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A entrevista: fundamentos da hermenêutica e da psicanálise

La entrevista: fundamentos de la hermenéutica y del psicoanálisis

Resumos

Este trabalho apresenta uma reflexão acerca de uma metodologia de construção e análise de entrevista, baseada, por um lado, na hermenêutica de Habermas e Thompson e, por outro, na psicanálise freudo-lacaniana. A partir da conjunção e disjunção da hermenêutica com a psicanálise, procurou-se construir uma fundamentação da elaboração de entrevistas e de sua análise, em que se seja possível aplicar tais teorias. Os resultados obtidos com a aplicação prática da hermenêutica e da psicanálise, numa pesquisa, foram diferentes do que, inicialmente, se pensava encontrar. Foi constatada a convergência dos conceitos, ainda que os pesquisados utilizassem diferentes termos. Mesmo a linguagem coloquial, quando aprofundada pela interpretação dos autores, mostrou que as falas estavam sustentadas no referencial técnico. Os resultados ultrapassaram os objetivos, indicando ser viável a aplicação desses fundamentos em pesquisa dessa natureza.

Entrevista; Metodologia; Psicanálise; Interpretação


El actual trabajo presenta una reflexión sobre la metodología de la construcción y análisis de la entrevista, basada, por una parte en la hermenéutica de Habermas y de Thompson y por parte, en el psicoanálisis freudo-lacaniano. De la conjunción y de la disjunción de la hermenéutica con el psicoanálisis, procurase construir una fundamentación de la elaboración de entrevistas y de su análisis donde sea posible aplicar tales teorías. Los resultados logrados con el uso práctico de la hermenéutica y del psicoanálisis en una pesquisa habían sido diferentes de lo que, inicialmente, se había pensado encontrar en la investigación, excediendo los objetivos establecidos previamente.

Entrevista; Metodología; Psicoanálisis; Interpretación


This study presents a reflection regarding a methodology of construction and analysis of interview, based on both the hermeneutics of Habermas and Thompson and on Freud-Lacanian psychoanalysis. From the conjunction and disjunction of hermeneutics to psychoanalysis, the authors aimed to build a foundation from the deconstruction of interviews and their analysis, showing that it is possible to apply these theories. The results obtained with the practical application of hermeneutics and psychoanalysis in the study were different than initially expected. The convergence of concepts was evidenced, although the authors used different terms. Even the colloquial language, when broadened by the interpretation of the authors, showed that the speeches were supported by the technical referential. The results exceeded expectation, demonstrating the feasibility of the application of these foundations in studies of this nature.

Interviews; Methodology; Psychoanalysis; Interpretation


REFLEXÃO

A entrevista: fundamentos da hermenêutica e da psicanálise

La entrevista: fundamentos de la hermenéutica y del psicoanálisis

Carlos Augusto Monguilhott RemorI; Lourdes de Costa RemorII

IDoutor em Engenharia de Produção. Professor Associado I do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Santa Catarina, Brasil. E-mail: cremor@mbox1.ufsc.br

IIDoutora em Engenharia e Gestão do Conhecimento. Funcionária da Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina. Santa Catarina, Brasil. E-mail: lu@saude.sc.gov.br

Correspondência Correspondência: Carlos Augusto Monguilhott Remor Rua Presidente Coutinho, 212, ap. 101 88015-230 – Centro, Florianópolis, SC, Brasil E-mail: cremor@mbox1.ufsc.br

RESUMO

Este trabalho apresenta uma reflexão acerca de uma metodologia de construção e análise de entrevista, baseada, por um lado, na hermenêutica de Habermas e Thompson e, por outro, na psicanálise freudo-lacaniana. A partir da conjunção e disjunção da hermenêutica com a psicanálise, procurou-se construir uma fundamentação da elaboração de entrevistas e de sua análise, em que se seja possível aplicar tais teorias. Os resultados obtidos com a aplicação prática da hermenêutica e da psicanálise, numa pesquisa, foram diferentes do que, inicialmente, se pensava encontrar. Foi constatada a convergência dos conceitos, ainda que os pesquisados utilizassem diferentes termos. Mesmo a linguagem coloquial, quando aprofundada pela interpretação dos autores, mostrou que as falas estavam sustentadas no referencial técnico. Os resultados ultrapassaram os objetivos, indicando ser viável a aplicação desses fundamentos em pesquisa dessa natureza.

