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A interface necessária entre enfermagem, educação em saúde e o conceito de cultura

The necessary interface among nursing, health education, and the concept of culture

La interconexión necesaria entre enfermería, educación en salud y el concepto de cultura

Resumos

O conceito de cultura tem sido evocado no ofício do desenvolvimento da educação em saúde, mas não tem sido explorado em profundidade pelos autores da chamada corrente de educação popular e pelos profissionais de saúde em geral. Neste sentido, o presente artigo aborda uma reflexão teórica acerca deste conceito na prática de educação em saúde e na prática do cuidado de enfermagem, procurando resgatar o mesmo, principalmente sob o prisma do referencial da Antropologia Simbólica/Interpretativa. A partir daí, realiza-se uma aproximação dos elementos contidos nas diversas definições do termo, assim como com as idéias germinais sobre cultura apontadas no referencial freireano.

Cultura; Educação em saúde; Enfermagem


The concept of culture has been evoked in the development of education in health care, but has not been explored in depth by authors from so-called popular education nor by health care professionals in general. This article outlines a theoretical reflection of this concept in the practice of health education and in the practice of nursing care. This article reviews its evolution, mainly with the focus on the symbolic interpretative anthropological reference. Thus, there is an approximation from the elements contained in the different definitions of the term, as with the germinal ideas on culture pointed out by the Freirean referential structure.

Culture; Health education; Nursing


El concepto de cultura ha sido evocado en el oficio del desarrollo de la educación en salud, pero sin ser explorado con detenimiento por los autores de la llamada corriente de la educación popular ni por los profesionales de salud en general. En ese sentido, este artículo realiza una reflexión teórica acerca del concepto de cultura en la práctica de la educación en salud y en la práctica del cuidado de enfermería, procurando rescatarlo, principalmente, desde el prisma del referencial de la Antropología Simbólica/Interpretativa. A partir de ahí, se realiza una aproximación de los elementos contenidos en las diversas definiciones del término así como de las ideas germinales sobre cultura señaladas en el referencial freireano.

Cultura; Educación en salud; Enfermería


ARTIGO ORIGINAL

REFLEXÃO TEÓRICA

A interface necessária entre enfermagem, educação em saúde e o conceito de cultura

The necessary interface among nursing, health education, and the concept of culture

La interconexión necesaria entre enfermería, educación en salud y el concepto de cultura

Astrid Eggert BoehsI; Marisa MonticelliII; Antônio de Miranda WosnyIII; Ivonete B. S. HeidemannIV; Márcia GrisottiV

IDoutora em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem e do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem (PEN) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Líder do Núcleo de Extensão e Pesquisa em Enfermagem na Educação Popular em Saúde (NEPEPS) do PEN/UFSC

IIDoutora em Enfermagem. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem e do PEN/UFSC. Membro pesquisador do NEPEPS/PEN/UFSC

IIIDoutor em Enfermagem. Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem e do PEN/UFSC. Vice-Líder do NEPEPS/PEN/UFSC

IVDoutora em Enfermagem pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP). Professora Assistente do Departamento de Enfermagem da UFSC. Membro pesquisador do NEPEPS/PEN/UFSC

VDoutora em Sociologia. Professora Adjunto do Departamento de Sociologia e Ciência Política da UFSC. Membro pesquisador do NEPEPS/PEN/UFSC

Endereço Endereço: Astrid Eggert Boehs R. Valter Castelan, 429 88.037-300 - Jardim Anchieta, Florianópolis, SC E-mail: astridboehs@hotmail.com

RESUMO

O conceito de cultura tem sido evocado no ofício do desenvolvimento da educação em saúde, mas não tem sido explorado em profundidade pelos autores da chamada corrente de educação popular e pelos profissionais de saúde em geral. Neste sentido, o presente artigo aborda uma reflexão teórica acerca deste conceito na prática de educação em saúde e na prática do cuidado de enfermagem, procurando resgatar o mesmo, principalmente sob o prisma do referencial da Antropologia Simbólica/Interpretativa. A partir daí, realiza-se uma aproximação dos elementos contidos nas diversas definições do termo, assim como com as idéias germinais sobre cultura apontadas no referencial freireano.

