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Tratamento da tuberculose em unidades de saúde da família: histórias de abandono

El tratamiento de la tuberculosis en unidades de salud de la familia: historias de abandono

Tuberculosis treatment in family health units: stories of abandonment

Resumos

Este estudo objetivou identificar e analisar os motivos de abandono do tratamento da tuberculose pelos usuários das Unidades de Saúde da Família do Distrito Sanitário IV, na cidade de João Pessoa - PB. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas, utilizando-se a história oral temática como referencial metodológico. Foram entrevistados quatro usuários com história de abandono do tratamento. Os dados foram analisados conforme a técnica da análise de conteúdo, modalidade temática. Os resultados apresentam dois eixos temáticos: fatores que fragilizam a obtenção do sucesso terapêutico e o envolvimento dos profissionais de Saúde da Família no desenvolvimento de estratégias para potencializar a adesão do usuário ao tratamento da tuberculose. Verificou-se que os fatores associados ao abandono são diversos e complexos, existindo dificuldades relacionadas ao usuário, ao tratamento e à operacionalização da assistência de saúde. Observa-se que o vínculo e o acolhimento são essenciais para assegurar a continuidade do tratamento.

Tuberculose; Recusa do paciente ao tratamento; Programa Saúde da Família


Esta investigación buscó identificar y analizar los motivos para el abandono del tratamiento de la tuberculosis por los usuarios atendidos en Unidades de Salud de la Familia, en el Distrito Sanitario IV de la ciudad de João Pessoa - PB. La recolección de los datos fue realizada por medio de entrevistas. Como referencial metodológico se utilizó la historia oral temática. Fueron entrevistados cuatro pacientes con historia de abandono del tratamiento. Los datos fueron analizados conforme la técnica de análisis del contenido, modalidad temática. Los resultados son presentados en dos categorías temáticas, a saber: factores que dificultan la obtención del éxito terapéutico, y, el envolvimiento de los profesionales de Salud de la Familia en el desarrollo de estrategias para fortalecer la adhesión del usuario al tratamiento de la tuberculosis. Entre los factores asociados al abandono fueron identificadas dificultades relacionadas con el enfermo, con el tratamiento y con el desarrollo de la asistencia de salud. Se observa que el vínculo y el acogimiento son esenciales para garantizar la continuidad del tratamiento.

Tuberculosis; Negativa del paciente al tratamiento; Programa Salud de la Familia


This study aimed to identify and analyze the reasons for tuberculosis treatment default among the Family Health Units' clients in the IV Health District in the city of João Pessoa, PB, Brazil. The data collection was carried out through interviews using the thematic oral history as a methodological reference. Four clients with a history of treatment default were interviewed. Data was analyzed according to the content analysis technique, thematic modality. Results present two thematic axes: factors that make therapeutic success difficult and the involvement of the family health professionals in the development of strategies to improve the client's adherence to their treatment of tuberculosis. The factors associated to abandonment are diverse and complex, with difficulties related to the client, to the treatment, and to the implementation of health care practices. It has been observed that the bond and the reception are essential to assure continuity of the treatment.

Tuberculosis; Treatment refusal; Family Health Program


ARTIGO ORIGINAL

PESQUISA

Tratamento da tuberculose em unidades de saúde da família: histórias de abandono

Tuberculosis treatment in family health units: stories of abandonment

El tratamiento de la tuberculosis en unidades de salud de la familia: historias de abandono

Lenilde Duarte de SáI; Káren Mendes Jorge de SouzaII; Maria das Graças NunesIII; Pedro Fredemir PalhaIV; Jordana de Almeida NogueiraV; Tereza Cristina Scatena VillaVI

IEnfermeira. Doutora em Enfermagem e Saúde Pública. Professora do Departamento de Enfermagem Saúde Pública e Psiquiatria. Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Paraíba, Brasil

IIEnfermeira. Mestranda em Enfermagem pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFPB. Paraíba, Brasil

IIIMestre. Enfermeira da Secretaria Municipal da Saúde de João Pessoa. Paraíba, Brasil

IVEnfermeiro. Pós-Doutor em Enfermagem. Professor do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública. Professor do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Ribeirão Preto (EERP) da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, Brasil