Descritores: Entrevista. Metodologia. Psicanálise. Interpretação.

RESUMEN

El actual trabajo presenta una reflexión sobre la metodología de la construcción y análisis de la entrevista, basada, por una parte en la hermenéutica de Habermas y de Thompson y por parte, en el psicoanálisis freudo-lacaniano. De la conjunción y de la disjunción de la hermenéutica con el psicoanálisis, procurase construir una fundamentación de la elaboración de entrevistas y de su análisis donde sea posible aplicar tales teorías. Los resultados logrados con el uso práctico de la hermenéutica y del psicoanálisis en una pesquisa habían sido diferentes de lo que, inicialmente, se había pensado encontrar en la investigación, excediendo los objetivos establecidos previamente.

Descriptores: Entrevista. Metodología. Psicoanálisis. Interpretación.

INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado de duas pesquisas de doutoramento da Universidade Federal de Santa Catarina. Uma, especificamente sobre a teoria da interpretação na Psicanálise e na Hermenêutica, outra, que aplicou aspectos da Hermenêutica de Profundidade1 e da Hermenêutica de um Proferimento2 e alguns fundamentos da Psicanálise freudo-lacaniana para sustentar o método da pesquisa. A primeira pesquisa3 deu a sustentação teórica, e a segunda,4 objetivou a possibilidade de colocação na prática, os critérios como sustentáculos do método.

A primeira pesquisa apresenta a trajetória da interpretação, desde seus pilares na hermenêutica, destacando seu trajeto como conceito da Psicanálise, que iniciou com a busca de sentidos, até sua atual tentativa de algum alcance do real lacaniano, através da intervenção introduzida por Lacan, chamada de ‘forçage', que não mais implica na relevância do sentido.3

A segunda pesquisa apresenta uma proposta de utilização do relatório de auditoria no apoio à gestão de saúde, no intuito de que esse relatório pudesse instrumentalizar a tomada de decisão. Utilizou como exemplo a auditoria do SUS, em Santa Catarina. A partir das características e conceito de serviço, concluiu que a auditoria não pode ser padronizada, considerando que o seu principal objeto também não o é. Esse percurso sutentou-se no método adaptado, utilizado para realizar as questões da entrevista e a análise de dados da pesquisa, que coincide em sua função de escuta e interpretação do auditor.4

A pesquisa que colocou a teoria em prática utilizou a entrevista. Como não havia nenhum modelo neste sentido, procurou-se adaptar as relações de um proferimento,2 com os passos da Hermenêutica de Profundidade1 e alguns procedimentos de interpretação da Psicanálise freudo-lacaniana. A Hermenêutica de Profundidade fornece uma abertura metodológica na qual "o pesquisador pode analisar o contexto sócio-histórico e espaço-temporal que cerca o fenômeno pesquisado. Pode empreender análises discursivas, de conteúdo, semióticas ou de qualquer padrão formal que venha a ser necessário".5:87

Hermenêutica e Psicanálise não fazem conjunto, já que suas direções são diferentes. "A hermenêutica parte do fato de que todo campo objeto de investigação é sempre também um campo-sujeito, porque existe uma apropriação desse campo na configuração sociocultural da subjetividade".6:175 Grosso modo, a Hermenêutica parte do princípio de que há uma verdade no texto, a ser encontrada pela via da interpretação, enquanto a Psicanálise, ainda que também procure uma interpretação, considera que esta verdade não passa de atribuição do sujeito. Mesmo partindo de duas teorias que seguem direções diferentes, ainda assim, procuramos construir uma fundamentação para a elaboração de entrevistas e de sua análise, em que se pudesse aplicar alguns aspectos de ambas as teorias. A partir dessa concepção, a pesquisa na qual foi aplicada a entrevista, utilizou como método de análise e de elaboração das questões, a interpretação com base em fundamentos da Hermenêutica e da Psicanálise, apontando que os seus resultados foram além dos objetivos estabelecidos previamente.

