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A prática da integralidade em modelos assistenciais distintos: estudo de caso a partir da saúde da criança

The practice of integrality in different care models: a children's health case study

La práctica de la integralidad en modelos asistenciales distintos: estudio de caso a partir de la salud del niño

Resumos

Avaliou-se a prática da integralidade, a partir da saúde da criança. Estudo de caso exploratório-descritivo (natureza transversal, abordagem quantitativa) que foi desenvolvido em duas unidades de saúde: uma, cujo eixo estruturante da assistência era o Programa de Saúde da Família e outra que organizava a assistência no modelo tradicional. Os dados foram levantados por entrevista com pais/responsáveis pelas crianças (n=195) e analisados com teste qui-quadrado e t-student. Constatou-se que o acesso era difícil em ambas às unidades, com média de 2-3 idas ao serviço para marcação de consulta. Acesso a medicamento e o sistema de referência/contra-referência foi mais bem garantido na unidade de saúde da família. O princípio da integralidade não se mostrou incorporado, mesmo na unidade de saúde da família. Assim, ainda permanecem como desafios, a busca de modelos assistenciais que contemplem o acesso aos serviços de saúde e a integralidade da atenção.

Assistência à saúde; Serviços básicos de saúde; Política de saúde; Saúde da criança


The practice of integrality was analyzed, parting from children's health. This exploratory-descriptive case study (cross sectional study, quantitative approach) was developed in two public health care units: one unit had the Family Health Program as its basis for health care, and the other unit organized assistance within the traditional health care model. The data was obtained by home interviews with children's parents/responsible (n=195) and statistical analysis was performed using chi-square and t-student tests. The results show that access was difficult in both public health care units, with an average of 2-3 visits to the health care service to schedule a consultation. Access to medicine and the reference system were better in the unit with Family Health Program. We verified that the principle of integrality wasn't incorporated, even in the unit with Family Health Program. So, the search for care models that contemplate access to the health care system, as well the practice of integrality remain as challenges.

Delivery of health care; Basic health services; Health policy; Child health


En esta investigación se evaluó la práctica de la integralidad a partir de la salud del niño. Es un estudio de caso exploratorio-descriptivo (de naturaleza transversal, con abordaje cuantitativo), desarrollado en dos unidades de salud: una cuyo eje estructural era el Programa Salud de la Familia, y, otra, que organizaba la asistencia según el modelo tradicional. Los datos fueron recolectados mediante entrevistas con padres/responsables por los niños (n=195), y analizados con el teste qui-cuadrado y t-student. El acceso en las dos unidades era difícil, con un promedio de 2 a 3 idas al servicio para pedir consulta. El acceso a los medicamentos y el sistema de referencia/contra-referencia fue mejor garantizado en la unidad de salud de la familia. El principio de la integralidad no se mostró incorporado, ni mismo en la unidad de salud de la familia. Siendo así, aún permanecen como desafíos, la búsqueda de modelos asistenciales que incorporen el acceso a los servicios de salud y la práctica de la integralidad.

Prestación de atención de salud; Servicios básicos de salud; Política de salud; Salud del niño


ARTIGO ORIGINAL

PESQUISA

A prática da integralidade em modelos assistenciais distintos: estudo de caso a partir da saúde da criança

The practice of integrality in different care models: a children's health case study

La práctica de la integralidad en modelos asistenciales distintos: estudio de caso a partir de la salud del niño

Sônia Regina Leite de Almeida PradoI; Elizabeth FujimoriII; Tamara Iwanow CianciarulloIII

IEnfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Santo Amaro. São Paulo, Brasil

IIEnfermeira. Doutora em Saúde Pública. Professora Associada do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, Brasil

IIIEnfermeira. Doutora em Ciências Sociais. Professora Titular do Programa de Mestrado Acadêmico da Universidade de Guarulhos. São Paulo, Brasil

Endereço Endereço: Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo Av. Dr. Enéas Carvalho Aguiar, 419 05.403-000 - São Paulo, SP, Brasil E-mail: efujimor@usp.br

