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A participação política de enfermeiras na gestão do Sistema Único de Saúde em nível municipal

La participación política de la enfermera en la gestión del Sistema Público de Salud

Nurse's political participation in municipal Public Health Care System management

Resumos

Analisamos a participação política da enfermeira na gestão compartilhada do Sistema Único de Saúde. Pressupondo que a enfermeira possui uma participação política na gestão da saúde, identificamos a sua concepção quanto à participação política; os espaços onde esta é exercida e analisamos, através de uma categorização pré-definida, como se processa esta participação. É um estudo de caso exploratório e qualitativo, num município baiano com uma gestão considerada como bem sucedida. A coleta se fez através de entrevistas semi-estruturadas com enfermeiras gestoras e da observação pontual. Os resultados, analisados a partir das categorias pré-definidas e pela técnica de análise temática, apontam para uma visão restrita das enfermeiras quanto ao seu papel político na gestão do Sistema Único de Saúde; de uma participação política incipiente; de pouca valorização quanto a esta forma de participação, embora as enfermeiras ocupem espaços diferentes, relevantes e de caráter político-técnico no sistema de saúde municipal.

Política; Sistema Único de Saúde; Enfermagem


En el presente estudio se analiza la participación política de la enfermera en la gestión municipal del sistema de salud. La premisa adoptada es que la enfermera adquiere una participación política efectiva en la gestión de salud. También se analiza su concepción sobre la participación política en la gestión, identificando los espacios donde ocurre y cómo ocurre esta participación. La investigación fue desarrollada en un municipio de la Bahía cuya gestión es considerada como bien implementada, a través de un estudio de caso exploratorio y cualitativo. La recolección de los datos se realizó por medio de entrevistas parcialmente estructuradas y de observación puntual con enfermeras en diferentes funciones en la gestión. Los resultados obtenidos fueron analizados a partir de categorías predeterminadas y con la técnica de análisis temático, señalando que las enfermeras tienen una visión restricta de las funciones que ocupan en la gestión pública de salud y sobre el valor que su trabajo posee en la gestión para la implementación del Sistema Único de Salud.

Política; Sistema Único de Salud; Enfermería


This case study analyzes nurses' political participation in shared management in the Brazilian Public Health Care System (Sistema Único de Saúde). The researchers' initial statement is that the nurse has a relevant political participation in local health system management. From that we identify the nurse's conception about political participation and the space in which participation is exercised. Based on pre-defined categories, we utilize the thematic analysis technique to interpret how this political participation in health care management occurs. We adopted a qualitative, exploratory approach and the data was collected using semi-structured interviews as well as observation of nurses in different positions in a local, consolidated, health care management system in a municipality in the state of Bahia, Brazil. The results indicate the nurses' restricted view about their political role in health care management; their incipient political participation; and the low value placed upon this kind of participation, despite the fact they are occupying different, relevant, and political-technical functions in the local public health care system.

Politics; Single Health System; Nursing


ARTIGO ORIGINAL

PESQUISA

A participação política de enfermeiras na gestão do Sistema Único de Saúde em nível municipal

Nurse's political participation in municipal Public Health Care System management

La participación política de la enfermera en la gestión del Sistema Público de Salud

Cristina Maria Meira de MeloI; Tatiane Araújo dos SantosII

IEnfermeira. Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem Comunitária da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Políticas, Gestão, Trabalho e Educação em Enfermagem e Saúde Coletiva (GERIR) da UFBA. Bahia, Brasil

IIGraduanda de Enfermagem do nono semestre. Bolsista do Programa de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC) do Conselho Nacional de Pesquisa, 2005/2006. Bolsista do PIBIC junto à Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia, 2006/2007. Membro do Grupo de Pesquisa GERIR/UFBA. Bahia, Brasil

Endereço Endereço: Cristina M. Meira de Melo Universidade Federal da Bahia (UFBA), Campus Universitário do Canela Escola de Enfermagem, s/n, 4º andar 40.110-060 - Canela, Salvador, BA, Brasil Email: cmmelo@uol.com.br

