movimentar dentro dele. A regra aqui não tem caráter do estabelecimento formal, mas do acordo implícito, muitas vezes velado ou, quando muito, explicitado por cada um a seu modo; apesar de flexível e suscetível à interpretações plurais serve para nomear e justificar uma conduta.

[...] tem muito profissional trabalhando junto, acho que temos um relacionamento legal, a gente troca informação. A psicóloga, o serviço social ... estamos sempre juntos. Não é isolado; essa parte é bacana aqui (E2).

[...] cada um já vai fazendo o necessário. Nossa! A gente faz diagnóstico médico demais da conta para eles (E8).

Complementando esta compreensão de diferentes papéis e divisão de tarefas, estão as idéias de complementaridade, parceria e respeito. Uma vez estabelecida a diferença (mesmo quando esta diferença/separação é negada e rejeitada), discriminadas as identidades, é possível colocar cada um como potencial colaborador, parceiro que partilha algo em comum, que compreende o outro e dá valor ao que ele pensa e faz. Isto pressupõe um processo de obter e conquistar a confiança do outro, sentir-se confiante. Esta conquista se dá pelo trabalho realizado (trabalhar muito e trabalhar bem) e por aspectos subjetivos das relações.

[...]respeita muito o conhecer da enfermagem [...] porque a gente sabe que eles sabem que a gente sabe, e eles confiam em nós (E1).

[...] isso é de médico, aquilo de enfermeira, separados, cada um pedindo permissão, isso não! Existe um respeito muito grande, e, tem um trabalho em equipe, sim. Às vezes discutimos e pode acontecer de ficar dois ou três dias sem conversar com determinado cirurgião, e depois ele volta, e ele sabe que estava errado. Então a gente tem muito respeito com eles e, é lógico, que nem todo mundo é igual. Mas de um modo geral é excelente, somos reconhecidos, e trabalhamos demais (E6).

[...] quando chega já passou por outros andares, outras unidades, então já trazem o respeito, tanto em adequação ao serviço, quanto ao que cada um exerce, a função de todos no setor e como cada um trabalha. Isso a gente vê muito pelo chefe de equipe, antes ele não procurava pelo enfermeiro, não havia a figura do enfermeiro. Hoje ele procura o enfermeiro e não é apenas por questão de provisão ou previsão ou das relações de trabalho com os auxiliares, mas o procura para discutir um caso, discutir admissão de paciente em CTI. Ele procura porque o enfermeiro está a par da situação, do que está acontecendo no setor (E10).

[...] a gente tem sempre que interagir com o outro e cada um respeitando o seu espaço, não invadindo o espaço do outro para que não invadam o seu. Chega o momento em que eu tenho o meu espaço e minha conduta e eu imponho, sim. Eu sou a profissional aqui, daqui pra cá, sou eu que sei fazer e faça a sua parte e assine o que você fez, e eu assino pelo que estou fazendo, então a gente se divide dessa forma (E12).

O respeito também emerge como o que expressa esse fazer junto, mas que garante o território, aprofunda a cisão, permite que cada um não precise viver em atenta vigilância, pois "o outro respeita para ser respeitado". Isto pode ser questionado sob o argumento de que ações para suprimir a ameaça sobre si e reduzir o risco de confronto nem sempre são as mais críticas e eticamente responsáveis. Nada afirmando sobre a unidade estudada, vale pensar neste aspecto como um limite comum em nosso esforço para atenuar o conflito, que muitas vezes imobiliza o amadurecimento e a criação.

Enquanto respeito e parceria se mostram na dimensão do desejável, no "real" as coisas são um pouco mais complicadas e o aspecto ressaltado é, então, o da aprendizagem. Trabalhar junto é algo para o que os trabalhadores se adaptam e aprendem, observando, testando, manejando situações e criando estratégias e, também, tendo frustrações e desgastes.

[...] aquele obstáculo que você enfrenta, aquela discussão de alguns minutos, pode fazer você crescer e mudar o seu jeito, às vezes o outro profissional muda o jeito dele de agir (E3).

[...] eu tive que me adaptar. Tive que ver o outro lado de como as coisas aconteciam (E5).

[...] às vezes é conflituosa, às vezes se discute, existem algumas coisas que sempre há impasse, nada é 100%. Agente tenta resolver da melhor forma e mais harmoniosa possível. Quando alguma equipe extrapola, acho que tem que parar, sair na deixa, deixar a coisa amenizar, porque não adianta, no momento em que está todo mundo de cabeça quente, tentando fazer tudo, tentando promover o melhor para o paciente, discutir naquele momento, pois não vai resolver (E12).

Quando consideramos a interdisciplinaridade como orgânica, como uma possibilidade para a troca de saberes não superpostos e como capaz de se transformar em uma nova aprendizagem na busca compartilhada de soluções,5 se torna mais destacada a noção da individualidade presente no discurso e, possivelmente, na prática dessas enfermeiras, ao tratarem do trabalho da equipe na emergência.