RESUMO

Avaliou-se a prática da integralidade, a partir da saúde da criança. Estudo de caso exploratório-descritivo (natureza transversal, abordagem quantitativa) que foi desenvolvido em duas unidades de saúde: uma, cujo eixo estruturante da assistência era o Programa de Saúde da Família e outra que organizava a assistência no modelo tradicional. Os dados foram levantados por entrevista com pais/responsáveis pelas crianças (n=195) e analisados com teste qui-quadrado e t-student. Constatou-se que o acesso era difícil em ambas às unidades, com média de 2-3 idas ao serviço para marcação de consulta. Acesso a medicamento e o sistema de referência/contra-referência foi mais bem garantido na unidade de saúde da família. O princípio da integralidade não se mostrou incorporado, mesmo na unidade de saúde da família. Assim, ainda permanecem como desafios, a busca de modelos assistenciais que contemplem o acesso aos serviços de saúde e a integralidade da atenção.

Palavras-chave: Assistência à saúde. Serviços básicos de saúde. Política de saúde. Saúde da criança.

ABSTRACT

The practice of integrality was analyzed, parting from children's health. This exploratory-descriptive case study (cross sectional study, quantitative approach) was developed in two public health care units: one unit had the Family Health Program as its basis for health care, and the other unit organized assistance within the traditional health care model. The data was obtained by home interviews with children's parents/responsible (n=195) and statistical analysis was performed using chi-square and t-student tests. The results show that access was difficult in both public health care units, with an average of 2-3 visits to the health care service to schedule a consultation. Access to medicine and the reference system were better in the unit with Family Health Program. We verified that the principle of integrality wasn't incorporated, even in the unit with Family Health Program. So, the search for care models that contemplate access to the health care system, as well the practice of integrality remain as challenges.

Keywords: Delivery of health care. Basic health services. Health policy. Child health.

RESUMEN

En esta investigación se evaluó la práctica de la integralidad a partir de la salud del niño. Es un estudio de caso exploratorio-descriptivo (de naturaleza transversal, con abordaje cuantitativo), desarrollado en dos unidades de salud: una cuyo eje estructural era el Programa Salud de la Familia, y, otra, que organizaba la asistencia según el modelo tradicional. Los datos fueron recolectados mediante entrevistas con padres/responsables por los niños (n=195), y analizados con el teste qui-cuadrado y t-student. El acceso en las dos unidades era difícil, con un promedio de 2 a 3 idas al servicio para pedir consulta. El acceso a los medicamentos y el sistema de referencia/contra-referencia fue mejor garantizado en la unidad de salud de la familia. El principio de la integralidad no se mostró incorporado, ni mismo en la unidad de salud de la familia. Siendo así, aún permanecen como desafíos, la búsqueda de modelos asistenciales que incorporen el acceso a los servicios de salud y la práctica de la integralidad.

Palabras clave: Prestación de atención de salud. Servicios básicos de salud. Política de salud. Salud del niño.

INTRODUÇÃO

O tema central deste estudo é o princípio da integralidade, protagonizado pela saúde da criança. Historicamente, a criança sempre foi prioridade nas políticas públicas de saúde. Mesmo no modelo hegemônico e nos períodos de crise, a atenção à criança tinha um caráter mais integral. Os grupos de puericultura ou "clubes de mães" tinham espaço assegurado desde os tempos dos programas verticalizados. Entretanto, os perfis de morbimortalidade infantil resistiam às ações realizadas. É claro que as condições de saúde estavam intimamente relacionadas às condições de vida dessa população, porém, ações como aumento da cobertura vacinal, melhoria das condições de saneamento básico e de nutrição e a introdução e expansão da terapia de reidratação oral foram marcos decisivos na mudança do perfil de morbimortalidade das últimas décadas.

