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EDITORIAL

Dra. Flávia Regina Souza Ramos

Presidente do Conselho Diretor da Texto & Contexto Enfermagem. Professora Associado do Departamento de Enfermagem e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-Doutora pela Universidade de Lisboa, Portugal. Líder do grupo de pesquisa PRÁXIS - Núcleo de Estudos sobre Trabalho, Cidadania, Saúde e Enfermagem. Pesquisadora CNPq.

Um tema tem sido recorrente em grande parte das discussões que envolvem a produção cientifica - a ética na pesquisa. Tal recorrência, ampliada nas últimas décadas, não foi significativa de um curso tranquilo e coerente de construção de consensos. Ao contrário, esteve implicada em um cenário de múltiplas posições e argumentos sobre questões também diversas e que abrangem todas as etapas da investigação, incluindo a divulgação de seus resultados. As constatações que mobilizaram mudanças nos critérios editoriais nem sempre foram as mais "agradáveis", uma vez que nos davam conta de que a expertise acadêmica e cientifica não garantia, natural e espontaneamente, a correção ética de seus procedimentos. A confiança tácita naquilo que se apresenta como resultado da pesquisa passou a ser substituída pela declaração avalizada do seguimento de pautas e protocolos mínimos. O requisito de aprovação dos projetos de pesquisa em Comitês de Ética em pesquisa envolvendo seres humanos talvez seja o exemplo mais típico. Depois de um primeiro período de "adaptação" de autores e leitores, apresenta-se hoje como mais um ato regulatório, absorvido e incorporado à rotina da produção cientifica e, muitas vezes, descolado das importantes reflexões que o promoveram e ainda dão sentido ao ato em si.

O que aprendemos nesse processo agora é reavivado, quando outro tema ético ganha crescente evidência - o combate ao plágio. Não podemos dizer que esta seja uma preocupação nova na academia, mas que se mostra ampliada exatamente porque o plágio se manifesta em todo o processo de formação, do ensino básico à pós-graduação. As primeiras "tarefas" de pesquisa de uma criança são intermediadas pela poderosa ferramenta de busca e acesso proporcionada pela internet e o trabalho de leitura e escrita se confunde com o de "copiar" e "colar". Entre a desconfiança de professores e efetivas estratégias educativas parece haver uma grande distância, afinal ainda nos deparamos com o grande desafio da formação moral do cidadão. Enquanto isso, à Universidade chegam jovens mais "conectados" e dela saem trabalhos acadêmicos mais "duvidosos". A antiga confiança e valor do título acadêmico é abalada quando se sabe dos casos de teses inteiras plagiadas. É o profissional e cientista fabricado nas brechas do sistema acadêmico. A história profissional está no "lattes" (atestado pelo autor e, portanto, no suposto da confiança) e nós conhecemos, ou melhor, "acessamos" pessoas pelo número de vezes que publicou e foi citada.

A produção cientifica no Brasil é, majoritariamente, vinculada a Programas de Pós-graduação. Um sinal do quão intolerável possa estar se tornando a situação pode ser remetido a uma iniciativa de seu órgão de regulação e avaliação - a CAPES assumiu a proposição da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ratificando-as, no intuito de combater o plágio no âmbito da pós-graduação. A orientação da CAPES, divulgada em janeiro de 2011, salienta o texto da proposição, recomendando que as IES adotem "políticas de conscientização e informação sobre propriedade intelectual"1:2, inclusive citando o uso de softwares de leitura e rastreamento eletrônicos de textos.

Com certeza o problema é grave e nenhum professor deve duvidar da OAB sobre o plágio ser prática ilegal e que tal "procedimento nefasto infecciona a pesquisa, produzindo danos irreparáveis".1:1 Mas, como profissionais da saúde que somos, não esquecemos outra lição aprendida - o remédio também pode matar. Até sua perfeita prescrição e administração, doses, vias e efeitos colaterais devem ser balizados. Ainda não sabemos ao que vamos assistir até que o maior sucesso venha acompanhado do menor dano possível. Também não está previsto quais novas práticas serão geradas no meio acadêmico e editorial, por consequência. Por enquanto estamos entre a ameaça de um grande mal e o receio de não sermos capazes de controlar a "criatura" gerada para combatê-lo. Afinal, a própria OAB adverte para a dificuldade de lidar com casos e resultados não absolutos, com diferentes gravidades de plágio e com ferramentas ainda não bem avaliadas. Ou seja, está aberta a temporada dos "ensaios clínicos" contra o plágio; e os efeitos adversos ainda serão relatados. Vale pensar no argumento moral que nos mobilizará e de como a insegurança e os limites estarão presentes.

A obra literária de Robert Stevenson, "O médico e o monstro"2, ou o estranho caso de de Dr. Jekyll e Mr Hyde, nos lembra do duplo, do bem e do mal dividindo a mesma pessoa, e do efeito assutador ao testar em si próprio a fórmula criada. O combate ao plágio não poderá ser, no extremo oposto, o instrumento para defender supostos direitos de autores que se julgam os "donos" do já dito por todos. Afinal a quem pertence tantas de nossas idéias incorporadas em discursos que participam de um saber e identidade compartilhadas e móveis? Quem gerou nossas palavras ou quando elas deixam de ser minhas e passam a ser nossas?

Finalmente, cabe lembrar que o tema da autoria é abordado de forma bastante diversa no meio cientifico, artístico e literário. Enquanto uns anunciam a morte do autor e do seu reinado, outros tem nele sua sustentação. Mesmo que sob juízos tão inconfrontáveis sempre é bom beber em outras fontes. Quem sabe em Roland Barthes: "quem fala assim? Jamais será possível saber, pela simples razão que a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo onde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda a identidade, a começar pela do corpo que escreve [...] o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura".3:65-9

  • 1
    Ordem dos Advogados do Brasil. Comissão Nacional de Relações Institucionais do Conselho Federal da OAB. Proposição 2010.19.02136-03: Plágios nas instituições de ensino [online]. (Relatório) Brasília (DF):OAB; 2010 [acesso 2011 Mar 2]. Disponível em: http://www.oab.org.br/combateplagio/CombatePlagio.pdf
  • 2. Stevenson RL. O medico e o monstro. São Paulo (SP): Scipione; 2003.
  • 3. Barthes R. O rumor da língua. São Paulo (SP): Brasiliense; 1998. p. 65-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 2011
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