[...] eu acho que eu, por ser mais velha, e conhecer, sempre estou junto, e ajudo quando há necessidade. E faço monitorização de enfermagem, da assistência médica, então eles me conhecem [...] Quando chega uma grávida, não há a menor dúvida, me chamam imediatamente (E6).

[...] por exemplo, nutricionista: não entra dieta alguma no setor, e essa responsabilidade acaba caindo sobre a enfermagem. O paciente fica querendo uma alimentação e não tem quem autorize. O farmacêutico: há apenas um técnico na farmácia no plantão noturno, e a farmácia não fecha, e é imprescindível, pois a enfermagem também atende essa necessidade e sobrecarrega[...] De noite o enfermeiro passa a ser psicólogo, farmacêutico, nutricionista, fisioterapeuta, e enfermeiro (E9).

[...] por isso trabalhamos apagando incêndio, corre aqui, vai ali, olha paciente. Trabalhar a noite é desgastante, tanto fisicamente como para conduzir o plantão (E10).

O pensar e o agir interdisciplinar significa pensar o cuidado centrado no paciente e não nas categorias profissionais que o atendem. Nesse caso o enfermeiro, além de se sentir no seu lugar (e não no lugar de alguém) poderia falar de um outro lugar, talvez ainda utópico, ou da riqueza de lugares possíveis. O lugar da prática interdisciplinar não é apenas o da co-existência, mas o da co-emergência. O lugar onde novos olhares e criações co-emergem para diferentes sujeitos.13

Considera-se que os profissionais que pensam, lutam e inovam juntos, criam possibilidades de evolução e aprendizagem contínua e manutenção de um clima organizacional favorável a mudanças. Neste contexto novos conhecimentos são decisivos para um cuidado eficiente e eficaz, para implementá-los torna-se necessário intenso trabalho de conscientização e preparação dos profissionais envolvidos.14

Isto implica na construção de um "nós" ao invés de um "eu" ou "eles", presentes nos relatos. A individualidade profissional terá outro lugar na prática interdisciplinar. É diferente a troca dos saberes em busca de um crescimento comum que se converta no cuidado integral aos sujeitos atendidos. Resulta daí o desenvolvimento nos trabalhadores de uma competência especifica para explorar as oportunidades de aprendizagens que podem surgir no local de trabalho, aplicando os conhecimentos adquiridos.15 É necessário coragem para a implementação de práticas criativas e inventivas, capazes de se deparar com o espaço da perda de domínios e referências instituídas para normalizar com sensibilidade e responsabilidade novas tecnologias de cuidado/cura/escuta.10 Principalmente quando "cada profissão possui uma disciplina prática de interpretação do processo saúde e doença e uma qualidade de comunicação diferente com as histórias afetivas que configuram padecimentos, aflições ou demandas nos usuários individuais ou coletivos das ações e serviços de saúde".10:269

Só quem tem a compreensão de quem trabalha na sala de urgência é que sabe porque ocorre dessa forma. Quando chega um politraumatizado grave a equipe toda corre e atende. O olho é clínico na emergência. [...] O que mais se destaca aqui é a solidariedade humana, apesar de pequenos conflitos, pelo sofrimento humano naquele momento [...] mas não tem ninguém melhor do que o pessoal da enfermagem para compreender a dor da família, paciente, o estresse da equipe com os casos, então nós somos humanos demais da conta (E8).

Falar em interdisciplinaridade requer ainda estabelecer relações de dialogo e interação entre os diversos setores responsáveis pelo atendimento em saúde. Os desafios da intersetorialidade estão presentes também na emergência do hospital em estudo e apontam para problemas concretos do trabalho cotidiano. Perpetua-se a falta de integração entre os setores no próprio hospital, como também deste com outras instâncias de atendimento à população, prejudicando a prática interdisciplinar. Nesse sentido, o processo comunicativo é primordial para que a intersetorialidade aconteça na prática. No entanto, "as paredes que separam os setores são paredes de chumbo que devem ser derrubadas pela constituição de um código comunica-cional comum".16: 98

Eles lá em cima é que não querem o trabalho, não a gente. Pois na realidade, o que eles fazem é transferir a responsabilidade do paciente para nós. E nossa responsabilidade técnica é dar suporte ao POLI... não do anda [...] ( E1).

[...] a equipe atua muito bem, dentro dos recursos disponíveis e da área física limitada [...] O resgate chega montando banca, acham que nossa atuação é ruim... priorizou-se o pré-hospitalar, que agora é chiquíssimo para o cidadão, mas a emergência hospitalar está esquecida. O cidadão que antes morria lá fora, agora morre aqui dentro e demanda mais atenção e cuidados (E8).