Palavras-chave: Cultura. Educação em saúde. Enfermagem.

ABSTRACT

The concept of culture has been evoked in the development of education in health care, but has not been explored in depth by authors from so-called popular education nor by health care professionals in general. This article outlines a theoretical reflection of this concept in the practice of health education and in the practice of nursing care. This article reviews its evolution, mainly with the focus on the symbolic interpretative anthropological reference. Thus, there is an approximation from the elements contained in the different definitions of the term, as with the germinal ideas on culture pointed out by the Freirean referential structure.

Keywords: Culture. Health education. Nursing.

RESUMEN

El concepto de cultura ha sido evocado en el oficio del desarrollo de la educación en salud, pero sin ser explorado con detenimiento por los autores de la llamada corriente de la educación popular ni por los profesionales de salud en general. En ese sentido, este artículo realiza una reflexión teórica acerca del concepto de cultura en la práctica de la educación en salud y en la práctica del cuidado de enfermería, procurando rescatarlo, principalmente, desde el prisma del referencial de la Antropología Simbólica/Interpretativa. A partir de ahí, se realiza una aproximación de los elementos contenidos en las diversas definiciones del término así como de las ideas germinales sobre cultura señaladas en el referencial freireano.

Palabras clave: Cultura. Educación en salud. Enfermería.

INTRODUÇÃO

Na atualidade, a saúde constitui-se em um tema que está presente em vários veículos de comunicação e fundamenta as ações em diversos ambientes: de trabalho, de lazer, entre outros. A ordem é viver mais, melhor e com mais saúde. No entanto, apesar do aumento e do acesso às informações, o cliente/usuário dos serviços de saúde continua ainda muito impotente na relação que estabelece com os profissionais da área. Isto porque, "na maior parte do tempo, a prática dos profissionais não tem sido de fortalecimento desta relação, ao contrário, ela tem consistido em ministrar, especialmente para indivíduos, coletividades, grupos de pacientes, prescrições comportamentais enunciadas por imperativos: não fume, não transe sem camisinha, use cinto de segurança, não coma em excesso".1:61 A própria liberdade das pessoas está cerceada por imperativos de origens institucionais e culturais, visando à manutenção da saúde.

Um exemplo desta realidade pode ser constatado em um estudo que foi realizado com o objetivo de conhecer as concepções dos profissionais de saúde a respeito do termo "educação em saúde", no âmbito de um curso de capacitação permanente em saúde da família, envolvendo 52 profissionais, dos quais 29 eram enfermeiros, 13 eram médicos, 3 auxiliares de enfermagem e 7 dentistas. Tal estudo revelou que, apesar de em alguns momentos, estes sujeitos reconhecerem que o usuário deveria ser partícipe do processo educativo, de forma geral prevaleceu o entendimento de que se deveria simplesmente repassar informações ao mesmo, pois se correria menos riscos de que o usuário "não entendesse" a abordagem e o conteúdo necessário ao cuidado de sua saúde. Os profissionais entrevistados também compreendem que a "palestra" ainda seria uma metodologia que melhor simboliza a educação em saúde. Embora esses profissionais tenham mencionado, reiteradamente, que se deveria levar em conta a cultura do usuário, afirmava-se, ao mesmo tempo, que o usuário tinha estilos de vida inadequados e que precisavam ser corrigidos.2

Em outro estudo feito com famílias de crianças desnutridas, o autor reitera que já está bastante difundido entre os profissionais de saúde um conhecimento crítico que questiona as intervenções baseadas, restritamente, nas dimensões biológicas dos problemas de saúde. Há também um amplo reconhecimento da importância de mudanças subjetivas, sociais e ambientais para a superação destes problemas. No entanto, estas discussões parecem não reverter para ações práticas. Talvez porque a abordagem social e crítica seja ainda bastante abstrata e sem mediação com a prática clínica concreta.3

