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Que é o "ser da família"?

¿Que es el "ser de la familia"?

What's of the "family being"?

Resumos

Este é um estudo baseado na filosofia fenomenológica heideggeriana, com o objetivo de desvelar os elementos estruturais da existência do ser da família. O caminho metodológico foi construído com base no pensamento de Heidegger. Os dados da família foram coletados em entrevistas e observações. Cada um de nós contribui para a existência da família e ela possibilita o desenvolvimento de nosso "ser-no-mundo", ao vivenciar e compartilhar experiências cotidianas da família. Ali aparece a possibilidade de compartilhar um modo de ser no mundo, um modo de cuidado para "ser-família-no-mundo". Um mundo que gera essa unidade de relacionamento, que emerge de sentimentos interligados entre os integrantes, respondendo a exigências de cada membro, pelo sentimento de pertença primária gerado neles. Essa unidade dá a possibilidade de nascer a cada um de nós, dá-nos a possibilidade de "poder ser" ser humano, chegando a ser referencial de si mesma em cada ser humano.

Família; Saúde da família; Relações familiares


Es un estudio basado en la filosofía fenomenológica heideggeriana, su propósito es desvelar los elementos estructurales de la existencia del "ser de la familia". El camino metodológico fue construido con base en el pensamiento de Heidegger. Los datos de la familia fueron recolectados por medio de las entrevistas y las observaciones. Cada uno de nosotros contribuye para su existencia, y ella posibilita el desarrollo de nuestro "ser-en el-mundo" al vivenciar y compartir experiencias cotidianas de la familia. Allí surge la posibilidad de compartir un modo de ser en el mundo, un modo de cuidado para "ser familia en el mundo". Un mundo que genera esa unidad de relacionamiento que emerge de sentimientos interligados entre los integrantes, respondiendo a las exigencias de cada miembro, por el sentimiento de pertenencia primaria generado en ellos. Esa unidad da la posibilidad de nacer a cada uno de nosotros, asi también, nos da la posibilidad de poder ser ser humano, llegando a ser un referencial de sí misma en cada ser humano.

Familia; Salud de la familia; Relaciones familiares


This is a study based on the heideggerian phenomenologyc philosophy, whose aim is to reveal the structural elements that create the existence of the "family being". The methodological path of this article was built fundamentally based on Heidegger's work.. The family data were taken from interviews and observations. Each one of us contributes to the existence of the family, and this makes it possible to develop our "being in the world" when living and sharing daily family experiences. That is where the existential possibility of sharing in a personal manner, a manner of being in the world, a manner of caring to "be family in the world" arises. A world which produces this relationship unity which emerges from interlinked feelings among the components, responding to personal demands by means of the feeling of primarian belonging generated in them. This unity gives the possibility of born to each one of us, gives us the possibility of being humans beings, succeeding in being its own referential in every human being.

Family; Family health; Family relations


ARTIGO ORIGINAL

REFLEXÃO TEÓRICA

Que é o "ser da família"?1 1 Trabalho extraído da Tese de Doutorado em Enfermagem: "Aproximação à compreensão ontológica da família baseada no pensamento de Heidegger", orientada pela Dra. Ingrid Elsen e defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

What's of the "family being"?

¿Que es el "ser de la familia"?

Josefa Aida Delgado

Doctora en Enfermería. Professora Titular na Universidad Nacional de Santiago del Estero (UNSE). Argentina.

Endereço Endereço: Josefa Aida Delgado Pellegrini, 434, 9º B C.P. 2400 Santiago del Estero, Argentina. E-mail: josaidelsunse.edu.ar

RESUMO

Este é um estudo baseado na filosofia fenomenológica heideggeriana, com o objetivo de desvelar os elementos estruturais da existência do ser da família. O caminho metodológico foi construído com base no pensamento de Heidegger. Os dados da família foram coletados em entrevistas e observações. Cada um de nós contribui para a existência da família e ela possibilita o desenvolvimento de nosso "ser-no-mundo", ao vivenciar e compartilhar experiências cotidianas da família. Ali aparece a possibilidade de compartilhar um modo de ser no mundo, um modo de cuidado para "ser-família-no-mundo". Um mundo que gera essa unidade de relacionamento, que emerge de sentimentos interligados entre os integrantes, respondendo a exigências de cada membro, pelo sentimento de pertença primária gerado neles. Essa unidade dá a possibilidade de nascer a cada um de nós, dá-nos a possibilidade de "poder ser" ser humano, chegando a ser referencial de si mesma em cada ser humano.

Palavras-chave: Família. Saúde da família. Relações familiares.

ABSTRACT

This is a study based on the heideggerian phenomenologyc philosophy, whose aim is to reveal the structural elements that create the existence of the "family being". The methodological path of this article was built fundamentally based on Heidegger's work.. The family data were taken from interviews and observations. Each one of us contributes to the existence of the family, and this makes it possible to develop our "being in the world" when living and sharing daily family experiences. That is where the existential possibility of sharing in a personal manner, a manner of being in the world, a manner of caring to "be family in the world" arises. A world which produces this relationship unity which emerges from interlinked feelings among the components, responding to personal demands by means of the feeling of primarian belonging generated in them. This unity gives the possibility of born to each one of us, gives us the possibility of being humans beings, succeeding in being its own referential in every human being.

Keywords: Family. Family health. Family relations.