Frente as dificuldade de entender a interdisci-plinaridade fora das tradicionais referências ao "trabalho em equipe", discutido como um instrumento básico do trabalho da enfermagem, emergem razões que justificam o esforço face aos limites do trabalho coletivo. Os aspectos apontados, fronteiriços a um sentido do termo e não suficientes para caracterizar uma concepção de interdisciplinaridade, são importantes por revelar imagens construídas sobre si mesmo num trabalho cheio de outras presenças. O que está presente em si e no outro dá qualidade e complexidade às relações e ao produto do trabalho, compondo um alvo, um objetivo que direciona a ação e o desejo.

Tem profissionais que estão entrando e tem garra, mas falta outra coisa, outro tem boa intenção, outro inteligência, mas ainda falta, e tudo isso desagrega o sistema de emergência (E5).

[...] isso é angustiante por que ninguém mais viu que o paciente estava parado e temos em mãos um monte de recursos técnicos para isso. Acho que isso é uma falha, aqui precisa de uma reestruturada, reciclar e conscientizar a equipe nesse ponto[...] Pacientes graves precisam de atenção contínua (E8).

Quando que tem algum problema, chega junto, tenta passar o que é certo e o que não está [...] se tenta uma forma de sempre estar trazendo a assistência para o paciente cada vez melhor. Com os profissionais você tenta isso, só que isso não dá certo [...] isso me trás um sentimento de frustração (E3).

Fica evidente a facilidade dos enfermeiros em voltarem o tema para aquilo que é visto como a finalidade da própria ação. Interagir, articular, trabalhar junto e, até, tolerar, negociar, brigar só tem sentido quando pensado no fim último, no cuidado de qualidade. O objetivo que empresta sentido às experiências do trabalho é também o motivo da frustração, do desânimo e da impotência. "Ante o revés ou ao se colocar em xeque uma técnica, um savoir-faire, um conhecimento, há um sujeito que experimenta sua impotência [...]. O estar em xeque pode ser também um apelo ao avanço, em busca de solução. De fato, a atividade real contém já uma parte de reajustamento, de rearranjo dos modos operatórios em face da resistência do real [...]. A atividade condensa, então, de certa forma, o sucesso do saber e o revés ocasionado pelo real, em que um compromisso que contém uma dimensão de imaginação, inovação e invenção".17:42

A idéia de inteligência da prática é bastante útil para entendermos essa inteligência astuciosa, mobilizada pelo real, pelas situações inéditas e cambiantes, que resiste aos domínios e conhecimentos disponíveis, que privilegia as habilidades tácitas e sensíveis e que é profundamente enraizada no engajamento do corpo até o ponto de um mimetismo com o tarefa.17

Por vários aspectos e em diferentes formas de dizer, estamos ressaltando um pressuposto que já vem sendo aprofundado pela vertente teórica da psicodinâmica do trabalho, que indica que qualquer ato técnico ou trabalho, está submetido a regulação pela interação entre as pessoas, uma regulação pela intersubjetividade. Isto posto, nenhuma análise pode se limitar a fatores exclusivamente subjetivos ou culturais, ou tampouco desconhecer que as pessoas reagem e se posicionam frente a estas regulações, tradições e instruções, entre os extremos da visibilidade (exposição/publicização) e do segredo (ocultamento). É difícil compreender tudo o que acontece no espaço entre estes dois extremos, no interior dos quais uns atuam sobre os outros, "interatuam" com base em condições intersubjetivas e éticas que permitem o julgamento, o reconhecimento, a cooperação, a coordenação, a arbitragem (que criam normatizações).17

Por tudo isso, talvez nos caiba reconhecer a necessidade de reflexão sobre as condições que estão determinando nossos julgamentos, nossas posições no campo conflitivo do trabalho coletivo, enfim, nossas possibilidades para um trabalho interdisciplinar. Então poderemos dizer ao que nos referimos quando falamos em interdisciplinaridade, o que estamos considerando possível, haja vista a diversidade de conceitos existentes e a complexidade de elementos que participam desta construção, não exclusivamente objetivos e relativos aos saberes formais, mas incluindo uma dinâmica muito densa de pessoas, saberes e práticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O cenário da temática interdisciplinar vem se ampliando, do foco acadêmico privilegiado para campos antes tomados por modelos teóricos instrumentais, como aqueles voltados aos interesses e dinâmicas do mundo do trabalho. Neste mundo do trabalho, agora impactado pelo processo de reestruturação produtiva e do processo de acumulação flexível do capital, novas exigências determinam novos perfis e condições de empregabilidade ao trabalhador. Se a organização produtiva do modelo taylorista-fordista superestimulou a especialização, a fragmentação, a racionalização utilitarista, a padronização e o controle minucioso dos modos de fazer, agora novas modalidades de organização produtiva estão a exigir saberes e fazeres mais dispostos à integração, a flexibilidade, ao desenvolvimento de competências mais diversificadas e transversais.