O que se percebe, de forma geral, é que as mudanças em curso têm fomentado os profissionais de saúde a buscarem outros referenciais além dos biológicos, já que se reconhece que as ações necessárias para a adesão a tratamentos e cuidados a longo prazo estão profundamente imbricadas com a cultura, ou seja, com os estilos de vida, hábitos, rotinas e rituais na vida das pessoas. Por exemplo, com a Estratégia da Saúde da Família e o foco na atenção básica, os profissionais de saúde, entre os quais o enfermeiro, tendem a se tornar profissionais mais próximos e integrados com os valores culturais de famílias e populações, dentro de um território adstrito e culturalmente definido.

Assim, os profissionais do sistema de saúde oficial, também denominados "da biomedicina" (entendendo os profissionais que têm como eixo de sua formação a perspectiva biológica), estão "sendo obrigados" a conviverem e se aproximarem de outros modelos ou sistemas de cuidado, entre eles, o familiar e o popular, com vistas a uma maior aproximação da lógica do cliente/usuário e de uma interface entre o profissional e o cliente.

A partir daí, ou seja, da alteridade provocada pela natureza deste encontro, não há como o profissional deixar de trazer à tona (para o exercício, inclusive, da própria prática profissional) ou deixar de considerar a intrincada rede de símbolos e significados que está encarnada na "lógica" do sistema de cuidado popular/familiar e na "lógica" do sistema profissional. Desta maneira, o conceito de cultura deve ser posto em relevo, visto que está diretamente ligado ao conceito de cuidado e educação em saúde.

Na área da Antropologia Simbólica, cultura é "um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos, sentindo-se parte de uma totalidade".4:123

Cultura é um conceito já trilhado, também, na enfermagem, principalmente a partir da teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Cultural.5 Geralmente Leininger e outros autores da enfermagem que propõem uma abordagem cultural, são considerados na prática e na pesquisa, mais para enfatizar aspectos do cuidado relacionados a grupos étnicos e na maioria das situações em que se pensa em valores, práticas e crenças dos clientes em situações do ciclo de vida como período grávido-puerperal ou doenças, sobretudo as crônicas, nas quais os hábitos têm um papel fundamental. Todavia, os conhecimentos produzidos com base nesta teoria têm sido pouco utilizados na prática de educação em saúde.

O conceito de cultura também têm sido evocado no ofício do desenvolvimento da educação em saúde, mas não explorado em profundidade pelos autores da chamada corrente de educação popular e pelos profissionais de saúde em geral. Neste sentido, questiona-se: como podemos pensar o compartilhar de cuidados e saberes entre os profissionais de saúde (especialmente os da enfermagem) e os clientes, utilizando o conceito de cultura? De qual conceito de cultura estamos falando? Com tais questionamentos em pauta, os objetivos desta reflexão são: resgatar como tem sido concebido o conceito de cultura através dos tempos e então, a partir daí, analisar as práticas de educação em saúde e o cuidado de enfermagem. Além disso, buscamos também estabelecer uma aproximação entre estas concepções e o conceito de cultura proposto pelo educador Paulo Freire em suas obras.

A reflexão teórica, portanto, foi produzida tendo como fio condutor a análise de estudos sobre experiências em educação em saúde, a análise do conceito de cultura trabalhado por algumas abordagens da antropologia e a análise do conceito de educação segundo a abordagem freireana.