Hoje, pensar a saúde da criança remete à análise de aspectos relacionados aos cuidados de saúde numa sociedade contemporânea. Alguns indicadores podem auxiliar a reflexão destes tempos modernos. Na área da educação são 34,5 milhões de pessoas que lêem e escrevem precariamente, ou seja, são analfabetos funcionais.1 Com relação ao desemprego, em um ano, sua taxa cresceu de 6,9% para 7,7%. Quanto à distribuição de renda, a renda média dos 10% mais ricos é 53 vezes maior que dos 10% mais pobres. A taxa de homicídios subiu de 19 para 26/100 mil habitantes (36% em uma década). Em relação às condições de moradia, 12 milhões de pessoas vivem em locais impróprios nas grandes cidades e 3,7 milhões de domicílios não possuem banheiro nem sanitário. A taxa nacional de mortalidade infantil é de 29,6 mortes por mil nascidos vivos e apresenta enormes desigualdades entre as distintas regiões do país, enquanto na Suécia e Japão e Chile, corresponde a 4, 6 e 10 para cada mil nascidos vivos, respectivamente. Por último, destaca-se que o aumento da esperança de vida ao nascer subiu de 66,3 para 68,6 anos. Com certeza, sobreviver com qualidade de vida nesse contexto significa desenvolver recursos para muito além da dimensão biológica.

Os determinantes sociais e as enormes desigualdades sociais implícitas nesse panorama nacional é que permeia o processo saúde/doença da população brasileira. Além da complexidade do quadro sócio sanitário apresentado, um outro desafio, colocado na conjuntura atual, é a implantação real do Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e que tem como diretrizes, a universalização do direito à saúde, a integralidade das ações preventivas e curativas, a descentralização dos serviços e a participação social.2

O sistema de saúde do Brasil, enquanto aparato jurídico-legal, é sem dúvida um dos mais avançados do mundo, porém quando se contextualizam as dimensões sócio-culturais, políticas e econômicas na qual esse sistema se concretiza, surgem contradições de diversas ordens. Dentre as mais importantes destaca-se a correlação de forças entre a ideologia neoliberal e o papel do estado, como provedor de direitos para uma massa cada vez maior de excluídos. Nesse contexto, a mudança deve ser entendida de forma processual e dialética. Portanto, avançar na consolidação do SUS implica a busca de novos mecanismos que convirjam na superação de dificuldades inerentes à nossa realidade social. Um dos mais importantes mecanismos rumo a essa direção, tem sido a questão da regulação/financiamento do setor saúde, que não é objeto deste estudo, e a construção de modelos assistenciais favorecedores da efetivação dos princípios do SUS.

Hoje, o Programa de Saúde da Família (PSF) tem sido utilizado pelo poder público como uma estratégia condutora da busca do novo modelo assistencial, capaz de compreender e operacionalizar a abordagem integral do processo saúde-doença e responder de forma mais efetiva aos problemas de saúde da população. Entretanto, "reconhecem-se dificuldades para adequar o modelo assistencial aos princípios reformadores com maior eqüidade no acesso e na integralidade das práticas".3:192

O princípio da integralidade consiste no direito que as pessoas têm de serem atendidas no conjunto de suas necessidades, e no dever que o Estado tem de oferecer serviços de saúde organizados para atender estas necessidades de forma integral. Assim, o SUS deve atender as necessidades oriundas de todos os níveis de complexidade do sistema, por meio de ações destinadas à promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como à reabilitação.4

A integralidade está intimamente ligada à concepção de saúde e doença. Aponta para a necessidade de superação da dicotomia entre ações preventivas/curativas e individuais/coletivas, em direção às ações que satisfaçam as necessidades relacionadas à promoção e recuperação da saúde. Incorpora o debate sobre a forma de programar a oferta de serviços, exigindo uma articulação entre os vários profissionais que compõe a equipe de saúde e entre os distintos níveis de hierarquização tecnológica da assistência.5

Além do caráter completo do cuidado, a integralidade envolve a continuidade do cuidado, ou seja, o acompanhamento da assistência, que pode ser avaliada pela análise da referência/contra-referência.3 O acesso, por sua vez, é um dos princípios do SUS mais intimamente relacionados ao princípio da integralidade, uma vez que a condição para que se desencadeie uma atenção integral ou não é a inserção do indivíduo no sistema. Nesse sentido, destaca-se a importância de se associar a avaliação da integralidade com medidas de acesso.6

A partir dos referenciais acima descritos, adota-se neste estudo a concepção de integralidade como garantia de acesso e a resolução do problema de saúde em todos os níveis do sistema de saúde, assegurada por um sistema de referência e contra-referência.