VDoutora em Enfermagem e Saúde Pública. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgica e Administração do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFPB. Paraíba, Brasil

VIProfessora Livre Docente da EERP/USP, Centro Colaborador da World Health Organization em Pesquisa em Enfermagem. Coordenadora da Área de Pesquisa Operacional da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose. São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Lenilde Duarte de Sá R. da Falésia, Casa B 05, Condomínio Village Atlântico Sul 58.045-550 - Praia do Seixas, João Pessoa, PB, Brasil E-mail: lenilde_sa@yahoo.com.br

RESUMO

Este estudo objetivou identificar e analisar os motivos de abandono do tratamento da tuberculose pelos usuários das Unidades de Saúde da Família do Distrito Sanitário IV, na cidade de João Pessoa - PB. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas, utilizando-se a história oral temática como referencial metodológico. Foram entrevistados quatro usuários com história de abandono do tratamento. Os dados foram analisados conforme a técnica da análise de conteúdo, modalidade temática. Os resultados apresentam dois eixos temáticos: fatores que fragilizam a obtenção do sucesso terapêutico e o envolvimento dos profissionais de Saúde da Família no desenvolvimento de estratégias para potencializar a adesão do usuário ao tratamento da tuberculose. Verificou-se que os fatores associados ao abandono são diversos e complexos, existindo dificuldades relacionadas ao usuário, ao tratamento e à operacionalização da assistência de saúde. Observa-se que o vínculo e o acolhimento são essenciais para assegurar a continuidade do tratamento.

Palavras-Chave: Tuberculose. Recusa do paciente ao tratamento. Programa Saúde da Família.

ABSTRACT

This study aimed to identify and analyze the reasons for tuberculosis treatment default among the Family Health Units' clients in the IV Health District in the city of João Pessoa, PB, Brazil. The data collection was carried out through interviews using the thematic oral history as a methodological reference. Four clients with a history of treatment default were interviewed. Data was analyzed according to the content analysis technique, thematic modality. Results present two thematic axes: factors that make therapeutic success difficult and the involvement of the family health professionals in the development of strategies to improve the client's adherence to their treatment of tuberculosis. The factors associated to abandonment are diverse and complex, with difficulties related to the client, to the treatment, and to the implementation of health care practices. It has been observed that the bond and the reception are essential to assure continuity of the treatment.

Keywords: Tuberculosis. Treatment refusal. Family Health Program.

RESUMEN

Esta investigación buscó identificar y analizar los motivos para el abandono del tratamiento de la tuberculosis por los usuarios atendidos en Unidades de Salud de la Familia, en el Distrito Sanitario IV de la ciudad de João Pessoa - PB. La recolección de los datos fue realizada por medio de entrevistas. Como referencial metodológico se utilizó la historia oral temática. Fueron entrevistados cuatro pacientes con historia de abandono del tratamiento. Los datos fueron analizados conforme la técnica de análisis del contenido, modalidad temática. Los resultados son presentados en dos categorías temáticas, a saber: factores que dificultan la obtención del éxito terapéutico, y, el envolvimiento de los profesionales de Salud de la Familia en el desarrollo de estrategias para fortalecer la adhesión del usuario al tratamiento de la tuberculosis. Entre los factores asociados al abandono fueron identificadas dificultades relacionadas con el enfermo, con el tratamiento y con el desarrollo de la asistencia de salud. Se observa que el vínculo y el acogimiento son esenciales para garantizar la continuidad del tratamiento.

Palabras Clave: Tuberculosis. Negativa del paciente al tratamiento. Programa Salud de la Familia.