O CONCEITO DE CULTURA E SUA RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO EM SAÚDE: UMA BREVE ANÁLISE DO CONCEITO ATÉ MEADOS DO SÉCULO XX

A aproximação das ciências da saúde com as ciências sociais não é nova. Sabe-se que, no início do século XX, Rivers, um médico e antropólogo inglês, pesquisou a medicina em culturas não européias, chamadas de "primitivas" na época. Duas décadas depois, nos EUA, Erwin Ackerknecht publicou vários artigos sobre a medicina primitiva. Esses estudos tiveram como mérito buscar uma visão mais holística e revelaram que as idéias e as práticas de saúde estão ligadas ao contexto cultural. Os autores mencionados estavam preocupados demais com as diferenças entre o homem primitivo e o civilizado, entre a magia e a ciência, a medicina primitiva e a medicina científica. Centravam-se mais na problemática do pensamento de "um outro" caracterizado como primitivo, mas ambos ignoraram a dinâmica do pragmatismo dos esforços que as pessoas faziam (e continuam fazendo) para resolver seus problemas de saúde. Em síntese, até reconheciam que a medicina destes povos podia ser eficaz, mas, mesmo assim, era primitiva, inferior.6 Na década de 20, Malinowski inaugura uma nova forma de fazer antropologia: estudar as sociedades primitivas através do método etnográfico e sob o prisma da teoria funcionalista, analisando-se a estrutura destas sociedades e o modo de vida dos indivíduos, traduzido em valores, crenças e práticas.

No final da década de 40, outro antropólogo incursiona idéias originais acerca do conceito de eficácia simbólica e, de certa forma, revoluciona as bases anteriores, incluindo aí aspectos psicanalíticos na compreensão do conceito de cultura. Aborda certos aspectos da cura xamânica entre os Cuna, no território do Panamá, focando seu estudo no canto indígena (seus mitos, objetos e agentes intrínsecos), como forma de ajudar um parto difícil que ocorria naquela comunidade. Nesta perspectiva inovadora, o autor assinala que a cura xamanística se situa a meio-caminho entre a nossa medicina orgânica e as terapêuticas psicológicas como a psicanálise.7 Ainda nesta mesma década, vários antropólogos norte-americanos foram chamados para participar da implantação de serviços de saúde modernos nos paises em desenvolvimento. O objetivo era obter sucesso na implantação de modelos de desenvolvimento a partir da aceitação das populações envolvidas. Assim, havia até o mérito de considerar os aspectos sócio-culturais, mas ainda era uma visão restrita em que a biomedicina, como o parâmetro da ciência, avaliava as práticas locais. O problema consistia em que a antropologia não tinha resposta porque o conceito de cultura ainda era visto como um conjunto de traços fixos e determinantes de comportamento. A cultura, neste entendimento, existia a priori da ação.6

Ainda hoje grande parte dos profissionais de saúde bem intencionados trabalha com o conceito de cultura do início do século XX, em que "o outro" (usuário/cliente) não sabe, ou não possui algo. Em decorrência disso, faz-se necessário então desenvolver um processo educativo com a finalidade linear de "corrigir" ou "superar" o conhecimento do outro.6,8 Isso dá a idéia, ao nosso ver, de que "o outro" possui uma deficiência. Um exemplo disso pode ser evocado a partir da idéia de que as crianças escolares de comunidades periféricas precisam receber orientações sobre higiene corporal. A educação em saúde realizada nesta perspectiva é feita pensando que aquilo que "o outro" sabe, isto é, sua cultura, é um entrave para o entendimento do que o profissional vai ensinar. Esta concepção profissional passa a valer por meio do argumento da não informação que muitas vezes ocorre na prática clínica, diante de uma doença complexa ou de uma situação de cuidado, na qual o profissional entende que "não adianta" explicar ou orientar o cliente/usuário porque ele não vai entender mesmo.

Estudos vêm mostrando que os integrantes do sistema profissional, entre os quais os auxiliares e técnicos de enfermagem, se assumem como autoridade da cultura profissional, sem muita ciência de que isto também é cultura, vendo a cliente indígena, a mulher agricultora ou a avó idosa e experiente no cuidado da criança como exóticas e primitivas.9 Além disso, na atenção básica, as áreas classificadas como "de risco" são logo compreendidas como locais nos quais a população é "carente" de dinheiro, de auto-estima, de iniciativa, de limpeza, de educação, dentre outros.