RESUMO

Analisamos a participação política da enfermeira na gestão compartilhada do Sistema Único de Saúde. Pressupondo que a enfermeira possui uma participação política na gestão da saúde, identificamos a sua concepção quanto à participação política; os espaços onde esta é exercida e analisamos, através de uma categorização pré-definida, como se processa esta participação. É um estudo de caso exploratório e qualitativo, num município baiano com uma gestão considerada como bem sucedida. A coleta se fez através de entrevistas semi-estruturadas com enfermeiras gestoras e da observação pontual. Os resultados, analisados a partir das categorias pré-definidas e pela técnica de análise temática, apontam para uma visão restrita das enfermeiras quanto ao seu papel político na gestão do Sistema Único de Saúde; de uma participação política incipiente; de pouca valorização quanto a esta forma de participação, embora as enfermeiras ocupem espaços diferentes, relevantes e de caráter político-técnico no sistema de saúde municipal.

Palavras-chave: Política. Sistema Único de Saúde. Enfermagem.

ABSTRACT

This case study analyzes nurses' political participation in shared management in the Brazilian Public Health Care System (Sistema Único de Saúde). The researchers' initial statement is that the nurse has a relevant political participation in local health system management. From that we identify the nurse's conception about political participation and the space in which participation is exercised. Based on pre-defined categories, we utilize the thematic analysis technique to interpret how this political participation in health care management occurs. We adopted a qualitative, exploratory approach and the data was collected using semi-structured interviews as well as observation of nurses in different positions in a local, consolidated, health care management system in a municipality in the state of Bahia, Brazil. The results indicate the nurses' restricted view about their political role in health care management; their incipient political participation; and the low value placed upon this kind of participation, despite the fact they are occupying different, relevant, and political-technical functions in the local public health care system.

Keywords: Politics. Single Health System. Nursing.

RESUMEN

En el presente estudio se analiza la participación política de la enfermera en la gestión municipal del sistema de salud. La premisa adoptada es que la enfermera adquiere una participación política efectiva en la gestión de salud. También se analiza su concepción sobre la participación política en la gestión, identificando los espacios donde ocurre y cómo ocurre esta participación. La investigación fue desarrollada en un municipio de la Bahía cuya gestión es considerada como bien implementada, a través de un estudio de caso exploratorio y cualitativo. La recolección de los datos se realizó por medio de entrevistas parcialmente estructuradas y de observación puntual con enfermeras en diferentes funciones en la gestión. Los resultados obtenidos fueron analizados a partir de categorías predeterminadas y con la técnica de análisis temático, señalando que las enfermeras tienen una visión restricta de las funciones que ocupan en la gestión pública de salud y sobre el valor que su trabajo posee en la gestión para la implementación del Sistema Único de Salud.

Palabras clave: Política. Sistema Único de Salud. Enfermería.

INTRODUÇÃO

A luta por um sistema de saúde descentralizado tem o seu ápice com o movimento da Reforma Sanitária, ocorrido nas décadas de 70 e 80. A descentralização das ações de saúde permitiria mais equidade na solução dos problemas de saúde no Brasil, pois as regiões brasileiras possuem demandas peculiares à sua realidade, agravadas pelas diferenças sócio-econômicas.

O tipo de descentralização que predominou no Brasil foi a político-administrativa. Isto significou mais do que uma redistribuição de recursos financeiros entre as três esferas de governo: a federal, a estadual e a municipal. A descentralização significou também a partilha de poder e responsabilidades na implantação e implementação das políticas públicas de saúde. Desta forma, estados e municípios passam a partilhar com a União a tarefa de formular, planejar e implementar políticas, programas, ações e serviços de saúde. Neste processo descentralizador, o âmbito municipal ganha destaque, por ter sido esta esfera de governo que mais se beneficiou da partilha dos recursos financeiros e de poder. Contudo, coube também à esfera municipal, maiores responsabilidades na gestão e oferta de serviços e ações de saúde.1-2