INTRODUÇÃO

No atual cenário da luta contra a tuberculose, um dos aspectos mais desafiadores é o abandono do tratamento, pois repercute no aumento dos índices de mortalidade, incidência e multidrogarresistência. Considera-se caso de abandono, a pessoa "[...] que após iniciado o tratamento para tuberculose, deixou de comparecer à unidade de saúde por mais de 30 dias consecutivos, após a data aprazada para seu retorno".1:21 Os fatores relacionados a esse evento são múltiplos. De modo geral, as causas do abandono estão associadas ao doente, à modalidade do tratamento empregado e à operacionalização dos serviços de saúde.2

O Plano de Controle da Tuberculose no Brasil, contando com o trabalho dos profissionais de Saúde da Família, descentraliza para o nível municipal a responsabilidade relacionada à implementação de algumas ações da atenção básica à saúde, no que concerne à promoção à saúde, diagnóstico e prevenção da tuberculose, contribuindo, deste modo, para a expansão das ações de controle desta doença. O referido plano destaca a atuação dessas equipes como instrumento para melhorar a adesão terapêutica e evitar o abandono do tratamento.3

Considerando o importante papel dos profissionais de Saúde da Família no controle da tuberculose e na perspectiva de contribuir com a qualidade das ações e serviços de saúde, esta pesquisa objetivou identificar e analisar os motivos de abandono do tratamento da tuberculose pelos usuários assistidos em Unidades de Saúde da Família (USF) do Distrito Sanitário IV, na cidade de João Pessoa - PB.

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

Este é um estudo de natureza qualitativa que utilizou como referencial metodológico a História Oral Temática.4 Conforme os procedimentos seqüenciais do referido método de pesquisa, realizou-se a entrevista, a transcrição do material gravado, a textualização, a transcriação e, por fim, a conferência e autorização do material para uso e publicação.

A pesquisa foi realizada no Distrito Sanitário IV da Secretaria Municipal de Saúde de João Pessoa - PB durante os meses de setembro e outubro de 2006. A escolha desse Distrito, como cenário de estudo, deve-se ao fato do mesmo ter apresentado, com relação aos demais Distritos Sanitários, no ano de 2005, a maior incidência de tuberculose e o maior número de casos de abandono do tratamento da doença, conforme informações da Seção de Tuberculose da Secretaria Municipal de Saúde. No município de João Pessoa, no referido ano, sete usuários, acompanhados por profissionais de Saúde da Família, abandonaram o tratamento da tuberculose. Desses, quatro estavam sendo acompanhados em Unidades de Saúde da Família (USF) do Distrito Sanitário IV.

Com o auxílio dos enfermeiros e agentes comunitários de saúde das Unidades de Saúde da Família, foi possível entrar em contato com os 04 usuários que abandonaram o tratamento da tuberculose. Todos aceitaram colaborar com o estudo.

A pré-entrevista representou o primeiro contato entre a pesquisadora e os colaboradores, na qual estes foram informados sobre o objetivo, a finalidade da pesquisa e a forma de participação.

As entrevistas, nas quais foi utilizado um gravador portátil, foram realizadas nos locais de escolha dos colaboradores. Três optaram em ser entrevistados na própria residência e uma escolheu o local de trabalho. A cada entrevista gravada recorreu-se ao caderno de campo, a fim de realizar o registro das impressões sobre o contato com o colaborador, o ambiente em que se deu a entrevista e as dificuldades encontradas durante o percurso para a coleta de informações. A pós-entrevista teve a finalidade dos colaboradores esclarecerem questões não bem definidas no momento da entrevista.

Após a escuta cuidadosa e repetida das entrevistas, os depoimentos foram transcritos na íntegra e, posteriormente, trabalhados por meio da correção e organização cronológica dos acontecimentos, preservando-se as idéias e sentido intencional dado pelo narrador em detrimento da transcrição absoluta. Elegeu-se em cada história narrada um tom vital. Trata-se de uma frase escolhida para guiar a leitura da entrevista, "[...] posto que representa uma síntese da moral da narrativa".4:77 Em seguida, os depoimentos foram transcriados e, ao obter-se a versão final das histórias, realizou-se a conferência e autorização pelos colaboradores do estudo para uso e publicação. Para o desenvolvimento desta pesquisa, foram obedecidos os aspectos éticos e legais da pesquisa envolvendo seres humanos, preconizados pela Resolução Nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.5 O projeto que deu origem a este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba em 30/08/06, cujo número do protocolo Nº é 625/06.