Contextualizamos aqui a interpretação do ponto de vista da Hermenêutica e da Psicanálise freudo-lacaniana e utilizamos como procedimento metodológico na construção desse artigo, o método descritivo, procurando mostrar que a proposição teórica pode mudar a prática. A pesquisa descritiva supõe que seus resultados devam promover alterações práticas.7

Os resultados obtidos com a segunda pesquisa citada anteriormente seriam muito diferentes se o método aplicado fosse outro. Os entrevistados utilizavam vários termos para caracterizar a auditoria. Esse fato deixava transparecer que a auditoria não era um conceito específico e nem bem delimitado para os entrevistados. Esse fato não se confirmou pelas análises dos dados colhidos pelas entrevistas, considerando que os termos convergiam na direção de um mesmo sentido, próximos a uma sinonimização. As análises só puderam ser efetivadas através da aplicação desse método de entrevistas abertas e das análises baseadas nas teorias propostas. Uma utilização de questionário, por exemplo, não daria oportunidade a que se chegasse a essa conclusão. Isso porque o texto escrito forneceria uma interpretação diferente daquela esperada pela entrevista. A impossibilidade da amplitude interpretativa, que a escuta permite, conduziria à análise dos termos proferidos para outra direção que não para a convergência. Se os dados fossem obtidos somente a partir do registro escrito em que aparecessem diferentes termos, não haveria condições de serem interpretados na mesma direção, porque continham apenas aparentemente o mesmo sentido, fato que só pôde ser percebido na aplicação da entrevista. A linguagem falada, diferentemente da escrita, emprega o estilo coloquial, o que a Hermenêutica de Profundidade chama de formas cotidianas do discurso, ou de análise sintática.1

Pretende-se mostrar que o mais importante é o percurso de uma pesquisa em si mesma, já que ela pode nos levar a resultados não esperados previamente. O que habita na expectativa do pesquisador é de ordem pessoal. Pode não condizer com o que se busca no campo pesquisado ou na realidade objetiva. A aplicação da Hermenêutica e da Psicanálise na fundamentação da elaboração e aplicação da entrevista e na análise dos dados obtidos por ela fez a diferença entre o que se esperava e o que se obteve.

HERMENÊUTICA

O termo hermenêutica, do grego hermeneuein, conota uma teoria ou filosofia da interpretação, de modo a tornar possível a compreensão do objeto de estudo, muito além de sua simples aparência superficial. A palavra grega hermeios é derivada do deus Hermes que, na mitologia grega, foi o descobridor da linguagem e da escrita. Hermes teria descoberto o objeto utilizado para representar a compreensão humana, para alcançar o significado das coisas e para transmiti-lo ao outro. O termo hermético vem de Hermes e significa algo oculto ou inacessível.8 O deus Hermes tinha uma função de transmutação na representação: transformava o que o humano não compreendia em algo que pudesse ser alcançado pela sua capacidade de compreensão.3

Como metodologia, a interpretação é aplicável a áreas tão diversas como história, religião, arte, psicologia, estudos da linguagem, psicanálise, entre outros. Seu longo trajeto na cultura remonta desde os esforços dos gregos em compreender seus poetas, até a exegese das sagradas escrituras que exigem interpretações mais sistemáticas, dado seu caráter eminentemente figurado. Além delas, as interpretações de sonhos, na Antiguidade, como a conhecida interpretação do sonho do Faraó, que nos legou o ditado das "vacas gordas e vacas magras", designando tempos de fartura e tempos de escassez e chegando até nossos dias em seus múltiplos sentidos e áreas, como na própria Psicanálise e na Hermenêutica.9

Podemos pensar hoje, que a interpretação, em seu sentido amplo, é utilizada em todos os campos de conhecimento humano, posto que é parte integrante da linguagem. É comum, na linguagem coloquial, as divergências serem expressas por frases semelhantes à afirmação de que se trata de uma "questão de interpretação". Não parece que ela possa realmente estar ausente da experiência vivida, pois só há alguma compreensão quando ela é contextualizada, ou seja, quando dela caia um texto, o qual já implica em alguma leitura, portanto, alguma interpretação.4