O CONCEITO DE CULTURA NA PERSPECTIVA DA ANTROPOLOGIA SIMBÓLICA/INTERPRETATIVA

A partir da década de 70 surge a Antropologia Simbólica/Interpretativa, revelando uma concepção diferente do que se pensava a cultura até então. Nesta linha de estudo, a cultura é um sistema de símbolos, que é expressa na interação social, onde os atores comunicam e negociam significados. Desenvolve-se aí a definição de cultura como sistemas entrelaçados de símbolos interpretáveis: um contexto dentro do qual os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos podem ser descritos de forma inteligível, isto é, descritos com densidade, conforme as concepções geertzianas originais.10 Na antropologia da saúde, Arthur Kleinmann, médico e psiquiatra, segue a linha da fenomenologia interpretativa geertziana e o Interacionismo Simbólico e apresenta um modelo denominado de Sistemas de Cuidado de Saúde. Em tal modelo, as atividades de cuidado à saúde são respostas sociais organizadas frente à doença e seus cuidados, e podem ser estudadas como sistemas de cuidado.11

Este sistema é constituído internamente pela interação de três setores ou subsistemas diferentes: o profissional, representado por profissões de cura organizadas, incluindo-se tanto os representantes da biomedicina, como os da homeopatia, da medicina chinesa ou hindu; o folk ou tradicional, em que são reconhecidos especialistas de cura, porém sem regulamentação oficial, como benzedeiras, curandeiras e outros; e o popular ou familiar, representado por aquelas pessoas não profissionais que são próximas do doente, tais como familiares, amigos e vizinhos.11 Cada sistema tem um modelo explanatório e uma forma de explicar a doença. Nesta perspectiva, o papel da biomedicina é relativizado entre os demais sistemas de cuidado. Ademais, a relação entre esses subsistemas não implica na maioria das vezes, oposições, concorrências ou antagonismos entre si, mas complementaridades.

Nesta mesma linha de raciocínio, há ainda outra autora que aponta a existência de três conceitos fundamentais e que passaremos a discutir: o conceito de cultura como sendo dinâmica e heterogênea; a perspectiva da doença como um processo sociocultural; e o conceito de doença como experiência.6 Para a referida autora, a cultura é apontada como sendo um sistema de símbolos, expressa na interação social, onde os atores se comunicam e negociam significados. A cultura, por conseguinte, não existe a priori da ação; aqui a cultura é percepção e ação. Continuamente vai se modificando como resultados das interações simbólicas que os seres humanos fazem entre si e com seu ambiente. Como exemplo, podemos citar a realidade de um Horto Medicinal, no qual certas plantas recebem o nome de antibióticos bem conhecidos, mostrando que, apesar da vontade de conservar um saber popular trazido dos antepassados, este está impregnado pela recriação da realidade presente.

Na compreensão da cultura como percepção/ação entende-se que o indivíduo é um ser que percebe e age. A criança, por exemplo, internaliza as noções do grupo do qual participa, mas age de acordo com suas percepções individuais, assim, deve-se reconhecer a subjetividade. Reconhecer a subjetividade implica que, em um mesmo grupo, as pessoas pensam e agem de modos diversos, por isto a cultura é também heterogênea, como foi mencionado anteriormente.

No que diz respeito à doença como processo, considera-se que a doença deva ser vista como processo sócio-cultural, não uma categoria ou um momento, tal qual é estudada pela biomedicina. Nesta direção, o profissional de saúde, além da categoria doença, deveria avaliar a existência de um itinerário terapêutico, percorrido pela população, que abrange os diferentes sistemas: familiar, profissional e popular. Este processo é permeado por etapas que ocorrem nos diferentes subsetores do sistema de cuidado à saúde: reconhecer os sintomas, diagnosticar e escolher o tratamento e avaliar. A avaliação deste processo irá também influenciar o modo de conduzir a vida depois da recuperação da doença.