No município de São Paulo, apesar do PSF representar a possibilidade de inverter a lógica da atenção à saúde, as diretrizes e investimentos do sistema municipal não foram restritas a essa estratégia, sendo extensivas a toda rede de serviços municipais. Nesse sentido, a perspectiva e o desafio de construir novas formas de prestar assistência e de contribuir nas transformações necessárias para a construção do SUS foram colocados para todo o sistema municipal de saúde. É nesse novo contexto de diferentes formas de organização da assistência no município, que surgem indagações com relação à qualidade da atenção à saúde prestada na rede pública, aos avanços e dificuldades na operacionalização do SUS, e por último com relação ao efeito ou impacto dessa estratégia.

Nesse sentido, o propósito deste estudo foi investigar, a prática da integralidade na assistência prestada à criança, em unidades de saúde com distintas formas de organização da atenção básica, uma que atuava com o modelo tradicional de assistência (sem PSF) e outra com a estratégia de saúde da família implantada (com PSF).

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de caso exploratório-descritivo, de natureza transversal, com abordagem quantitativa, que integra um projeto mais amplo denominado "Saúde da Família: avaliação da nova estratégia assistencial no cenário das políticas públicas".* Todas as diretrizes éticas da Resolução Nº196/96 do Conselho Nacional de Saúde foram contempladas, e o projeto maior foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (Processo Nº 202/2001).

O estudo foi desenvolvido em duas unidades de saúde localizadas no município de São Paulo e o presente subprojeto apresenta resultados referentes à saúde da criança.

As unidades selecionadas atuavam com modelos assistenciais distintos: uma, localizada na região Sul do município, organizava a assistência à saúde conforme o modelo tradicional de atenção à saúde (sem PSF), e a outra, localizada na zona leste da cidade de São Paulo, tinha como eixo estruturante da assistência à saúde, o Programa de Saúde da Família (com PSF). Apresenta-se na Tabela 1, um dos índices mais sensíveis para medir o estado de saúde de uma população, o coeficiente de mortalidade infantil, compreendido pelo óbito neonatal total e óbito pós-neonatal, dos distritos administrativos onde se localizam as unidades de saúde.

O Distrito administrativo onde se localiza a unidade sem PSF apresenta índices mais elevados em todos os coeficientes. Apresenta pior desempenho, comparado ao município como um todo, cuja taxa é de 15,8 por mil nascidos vivos, certamente, reflexo das condições de vida na região.

Do total de 100 prontuários da área com PSF e 100 da área sem PSF, inicialmente previstas como amostra representativa da população usuária de crianças de 0 a 5 anos de idade, atendidas em cada unidade de saúde, efetivamente foram estudadas 99 da unidade com PSF e 96 da unidade sem PSF. Constituiu critério de inclusão, ser criança de 0 a 5 anos de idade, residir na área de abrangência da unidade de saúde e ter se submetido a consulta médica ou de enfermagem no período de janeiro a julho de 2003. Tanto o desenho amostral, quanto a elaboração do banco de dados e as análises estatísticas foram realizadas com assessoria do Laboratório de Epidemiologia e Estatística (Lee), do Instituto Dante Pazzanezi.

Os dados foram colhidos por entrevista realizada no domicílio, por dupla de estudantes de enfermagem selecionadas para integrarem o projeto na condição de bolsistas de iniciação científica da Fundação de Auxílio e Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), devidamente treinadas em técnicas de entrevista, e com a utilização de instrumento específico, previamente testado.

A análise dos dados foi feita utilizando-se freqüências relativas (percentuais) e absolutas (n) das classes de cada variável categórica. As variáveis contínuas foram analisadas utilizando-se médias, medianas e desvios-padrão.

Para comparar as distribuições de freqüência das variáveis categóricas, utilizou-se o teste qui-quadrado de Pearson,8 que se baseando nas diferenças entre valores observados e esperados, avalia se as proporções em cada grupo podem ser consideradas semelhantes ou não. O teste exato de Fisher foi utilizado nas situações onde os valores esperados foram inferiores a cinco. Em cada tabela de cruzamento dessas variáveis são apresentados os resultados da significância do teste através do valor de p, sendo que, para valores menores que 0,05 (p<0,05), considerou-se associação estatisticamente significativa entre as variáveis.