Devido a esta estratégia de descentralizar a saúde via município, este processo ficou conhecido como a municipalização da saúde. A municipalização visa maior eficiência na oferta de serviços, concedendo ao município uma maior autonomia decisória em relação às políticas de saúde a serem adotadas. Isto se dá, principalmente, através da incorporação de novos atores na gestão local do sistema de saúde e da criação de instâncias colegiadas de decisão.1,* * Integra também como citação indireta deste parágrafo, trechos do projeto de pesquisa "Análise da Gestão Compartilhada no SUS em municípios baianos", coordenado por Maria do Carmo Guimarães e do qual as autoras são membros da equipe de pesquisadores, em fase de conclusão e cujos resultados ainda não foram publicados.

Estas instâncias, previstas no arcabouço institucional do Sistema Único de Saúde (SUS), tornaram-se o cerne decisório deste sistema, pois é também previsto pela sua legislação que estado e governo federal atuem onde o município não for auto-suficiente.2 Além disto, mesmo quando o município é capaz de gerir o seu sistema de saúde, ofertando as ações e serviços necessários, devido aos princípios da regionalização e hierarquização na oferta de ações e serviços, este deverá negociar com o governo estadual e outros municípios a articulação dos serviços existentes nos seus territórios.

Desta forma, o papel do gestor do SUS municipal cresce em importância e responsabilidade. Para alcançar melhores resultados durante a gestão local do SUS, o gestor deve possuir habilidades políticas e técnicas, articuladas de forma a responder aos diversos desafios inerentes a esta função. Politicamente, o gestor deve ser capaz de negociar e pactuar com os outros sujeitos envolvidos na gestão. Tecnicamente, este deve direcionar o exercício de suas funções gestoras, articulando habilidades com natureza distinta, para viabilizar a política de saúde. Para tal, as ações do gestor no setor da saúde devem predominar em quatro campos de atuação, também chamadas de macro-funções gestoras: formulação de políticas e planejamento; financiamento; coordenação, regulação, controle e avaliação de ações, bens e serviços e dos sistemas de saúde e prestação direta de ações e serviços de saúde.2

Nessa perspectiva, assumimos que a implementação efetiva da gestão local do SUS só é possível com a interação do poder executivo municipal, através da secretaria municipal da Saúde com os demais atores (gestores intermediários; outros gestores municipais, outras secretarias, outros municípios, estado, e representantes da sociedade civil organizada) tendo como instâncias formais de negociação os conselhos de saúde. É esta partilha de responsabilidades na execução das macro-funções que garante o cumprimento dos princípios doutrinários e organizativos do SUS.

Por isto, afirmamos que os atores que são incorporados à gestão do SUS são, na verdade, co-gestores deste sistema. Assim, corroboramos com outros autores que afirmam que a gestão do SUS é por natureza compartilhada, constituindo-se em "um processo permanente de negociação e pactuação em situação potencialmente conflituosa, para formular, implementar e sustentar políticas públicas de saúde".† † A citação direta refere-se ao projeto de pesquisa mencionado na primeira nota, sendo que este conceito encontra-se nas páginas 3 e 4 do referencial teórico.

Ao assumirmos que a gestão do SUS é essencialmente compartilhada e exercida por gestores e co-gestores, estamos equiparando as funções gestoras e gerenciais definidas na Norma Operacional Básica (NOB) 01/96, estabelecendo, assim, um conceito ampliado de gestão. O nosso entendimento é que, ao definir gestão e gerência como funções distintas, a referida norma estabelece somente a atuação do gestor municipal como eixo para o funcionamento do SUS, descaracterizando o compartilhamento da gestão. Assim, corroboramos com outros autores que definem o gestor como o "responsável pela gerência e coordenação de algum programa, serviço, atividade, ou do próprio sistema de saúde".3 Portanto, o exercício da gestão no âmbito do SUS, como aqui o compreendemos, engloba as funções ditas gerenciais, colocando também os gerentes como co-gestores do sistema.