Neste sentido, pode-se inferir que o processo de promoção e manutenção da saúde também se constitui em um processo que inclui decisões e negociações, rituais e rotinas dentro do ambiente familiar, bem como no trajeto para outras agências que se colocam como promotoras de saúde, como academias de ginástica, clínicas de cirurgia plástica e outros, e novamente o retorno para o sistema de saúde familiar ou informal.

Quanto à perspectiva do conceito de doença como experiência, pode-se dizer que a doença não é um conjunto de sintomas físicos universais observados em uma realidade empírica, mas é um processo subjetivo no qual a experiência corporal é mediada pela cultura.6 Para exemplificar, poderíamos resgatar a dificuldade dos serviços de saúde em organizarem programas de promoção e prevenção de saúde para os homens, uma vez que, em geral, para eles, a dor, o mal-estar, o sofrimento, precisam ser minimizados, sendo que qualquer cuidado pode representar fraqueza.

Poderíamos inferir aqui que a saúde também não é apenas a ausência de sintomas físicos universais, e sim, um processo subjetivo em que se constroem modelos de corpos que têm formas e funcionalidades mediadas pela cultura. Atualmente, sentir a sensação de um corpo "sarado", resultado de muitas horas de academia, é símbolo de boa saúde e significado de corpo "forte, inabalável e imortal". Esta sensação de imortalidade, própria principalmente dos jovens, pode explicar a negligência para prevenir acidentes que resultam nas altas taxas de mortalidade, sobretudo entre os jovens do sexo masculino.

É importante ressaltar que a noção da doença como experiência tem implicação clínica.12 Isto significa dizer que os profissionais de saúde precisam desenvolver competência cultural5 para ouvir as narrativas dos clientes e evitar os filtros dos esquemas de anamnese. Desenvolver a escuta qualificada significa desenvolver a capacidade de ouvir as narrativas e lembrar que a narração de um fato pode modificar a maneira de encará-lo e agir sobre a situação. Afinal, aprender a ouvir é uma habilidade fundamental na educação em saúde e no cuidado de enfermagem.

RELAÇÃO DO CONCEITO DE CULTURA E A EDUCAÇÃO PROPOSTA PELA ABORDAGEM FREIREANA

A educação, em Paulo Freire, fundamenta-se na reflexão da realidade do educando, retornando posteriormente a esta mesma realidade, transformando-a. Considera o homem como ser de relações com dois mundos: o da natureza e o da cultura.13 Em seus escritos, a cultura é abordada como sendo "toda criação humana"13:124 e é um conceito central para as suas propostas de educação. Valoriza a ligação de cada sujeito ao seu mundo, seus valores, saberes e problemas. Ele pensa a educação ao mesmo tempo como ato político, como ato de conhecimento, mas também como ato criador.

Podemos interpretar a cultura, dialogada nos "Círculos" de Paulo Freire, tanto na dimensão gnosiológica, como antropológica. A cultura, na sua dimensão gnosiológica, codifica situações existenciais, dialogando com os participantes do "Círculo", descodificando a realidade do educando, até que ele se descubra na realidade, "que não se lhe está mostrando nada de novo, e sim refrescando-lhe a memória".13:124 Podemos interpretar que o diálogo desenvolvido nos círculos de cultura objetiva o conhecimento no seu sentido mais amplo, ou seja, DESconstruir, intencionando revelar o sujeito, transformando o Oculto em Culto, empoderando-o, social e politicamente. É nesta perspectiva que a leitura de Freire pode ser entendida, aproximando estas duas dimensões de cultura, em que os sujeitos participantes do "Círculo" apreendem o sentido gnosiológico, compreendem as perspectivas antropológicas da cultura, transcendendo-a como códigos e significados negociados e resignificados de forma dinâmica.