RESUMEN

Es un estudio basado en la filosofía fenomenológica heideggeriana, su propósito es desvelar los elementos estructurales de la existencia del "ser de la familia". El camino metodológico fue construido con base en el pensamiento de Heidegger. Los datos de la familia fueron recolectados por medio de las entrevistas y las observaciones. Cada uno de nosotros contribuye para su existencia, y ella posibilita el desarrollo de nuestro "ser-en el-mundo" al vivenciar y compartir experiencias cotidianas de la familia. Allí surge la posibilidad de compartir un modo de ser en el mundo, un modo de cuidado para "ser familia en el mundo". Un mundo que genera esa unidad de relacionamiento que emerge de sentimientos interligados entre los integrantes, respondiendo a las exigencias de cada miembro, por el sentimiento de pertenencia primaria generado en ellos. Esa unidad da la posibilidad de nacer a cada uno de nosotros, asi también, nos da la posibilidad de poder ser ser humano, llegando a ser un referencial de sí misma en cada ser humano.

Palabras clave: Familia. Salud de la familia. Relaciones familiares.

INTRODUÇÃO

A vivência e a experiência humana e cotidiana de viver em família nos proporciona elementos que contribuem para estruturar, em cada um de nós, uma representação e um significado de família. Todos nós, seres humanos, temos possibilidades de fazer parte de uma família. "Viver" em família é uma experiência única para cada família e para cada um dos seus integrantes, para cada um de nós. Apelando para o pensamento de outro estudo, de que só o homem tem o privilégio de um conhecimento do ser, procurarei caminhar acompanhada por minhas vivências, experiências e conhecimentos de família, buscando avançar em seu estudo.1

Como se estrutura cotidianamente a experiência de viver em família para poder gerar, organizar e fortalecer sua existência? Da mesma forma que no passado, hoje, a família vem sofrendo importantes transformações em sua estrutura, funções e relações intra e extra-familiares. Por momentos, fala-se que a família está em crise, mas sua identidade não chega a dissolver-se e nem ser confundida. Por quê? Penso que por estar integrada por pessoas/"seres aí", que se reconhecem membros da família, definem elementos fundamentais, universais, cujas características ontológicas contribuem para constituir a estrutura da existência da família, permitindo que ela seja ela mesma e não outro ente. Como é a experiência de viver em família? Como a percebem (e se percebem a si mesmos) os seus integrantes?

Com base em características ônticas da família, posso interpretar, inspirada no pensamento heideggeriano, que o "ser da família" está implícito na família na cotidianidade, no "que é família" e no "como é a família", embora habitualmente o significado das experiências cotidianas como família nos pareça tão evidente que não nos detemos a procurá-lo.

No entanto, ao formular a pergunta: o que é o ser da família?2,3, posso inferir que já tenho alguma compreensão do "é", denominado por Heidegger de compreensão de "termo médio", que é uma compreensão comum, vaga, cotidiana. Este é meu ponto de partida para chegar a compreender e interpretar sua existência. Esse ente da família é uma unidade existencial complexa, e não porque seja a soma de integrantes ou de "seres aí", mas porque existem elementos que fazem as características ontológicas de sua existência, que surgem dessa relação interpessoal que se origina na família. Busquei desvelar algumas dessas características para aproximar-me da compreensão buscada. Para poder captar o que significa o "é", aplicado à família, vou interpretá-lo com base na própria estrutura de vida da família.

O homem não se caracteriza por seu corpo, nem por determinadas propriedades físicas, mas por sua maneira de existir diferente dos outros entes. Desse lugar, onde está localizada a família, constituída por "seres aí", poderemos inferir que a essência é a sua existência", diferente da de outros grupos humanos. A família se vivencia a si mesma como algo único em sua vida cotidiana, integrada por projetos, expectativas, frustrações, dificuldades, reflexões, alegrias, responsabilidades assumidas ou não, conquistas individuais e grupais, perdas, todas as vivências* * Vivência: vai além do sentido de perceber, envolve sentimentos, pensamentos, percepção. Não é um mundo apenas sentido. Em tudo isso, o vivido. e experiências† † Experiência: apreensão sensível da realidade externa. Aquilo de que tenho conhecimento a partir do "outro". 2 que co-existem na con-vivência da família.

Em sua evolução como família, atravessa diferentes fases evolutivas de vida, formação, desenvolvimento, consolidação e declínio, em que vivências e experiências (individual e familiar) cotidianas vão integrando-se e definindo essa unidade relacional complexa peculiar, tendo suas próprias características de relacionamento de acordo com seu momento de evolução. Em que sentido o é? Demandam dela, possíveis modos de ser que devem adotar modos estáveis de vinculação, essenciais, que lhe dão identidade, como o ente família percebe que tem de ser para cada momento de sua existência.

A diferença de qualquer outro ente, minha existência, segundo o pensamento heideggeriano, é algo peculiar, tem a liberdade de assumir a responsabilidade de ser si mesmo, e portanto o "ser aí da família" tem a possibilidade de decidir a adoção de um modo próprio/autêntico, ou impróprio/inautêntico de relacionar-se. Isso significaria que a família, por seus membros, tem a possibilidade de decidir como ser de acordo com as circunstâncias que tem de viver a cada dia; resolvendo-se segundo seu próprio mundo de significados, a possibilidade de ser ela mesma, embora em outras pareça ser, vale dizer, mostra-se como o que não é em si mesma. Ou porque ela busca essa possibilidade, ou porque está nela, ou porque chega a ela.

Tem sua dinâmica de relacionamento cotidiano, em que se compartilham coisas, segredos, modelos de vida, códigos, compartilha-se o cotidiano familiar nutrido de acontecimentos familiares e individuais.