Após o tratamento das entrevistas, as informações foram analisadas conforme a técnica da análise de conteúdo, modalidade temática,6 a qual envolve as seguintes etapas: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

ANALISANDO AS INFORMAÇÕES

Com relação aos colaboradores do estudo, três são do sexo masculino, representados por C1, C3 e C4. O colaborador C1, 24 anos, desempregado, estudou até a segunda série do ensino fundamental; C3, 35 anos, feirante, estudou até a segunda série do ensino fundamental e C4, pintor, estudou até a segunda série do ensino fundamental. A única representante do sexo feminino, C2, 46 anos, auxiliar de serviços gerais, estudou até a quinta série do ensino fundamental.

A partir das histórias sobre o abandono do tratamento da tuberculose narradas pelos colaboradores caracterizados acima, foram identificados dois temas centrais que conduziram à formulação de duas categorias temáticas: 1) fatores que fragilizam a obtenção do sucesso terapêutico; 2) o envolvimento dos profissionais de saúde da família no desenvolvimento de estratégias para potencializar a adesão do usuário ao tratamento da tuberculose.

Fatores que fragilizam a obtenção do sucesso terapêutico

Nesta primeira categoria de análise, são abordados os fatores associados ao abandono do tratamento, estando relacionados ao doente, à terapêutica e ao trabalho dos profissionais de Saúde da Família.

O abandono do tratamento da tuberculose é um importante desafio no campo da Saúde Coletiva. Os motivos relacionados ao evento são complexos e diversificados. Nesta pesquisa, foram identificados os seguintes fatores associados ao abandono do tratamento: a falta de informação e as representações negativas relacionadas à doença e ao tratamento, o etilismo, o tabagismo e uso de drogas ilícitas, a crença da obtenção de cura através da fé, os problemas sócio-econômicos, a intolerância medicamentosa, a regressão dos sintomas no início da terapêutica, o longo tempo de tratamento, a grande quantidade de comprimidos ingeridos e problemas relacionados ao trabalho desenvolvido por profissionais de Saúde da Família.

Nas narrações, há períodos que mostram que os doentes careciam de informações sobre a tuberculose: eu comecei doente, com febre, dor de cabeça, tremia de frio na cama, tossia muito e vomitava também. Fiquei magro. Eu não conhecia essa doença. Ninguém me informou sobre ela (C1). Outro afirma: eu não conhecia a tuberculose. Não sabia que estava com essa doença [...] Eu olhava pras pessoas, pensando se ia morrer, porque estava doente (C4). Um terceiro colaborador, mesmo já tendo ouvido falar da doença, relatou que se preocupava muito, achando que não teria cura (C2).

Embora os colaboradores não relacionem a falta de informação com a desistência do tratamento, reconhece-se que quanto menos se sabe sobre a tuberculose, maiores são os riscos de não concluir o esquema terapêutico. A educação em saúde é uma importante estratégia para a redução das taxas de abandono do tratamento da doença, pois a falta de informação ou a sua inadequada assimilação concorre para uma ingesta não apropriada da medicação e/ou interrupção precoce do tratamento. Nesse enfoque se reconhece que a educação em saúde favorece o autocuidado, pois aumenta a capacidade das pessoas cuidarem de si mesmas.7

Problemas como etilismo, tabagismo e uso de drogas ilícitas, concomitantes ao tratamento da tuberculose, dificultam a obtenção do sucesso terapêutico.8 Três dos quatro colaboradores relacionaram a dependência do álcool ao abandono do tratamento: faltando aproximadamente um mês para concluir o tratamento, eu comecei a tomar os remédios de forma irregular, porque eu estava bebendo muito e me recusava a ingerir os comprimidos. Desde então, não retornei mais à Unidade de Saúde para dar continuidade ao tratamento (C3); Comecei a beber novamente, e parei o tratamento (C1).