Na prática empreendida pelos autores do presente artigo, como educadores populares em saúde, foram vivenciadas tais transformações em várias experiências na forma de extensão universitária, experiências estas também muito freqüentes em todo o país, através dos "círculos de cultura" sobre a arte do cuidado com plantas medicinais. Nestes espaços, percebe-se uma proximidade das dimensões gnosiológica e antropológica, mediadas pelo diálogo do conhecimento tecno-científico, com as práticas populares tradicionais. Avalia-se que, nesta área de conhecimento, a cultura popular é contribuinte à "cientificidade", por meio, por exemplo, da etnobotânica e da etnofarmacologia, devendo ser retribuída com maior valor à sua sabedoria tradicional. Na interpretação dos autores deste artigo, isto consiste numa possibilidade real de reconstrução de saberes, considerando que não é prática conhecida a do cientista que vai à floresta experimentar plantas. De outra maneira, dirige-se antes, às experiências pregressas da criação popular tradicional, que vão adquirir um novo significado, dando o caráter dinâmico à cultura, em que sempre está emergindo algo novo. Isto aproxima-se ao que Paulo Freire demonstrou na medida em que, considerando a cultura como aquisição sistemática de experiência, ela tanto pode ser expressa pelo boneco de barro feito pelos artistas, irmãos do povo, como por obras de um grande escultor, pintor, pensador. Pode ser aquela poesia dos poetas letrados, como a poesia do cancioneiro popular, isto é, "como toda criação humana".14:99 Valoriza o educando também, inserindo-o na admiração do belo, presente no cotidiano artístico e histórico do povo.

Em um estudo realizado a respeito dos principais conceitos emanados da obra freireana chegou-se a uma síntese sobre o conceito de cultura: "cultura representa a somatória de toda a experiência, criações e recriações ligadas ao homem no seu espaço de hoje e na sua vivência de ontem, configurando-se como a real manifestação do homem sobre o mundo. Cultura é terreno movediço das significações, em perene mudança. Apresenta-se como o novo vir a ser".15:67

A contribuição que trazemos para este debate consiste na necessidade de diálogo acerca da interface da cultura como "terreno movediço de significações" e a definição de cultura abordada pela Antropologia Simbólica, que a concebe como sendo dinâmica, heterogênea, aprendida, lógica e compartilhada. Nesta aproximação, o ser humano profissional e o ser humano cliente/usuário seriam ambos fortalecidos como agentes que percebem e elaboram símbolos e significados, comunicam, negociam e inter(agem) perspectivas educacionais para mudar a si e às suas realidades, diante das demandas e dos enfrentamentos necessários ao complexo processo de educar em saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início deste artigo, argumentou-se a necessidade de colocar em relevo o conceito de cultura na prática dos profissionais de saúde e de enfermagem que têm atuado e refletido sobre educação em saúde. Tais questionamentos levaram a dois objetivos, a saber: o de resgatar as concepções do conceito de cultura e então analisar as práticas de educação em saúde; e o de estabelecer uma aproximação com o conceito de cultura proposto por Paulo Freire, já que este autor tem tido grande influência na linha da educação popular, enfermagem e saúde.

Na apresentação do histórico do conceito de cultura, foi abordado o fato de que os profissionais de saúde continuam trabalhando de forma sistemática com um conceito de cultura utilizado na antropologia até a década de 60 do século passado, ou seja, um conceito de crenças, valores e práticas homogêneas e fixas, o que, por sua vez, resulta em práticas de educação em saúde com indivíduos ou grupos, encarnadas em significados de déficits de conhecimentos, de saberes, de higiene, de auto-estima, dentre outros significados mais ou menos velados. Percebe-se "o outro" (indivíduo ou coletivo) como exótico ou primitivo, sendo esta cultura primitiva um obstáculo para o entendimento do saber supremo da biomedicina.

Fazendo uma aproximação com a obra de Paulo Freire, este conceito de cultura simplista, mas muito utilizado, se aproxima da pedagogia tradicional, criticada pelo referido autor, ao denominar suas práticas de "educação bancária". Na educação bancária a única margem de ação que se refere aos educandos é a de receberem depósitos de conhecimentos, guardá-los e arquivá-los. Transpondo isto para a educação em saúde, observamos que o profissional interpreta e atua no processo como aquele que sabe o que é melhor para o outro que não sabe e que precisa mudar o comportamento ou os estilos de vida.