CAMINHO METODOLÓGICO

Este processo foi sendo gerado em duas fases, cada uma com seus momentos próprios, diferentes, que foram surgindo e concluindo segundo a aproximação ao objeto de estudo (OE), a família: 1) fase de aproximação ao mundo da filosofia fenomenológica heideggeriana: momento de exploração, momento de desvelamento de Heidegger; 2) fase de aproximação ao ser da família: momento de encontro com a família, momento de desvelamento do ser do "ser-aí da família".

Cada momento não se deu de maneira linear no tempo. A inter-relação das fases foi permanente, havendo momentos de predomínio de uma sobre a outra. Assim, comecei a adentrar o campo da fenomenologia, buscando explorar e conhecer o caminho metodológico que poderia percorrer para fazer uma análise filosófica, através de bibliografia, da análise de diferentes tipos de pesquisas fenomenológicas, implementadas como método e como filosofia para poder detectar diferenças e características de cada uma. Desse modo, buscava encaminhar o delineamento da metodologia de estudo apoiada no pensamento heideggeriano.

Daí surgiu uma das minhas indagações: como deveria aproximar-me da família para poder apreender o ser da família? Segundo o pensamento heideggeriano, o ser requer uma forma especial de mostrá-lo que se distingue essencialmente do descobrimento dos entes; perguntar pelo ser quer dizer ver através de um ente, que é ele que pergunta, sob o ponto de vista de seu ser. A esse ente, que somos em cada caso nós mesmos, e que tem, entre outros traços, a possibilidade de ser, de perguntar, Heidegger denominou "ser-aí". Assim mesmo, especificou que o perguntar ontológico é anterior ao perguntar ôntico das ciências positivas, advertindo que a caracterização da pergunta que interroga pelo ser é uma pergunta sui generis.

Por causa disso, cotidianamente, efetuava exercícios de desvelamento do ser do "ser-aí", meu ser, com cada conceito que ia compreendendo. Buscava, a cada momento, desvelar o caminho que me permitiria aproximar-me logo do ser da família. Embora o pensamento heideggeriano não aborde o termo família, tomei licença de optar pela possibilidade de abordá-la pela característica do "ser-aí", já que ele próprio referiu que a existência do ser humano é possível com base na sua relação com os outros "ser-aí" e com as coisas com as quais compartilha o mundo; é no mundo da família que o "ser-aí" inicia sua existência, é parte do grupo, torna possível a existência que promove o ser da família e também a família, a ele.

Enquanto buscava elucidar questionamentos, achei que o autor nos advertiu de que o perguntar mesmo tem, enquanto conduta de um ente, um diferencial caráter de ser, que nos movemos sempre com certa compreensão do ser, de onde surge a pergunta que interroga pelo sentido do ser, sem que possamos fixar-nos em conceitos, o que o "é" significa. Prosseguindo na busca de encontrar clareza no pensamento de Heidegger, descobri que é inerente ao "ser-aí" não só uma compreensão do ser, mas que pode dispor de várias modalidades de interpretação.

De posse desse referencial teórico da família, mais o referente ao pensamento heideggeriano, chegava o momento de aplicar muito dos conceitos que vinha desvelando, para definir o caminho que me permitisse atingir o propósito. Aqui iniciei a coleta de dados. Para consegui-los, desenvolvi diferentes atividades que podem ser agrupadas em duas classes: as destinadas à escolha da família e as referentes à realização das entrevistas e observação. Com as entrevistas, buscava promover a descrição de suas experiências vividas e as que vivem em família, individual e grupalmente na vida diária, através do relato de cada membro participante.

A observação foi o outro recurso utilizado para obter dados gerados pela linguagem não-verbal: gestos, troca de olhares, atitudes dos membros da família durante a conversação, manifestações de afeto, modos de relacionamento com outras pessoas, modos de utilizar o espaço físico. Tais dados, registrados em notas de observações, permitiram complementar outros obtidos com a linguagem verbal.

No que se refere à etapa de análise de dados da parte empírica, não tendo encontrado, na bibliografia consultada, referências metodológicas específicas para desenvolver um trabalho pela perspectiva da filosofia fenomenológica, minha aproximação do OE não foi um processo linear nem predeterminado. As etapas desenvolvidas surgiram de uma combinação de recursos. Por momentos, esse caminhar foi intuitivo; em outros, trabalhei sobre a base de referenciais teóricos. Assim, são identificadas duas etapas, cada qual com suas características próprias: a primeira orientada para a análise de dados, e a outra centrada na busca do desvelamento de características que fazem a estrutura do ser da família, denominadas de a família e seu mundo; a família e sua vinculação com os úteis; a família e seus modos de ser no mundo, a família vivenciando sua temporalidade; a família e o cuidado.

A FAMÍLIA E SEU MUNDO

Como sabemos, o "ser-no-mundo" expressa um modo de ser humano que escapa à compreensão cotidiana, do termo médio; daí inicia seu desvelamento de como surge o mundo do ser do "ser aí" a partir da análise do mundo cotidiano, considerando-o como aquilo em que um "ser aí" efetivo vive.1

Quando no mundo cotidiano surge a família (casal, par ou mãe/pai/substituto e filho/a), cada membro que a constitui está buscando tornar possível sua existência; achamos que, para cada integrante que a funda, é uma etapa nova em sua vida pessoal e ao mesmo tempo um novo sistema de relações dá início com a vida da familia. Os membros participam com seus modos de ser, modos de viver aprendidos e desenvolvidos em sua família de origem (aquela família: biológica, adotiva, sustituta ou grupos extensos, que a pessoa reconhece como sua; aquela que lhe permite construir e compartilhar sua história de vida pessoal e familiar), com suas histórias, pessoal e familiar, que se inter-relacionam. Essa história de vida familiar se torna possível porque seus integrantes compartilham um mundo onde se podem perceber membros compartilhando vivências e experiências do cotidiano familiar. Assim, sua existência se fundamenta na co-existência possibilitada pelo con-viver, compartilhar a vida: [...] cada um se faça conhecer tal qual é, porque a convivência de duas pessoas não é fácil, pelo simples fato de que cada um pensa diferente.