Dentre as doenças associadas à tuberculose, o etilismo merece destaque, pois além de dificultar a adesão do doente ao tratamento, agrava o quadro clínico,8 elevando a possibilidade de progressão para doença cavitária crônica.9

Dentre os fatores associados ao abandono do tratamento da tuberculose, a cura pela fé merece destaque. Relatou um colaborador: eu sempre freqüentei a Igreja Universal do Reino de Deus, e durante o tratamento da tuberculose, eu sempre orava, pedindo a Deus por minha saúde. Os irmãos da Igreja também oravam por mim, e durante esse tempo que eu não tomei mais o medicamento, sempre pedi a Jesus para me curar, porque eu não queria voltar ao médico, nem reiniciar o tratamento. Então foi isso. Hoje, eu estou bem, graças a Deus, e faz um ano e quatro meses que eu não tomo a medicação pra tuberculose. Eu me sinto bem (C2).

Apesar do avanço da medicina e seu potente aparato tecnológico, estudos têm mostrado que muitas pessoas, diante de situações difíceis e traumáticas, recorrem ao poder divino na esperança de conseguir cura.10 Nesses casos, a busca de instituições religiosas pode estar relacionada à "falta de atenção para os aspectos emocionais e afetivos dos doentes, por parte do sistema de saúde",10:12-3 já que não valorizam "a subjetividade, fragilidade e insegurança que os indivíduos enfermos apresentam".10:12-3 Mesmo reconhecendo a importância da fé na recuperação da saúde, como vem mostrando a psiconeuroimunologia,11 o que se observa é uma falta de diálogo entre setores. Ou seja, se um paciente se admite curado pela fé, não se observa a participação dos serviços de saúde na comprovação da cura.

Em alguns casos, problemas sociais, como o desemprego e a dificuldade financeira, concorrem para que o doente de tuberculose abandone o tratamento. No discurso apresentado a seguir, fica evidente que fatores dessa natureza influenciaram na decisão de não dar continuidade ao processo terapêutico: eu fiz o tratamento durante uns três meses. Na época, eu estava desempregado, e me separando da esposa. A situação era difícil. Eu vendi o barraco e me mudei. Vim morar nessa parte mais baixa do bairro. Comecei a beber novamente, e parei o tratamento (C1).

Entre as causas relacionadas ao abandono da terapêutica é importante destacar a intolerância medicamentosa, a melhora dos sintomas criando a ilusão da cura antes da conclusão do tratamento, o longo tempo de tratamento e a quantidade de comprimidos tomados.

A maioria dos doentes de tuberculose conclui o tratamento sem apresentar reações adversas decorrentes do uso das drogas antituberculosas, mas, em alguns casos, os efeitos colaterais se fazem presentes e contribuem para a interrupção do tratamento,1 como fica evidente no relato: eu comecei o tratamento e percebi que os remédios me ofendiam, porque eu sentia dor de cabeça, enjôo, um mal estar, uma agonia. Eu estava muito magra e não tinha vontade de comer. Então pensei em parar o tratamento, que eu tinha iniciado há um mês (C2).

A fala acima leva a insistir sobre a importância de ações educativas em saúde. Nesse sentido, os doentes de tuberculose, no ato da primeira consulta, devem ser informados sobre a possibilidade do aparecimento de efeitos colaterais. Intolerância gástrica, manifestações cutâneas, icterícia e dores articulares são os efeitos mais freqüentemente relatados durante o tratamento com o esquema I (rifampicina, isoniazida e pirazinamida). Os efeitos adversos menores ocorrem em 5% a 20% dos casos, não sendo necessárias mudanças terapêuticas. Os efeitos maiores ocorrem em 2% a 8% dos casos e implicam em alterações ou interrupções no tratamento, bem como demandam atendimento especializado em Unidades de Referência (UR) para o tratamento da tuberculose.1

Outro importante obstáculo à obtenção do sucesso no tratamento da tuberculose está vinculado à regressão dos sintomas no início da terapêutica, que desperta no doente a ilusão da cura, como se pode observar na narração a seguir: fiz o tratamento durante dois meses, até que um dia, numa festa, na casa do meu irmão, bebi e decidi parar o tratamento, porque eu já tinha recuperado o meu peso e me sentia bem. Então, passei um mês sem tomar a medicação, mas retornei ao tratamento por incentivo da minha irmã. Eu pensei que estava curado, mas por dentro não estava. Acho que é a mente da pessoa [...] Hoje, eu me sinto bem e não vejo motivo para continuar tomando a medicação, que está guardada aqui em casa (C4).