Ao permitir que novos atores atuem como co-gestores do SUS, o papel destes cresce em participação e importância. Dentre estes novos atores, a enfermeira ganha destaque pelo fato desta profissional ocupar cada vez mais cargos chave na gestão do SUS. Contudo, mesmo ocupando cada vez mais espaços estratégicos na gestão do SUS, alguns estudos têm constatado que a atuação da enfermeira configura-se em "inexpressiva participação social, ausência de preparo político para conduzir determinadas situações e ausência de reflexão sobre a sua prática frente às transformações ocorridas".4:127 Esta limitação política da enfermeira, relaciona-se com a falta de um conhecimento abrangente sobre a política, especificamente sobre a política de saúde e a política de gestão do SUS.

Esta fragilidade política da enfermeira tem servido para legitimar políticas de saúde que podem favorecer ou não a consolidação do SUS. O vazio político percebido nos discursos das enfermeiras compromete a qualidade de sua participação em espaços públicos,5 já que na saúde não é possível pensar em participação desvinculada de espaços públicos para a construção das políticas de saúde. E a participação neste âmbito significa assumir riscos, pois não é viável estar inserido neste contexto sem disputar o poder. E, sendo o poder uma relação de força, este se exerce e se disputa com resultados de ganhos e perdas.6-7

A disputa de poder a que nos referimos vai além da conquista de bens materiais ou do reconhecimento público. Reflete a relação entre as pessoas, e o seu exercício possibilita que os indivíduos busquem sua emancipação política, entendendo a sua participação como conquista e não como concessão.7-8

Assim, a concepção que adotamos neste estudo sobre a participação política da enfermeira na gestão compartilhada do SUS é de que esta é uma atuação crítica em espaços de disputa de poder, onde seu posicionamento político contribui ou não para efetivar os princípios do SUS. Esta participação política pode efetivar-se através de simples presença em reuniões, mesmo sem contribuições ou envolvimento pessoal; na delegação de atividades ou representatividade ou ainda pela participação propriamente dita, onde há envolvimento direto ou indireto do participante no processo de decisão política.8

Portanto, é neste espaço público de gestão, que envolve competição e disputa de poder, é que se configura a participação política da enfermeira. Posto isto, afirmamos que a participação política da enfermeira na gestão compartilhada do SUS traduz-se no pensar crítico sobre a sua prática, reconhecendo que esta se faz em espaços de disputa de poder. A depender da coerência do seu posicionamento, existe uma maior ou menor possibilidade de que sua participação contribua na construção de políticas públicas de saúde que contemplem os princípios do SUS. Para tanto, é preciso que a enfermeira se reconheça como sujeito dos acontecimentos e promova a democratização do poder através de uma participação consistente.

Partindo do pressuposto de que, a enfermeira possui uma participação política na gestão compartilhada do SUS, é que este estudo definiu como objetivo analisar esta participação política. Como objetivos específicos definimos: identificar a concepção de participação política da enfermeira gestora; identificar quais os espaços onde esta participação é exercida e analisar como se processa esta participação.

METODOLOGIA

Uma das preocupações deste estudo foi captar aspectos não claramente expostos como valores, crenças e pensamentos acerca da participação política da enfermeira na gestão compartilhada do SUS municipal. Por isto optamos por uma abordagem qualitativa e exploratória, dado a insipiência de estudos sobre o objeto definido.

O locus do estudo é um município baiano, com mais de cem mil habitantes. Os critérios para a escolha foram os mesmos utilizados pelo macro-projeto "Análise da Gestão Compartilhada do SUS em municípios baianos" do qual este é um dos subprojetos. Foram estes: ser um município habilitado na gestão plena municipal há pelo menos dois anos e ter continuidade político-partidária na administração municipal. Contribuiu de forma positiva às finalidades deste estudo o fato de que, na gestão do SUS no município estudado as enfermeiras ocupavam os principais cargos gestores e co-gestores.