Na evolução do conceito de cultura dentro da linha da Antropologia Simbólica, o profissional de saúde e de enfermagem tem a possibilidade de trabalhar com um conceito de cultura dinâmico, resultado das interações constantes, em que se compreende que o ser humano é um ser que percebe e age. Dentro desta cultura que sempre se modifica, o cliente é um ser ativo que traz suas experiências provenientes dos demais subsistemas de cuidado à saúde, relativizando-se também o papel da biomedicina.

A partir de tal evolução, argumenta-se sobre a atualidade do pensamento de Paulo Freire acerca do conceito cultura, ao mesmo tempo em que se evoca a necessidade de aproximação desta proposição com o conceito proposto dentro da linha da Antropologia Simbólica/Interpretativa. Deste modo, a interlocução poderia apontar para um conceito de cultura que não age sob a "firmeza" ilusória de "traços fixos", e sim pode levar à definição de cultura como sendo o resultado de constantes interações entre os seres humanos, como possibilidade de se engendrar o novo continuamente, o que está em consonância com a noção de culturas sempre emergentes.

Ao colocar em interlocução o significado de cultura advindo da Antropologia Simbólica e o significado de cultura imerso na compreensão do círculo freireano, advém então uma nova teia interpretativa que aponta caminhos para o ofício da educação em saúde dos profissionais de saúde e, particularmente, para os da enfermagem, no sentido de, primeiramente, reconhecer que se tem uma cultura e não apenas o cliente é que tem cultura. Além disso, reconhecer que estes agentes fazem parte de uma cultura profissional com símbolos de poder, travestidos não apenas na vestimenta branca ou na imagem da instituição de saúde como um templo de cuidado e cura, mas também na "palavra" que é dita, na intenção do encontro, no tipo de comunicação que se estabelece e nos instrumentos de persuasão e controle que ali estão impregnados. Ainda, a interconexão destes dois paradigmas pode possibilitar ao profissional um olhar "para si mesmo" como pessoa, sua idade, seu estrato social, sua origem étnica, reconhecendo seus próprios valores para aprender a diferenciá-los dos valores e práticas dos clientes/usuários com os quais estabelece relações de cuidado. Neste sentido, é importante, antes de tudo, reconhecer a diversidade da cultura do cliente, a saúde-doença como processo sócio-cultural e as experiências dos atores envolvidos.

Finalmente, estas reflexões não devem levar à imobilização de nossas ações como profissionais de saúde e de enfermagem, e sim a vislumbrarmos outras possibilidades de desempenharmos com habilidade o papel de educadores em saúde, conferido pela cultura profissional. Cientes de que somos todos seres criadores, devemos cumprir nosso papel de profissionais competentes, pois é isto que os clientes/usuários esperam de nós. Nesta competência, contudo, além de técnicas apropriadas utilizadas em nível individual ou coletivo, deve-se atentar, constantemente, para a competência cultural,5 abrindo-se à perspectiva de que o sistema profissional é um dos conhecimentos existentes e que "o outro" com o qual se estabelece negociações educativas e terapêuticas é um ser humano que cria, reinventa e aplica sua cultura, inclusive, durante o itinerário terapêutico em searas afeitas ao sistema oficial de saúde. É fundamental que os círculos de cultura estabelecidos entre profissionais e clientes se potencializem mediante diálogos genuínos e sistemáticos para que os clientes/usuários compreendam os códigos da área de saúde, permitindo-lhes escolhas e decisões próprias.

Recebido em: 14/11/2006.

Aprovação final: 09/04/2007.

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    Astrid Eggert Boehs
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2007
    • Data do Fascículo
      Jun 2007

    Histórico

    • Recebido
      14 Nov 2006
    • Aceito
      09 Abr 2007
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