O risco de abandono do tratamento da tuberculose é elevado ao final do primeiro mês e início do segundo, pois os doentes, estando assintomáticos e com bom estado geral em conseqüência da eficácia farmacológica, podem acreditar que estão livres da doença e interromper a tomada da medicação antituberculosa.2 O relato do bom estado geral após início da tomada dos fármacos pode ser observado nos depoimentos: comecei o tratamento. Tava tomando os remédios e me sentindo melhor. A medicação não me fazia mal (C1); Eu estava me sentindo melhor com a medicação, ganhei peso e meu apetite aumentou (C3).

O longo tempo de tratamento e a grande quantidade de comprimidos ingeridos também dificultam a adesão do doente ao tratamento. Essas questões aparecem nas narrativas: eu recebia 60 comprimidos do vermelho e 120 do branco (C3); Eu ia ao PSF pegar a medicação para o mês: cento e vinte comprimidos brancos e sessenta vermelhos [...] No total, eu tomei três mil e seiscentos comprimidos (C4).

O abandono do tratamento da tuberculose também está relacionado ao trabalho desenvolvido pelos profissionais de Saúde da Família. É importante ressaltar que, algumas vezes, o serviço de saúde abandona o doente, negligencia o acompanhamento dos casos, fragilizando as relações imprescindíveis ao êxito do tratamento e, em conseqüência, o doente deixa de tomar a medicação. Um colaborador informou: uma agente comunitária de saúde sempre visitava minha família de oito em oito dias. Ela sabia da minha doença, mas nunca mais fez a visita. Eu acho que ela se mudou (C2). O discurso expressa que a quebra de um vínculo compromete o sucesso do tratamento, principalmente quando se trata do agente comunitário de saúde, pois este profissional que representa o elo entre a comunidade e a equipe de Saúde da Família, vem sendo reconhecido como um dos mais envolvidos nas ações do controle da tuberculose na atenção básica à saúde.

No que diz respeito à relação dos profissionais de saúde com o doente de tuberculose, se faz necessário refletir que "[...] talvez o termo abandono não seja o mais adequado quando se quer expressar qualquer interrupção de tratamento. Afinal [...] nem sempre houve o descuido, e, se houve, nem sempre foi por parte do doente. Alguns doentes interrompem o tratamento por sofrerem efeitos colaterais dos medicamentos; enquanto outros não conseguiam ter acesso aos medicamentos por deficiências na organização dos serviços, falta de material, de profissionais, ou pelo fato de que o posto se encontrava fechado. Nestes casos não houve descuido por parte dos doentes, nem opção pessoal por não se tratar. O descuido foi do serviço, que não lhes ofereceu possibilidades de acesso aos medicamentos de maneira que pudessem prosseguir o tratamento até obter a cura".12:47-8

O envolvimento dos profissionais de Saúde da Família no desenvolvimento de estratégias para potencializar a adesão do usuário ao tratamento da tuberculose

Esta segunda categoria discute o compromisso dos profissionais que atuam nas USF, no que concerne ao desenvolvimento de estratégias voltadas à adesão do doente de tuberculose ao plano terapêutico.

Para assegurar a adesão do doente de tuberculose ao tratamento, os profissionais de Saúde da Família devem estar sensibilizados para conhecer as necessidades do usuário e para desenvolver a co-responsabilização na assistência. É de capital importância escutar as queixas do doente, ajustar a assistência e propor soluções em conjunto (equipe de saúde e usuário), estabelecendo uma relação pautada no acolhimento e no vínculo, princípios fundamentais da Saúde da Família.

Os discursos a seguir evidenciam os laços de vínculo entre o doente de tuberculose e os profissionais de Saúde da Família, mediante ações direcionadas para a retomada do tratamento: quando eu deixei de tomar os remédios, a agente comunitária de saúde veio aqui em casa, conversou comigo e me chamou para recomeçar o tratamento nesse outro PSF. Ela me convenceu. Então, eu comecei tudo de novo [...] Eu fazia os exames de escarro no Clementino [Unidade de Referência Estadual]. A agente comunitária de saúde conseguiu uma kombi, que nos levava para o hospital e depois nos deixava em casa. No carro, íamos eu, minha mãe, a agente de saúde e as crianças (meu filho e uma sobrinha), que faziam tratamento (C1); a enfermeira daqui ficava preocupada comigo, chegando a vir aqui no meu trabalho, pra conversar comigo e me convencer a fazer os exames e retornar ao tratamento, mas eu não quis continuar [...] (C2).