O filósofo alemão Hans Georg Gadamer (nascido em 1900) mostra, em Verdade e Método, que a interpretação, antes de ser um método, é a expressão de uma situação humana: o intérprete que aborda uma obra está já situado no horizonte aberto pela obra. A interpretação é, antes de tudo, a elucidação da relação entre o intérprete e a tradição da qual provém o interpretado.10

Assim como Freud iniciou seus estudos sobre sonhos, no qual a interpretação visava revelar seu significado, também a hermenêutica busca revelar, descobrir, perceber o significado mais profundo daquilo que se mostra, de modo bruto, na realidade manifesta. Sua procura aponta para um significado oculto, não manifesto, de um texto. Desse modo, a Hermenêutica poderia abranger um método ou uma ferramenta de pesquisa, através da qual podemos chegar a conhecer realmente o próprio ser humano, a realidade em que vive, a sua história e sua própria existência.3

A Hermenêutica de Profundidade está descrita como um referencial metodológico para análise de formas simbólicas. É descrita como referencial que coloca em evidência o fato de que o objeto de análise é uma construção simbólica significativa, que exige uma interpretação.1

PSICANÁLISE

Foi desde a prática clínica que Freud, ouvindo os pacientes, iniciou a Psicanálise, tentando entender/interpretar suas queixas, seus sintomas, suas inibições, suas angústias.

Podemos situar a Psicanálise como uma teoria surgida, então, de uma prática que rompeu com a psiquiatria, com a neurologia do século XIX e, de modo geral, com a ciência da época. Seus rompimentos com os saberes constituídos tornaram-se uma constante desde seu nascimento. A terceira grande ferida narcísica, sofrida pelo saber ocidental, ao produzir o descentramento do saber e da consciência, no seu dizer, incluso na linha daqueles saberes lesionantes da vanidade humana: seu planeta já não era mais o centro da Criação (segundo demonstrou Copérnico), o ser humano resultava ser um parente próximo dos macacos (Darwin).11 Já com o pai da Psicanálise, não era dono das motivações decisivas de sua conduta.12

O objeto da Psicanálise pode ser dividido em dois grandes eixos, o da sexualidade e o do inconsciente. Todos conhecem o que se chama a curiosidade sexual, o que instiga uma procura por um saber ligado a um objeto, um saber sobre o objeto. O núcleo do inconsciente consiste em representantes carregados de desejo. Eles existem lado a lado, no inconsciente, sem se influenciarem mutuamente, estão isentos de contradição. Também nele não há lugar para negação, dúvidas ou incertezas. Nada é passado ou está esquecido. Os processos, nesse sistema, são atemporais, não se alteram com a passagem do tempo e não têm qualquer referência ao tempo.13

O termo "inconsciente" precedeu, em muito, a Freud. Contudo, o uso de uma mesma palavra, em contextos diferentes, não implica que signifiquem a mesma coisa. Podem ser incompatíveis ou mesmo opostos, em contextos diferentes. Tal é o caso deste termo que ficou como marca registrada da Psicanálise. O inconsciente freudiano nada tem a ver com os "inconscientes" que lhe foram predecessores.14

HERMENÊUTICA E PSICANÁLISE COMO FUNDAMENTOS PARA ELABORAÇÃO DE QUESTÕES DE ENTREVISTAS

A arte de compreensão de textos encontra fundamento na teoria de Habermas2, segundo a qual "a epistemologia se ocupa da relação entre a linguagem e a realidade, ao passo que a hermenêutica tem de se ocupar, ao mesmo tempo, da tríplice relação de um proferimento que serve: como expressão da intenção de um falante; como expressão para o estabelecimento de uma relação interpessoal entre falante e ouvinte; como expressão sobre algo no mundo".2:40-41

Além disso, refere-se a uma quarta possibilidade, "a relação entre um proferimento dado e todos os outros proferimentos possíveis, ou seja, não se compreende um texto se não se tornam claras as razões que o autor teria podido citar".2:40-41

Esse entendimento da tríplice relação de um proferimento expressa a ideia de que os pesquisadores necessitam dessa compreensão para conduzir as entrevistas. As entrevistas podem ser aplicadas, a partir de um esboço de questionamentos, o menos estruturado possível. Constituído de questões abertas, de forma que a liberdade do entrevistado seja potencializada e, por conseguinte, o entrevistador possa redirecionar as questões subseqüentes. Não pode haver uma estruturação das entrevistas porque elas teriam que partir de um saber prévio, o qual ainda não foi obtido e só o será através desse método, cuja característica é necessariamente incerta.