Os sujeitos desta pesquisa são nove enfermeiras gestoras ou co-gestoras que participam de decisões no âmbito das quatro macro-funções gestoras: de formulação de políticas e planejamento; de financiamento; de coordenação, regulação, controle e avaliação de ações, bens e serviços e de prestação direta de ações e serviços de saúde.2 Com a finalidade de garantir o anonimato, as enfermeiras foram identificadas como gestoras ou co-gestoras, de acordo com a função ocupada no SUS local. Em relação aos aspectos éticos, foi solicitada a permissão para as entrevistas através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o projeto foi submetido ao Comitê de Ética na Pesquisa da Escola Estadual de Saúde da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia, obtendo aprovação comprovada no processo N. 00670053000-05, protocolo N. 085/2005. As entrevistas semi-estruturadas foram feitas durante o mês de maio de 2005.

Utilizamos para o tratamento dos dados a análise de conteúdo9 a partir das categorias listadas abaixo, e construímos um plano de análise onde foram articulados os conceitos que norteiam este estudo e as categorias assumidas com as unidades de análise selecionadas do texto transcrito das entrevistas. Isto foi feito com o objetivo de que, durante o tratamento dos dados, todos os aspectos que envolvem a participação política das enfermeiras, identificados nas entrevistas, fossem contemplados.

A categorização sobre a participação política da enfermeira na gestão do SUS municipal foi inspirada em referencial da ciência política8 amplamente reconhecido, descritas a seguir:

- participação política incipiente: quando a enfermeira não identifica ou não valoriza a sua participação política na gestão local do SUS. Os aspectos políticos são suprimidos quando comparados ao conhecimento técnico;

- participação política por delegação: quando a enfermeira identifica sua participação política, porém atribui mais valor aos aspectos técnicos do que políticos, classificando estes como o fator responsável pela sua escolha e pelo seu desempenho na função gestora;

- participação política propriamente dita: quando a enfermeira identifica e valoriza a sua participação política, reconhecendo a interface entre conhecimentos técnicos e políticos no exercício da gestão.

Por fim, foram complementadas as informações obtidas nas entrevistas com outras levantadas a partir da leitura de atas do conselho municipal de saúde e documentos técnicos como relatórios, projetos dentre outros. Nestas fontes buscamos identificar os elementos do processo decisório no SUS municipal estudado e como de dava a participação das enfermeiras gestoras.

RESULTADOS

Ao analisarmos o entendimento das enfermeiras sobre a sua participação política, encontramos que estas profissionais a vinculam principalmente ao exercício técnico da profissão. Uma das entrevistadas afirma que: [...] assim, eu acho que a gente tem que ser política também, em alguns momentos. Na minha visão, eu como profissional, eu sou mais técnica. Meu trabalho é direcionado a técnica, entendeu, eu quero ver metas, eu quero atingir minhas metas, eu quero fazer o meu trabalho certo [...] (Enfermeira co-gestora).

Esta colocação demonstra que, mesmo que a enfermeira possua poder e participação política dada pela função gestora que ocupa no SUS municipal, para ela o exercício do poder se dá, mediante o conhecimento técnico que é o mais valorizado. O poder em saúde é categorizado em três grupos: o administrativo, que corresponde aos recursos para o exercício das atividades; o técnico, que são os conhecimentos utilizados no funcionamento do setor saúde e o político, que é aquele capaz de mobilizar interesses dos diversos grupos na saúde.10 Na gestão em saúde, estas três tipologias de poder possuem interfaces que se constituem a depender da função gestora ocupada. Quanto mais alta na hierarquia a função gestora exercida, maior o poder político que a enfermeira pode exercer em relação aos outros profissionais e trabalhadores, incluindo outros co-gestores.