Uma relação humanizada que promove o acolhimento, dá-se quando o profissional de saúde garante acesso ao usuário e desenvolve responsabilização pelas necessidades da pessoa que procura o serviço de saúde. Esse aspecto é evidenciado nas falas: quando eu ia ao PSF, eu era logo atendida. Eu chegava e a atendente pegava logo a minha ficha pra ser atendida pela enfermeira. Embora outras pessoas tivessem consultas agendadas, eu era logo atendida. A enfermeira nunca me deixava lá esperando. Eu era bem atendida (C2).

Depois de quase dois meses, fui encaminhado para ser acompanhado pelos profissionais do PSF. Eu sempre fui bem tratado. Todas as vezes que eu precisava de uma assistência, eu era atendido (C3).

Quando eu saí do hospital, fiquei sendo acompanhado pelo PSF daqui. Eu gostava da assistência que recebia. Eles me tratavam como se fosse um filho (C4).

O acolhimento é importante na relação com o doente, pois propõe "[...] inverter a lógica de organização e funcionamento do serviço de saúde, partindo dos seguintes princípios: 1) atender à todas as pessoas que procuram os serviços de saúde, garantindo a acessibilidade universal. Assim, o serviço de saúde assume sua função precípua, a de acolher, escutar e dar uma resposta positiva capaz de resolver os problemas de saúde da população; 2) reorganizar o processo de trabalho, a fim de que este desloque seu eixo central do médico para uma equipe multiprofissional – equipe de acolhimento –, que se encarrega da escuta do usuário, comprometendo-se a resolver seu problema de saúde; 3) qualificar a relação trabalhador-usuário que deve dar-se por parâmetros humanitários de solidariedade e cidadania".13:347

O vínculo, por sua vez, constitui um importante princípio no cuidado ao doente de tuberculose, uma vez que estabelece uma relação de confiança, diálogo e respeito entre o profissional de saúde e o paciente, que passa a compreender a significância de seu tratamento, seguindo corretamente as orientações da terapêutica.14 "Os profissionais buscam a confiança das pessoas atendidas, sua satisfação, numa relação empática e sem pré-julgamentos; devido à necessidade do processo de cuidado englobar além da competência técnica, os aspectos interpessoais e humanísticos da relação profissional-paciente-família".15:652

O modo como os profissionais de Saúde da Família acompanham o doente de tuberculose, em seu tratamento, revela o cuidado que esses profissionais desenvolvem. Os discursos inseridos demonstram a forma de acompanhamento que os colaboradores deste estudo recebiam nas USF: a agente de saúde vem deixar os remédios, para tomar por um período de quinze dias. Aí, quando acaba, vem novamente, mas ela passa todos os dias para acompanhar o tratamento, se estou tomando direito (C1).

Eu pegava a medicação no PSF pra durar um mês, e a minha filha, orientada pela enfermeira, me acompanhava na hora de tomar os comprimidos (C2).

Eu pegava a medicação na unidade de saúde para durar um mês. Eu recebia 60 comprimidos do vermelho e 120 do branco. Todo dia 14 eu ia pegar os comprimidos, mas a agente comunitária de saúde vinha aqui em casa acompanhar o tratamento e saber se eu estava tomando a medicação (C3).

A agente de saúde vinha aqui em casa de quatro em quatro dias. E eu ia ao PSF pegar a medicação para o mês: cento e vinte comprimidos brancos e sessenta vermelhos (C4).