Essa aparente tendenciosidade é proposital e destina-se a retirar do entrevistado o máximo de informação possível, através do mínimo de organização. É trabalho da interpretação, a organização posterior do que eram os dados brutos dissolvidos no discurso dos pesquisados, para possibilitar alguma compreensão.

Essa forma de proceder não é nova e encontra suas bases epistêmicas nos ensinos desde a Filosofia até a Psicanálise. Lacan diz que no lugar da douta ignorantia, que desde Sócrates, passa por Nicolás de Cusa e Montaigne, reafirma que "apenas sei que nada sei."15 Essa incerteza se baseia no fundamento platônico da douta ignorância que nada mais é do que o reconhecimento do não saber. Esse não saber é o ponto de partida, mas não necessariamente o ponto de chegada. A proposta é de que seja desse lugar de não saber que se façam as perguntas. A partir disso, temos de considerar que não sabemos nem temos como saber de antemão qual a melhor pergunta a cada vez. É esse o motivo do questionário ser o menos estruturado possível.

Nessa direção, podemos concluir que o desejo de saber qual é a melhor pergunta coincide com a possibilidade de acreditarmos saber qual é a melhor resposta ou, minimamente, esperarmos alguma resposta mais específica – o que seria, agora sim, uma tendenciosidade.

As perguntas das entrevistas têm seu lugar porque não se sabe as respostas correspondentes. A resposta sempre é uma interpretação da realidade, mediada pela pergunta do entrevistador. O entrevistado tem uma interpretação da realidade. O entrevistador tem outra. Quando o entrevistador faz a pergunta ao entrevistado, o que mais importa é que essa interpretação do entrevistador interfira o menos possível na resposta do entrevistado.4

Por essas características do método hermenêutico, não cabe pensar em técnicas da entrevista chamada ‘piloto'. Entrevista piloto teria o objetivo de adequar melhor as perguntas e isso vai na direção, novamente, da estruturação do questionário, ou seja, direção contrária a esse método.4

A relação entre o entrevistado e o pesquisador pode ser pensada como a empatia citada pela Hermenêutica de Dilthey e criticada por Habermas, na medida em que não há possibilidade de neutralidade na linguagem.2

Dessa perspectiva, a maneira de conceber o mundo é o modo de colocá-lo em palavras, isto é, representá-lo. Se as palavras constroem o fato, este depende do horizonte linguístico do falante. A maneira como se o descreve é sua construção.4

HERMENÊUTICA E PSICANÁLISE COMO FUNDAMENTOS DE ANÁLISE

Para análise dos dados, interessa também, além do que for citado pelo entrevistado, as outras possibilidades que sua citação dá lugar, mas que não foram proferidas – o chamado conteúdo latente ou subjetivo.

No que é expresso explicitamente, é fácil alcançarmos um entendimento mais diretamente, a não ser que essa fala explícita faça alusão à outra coisa. O que é explícito fica, assim, quase sinonimizado ao que é objetivo e, por outro lado, o que é implícito, aludido, metaforizado ou conotativo tende a ser visto como subjetivo.4

A subjetividade é entendida, muitas vezes, como algo místico, profundo, esotérico, obscuro, hermético. A tarefa do método baseado na hermenêutica pretende buscar o aludido, referido ou conotado, para alcançar o que acaba por resultar no objetivado.4 Essa é a razão pela qual é importante que se faça a entrevista, pois só através da fala se externa essa enorme gama de sentidos que ficam inibidos, entreditos ou até interditados no discurso escrito – este não se pode esperar que apareça por via do uso de questionários.