Claro que reconhecemos a importância do exercício do poder e do conhecimento técnico na gestão da saúde, pois este também contribui para a conquista de espaços. Porém, este tipo de poder exercido alienadamente, garante somente uma autonomia limitada da enfermeira, subordinado-a a outros poderes exercidos em funções alocadas em patamares hierárquicos mais altos ou por outros profissionais.5

Ao refletirem sobre os espaços que ocupam na gestão local do SUS, as enfermeiras atribuíam a conquista destes espaços na gestão somente ou principalmente ao seu poder técnico. Isto pode ser inferido a partir da seguinte afirmação: [...] tanto que, se a gente analisa a estrutura da Secretaria Municipal de Saúde, hoje a gente tem a frente de cargos estratégicos os enfermeiros. E não é um posicionamento corporativista, ele é natural, foi um processo natural. Foram as pessoas que mais se identificam, claro que tem a competência técnica, tem que ter a competência técnica do profissional e, ele também tem que tá num papel que ele dê conta das atribuições (Enfermeira gestora).

O depoimento acima foi feito pela gestora máxima da secretaria, que é também enfermeira. Isto justifica a ressalva que a mesma faz quanto à escolha dos gestores da secretaria, a maioria enfermeiras, não passar por uma vertente corporativista. E fica claro que a valorização na escolha das enfermeiras passa predominantemente pelo valor técnico do seu perfil profissional.

Dentre as enfermeiras entrevistadas, muitas exerciam a sua função no âmbito central, ou seja, eram da primeira linha de comando. E, de forma geral, estas entrevistadas relacionavam a sua indicação para a ocupação do cargo com a competência técnica e o compromisso que tinham demonstrado anteriormente em outras atividades. Outros aspectos, como envolvimento, disponibilidade, responsabilidade e firmeza no desempenho do trabalho técnico são apontados como razões da escolha das mesmas para a ocupação das atuais funções gestoras. Isto evidencia que, para as enfermeiras, a participação política é associada diretamente com o grau de envolvimento e responsabilidade que demonstram na condução das suas tarefas técnicas no trabalho. É o que se destaca a seguir: [...] mas o compromisso, o envolvimento, a identificação (com o trabalho), é muito maior do profissional enfermeiro sem dúvida nenhuma. A disponibilidade, a iniciativa para fazer as coisas, de ver as coisas realmente acontecer [...] (Enfermeira gestora).

[...] então, tem algumas habilidades que são assim, essenciais [...], é preciso ter compromisso, é preciso ter dedicação, é preciso ter firmeza nas decisões e a gente precisa aprender a dialogar também [...] (Enfermeira gestora).

Este achado corrobora com o encontrado por outra autora em seu estudo sobre mulheres e poder na saúde onde as entrevistadas afirmavam que a ocupação do cargo de secretária municipal da saúde decorria, principalmente, dos critérios técnicos como qualificação, experiência e inserção anterior no sistema de saúde.11

Quanto ao maior envolvimento da enfermeira no trabalho, apontado pelas entrevistadas, este é facilitado e se relaciona, em geral, com a natureza do processo de trabalho de enfermagem. Por conta deste processo, a enfermeira permanece mais tempo no serviço por sua atividade ser contínua e com maior jornada, ao contrário, por exemplo, do processo de trabalho médico, que não necessita, para seu exercício de períodos continuados e de maior duração nos estabelecimentos de saúde. Portanto, a natureza do trabalho da enfermeira já predispõe a mesma a um envolvimento maior, mas necessariamente não mais consistente ou comprometido na gestão do SUS.

Posto isto, observamos que as enfermeiras, ao atuarem na gestão municipal do SUS, ou não identificam, ou não percebem, ou não valorizam a sua participação política. Esta dificuldade que as enfermeiras expressam em identificar nas suas atividades aspectos políticos é o reflexo de uma profissão que, historicamente, não desenvolveu uma filosofia política norteadora5, preferindo adotar posicionamentos ditos neutros, e atribuindo ao exercício da prática de cuidados e sua gestão aspectos puramente biológicos e técnicos.