Esse compartilhar tem suas peculiaridades, que lhe dão identidade de mundo doméstico e cada um de nós não o confunde, nem pode despojar-se dele mesmo distanciando-se materialmente. No momento em que se pode considerar a gênese do mundo da família, o mundo doméstico passa a ter referência de propriedade: nosso mundo. O mundo é onde eu sou, onde o "ser aí" é, porque só na presença do outro minha existência, tua existência, adquire significado. Estar no mundo tem o sentido de marcar relação espacial com o mundo, o que permite interpretar que o ser em família está no mundo, abrindo um espaço nele, onde pode, podemos ser uma família. Por sua vez, cada um dos seus membros no mundo da família tem seu espaço, dentro do qual se define sua relação com o mundo familiar de acordo com suas próprias possibilidades de ser e com as possibilidades que no mundo da família pode encontrar. Essa interdependência espacial só é possível na co-existência, na relação de "ser com" que possibilita o compartilhar.

Como é o mundo da família? Analisando o mundo doméstico, nota-se um jogo nos papéis que cada membro da família aprende e mediante os quais se adapta às demandas desse mundo, como às do mundo circundante mundo imediato ao mundo doméstico. Modos de ser que se vão definindo e diferenciando-se segundo a fase de evolução da família; assim vão estruturando-se modos de relacionamento que são compatíveis com as suas características.

O mundo da família é o ambiente de geração de significados que vão constituir um sistema de significados. É isso que constitui o mundo (vivido); significados que incluem valorações que não são estáticas na história de vida da família nem na de cada integrante1. Elas vão modificando-se conforme "nós família" e cada um de nós percebemos o mundo, conforme a nossa história pessoal e grupal fundamentada basicamente nas vivências e experiências familiares compartilhadas. O surgimento de significados nessa nova unidade relacional permite a fundação do mundo da família, constituindo-se no horizonte referencial na vida da família e na de cada um de seus membros. Horizonte a partir do qual a relação com os outros "seres aí" da família e os que lhe são externos vão sendo valorados e alcançam significações na vida da família. Desse jogo de valorações, significados, vão surgindo normas e limites para o cotidiano viver do "ser aí da família" no mundo, surgindo na vida de cada um o significado de "nós somos", vivemos no que cada um de nós chama mundo. O sentido de pertença vai emergindo em níveis diferentes. Não está ausente em nenhum "ser aí", e vai além de toda valoração funcional que cada um pode ter de seu grupo familiar. O sentimento de pertença primária que tem cada membro da família está acima das características observáveis ou mensuráveis da família.

Certamente, cada ser humano, cada um de nós desde sua origem teve, tem e terá uma família que definiu e/ou define as possibilidades de ser, de existir, que gera sentimento de pertença primária, que se promove ao logo da vida individual e familiar.

Estar vivendo nesse mundo revela uma relação contínua e dinâmica com outros seres humanos e com entes não-humanos, integrando e definindo a unidade de relação complexa que é a família, sobre a base de sentimentos de referência que seu mundo torna possível. No mundo da família são possíveis, ao mesmo tempo, uma história de vida particular de cada membro e uma história de vida compartilhada. Esta última, que tem características próprias, faz com que se torne o "ser aí da família", referencial de si mesma em cada ser humano (ser aí): sempre eles [filhos] voltam aqui, com um motivo ou com outro, mas vêm [...].

Em sua historicidade considera-se que o "ser aí" pode gerar uma história ao longo da vida, pois os membros da família vão gerando uma unidade relacional complexa que, na cotidianidade, pode atravessar basicamente quatro fases de relacionamento intrafamiliar: conhecimento mútuo e adaptação; questionamento e reformulação; balanço intergeracional, e, por último, convalidação/invalidação e contração. Através delas são manifestados modos de ser próprios e impróprios de relacionamento intrafamiliar e extrafamiliar que podem coincidir ou não com as fases de evolução de vida da família.

Na cotidianidade, cada um tem manifestações que identificam essas fases. A fase de conhecimento mútuo e adaptação é inicial em qualquer família: cada membro tem seus próprios códigos e necessidades de estar com outro "ser aí" e deve compartilhá-los, exigindo que essa co-existência adote modos de ser que possibilitem a consolidação dessa "unidade relacional complexa" que é o "ser aí da família" no mundo doméstico e em sua relação com o mundo circundante. É a fase da busca de identidade como família, quando se vão buscando e gerando modos de ser em cada um dos seus membros e grupalmente, que contribuem para definir a existência da familia.

A fase de questionamento e reformulação emerge quando um ou mais de seus membros buscam mudanças em sua vida, às vezes por motivações externas ou internas ao ente família. Na cotidianidade, pode manifestar-se na busca de novas vivências laborais, afetivas, culturais, educativas que levam o "ser aí da família" ou qualquer um dos seus membros a revelar-se nessa cotidianidade, buscando ser si mesma, gerando comportamentos variados nos integrantes da família: [...] no processo que me tocou viver, perdi muitas coisas, perdi muito tempo, deixei passar por uma escolha tonta... que deixei de lado minha família e dei prioridade a outras coisas... hoje percebo que fui uma tonta [...]. Em alguns casos pode comprometer a integridade do grupo familiar.