O acompanhamento referido pelos colaboradores do estudo diz respeito ao Tratamento Supervisionado (TS), uma dos pilares da estratégia Directly Observed Therapy Short-course. O TS constitui o principal componente para a redução do número de abandono do tratamento da tuberculose e se refere a um conjunto de intervenções que envolvem educação em saúde, observação da ingestão do medicamento e incentivos, tais como, fornecimento de passagens de ônibus e alimentos. A supervisão da tomada dos fármacos poderá ser feita com pelo menos três observações semanais, nos primeiros dois meses, e uma observação semanal na segunda fase do tratamento. O processo de implantação e operacionalização do TS deverá ser acordado em nível local, segundo a realidade da comunidade envolvida e os recursos disponíveis. No TS, a adesão ao tratamento da tuberculose é compartilhada entre usuário, profissionais de saúde, governo e comunidade,16 o que mostra que o controle da tuberculose excede a relação entre profissionais de saúde e usuários e envolve responsabilidade social e compromisso políticos de gestores para com a saúde a ser assegurada como direito de cidadania.

CONCLUSÃO

Os resultados desta pesquisa apontam para a diversidade e complexidade dos fatores relacionados ao abandono do tratamento da tuberculose. Percebe-se que a obtenção do sucesso terapêutico vai além da eficácia farmacológica, existindo dificuldades relacionadas ao paciente, ao tratamento empregado e à operacionalização do cuidado nos serviços de saúde.

No que concerne aos fatores relacionados ao abandono do tratamento da tuberculose ligados ao paciente, dada a compreensão do processo saúde-doença como fenômeno social, o estudo mostrou a influência do desconhecimento e crenças do doente acerca da tuberculose, dos hábitos prejudiciais à saúde, com destaque para o etilismo como doença associada, e de problemas econômicos e sociais, como o desemprego.

Com relação aos fatores preditivos de abandono do tratamento da tuberculose, ligados à terapêutica, identificou-se a ocorrência de efeitos colaterais, a melhora dos sintomas, criando a ilusão da cura antes da conclusão do tratamento, o longo tempo de tratamento e a grande quantidade de comprimidos que devem ser ingeridos.

Importantes dificuldades para a obtenção do sucesso terapêutico da tuberculose estão relacionadas com problemas operacionais dos serviços de saúdes. O modo como a equipe de saúde se organiza, para desenvolver o seu trabalho, é determinante para promover a adesão da pessoa doente ao tratamento, conduzindo-a à alta por cura.

Observando os principais fatores associados ao abandono do tratamento da tuberculose, identificados neste estudo, nota-se que a maioria deles reflete o modo de agir dos profissionais de Saúde da Família. Poder-se-ia afirmar que, em muitos casos, o paciente abandona o tratamento, porque foi abandonado pelo serviço de saúde. As estratégias de controle da tuberculose e formas de prevenir o abandono terapêutico são diversificadas. Cabe aos profissionais da atenção básica à saúde desenvolver o cuidado centrado no trabalho em equipe e com base nas necessidades da pessoa e das famílias assistidas.

O acompanhamento dos casos de tuberculose pelos profissionais de Saúde da Família deve estar fundamentado no resgate da humanização do cuidado, no qual o profissional de saúde realiza escuta solidária, identificando as necessidades manifestadas pelo doente, e com ele definir as melhores estratégias de agir na perspectiva de ser o tratamento da tuberculose um processo de co-responsabilização. Para que o tratamento da tuberculose tenha êxito é necessário que haja uma partilha de compromissos, envolvendo o serviço de saúde e o doente, através da criação de pactos, que contemplem as necessidades de ambas as partes.

Para esse acompanhamento é necessário preparo dos profissionais de Saúde da Família, bem como, sem perder a perspectiva do cuidado ser promovido em equipe, a escolha de um profissional para o monitoramento dos casos de tuberculose, seguindo uma sistemática de trabalho com registros diários e realização de coordenação da assistência envolvendo outros setores e redes de apoio social.

Recebido em: 11 de abril de 2007

Aprovação final: 03 de outubro de 2007

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  • Endereço para correspondência:

    Lenilde Duarte de Sá
    R. da Falésia, Casa B 05, Condomínio Village Atlântico Sul
    58.045-550 - Praia do Seixas, João Pessoa, PB, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      03 Out 2007
    • Recebido
      11 Abr 2007
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