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A imagem da enfermeira - as origens históricas da invisibilidade na enfermagem

EDITORIAL

A imagem da enfermeira – as origens históricas da invisibilidade na enfermagem

Sioban Nelson, PhD, RN, FCAH

Diretora e Professora. Bloomberg Escola de Enfermagem. Universidade de Toronto-Canadá

No século XIX, milhares de mulheres, na Europa, sentiram-se chamadas por Deus a cuidar dos enfermos. Nas ordens de irmandades de enfermagem que proliferaram naquela época, as mulheres realizaram coisas notáveis em nome de Deus: viajaram pelo mundo e estabeleceram comunidades compostas por mulheres imigrantes e locais, construíram e administraram grandes hospitais – até redes de hospitais – e construíram escolas, orfanatos e outras importantes instituições sociais para os pobres. Algumas vezes estas mulheres funcionaram com grande autonomia, distantes dos bispos ou outras autoridades da Igreja. Outras vezes, elas entravam em conflito direto com os homens da Igreja e com as irmãs, que tentava seguir aquilo que acreditavam ser a sua missão na terra. Estas mulheres não eram simples enfermeiras mansas e humildes devotas a Deus, mas construtoras dinâmicas que criaram instituições sociais e de saúde, em alianças com governos municipais, estaduais ou federais. Muitas vezes firmaram parcerias que não agradavam a Igreja Católica, trabalhando com líderes das comunidades Judaicas ou Protestantes para poder construir hospitais e prover cuidados para os pobres. Ao mesmo tempo, administraram hospitais privados muito bons para que pudessem ganhar o dinheiro necessário para sustentar seu trabalho com os pobres. Em outras palavras, eram mulheres formidáveis e capazes, que transformaram suas comunidades – mas apesar das suas conquistas, permaneceram invisíveis aos outros à sua volta, com suas realizações pouco reconhecidas hoje em dia.

Um dos temas centrais do meu livro, 'Say little do much': nurses, nuns and hospitals in the nineteenth century – University of Pennsylvania Press, 2001 ('Diga pouco, faça muito': enfermeiras, freiras e hospitais no Século XIX), constatou que, por estas serem mulheres e pelo fato da Igreja preocupar-se em conter sua independência e autonomia, a minimização das suas conquistas e sucessos foi imprescindível para a própria sobrevivência das irmandades (o título 'Diga pouco, faça muito' vem de São Vicente de Paula). Em primeiro lugar, eram mulheres religiosas e a modéstia era a virtude fundamental que necessitavam adquirir. Ademais, tudo que faziam era para Deus, sendo que nada mais importava. Em segundo lugar, se elas fossem visíveis demais, a Igreja poderia concluir que desfrutavam de muita independência, o que poderia resultar em terem a liberdade podada, assim como em serem supervisionadas de forma mais próxima e por homens (o que, de fato, aconteceu com muitas comunidades femininas). No meu livro descrevo este fenômeno como a criação das instituições de saúde e enfermagem 'por baixo do radar' (ou debaixo do pano) da Igreja e seus homens dirigentes.

Com a entrada das mulheres não-religiosas na enfermagem, no final do Século XIX e início do Século XX, e com o início da evolução profissional secular da profissão, a enfermagem ainda constituiuse como um domínio feminino de autoridade moral e habilidade feminina. Para moldar a enfermagem em uma profissão respeitável o suficiente para atrair as mulheres de classe média, sem representar uma ameaça à autoridade dos médicos, o que aconteceu foi a desqualificação contínua do conhecimento e habilidade da enfermagem e uma ênfase na virtude e na ética. Isto significou que o próprio sucesso dos reformistas da enfermagem, em criar uma profissão 'em massa' para as mulheres, colocou as enfermeiras numa posição paradoxal de representar um papel importante na saúde, enquanto sentimentalizaram e banalizaram sua contribuição, embora muita crítica, para a saúde como um todo. A única legitimidade que as enfermeiras poderiam declarar era encaixar a descrição do trabalho que efetuaram em termos de caridade, devoção ou altruísmo.

No livro Complexities of care: nursing reconsidered – Cornell University Press, 2006 (As complexidades do cuidado: enfermagem reconsiderada), Suzanne Gordon e eu agrupamos uma série de ensaios que examinam os desafios da enfermagem e o problema que nós mesmas criamos para nossa profissão, quando falamos de trabalho, de cuidado, de emoção e das relações, sem nunca examinar a base técnica e científica da competência da enfermagem.