Um fator essencial para a manutenção desta visão puramente técnica desenvolvida pela enfermeira parece ser a sua formação. Mesmo não sendo um dos focos deste estudo, as entrevistadas referiram-se à formação profissional como fator que facilita a sua inserção no SUS, por capacitá-las tecnicamente até para a ocupação de funções gestoras, porém em nada contribuindo para o desenvolvimento de habilidades políticas: [...] habilidade política é aquela história, que você tem que ter algo que lhe motive. Você tem que gostar de alguma forma pra você se envolver, e isso não tá amarrado à formação técnica [...] (Enfermeira gestora).

A gente tem uma visão mais ampla do sistema. Eu acho que isso facilita pra que a gente tenha tanto enfermeiro em posições que não precisaria ser enfermeiro. Para a minha função aqui precisa ser (apenas) alguém da área de saúde (Enfermeira co-gestora).

A necessidade da formação de enfermeiras comprometidas com a sua profissão, através de vivências refletidas criticamente durante a formação acadêmica é um fator imprescindível para o desenvolvimento de habilidades políticas e também para o reconhecimento da importância destas no desempenho das atividades profissionais.5 Assim, a depender do conteúdo político da formação da enfermeira, esta poderá ter uma visão e uma prática que contribua para mudanças sociais em médio e longo prazo.

Infelizmente, percebemos que durante a formação acadêmica a participação política dos estudantes é pouco estimulada ou mesmo depreciada quando comparada aos atributos técnicos que devem ser adquiridos e desenvolvidos. As enfermeiras, de forma geral, não se envolvem, durante a graduação, com atividades políticas (a exemplo de uma atuação junto ao Diretório Acadêmico), sob a desculpa da dedicação aos estudos. Isto se reflete posteriormente na sua atividade profissional, onde as mesmas percebem uma lacuna quanto ao aspecto político na sua formação.11

Mesmo considerando estes aspectos anteriores, foi reforçado pelas entrevistadas que a formação generalista da enfermeira permite que esta adquira conhecimentos mais abrangentes sobre administração e sobre a constituição e funcionamento do SUS, permitindo que a sua inserção na organização e na gestão deste sistema ocorre de forma mais fácil quando comparada aos outros profissionais. Certamente, como coloca uma das entrevistadas, isto contribui para a ocupação de funções na gestão: [...] então, eu acho que o curso de enfermagem em si, ele dá uma visão muito gerencial e lhe ajuda na gestão dos serviços de saúde. Você tem uma visão bastante, quer dizer, um pouco mais ampla que outras classes profissionais, então, eu acho que essa visão me ajudou muito, em relação a isso (Enfermeira gestora).

Podemos atribuir esta reconhecida facilidade da enfermeira em assumir funções gestoras em parte ao processo histórico de incorporação de conteúdos mínimos durante a sua formação para o seu exercício. No entanto, esta formação primou por privilegiar a capacitação de uma mão-de-obra que dominasse a dimensão tecnológica, e, desta forma, relegou a formação crítica-reflexiva a um segundo plano.12

Com isto, os dados aqui analisados com base no referencial teórico adotado, apontam para uma participação política incipiente das enfermeiras na gestão do SUS. As entrevistas não revelaram uma valorização, por parte das enfermeiras, quanto a sua participação política na gestão municipal da saúde. Por outro lado, os conhecimentos técnicos e as atividades reconhecidas pelas enfermeiras como estritamente técnicas foram identificadas e ressaltadas como fundamentais, inclusive para a assunção das funções gestoras.

Mesmo quando participantes de reuniões políticas como as do conselho municipal da saúde, as enfermeiras demonstravam não compreender que este é um espaço de formulação de políticas, e sua participação se dava para cumprimento de alguma tarefa delegada pelos superiores hierárquicos ou para apresentação de algum conteúdo técnico.

É pertinente destacar que, embora a participação política da enfermeira no SUS vá além do foi aqui apresentado, a não percepção ou não valorização desta participação pelas próprias enfermeiras influi de forma decisiva para seu posicionamento pouco expressivo e consistente quando questionadas sobre a sua atuação política. E, o que é mais relevante, sobre a sua prática política na condução da vida profissional e na construção coletiva de um SUS digno dos seus princípios. Mas este é um outro objeto que precisa ser estudado na enfermagem brasileira.