A fala e a escrita não têm a mesma estrutura. Seus efeitos e alcance também diferem. Esse fato é citado, já desde a literatura, pelo personagem de Mário de Andrade, em Macunaíma, quando cita, na Carta pras Icamiabas, que "nessa terra se escreve numa língua e se fala noutra".16:66

As línguas e as linguagens são formas que permitem algum acesso à realidade, como mediadora, como representante. A fala é um texto, a compreensão é uma leitura. A partir da palavra se pode fazer alguma leitura, é ela que permite interpretação. Ao mesmo tempo em que a palavra relaciona o sujeito com o objeto, é ela mesma que e os separa. A leitura é capaz de realizar essa mediação entre sujeito e objeto.4

Para proceder a análise de dados, com base nas teorias da hermenêutica e da psicanálise freudo-lacaniana, pode se utilizar na prática, alguns passos metodológicos da Hermenêutica de Profundidade, cuja forma, dividida em análise Sociohistórica, Formal ou Discursiva e de Interpretação e Re-Interpretação, apontou um caminho para analisar os dados da pesquisa, utilizando a teoria de um Proferimento de Habermas2 e de aspectos da Psicanálise que não se encontrou em nenhum outro autor.

É característica do humano como tal, tentar compreender, inevitavelmente, a toda hora. Por isso, em psicanálise costuma-se chamar, já como sentido corrente, o eu de "máquina de fazer sentido". Essa instância psíquica não suporta presenciar nada sobre o que não tenha a possibilidade de atribuir algum sentido e assim, sentir-se mais confortável e crer-se, até certo ponto, dono da situação.

Há na pesquisa social um feedback potencial, já que uma pesquisa pode afetar as condições pesquisadas. Contudo, Thompson argumenta na direção de que isso não é um problema indesejável, mas uma possibilidade de conhecimento do âmbito sócio-histórico, dado que os seres humanos são partes da história e não somente seus observadores.3:359-360

A teoria da hermenêutica de Habermas, embora não forneça passos metodológicos que facilitem sua aplicação, permite adaptação aos passos metodológicos do referencial da hermenêutica de profundidade que se constitui de análise sociohistórica e análise Formal ou Discursiva, conforme consta da figura 1:


Esses passos metodológicos podem ser seguidos, adaptando-os ao objeto da pesquisa. Por exemplo, a Análise sociohistórica não precisa ser realizada em todos os seus passos, mas como o lugar que cada sujeito da pesquisa teve ou tem com o tema que pode influenciar na construção do sentido.

A Análise semiótica vai procurar o que representa cada conceito para cada sujeito. Ela é vista como, "o estudo das relações entre os elementos que compõe a forma simbólica, ou o signo, e das relações entre seus elementos e os do sistema mais amplo, do qual a forma simbólica, ou o signo, podem ser parte (...) porém, esse tipo de análise é, quando muito, um enfoque parcial para o estudo das formas simbólicas. Ele está interessado primeiramente com a constituição interna das formas simbólicas, com seus elementos distintivos e suas inter-relações".1:370-371

Continuando, da questão simbólica, a análise de conversação refere que "o princípio metodológico-chave da analise da conversação é estudar instâncias da interação linguística nas situações concretas em que elas ocorrem; e prestando-se cuidadosa atenção às maneiras como elas estão organizadas, realçar algumas das características sistemáticas, ou ‘estruturais', da interação linguística".1:372

A Análise sintática coincide em grande parte com a análise retórica. As figuras da retórica também coincidem em grande parte com as estruturas da sintaxe. Assim, "este tipo de análise se preocupa com a sintaxe prática ou a gramática prática – não com a gramática dos gramáticos, mas com a gramática ou sintaxe que atua no discurso do dia-a-dia".1:372 A coloquialidade indica esse fato.

A Análise narrativa "pode ser considerada, falando de maneira geral, como um discurso que narra uma seqüência de acontecimentos".1:373 Como contar uma história, apresentando o lugar que cada entrevistado tem no contexto do objeto estudado e, mostrando a maneira que cada um se expressa.

O último tipo da fase da Análise formal ou discursiva, a Análise argumentativa, mostra os padrões dedutivos que o sujeito costuma usar no seu discurso. Trata-se dos aspectos sugeridos, mas não ditos expressamente. São as "formas de discurso, como construções linguísticas supra proposicionais, podem abranger cadeias de raciocínio que podem ser reconstruídas de várias maneiras. Essas cadeias de raciocínio geralmente não chegam a ser argumentos válidos, no sentido tradicional da lógica formal ou silogística; elas são, antes, construídas como padrões de inferência que conduzem de um tema, ou tópico, a outro, de uma maneira que seja mais ou menos convincente, mais ou menos implícita".1:374

Nas falas ou nos discursos, a qualidade do argumento é um ponto fundamental de análise. Se ele sustentou-se o suficiente e fez com que as pessoas fossem persuadidas, são questões importantes a serem levantadas pela análise argumentativa.