O teste t-student para amostras independentes foi usado para variáveis contínuas na comparação de duas médias sempre que as hipóteses de normalidade e independência não foram violadas. Nos casos onde a hipótese de normalidade foi violada adotou-se o teste não paramétrico de Mann-Whitney para amostras independentes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Neste estudo, a prática da integralidade no cuidado prestado foi operacionalmente analisada a partir da avaliação da procura e acesso aos serviços e resolução dos problemas de saúde referidos.

O acesso é um dos princípios do SUS mais intimamente relacionados ao princípio da integralidade, uma vez que a condição para que se desencadeie uma atenção integral ou não é a inserção do indivíduo no sistema.3 Portanto, o acesso é condição para que ocorra a integralidade, porém, por si só, não é garantia de cuidados integrais.

O acesso à saúde abrange quatro dimensões, a geográfica, a econômica, a cultural e por último a funcional.9 A geográfica refere-se às barreiras físicas a serem transpostas e a distância a ser percorrida, associada à oferta de transportes. A dimensão econômica relaciona-se aos custos que o usuário possa ter com serviços ou insumos não disponíveis no sistema. A cultural diz respeito à adequação do serviço aos hábitos e costumes da população. O aspecto funcional é relativo à oferta dos serviços em relação às necessidades da população, como por exemplo, horário de funcionamento e qualidade do atendimento.

A Tabela 2 apresenta alguns aspectos relacionados ao acesso que foram levantados neste estudo. Observa-se que a maior parte das famílias (85,5%) vai à unidade de saúde a pé, porém os dados apontam que uma parcela maior das famílias da unidade sem-PSF precisa tomar ônibus para chegar à unidade, diferença estatisticamente significante. Em parte, isso se explica pela falta de recursos que a região apresenta, o que faz com que pessoas de bairros mais distantes procurem a unidade para o atendimento de suas necessidades de saúde.

Com relação ao número de vezes que o usuário precisou procurar a unidade para agendamento de consulta, apesar da diferença não ser estatisticamente significativa (p>0,05), constata-se que na unidade com PSF o acesso aparenta ser mais difícil, com média de 2,63 vezes e mediana de 3 idas à unidade, enquanto na unidade sem PSF, que trabalha com "porta aberta", a média foi de 2,15 vezes e mediana de 2 idas à unidade para o agendamento de consulta. Neste aspecto, há que se destacar o papel do agente comunitário de saúde, que muitas vezes faz a mediação entre o usuário e a unidade, pois em suas visitas, cabe a ele identificar as necessidades e compor a agenda do médico e da enfermeira.3 Essa dinâmica resulta numa programação previamente elaborada, e quando o agendamento é desarticulado desse sistema, ou seja, surgem problemas que não estavam programados, como por exemplo, a "procura do dia", parece que o usuário leva mais tempo para conseguir agendar uma consulta, em relação ao modelo tradicional.

Estudo que avaliou a prática da integralidade em unidade de PSF revela que a demora para o agendamento dificulta a prática da integralidade.10

Como destacado, o acesso é considerado o ponto de partida em direção à prática do princípio da integralidade.3 Nesse sentido, observa-se que o acesso às consultas é bastante dificultado em ambas as unidades. Essa demora pode ser responsável pelo alto índice de procura do hospital/pronto atendimento para resolução de problemas relativos à atenção básica, como será visto, gerando um custo mais elevado para solucionar problemas de baixa complexidade, sem considerar a descontinuidade e acompanhamento do usuário, que também compromete a integralidade.

A Tabela 3 mostra que três quartos dos responsáveis pelas crianças costumam procurar atendimento de rotina. Entretanto, ao serem questionados se procuram assistência específica em decorrência de problema de saúde, cerca de 60% responderam que sim, e nesse caso, proporção bastante elevada da população da unidade sem PSF referiu procurar assistência específica em hospital (87,3%), em relação à unidade com PSF (70,5%). O pronto atendimento foi mais procurado pelos familiares da unidade com PSF (36,1% contra 16,4%), da mesma forma que a própria unidade básica de saúde (49,2% contra 23,6%), todos com diferença estatisticamente significativa (p<0,05). Esses dados sugerem que a população da unidade com PSF apresenta maior vínculo e confiança no serviço básico de saúde, em relação à unidade sem PSF.