Na fase do balanço inter-geracional, os "seres aí da família" visualizam as conquistas que vão alcançando e o que ainda falta fazer para fortalecer a família. Nem sempre todos seus integrantes manifestam-se, os modos de ser autênticos entre eles não são simultâneos. Essa fase, assim como as outras, se manifesta progressivamente: eles [filhos] tomaram suas decisões e hoje se arrependem. Hoje para nós são os netos, que vêm [...] tratar de apoiá-los e lhes dar uma mãozinha, são bons. [...] muitas vezes passaram maus momentos aqui, e todos temos compartilhado esses maus momentos.

Já a fase de convalidação/invalidação e contração emerge quando os membros da família se percebem como o momento do dever cumprido nessa família de origem. Pode manifestar conformidade ou inconformidade com os modos de ser que tenham tido como integrantes e/ou grupo familiar ao viver a vida no mundo da família, buscando "ser-família-no-mundo": [...] acredito que faria o mesmo; melhoraria em coisas de não permiti a eles, coisas em que a gente foi permissivo, no sentido de dar-lhes uma liberdade [...] mais para a Júlia, não tanto aos varões. Quando a família está vivendo essa fase sob a tirania do um, a possibilidade de explicitar uma autocrítica é rara.

A FAMÍLIA E SUA VINCULAÇÃO COM OS ÚTEIS

Na cotidianidade, conforme suas possibilidades de viver, a família desenvolve suas atividades de acordo com o que a sociedade espera dela, embora às vezes não consiga satisfazer plenamente essas expectativas, seja para as suas metas ou para as necessidades básicas individuais e grupais. Ali se conjugam pessoas e coisas úteis, que permitem o desenvolvimento de vivências e experiências que não seriam possíveis sem a presença de ambos.

Tanto o "ser aí da família", como o "ser aí" membro, têm formas padronizadas e circunstanciais de usar os úteis, como por exemplo, alimentar-se, cozinhar, higienizar-se, descansar, proteger-se e manter-se em segurança, entre outras. Isso lhe possibilita um conhecimento pragmático, que utiliza em seu cotidiano para relacionar-se com os úteis. A satisfação das necessidades básicas se torna essencialmente promotora do relacionamento com os entes úteis que estão dentro do mundo da família, delimitados pelo principal "útil" da família: o lar. O lar é o ambiente que define os limites físicos no qual vive a família. Ali se desenvolvem as ações específicas do que constitui o mundo da família; onde a família vive sua vida de acordo com suas próprias posibilidades. É o ambiente onde o ser do "ser aí da família" pode ser si mesmo (autêntico) ou um mesmo (inautêntico). É o ambiente que possibilita a con-vivência, o encontro cotidiano, o "estado de aberto" de cada membro.

O "ser aí da família" vai estabelecendo rotinas, costumes, crenças, que estão sustentadas nesse conhecimento pragmático, que cada "ser aí" utiliza em sua relação cotidiana com os entes que não são "ser aí". A vida cotidiana do ente família se desenvolve através de diferentes momentos, que têm características próprias; cada um deles demanda paragens e úteis determinados.

A FAMÍLIA E SEUS MODOS DE SER NO MUNDO

Cada ser humano tem a possibilidade e a liberdade de ser, busca suas próprias alternativas para configurar a sua existência. Como são os modos de ser da família para possibilitar que, em cada integrante, se gerem modos de ser individual próprios e que contribuam para a existência da família? [...] eles [os filhos] buscam ter suas próprias experiências para saber. Embora nem sempre essa liberdade seja plenamente exercida no mundo da família por cada "ser aí" integrante, a família possui suas expectativas como grupo. Ela espera que cada membro contribua para esse "poder ser" família, nem sempre alcançado. Ao participar no mundo doméstico, os membros da família demandam diferentes modos do "ser-em", como por exemplo, no compartilhar; significa participar, ajudar, colaborar, ter ou utilizar algo, cooperar em algo que tem a forma de ser do "cuidar-se de"; também pode expressar um "ocupar-se de". Revela interação, que contribui para suas possibilidades de ser, está vinculado a sua vida. O compartilhar torna possível a convivência, com base em características que fazem o "ser aí da família", como são os sentimentos que só se geram no mundo da família.

Os membros da família se encontram submetidos a modos de viver cotidiano dominados por rotinas, tradições, regras, rituais. Não há espaço para a criatividade, que é escassa no mundo da família. Assim, poderiam considerar-se os momentos e modos de ser que os adultos impõem aos mais jovens para manter a dinâmica cotidiana da família. Aqui podem identificar-se hábitos alimentares, de higiene, de descanso, medidas de punição, formas de relacionamento. Deste modo de vincular-se, vão sendo gerados sentimentos, valorações, atitudes que promovem essa unidade de relações. Em conseqüência, o mundo da família adquire sentido na possibilidade mesma de "ser-com-outro", que cada membro vivencia e busca abrir-se, compartilhar com os outros membros para poder viver sua vida, existir, sem deixar de sentir que é parte e contribui para "ser família-no-mundo" iniciar suas vivências e experiências de "ser com outros", [...] compartilhar coisas boas e ruins, compartilhar com o outro.

Con-viver na família na cotidianidade não é só compartilhar um teto, ou compartilhar uma mesa de comida; não se reduz a uma relação biológica ou material com o grupo ou a uma mera relação funcional, em que cada membro tem funções de acordo com o seu papel seja de pai, de mãe, irmão/irmã, filho/filha, esposo/esposa. Não é isso que lhe permite ser família. Conviver implica liberdade para "poder ser"; cada um dentro de suas próprias possibilidades, que no pensamento heideggeriano representaria um "cuidar de" que não substitui o Outro, mas o ajuda. Esse é o autêntico cuidar.