Mesmo que condições muito desiguais de acesso e usufruto dos produtos tecnológicos e conquistas sociais não permitam generalizar tais mudanças ou configurar uma única face a este trabalhador, cabe revelar tais tendências e nelas reconhecer as incursões visíveis ao nível do setor de serviços e, dentro dele, das práticas de saúde.

No trabalho em saúde, dividido entre trabalhadores de diferentes campos profissionais e, como na enfermagem, diferentes níveis de formação, também a penetração destas tendências - no interior das quais podemos identificar a produtividade deste discurso da interdisciplinaridade - também será desigual. Dito de outro modo, o discurso da interdisciplinaridade se apresentará tanto mais diverso, em concepção, consistência e capacidade de provocar mudança, quanto forem as diferenças de seus espaços "institucio-nalizados" de manifestação: universidades ambientadas à produção científica; escolas de formação profissional (médicos, enfermeiros, nutricionistas, entre outros); escolas de formação de nível técnico ou superior; serviços de saúde de diferentes níveis de gestão e de incorporação tecnológica e, assim, numa série muito maior de características definidoras de tais diferenças.

No discurso expresso em fóruns profissionais revela-se uma tendência de trabalho usuário-centrada, na qual os profissionais com objetivos comuns abrem mão do corporativismo e solidarizam-se com outros sujeitos. Tendências que apontam para o processo comunicacional como movimento para a emancipação dos sujeitos na relação com a alteridade.18 Deste modo, outras regras podem ser estabelecidas a partir de mudanças de comportamento que significam alterar uma velha ordem que possibilite nova distribuição de um poder construído hegemonicamente ao longo dos anos no setor saúde.19 Que possibilite uma autonomia que integre os componentes da decisão, do desenvolvimento de capacidades, da criatividade, da autodeterminação, da autoridade e da auto-organização mas, antes de tudo, do pluralismo que marca nosso tempo.20 Quem sabe assim a ruptura com os antigos padrões não se constitua apenas em uma utopia na construção da interdisciplinaridade em saúde.

A busca pelo atendimento de urgência/emergência não se manifesta isoladamente, faz parte de um contexto sócio-cultural nem sempre considerado por aqueles que prestam o atendimento. Sua solução é parte de um todo complexo, que demanda uma maneira integrada de agir que vem exigindo cada vez mais posturas profissionais fundadas (ou rodeadas) pela interdisciplinaridade.

No caso deste estudo, há que se consideradar algumas características das entrevistadas e do local de exercício profissional das mesmas - hospital público de referência estadual, que assiste todo e qualquer tipo de emergência e urgência - que situam estes dados num certo local, época e contexto de trabalho. Ao que chegamos, no esforço por compreender o trabalho interdisciplinar neste contexto específico, não deve servir para generalizações ou mesmo para compor uma idéia completa sobre o que pensam as enfermeiras. Antes de qualquer coisa, esta visão se mostrou cheia de incompletudes e mergulhada nas referências que fazem ao trabalho em equipe naquele lugar e momento, no dia a dia de conflitos e frustrações, frente a papéis e responsabilidades nunca construídas de forma autônoma ou isolada.

Sobretudo, podemos falar que, na visão das pesquisadas, o trabalho interdisciplinar se mostra no interior das possibilidades concretas do exercício do trabalho em equipe, onde a noção de conjunto se dá por referência aos papéis individuais e aos potenciais de troca, parceria e respeito nas relações entre aqueles que se articulam (ou deveriam se articular) porque visam um objetivo e almejam uma qualidade na ação que desenvolvem, mas que também se confrontam com a frustração e a impotência.

Conceitos como os de disciplina, profissões e saberes em saúde; relações interpessoais e inter-profissionais; comunicação; poder e conflito; modelos de atenção, intersetorialidade e integralidade, entre outros que não puderam ser aqui tratados pelos limites e recortes postos neste texto, precisam ser citados como relevantes e profundamente imbricados no tema da interdisciplinaridade. Deste modo, estudos voltados para o trabalho coletivo em saúde, mesmo que sob focos ou instituições especificas, remetem a novas e atentas retomadas de dados aparentemente corriqueiros, de falas já consideradas comuns, mas que são reveladoras dos sentidos construídos nas práticas - e das práticas - desses sujeitos trabalhadores. Pela busca destes e de outros sentidos estaremos também nos instrumentalizando para empreender a crítica séria, para propor novos conceitos e valores e decidir outros caminhos para o nosso trabalho.

Recebido em: 15 de fevereiro de 2005

Aprovação final: 31 de março de 2005

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2005

    Histórico

    • Recebido
      15 Fev 2005
    • Aceito
      31 Mar 2005
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