Um aspecto que pode exercer influência sobre esses índices é a realidade de cada região, ou seja, enquanto o distrito de AA (unidade com PSF) tem em média 1 UBS para cada 15.887 habitantes, o distrito de CD (unidade sem PSF) tem em média 1 UBS para cada 47.500 habitantes, o que resulta numa maior demanda reprimida para essa região, levando parte da população a buscar outras alternativas de atendimento. Outro fato a ser considerado é que a implantação do SUS no município de São Paulo ainda é recente, e que a política de saúde anterior, centrada na doença e no modelo hospitalar privativista, teve uma forte influência na atitude da população no enfrentamento de seus problemas de saúde. Também é importante ressaltar a organização da saúde no modelo com PSF, que trabalha com o princípio da territorialização facilitando o acesso e o vínculo da unidade com o usuário.

A procura por um serviço de saúde pela população depende não só do acesso geográfico, mas também da forma como são recebidos pela unidade, da fama do serviço na comunidade e da sua capacidade de resolução dos problemas de saúde.11 Assim, segundo os autores, as experiências dos usuários em relação à recusa de atendimento para "procura do dia" e da baixa resolutividade dos serviços, têm levado a uma inversão do sistema, elevando a ocupação de serviços de urgência/emergência com problemas de saúde, cuja resolução deveria ocorrer no âmbito da atenção básica.

Tendo em vista que a resolução final dos problemas de saúde muitas vezes implica no adequado funcionamento do sistema de referência/contra-referência, o qual deve absorver as demandas regionais e ter como porta de entrada a atenção básica, estudou-se esta variável a partir dos encaminhamentos realizados e da garantia ou não de atendimento (Tabela 4).

Constatou-se que o percentual de encaminhamentos da unidade com PSF foi maior (33,7%) em relação à unidade sem PSF (11,8%), diferença estatisticamente significativa (p<0,05). O acesso a outros serviços foi garantido para um percentual elevado de encaminhados de forma similar para as duas unidades (81,8% e 93,7%). Entretanto, como o índice de encaminhamentos na unidade com PSF é cerca de três vezes maior, pode-se considerar que há maior acesso de usuários da unidade com PSF ao sistema de referência, certamente facilitado pelo fato da unidade estar situada no mesmo local de um ambulatório de especialidades da região, favorecendo a integração entre os serviços. Por outro lado, há que se ponderar que na unidade tradicional, o atendimento da criança é realizado por pediatras e não por médico generalista como na unidade com PSF, o que pode gerar menor demanda de encaminhamentos devido a uma maior habilidade no manejo dos problemas específicos desse ciclo da vida.

Ao se investigar a forma de resolução do problema de saúde referido, constatou-se, conforme apresentado na Tabela 5, que a resolução dos problemas foi significativamente maior (76,3%) na unidade sem PSF, em relação à unidade com PSF (47,6%). Entretanto, os dados mostram que cerca de um terço dos usuários da unidade sem PSF (31,6%) procurou outro serviço para resolver o problema de saúde apresentado nos últimos 30 dias, enquanto na unidade com PSF, apenas 3,2% referiram buscar outro serviço. Além disso, verificou-se melhor adesão às orientações na unidade com PSF, uma vez que metade dos usuários seguiu as instruções, comparado a somente 21,0% dos usuários da unidade sem PSF.

Um outro aspecto relacionado à resolução dos problemas de saúde é a dimensão econômica, ou seja, os custos que o usuário pode ter com serviços ou insumos não disponíveis no sistema. Dentre os custos mais comumente assumidos pelos usuários, na tentativa de solucionar seus problemas de saúde, está a compra de medicamentos. Na Tabela 4, verifica-se que a prescrição de medicamentos foi semelhante nas duas unidades, 65,9% na unidade sem PSF e 79,7% na com PSF, porém quando se analisa a obtenção do medicamento prescrito como parte importante para a resolução do problema, constata-se que na unidade com PSF, proporção significativamente maior dos usuários (52,9%) obteve o medicamento na própria unidade.