Compartilhar a vida gera sentimentos interligados entre os integrantes (paterno/materno, filial, fraterno, conjugal), de tal modo, que só na família podem se dar essa interação e inter-relação de diferentes sentimentos que permitem essa sua co-existência característica. Tais sentimentos são de alguma maneira uma estrutura constitutiva do cuidado que fazem o "ser família-no-mundo". Os sentimentos que se evidenciam em diferentes modos de ser no mundo da família sustentam o sistema de relacionamento intrafamiliar, cuja dinâmica na vida diária é definida e interpretada só com base no seu mundo como horizonte de significações.

No mundo doméstico cotidiano, cada "ser aí" integrante acha que cada um tem identidade; não uma identidade de nomes ou biológica, mas aquela dada por um passado que é parte de sua vida vivida e que lhe dá sentido. Essa autoconsciência e auto-informação derivam da consciência que cada um tem do(s) outro(s) integrante(s) da familia. Assim, cada "ser aí" contribui para fundar a existência do outro "ser aí" membro e, em conseqüência, da própria familia.

Em sua relação com o mundo circundante, sua comunidade, o "ser aí família" está submetido aos modelos e normas definidos pelos outros "seres aí" que fazem parte desse mundo e com os quais a família convive cotidianamente. Analisando a vida cotidiana da família, percebe-se que cada uma vive como se vive. A família não pode ser diferente em seu relacionamento cotidiano com o mundo circundante e seus modos de vida pré-fixados. Nesses ambientes, os modos de relacionamento já estão determinados e pré-estabelecidos. Embora a família esteja inserida cotidianamente no mundo circundante do "(qualquer) um", não perde sua identidade, mesmo quando predominam modos de ser inautênticos em sua co-existência com outros grupos sociais que não possuam suas características existenciais.

À medida que o "ser aí da família" avança em sua evolução vital, as fases dessa unidade de relação vão apresentando modificações. As possibilidades de relacionamento com o mundo circundante se modificam, aumentando ou reduzindo, de acordo com os papéis que cada membro da família assume, alguns permanentes e outros circunstanciais.

A FAMÍLIA VIVENCIANDO SUA TEMPORALIDADE

Busquemos agora aproximar-nos da temporalidade do "ser aí da família". No momento em que surgem vivências compartilhadas como família, a própria existência da família se abre. A partir daí começa a construir-se a própria vida da família na cotidianidade. Cotidianidade, neste sentido, é ser "entre" o nascimento e a morte, descrevendo-a como um modo da temporalidade.1 São vivências compartilhadas por seus membros, que transitam no espaço de tempo entre esses limites, sendo evidentes só no agora.1 A temporalidade de seus integrantes é a que proporciona o fundamento ontológico da temporalidade ao "ser aí da família", [ ...] eu dizia: quando meus filhos forem grandes vão ser [...].

Por outro lado, o "ser aí" sempre "já é" no mundo ("facticidade", "estado de jogado" no mundo"). A facticidade é identificada como a dimensão do passado que não pode ser ignorada, negada ou revertida. Como é vivenciada pela família? A facticidade do "ser aí da familia" não é a mera soma de temporalidades de seus membros, é antes o produto das vivências compartilhadas entre eles em seu mundo, que fazem a sua existência como grupo primário: nós o fazemos porque, desde crianças, fomos induzidos a fazer isso, com o assunto da responsabilidade dentro do nosso lar, dentro de nossas próprias coisas. Mesmo sendo a família uma unidade existencial complexa, cada "ser aí" tem liberdade de viver sua própria temporalidade, sua vida. Ele é sido e pode ser sido enquanto é, enquanto exista. Por sua vez, o "ser aí da família" em sua temporalidade, torna possível um contexto de referência próprio de significação para cada um de seus membros, projetando-se na temporalidade deles, e a deles, nela.

Não pode modificar sua pertença primária ao "ser-aí da família"; de fato, a família lhe dá a possibilidade de nascer e lhe pertencer, que é a base do "poder ser" um ser humano. Permite que a família hoje exista; haver vivido diversos acontecimentos contribui para gerar e fortalecer elementos constitutivos do ser da família na qual seus membros podem assumir hoje suas possibilidades de ser família no mundo. Nesse espaço de tempo se sucedem vivências e experiências compartilhadas no cotidiano familiar, que determinam sua existência como família, permitem o "gestar-se histórico", cujo desvelamento da temporalidade ajuda a compreensão da historicidade do "ser aí", do "ser aí da família" como unidade existencial complexa.1

O sistema de significados que vai se estruturando no mundo de vida compartilhada da família se torna um horizonte de referência, positivo e negativo, na existência de cada "ser aí" integrante e do próprio grupo familiar, aumentando ou reduzindo as possibilidades de ser família no mundo, de acordo com a maneira como forma parte da estrutura existencial de cada um deles.

Desse modo, a família não se encontra sempre "já sido" no mundo, como algo que já passou, mas essa facticidade lhe permite perceber que ela tem um passado que se projeta para um futuro, que vai gerando novidades, onde nos sentimos como lançados na dimensão do "poder ser".1 Assim, a família é futuro e passado como grupo. Seria possível a existência do ser humano sem uma família que lhe permitiu ser "já sido" com possibilidades de "poder ser"?