Argumentamos que mesmo quando a intervenção primária é o apoio emocional, não seria devido ao fato da enfermeira ser uma boa pessoa ou prestadora natural de cuidado – em função da sua natureza feminina ou da vocação religiosa –, mas porque ele ou ela compreende que seria esta a intervenção mais adequada para as necessidades do paciente; porque a enfermeira tem competência e educação formal para, efetivamente, oferecer apoio ao paciente. Isto não é somente uma questão de segurar a mão – é uma intervenção psicossocial que requer educação e formação pertinente.

Também argumentamos que a imagem da enfermeira, como trabalhadora de apoio, carinhosa e querida, ao contrário de ser uma profissional altamente qualificada, na verdade, é produzida pelas próprias enfermeiras. Descrevemos um fenômeno que chamamos de "Roteiro da virtude", em que as enfermeiras se colocam como anjos ou pessoas dóceis e queridas, então o público reage carinhosamente a elas, e isso, por sua vez, traz bons sentimentos às enfermeiras. É por causa deste reforço positivo que a enfermagem continua a retratar-se desta forma infantil e não-profissional.

As mulheres que negociaram o caminho às atividades profissionais e ao respeito publico, discutivelmente, tinham poucas outras opções ou modelos a seguir, no final do Século XIX e o início do Século XX. O que é notável é que esta dependência do "Roteiro da virtude" tenha mudado tão pouco até o final do Século XX e início do Século XXI, quando as mulheres já conquistaram maior poder social, econômico, legal e político na sociedade e na força de trabalho. Uma amostra das campanhas – desde a propaganda em vídeos, panfletos, artigos, folders e camisetas, ou seja, todas que não simplesmente descrevem, mas definem a enfermagem ao público – sugere que as enfermeiras continuam a afirmar suas reivindicações para uma legitimidade social e respeito pelas suas virtudes, acima dos seus conhecimentos.

Enquanto as enfermeiras no Século XXI se encontram sob pressão crescente para, concretamente, conectar a prática da enfermagem, com resultados para os pacientes, se torna difícil compreender o por quê a enfermagem e as enfermeiras parecem ter um vocabulário tão limitado para falar sobre e para promover a importância do seu trabalho como um todo. Enquanto as mulheres, em outras profissões, têm evoluído da virtude para o conhecimento, por quê a enfermagem tem sido tão consistentemente enquadrada como uma profissão virtuosa? Fica ainda mais difícil entender porque, quando há hoje dados compreensíveis, que documentam a importância crítica da enfermagem para o cuidado ao paciente, e os grupos de enfermeiros os usam e usufruem tão pouco. A resposta mais lógica a esta questão é que as enfermeiras sentem que têm a ganhar com esta escolha do foco nas virtudes. Um motivo que as enfermeiras dependem tão pesadamente neste "Roteiro da virtude" é que muitas acreditam que seja esta a única fonte de status, respeito e autoestima.

O recurso persistente a que nós nomeamos como "o Roteiro da virtude" tem consequências sérias para a enfermagem contemporânea. Na verdade, pode até desencorajar o candidato do tipo certo para ser enfermeiro. Alguém interessado em combinar o cuidado com os desafios intelectuais e científicos provavelmente rejeitaria a constelação tradicional de enquadramentos morais e éticas do enfermeiro. Finalmente, o "Roteiro da virtude" solapa a habilidade do enfermeiro em ajudar o público a entender porque pesquisadores acham que a recuperação do paciente – de fato sua própria vida – depende de números adequados de enfermeiros bem formados. Essa inabilidade em articular a importância da enfermagem no clima atual do racionalismo econômico que ameaça a viabilidade da prática da enfermagem.

Quero fortemente incentivar todas as enfermeiras a procurar o "Roteiro da virtude" nas suas organizações, nas suas escolas de enfermagem ou seus locais de trabalho, na saúde e enfermagem. Precisamos todos estar atentos para a imagem da enfermagem que nós todos retratamos em nossas vidas profissionais e aceitar a responsabilidade de comunicar um modelo profissional e experiente. Somente desta forma teremos condições de evoluir além do "Diga pouco, faça muito" e nos tornarmos visíveis no sistema de saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2011
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