Dados de estudo transversal, desenvolvido em dois serviços da rede de assistência primária à saúde da cidade de Pelotas - RS, mostraram que 55,7% das consultas em assistência primária resultaram em prescrição de medicamentos, proporção inferior aos 74,1% encontrados neste estudo. Os autores constataram também que usuários que obtiveram toda ou parte da medicação no próprio posto apresentaram probabilidade 33% maior de melhora ou solução do problema de saúde nos quinze dias subseqüentes à consulta, e entre as variáveis independentes estudadas, a resolução do problema foi dependente apenas da oferta de medicamentos.12

Em estudo similar realizado em duas unidades de pronto atendimento, observa-se que o fator mais importante, atribuído pela clientela para a resolução do problema que motivou a procura pelo serviço, foi a medicação recebida ou aplicada na própria unidade.13 Ao analisar os fatores referidos como motivo de não melhora do problema de saúde, o medicamento também foi apontado como fator preponderante, mostrando uma valorização exacerbada da terapêutica medicamentosa pelo usuário.

Avaliação da integralidade da atenção na perspectiva de gestores da saúde mostrou que realmente o PSF propicia a ampliação do acesso, liberando uma demanda reprimida, porém isso implica no desafio de ampliar a comunicação e a resolubilidade dos serviços ofertados.14

Em pesquisa de abordagem qualitativa que analisou a integralidade na assistência à saúde da mulher, constata-se que a efetividade do princípio da integralidade, de forma universal, está muito distante de ser atingida.15

No presente estudo, a análise dos resultados sugere que o princípio da integralidade está mais presente no campo das idéias. Porém, no campo efetivo das práticas de atendimento, muito pouco se avançou em direção a esse princípio. Observa-se, de forma mais evidente no modelo tradicional, a permanência da lógica hegemônica do modelo biomédico individual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observou-se que o acesso as consultas foi bastante dificultado, tanto na unidade de saúde que presta assistência no modelo tradicional, quanto naquela que utiliza a nova estratégia assistencial. Esse resultado indica que a incorporação do princípio da integralidade na prática, requer primeiro a garantia do acesso aos serviços, que mesmo na unidade com-PSF, não tem sido garantido para a população de seu território.

Por outro lado, embora a avaliação da integralidade venha associada ou mesmo confundida com medidas de acesso, o "conjunto de ações ofertado num sistema de saúde só terá efetividade na medida de sua utilização [...]; da mesma forma que não interessa ter acesso a cuidados parcelares e descontínuos. Ou seja, na realidade, o que vale a pena verificar é se está ocorrendo acesso a um sistema com cuidados integrais".6: 1420

O sistema de referência e contra-referência, embora deficiente, mostrou-se mais articulado na unidade com PSF, da mesma forma que o acesso a medicamentos, apontando para uma prática mais facilitadora, o que não significa que essa dimensão da integralidade esteja totalmente implementada nesse modelo assistencial.

Com relação à questão da universalidade de acesso, há que se considerar a seletividade da clientela atendida no modelo com PSF, o que de um lado, garante acesso para alguns, porém por outro, não responde a uma questão fundamental colocada na atual sociedade brasileira, a exclusão social reflexo da política neoliberal no país. Sabe-se que a natureza dos serviços de saúde, pública ou privada, já é por si só promotora de grandes desigualdades no acesso e utilização de serviços. Assim, é papel do Estado gerar políticas públicas mais inclusivas e não reforçar no seio do Estado, políticas que promovam a seletividade do acesso. De fato, parece que permanecem como desafios importantes na arena da construção do SUS, a mudança de modelos assistenciais que contemplem o acesso aos serviços de saúde e a prática da integralidade da atenção.

Recebido em: 15 de fevereiro de 2007

Aprovação final em: 09 de julho de 2007

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      09 Jul 2007
    • Recebido
      15 Fev 2007
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