Mas é um "encontrar-se afetivamente de alguma maneira"; nunca, como membros da família, estamos desprovidos de determinado estado de ânimo, que revela uma dimensão de minha existência, de nossa família. Na visão heideggeriana, esse "encontrar-se" pode ser vivenciado de forma diferente por cada membro da família, e a mesma pessoa em vários momentos pode vivenciar essa dimensão da vida compartilhada de maneira diferente. É um passado com base no qual estamos enfrentando o presente, o hoje, momento em que estamos com um estado de ânimo determinado, para abrir-nos às possibilidades de ser nos modos da propriedade ou da impropriedade.1 Esse "encontrar-se", para a família, é um encontrar-se especial para o ser humano, que gera tantos estados de ânimo quantos integrantes haja, muitas vezes contraditórios, como o otimismo, frustração, amor, ódio, esperança, desalento, confiança, incerteza, segurança, desassossego. Devemos prestar atenção ao estado de ânimo porque ele expressa a maneira como nos encontramos no mundo, doméstico e circundante, e nos permite compreender a situação em que estamos: [...] a gente começa a caminhar e aprender enquanto os filhos se vão criando. Esse ir na vida te faz entender muitas coisas [...].

Assim como cada membro do ser aí da família nunca está numa situação sem compreendê-la de algum modo, pode-se inferir que,como grupo, a família abre sua existência para compreender suas possibilidade de ser família no mudo, o futuro. Como? De acordo com o pensamento heideggeriano, o compreender, que é sempre afetivo, não constitui uma forma especial de conhecimento, mas é anterior a toda forma de conhecimento porque é um modo de ser. É o "poder ser", o "ver através de" si mesmo diversos modos de ser. Assim, nossas possibilidades de ser família no mundo se vêem aumentadas ou reduzidas segundo nosso estado de ânimo, ao que já vivemos, de onde surgem os significados que referenciam as possibilidades de ser da família e portanto, de cada um dos membros: [...] dar-lhes a oportunidade e que eles escolham o que querem ser.

Expressa que o compreender tem em si mesmo o que denomina "projeção", que é abrir-se para as possibilidades, para o futuro.1 É o seu "agora", de onde se projeta a vida da família, para "poder ser", compreendendo as possibilidades de "ser família-no-mundo", de relacionar-nos, de "ser-com outros", expressando o vivido e seus projetos através da "fala" (assimilada em toda a sua expressividade, verbal e não-verbal) que está articulada por significações que surgem do mundo vivido individual e grupalmente. Recordemos que a fala é a articulação da compreensibilidade e que as significações fazem brotar palavras.1 Desse modo, a família, por seus membros, como unidade de relacionamento, em todo momento, pode encontrar-se compreendendo e expressando-se de alguma maneira, segundo códigos e regras definidas pela família e pelo mundo circundante.

O passado se evidencia predominantemente em seus modos de ser cotidianos. Passado e futuro se vinculam, mas prestamos atenção ao presente, por ser a comunicação um transporte de vivências, opiniões, desejos de um sujeito a outro, posibilitando o "ser-com".1

Mas, ao mesmo tempo, a família, na sua cotidianidade no mundo circundante, está dominada pelo "se", imersa no "(qualquer) um". O mundo circundante lhe impõe determinadas rotinas que deve incorporar para conseguir satisfazer suas necessidades, como horários e dias das diversas atividades: freqüentar a escola, o trabalho; recreação, descanso. Quando se trata do mundo doméstico, na família, co-existem modos de ser inautênticos com modos de ser autênticos.

Nesse modo inautêntico de existir, a compreensão e a interpretação do "ser aí" cotidiano, estão reduzidas à conversa trivial; seu encontrar-se está reduzido à ambigüidade; sua expressividade é superficial, como que nada a preocupa.1 A família vive como as outras famílias vivem, não sente a necessidade de abrir-se para ser própria; entregou-se ao comum no mundo, que é a "tirania" do ser se.1

Assumindo a vida, cuidando de si mesma, o modo de ser autêntico predomina no mundo da família, de acordo com o momento da história de vida que a família esteja vivendo. A tendência ao modo de ser inautêntico vai predominando à medida que a família avança em sua última fase de relacionamento familiar, convalidação/invalidação e contração. A família se constitui em referencial de si mesma em novas famílias que surgem, e a família de origem se percebe como tendo alcançado sua meta: [...] eu estou orgulhosa de meus filhos, apesar de que a gente queria vê-los com estudo. As expectativas que a gente tinha podem ter sido falhas da gente.

A família tem a possibilidade de experimentar a morte de seus membros, desvelar a finitude da vida através de cada "ser aí" membro, que culmina com a possibilidade certa de "morrer", revelando que a existência é em cada caso minha, é intransferível, inevitável. A morte fecha toda outra possibilidade e sua percepção chama a uma vida mais pessoal, mais autêntica, a ocupar-se da existência.1 Ao morrerem os membros da família de origem, morre o ente família, mas o ser da família persiste nos membros de outras gerações, referenciando sua existência.

Quando se produz a desagregação do ente família, pode-se considerar a sua morte? Pelo exposto até aqui, os elementos estruturais de sua existência estão aí em cada um de seus membros: vivências e experiências compartilhadas do cotidiano familiar, sentimentos de pertença primária, sentimentos interligados entre os integrantes, referência de si mesma em cada um deles, a possibilidade de nascer, fazem parte da existência de cada membro que formaram o ente família.