CONCLUSÃO

O processo de municipalização da saúde trouxe a possibilidade de inserção de novos atores na gestão do SUS. A enfermeira é uma das categorias profissionais que ocupa cargos chave na gestão do SUS. Contudo, mesmo em posições em que predominam o exercício de habilidades e poder político, a enfermeira associa e destaca predominantemente nas suas atribuições como gestora os aspectos técnicos em detrimentos dos políticos. Desta forma, nega a natureza da gestão, que é composta de um caráter político e de outro técnico, predominando o caráter político quanto mais alto é o lugar hierárquico onde se desempenha a função gestora.

Não foram identificadas diferenças significativas no discurso das enfermeiras entrevistadas quanto à concepção de participação política e de como se dá esta participação no processo de gestão. No entanto, esta profissional, ao ocupar relevantes funções gestoras no município estudado participa politicamente na gestão do SUS. Para elas, em geral, esta participação se expressa no seu compromisso profissional, que se sobressai quando comparado com as de outras categorias profissionais atuantes no sistema municipal.

As entrevistadas referem-se a este compromisso profissional como aquele que se expressa no comprometimento e disponibilidade para o trabalho. No entanto, as enfermeiras entrevistadas vinculam sua participação política ao compromisso técnico, não percebendo que esta também é exercida em outros momentos, como por exemplo, em negociações e acordos. Sendo o compromisso profissional a característica mais marcante na participação política da enfermeira, podemos deduzir que esta se empenha em disputas de poder que requerem mais conhecimento cientifico que habilidades políticas, caracterizando algum domínio de um poder técnico, quando revelam possuir algum grau de controle sobre recursos de poder e de tomada de decisão na gestão do SUS.

Ainda que a formação da enfermeira contribua para o desempenho técnico de suas atividades gestoras, esta parece não contribuir de forma sólida para o seu desempenho político, conforme reafirmado pelas entrevistadas. Desta forma, a enfermeira não agrega reflexão crítica à sua prática, servindo desta maneira para legitimar políticas que contribuam ou não para a construção do SUS.

Faz-se necessário que a enfermeira reconheça a sua participação política no desempenho de suas funções gestoras, pois o que constatamos neste estudo é que ela, mesmo não as valorizando, desenvolve ações políticas importantes na consolidação do SUS. Com isto, afirmamos que o que falta à enfermeira não é somente um posicionamento político consistente, e sim que as pessoas que constituem esta profissão se reconheçam como sujeitos históricos, entendendo que onde quer que se exerça um trabalho, a participação política é uma decorrência de uma conquista e não uma concessão. Portanto, se as enfermeiras não compreenderem e não valorizarem sua participação política na gestão do SUS, mesmo quando parte intrínseca da função gestora que desempenham, não estarão contribuindo para a nossa afirmação profissional e tão pouco para a implementação de uma política pública de saúde que é imprescindível para assegurar o direito à saúde e à vida da maioria da população brasileira.

Recebido em: 15 de fevereiro de 2007

Aprovado em: 09 de julho de 2007

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  • Endereço:

    Cristina M. Meira de Melo
    Universidade Federal da Bahia (UFBA),
    Campus Universitário do Canela
    Escola de Enfermagem, s/n, 4º andar
    40.110-060 - Canela, Salvador, BA, Brasil
    Email:
  • *
    Integra também como citação indireta deste parágrafo, trechos do projeto de pesquisa "Análise da Gestão Compartilhada no SUS em municípios baianos", coordenado por Maria do Carmo Guimarães e do qual as autoras são membros da equipe de pesquisadores, em fase de conclusão e cujos resultados ainda não foram publicados.
  • †
    A citação direta refere-se ao projeto de pesquisa mencionado na primeira nota, sendo que este conceito encontra-se nas páginas 3 e 4 do referencial teórico.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      09 Jul 2007
    • Recebido
      15 Fev 2007
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