Só o ente que é "entre" o nascimento e a morte representa o todo buscado. Como grupo, a família, enquanto existe, é um "estado de inconcluso"? Para alcançar sua "totalidade" deve morrer? Como se revela sua morte? Como a família e seus integrantes podem experimentar, no morrer de cada "ser aí", o fenômeno do ser, passar da forma de ser do "ser aí" (vida) para a de "já não ser aí"? Alcança o "ser total" quando morre o último integrante da família? Quem seria o último integrante da família? Deixo aqui esta interrogação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Crê se poder unificar todas as dimensões do ser do "ser aí" no termo "Sorge" (cura/cuidado), caracterizando com ele, de maneira geral, nosso relacionamento com o mundo. As duas modalidades fundamentais da cura/cuidado se dão na relação com as coisas e na relação com outros "seres aí" que estão no mundo. Na família, de que maneira o cuidado é parte constitutiva do ser da família? Como se desvela o cuidado como estrutura fundante do ser do "ser aí da família"? O cuidado, ao ser característica existencial do "ser aí", o é no ser humano antes de toda atitude, como o querer e situação de fato. Desse posicionamento se pode inferir que é no mundo da família, nesse mundo doméstico, em que esse modo de ser, o olhar por alguém, cuidar, pode ser mais evidente.1

A família é o ambiente onde seus integrantes vão compreendendo o "cuidar-se de", "cuidando de", "ocupar-se de" e do "cuidado" de si mesmo, que são possibilidades de ser si mesmo, modos de ser próprios que na cotidianidade, no mundo da família se dão com os modos de cuidar inautênticos.1

Como são absorvidas no mundo da família as modalidades do cuidado/cura? Se buscarmos compreender esse fenômeno, é interessante remontar pensamentos que expressam que o cuidado é existencialmente anterior a toda posição e conduta efetiva do "ser aí". Posso inferir que ao fazer parte do ser de cada "ser aí", ser membro da família, contribui para que cada integrante tenha a condição existencial do cuidado da vida e entrega, pela condição de compartilhar vivências e experiências do cotidiano familiar. Do mundo da família, e com a participação de seus membros, o "ser aí" estrutura seus próprios modos de cuidado, segundo as possibilidades de relacionamento que surjam no mundo doméstico e circundante. Podem assim co-existir modos positivos, que permitem ao "ser aí" ser si mesmo, com modos deficientes onde só tem possibilidades de ser "(qualquer) um mesmo". Entre esses modos pode haver equilíbrio ou o predomínio de um deles, no mundo doméstico, podemos encontrar modos de ser diversos, naquela família que possibilita o desenvolvimento de cada membro, onde cada integrante participa nessa unidade de relacionamento intrafamiliar por suas próprias possibilidades de ser. Do mesmo modo, podemos encontrar uma família em que as possibilidades de ser de cada "ser aí" estão condicionadas pelo modo de ser de alguns de seus integrantes, mas que permite que cada membro desenvolva suas possibilidades de ser si-mesmo. É possível identificar nesse mundo da família um cuidar deficiente, em que os integrantes consigam um relacionamento de remarcada indiferença, e suas possibilidades de ser e de cuidar-se estejam limitadas. Em tais circunstâncias, o mundo doméstico se transforma naquele "ser um com outro" em que o estado de queda submerge os integrantes da família num mundo do "(qualquer) um" que decide por eles, permanecendo todos num modo de ser impróprio.

Há momentos na história de vida da família em que o sistema de relacionamento pode encontrar-se interrompido com um ou mais integrantes da família. Isso pode dever-se a discordâncias em suas possibilidades de ser, de perceber, de compreender e interpretar seu mundo individual e seu mundo familiar, surgindo modos alternativos que não permitem a abertura do Outro para ele. Aqui poderia assimilar-se o querer aquietado sob a tirania do "(qualquer) um", mostrando-se como mero desejo: [...] eles [filhos] não souberam captar a mensagem que a gente lhes passou ou não sei o que pode ter influído neles. Mantém-se então o "ser aí" como se estivesse sem ocupar-se do mundo, como se não estivesse cuidando-se de, ocupando-se de seu cuidado. Mas mesmo assim, o grupo familiar de referência não o confunde com algo que não faz parte desse mundo doméstico, qualquer que seja seu modo de ser.

Do ponto de vista ôntico, todos os comportamentos e atitudes do homem são dotados de cuidado e guiados por uma dedicação. Ao fazer parte da estrutura existencial do ser humano, o cuidado acompanha o seu crescimento e o seu desenvolvimento, atingindo um nível de complexidade, no tipo e na qualidade das ações, através das quais se manifesta, à medida que a pessoa cresce. Vai construindo, criando, de acordo com suas próprias significações, crenças, costumes, necessidades, possibilidades, de tal forma que a ajudem a viver sua vida, poder ser ela mesma.

Recebido em: 03 de outubro de 2005

Aprovação final: 28 de outubro de 2005

  • 1 Heidegger M. El ser y el tiempo. 2a ed. 7a reimp. México: Fondo de Cultura Económica; 1997.
  • 2 Delgado J. Aproximação a Compreensão ontológica da família baseada no pensamento de Heidegger [tese]. Florianópolis (SC): Programa de Pos-Graduação em Enfermagem/UFSC; 2003.
  • 3 Morató JC, Riu AM. Diccionario de Filosofia [CD-ROM]. Barcelona: Herder; 1996.
  • Endereço:
    Josefa Aida Delgado
    Pellegrini, 434, 9º B
    C.P. 2400 Santiago del Estero, Argentina.
    E-mail:
  • 1
    Trabalho extraído da Tese de Doutorado em Enfermagem: "Aproximação à compreensão ontológica da família baseada no pensamento de Heidegger", orientada pela Dra. Ingrid Elsen e defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
  • *
    Vivência: vai além do sentido de perceber, envolve sentimentos, pensamentos, percepção. Não é um mundo apenas sentido. Em tudo isso, o vivido.
  • †
    Experiência: apreensão sensível da realidade externa. Aquilo de que tenho conhecimento a partir do "outro".
    2
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      2005

    Histórico

    • Aceito
      28 Out 2005
    • Recebido
      03 Out 2005
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