A descrição das falas do entrevistado é uma primeira interpretação, que faz o entrevistador. Num segundo passo, a Análise dessa descrição é uma reinterpretação, indicando que "os métodos da análise discursiva procedem através da análise, eles quebram, dividem, desconstroem, procuram desvelar os padrões e efeitos que constituem e que operam dentro de uma forma simbólica ou discursiva. A interpretação constrói sobre esta análise, como também sobre os resultados da análise sócio-histórica. Mas a interpretação implica um movimento novo de pensamento, ela procede por síntese, por construção criativa de possíveis significados. (...) por mais rigorosos e sistemáticos que os métodos da análise formal ou discursiva possam ser, eles não podem abolir a necessidade de uma construção criativa do significado, isto é, de uma explicação interpretativa do que está representado ou do que é dito. (...) localizado dentro do referencial da hermenêutica de profundidade, o processo de interpretação pode ser mediado pelos métodos da análise sócio-histórica, como também pelos métodos da análise formal ou discursiva".1:375

Concluídas as entrevistas, pode-se proceder a análise dos dados, apresentando as descrições das falas. Selecionam-se algumas categorias, consideradas relevantes para reinterpretar.

Realiza-se a análise, utilizando aspectos da Hermenêutica, não somente como interpretação do sentido, mas também procurando sua desconstrução, esta, por via da Psicanálise. A Hermenêutica tem como meta a procura do sentido, por outro lado, a Psicanálise procura sua desconstrução. Esses dois eixos teóricos, embora opostos, dão fundamentos para as interpretações que se pretende. Para desconstruir um sentido é preciso, antes, procurá-lo.

Esse caráter de oposição, ao modo de um oxímoro, pode ser entendido da seguinte forma: se por um lado a Hermenêutica anda na direção da busca de sentidos, exemplificados desde seu início, referentes às obras de Homero, passando pela exegese bíblica até a hermenêutica jurídica, por outro lado, a Psicanálise funda-se numa postura não essencialista. Ou seja, os sentidos que porventura sejam encontrados em seu percurso são tomados como atribuídos pelo sujeito em questão e não como essências próprias dos objetos. Assim, a Psicanálise considera que os atributos são atribuídos, não estão originalmente no objeto.

Essa aproximação entre a Hermenêutica e a Psicanálise, ainda que contenha algo paradoxal ou antitético, é procurada como instrumento para aprofundar a análise das falas. É tentar se apropriar do que foi encontrado sem ter sido procurado, ou seja, não se trata do encontro com o que é previamente procurado, pois senão, seria o encontro com o pré-conceituado. Tem base na célebre frase tomada por Lacan, de Picasso, "eu não procuro, acho".17:149

As respostas, além disso, servem de base para a construção e realização de outras perguntas. Sua função é mais abrir possibilidade de que o entrevistado expresse o que pensa sobre o tema, do que uma resposta pontual. Essa forma de entrevista segue o princípio fundamental da Psicanálise, a partir do qual, as entrevistas necessariamente são não direcionais. Essa ausência de foco é útil para a pesquisa, na medida em que permite que o direcionamento do tema seja dado pelas vivências e experiências dos entrevistados mais do que pela vontade do entrevistador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Hermenêutica, com a ajuda da Psicanálise, tem permitido uma forma mais clara da compreensão de resultados de entrevistas que até hoje foram tratados, muito especialmente com base na abordagem quantitativa. Resultados estes que trazem, além da questão numérica numa direção, variantes, ainda que individuais, permitindo uma abrangência de espectro bem maior. Estes pontos que não podem ser analisados em questionários, nem em entrevistas fechadas, por vezes alertam sobre questões importantes que não tenham sido consideradas nos projetos dos pesquisadores.

Embora seja importante a questão quantitativa, essa conjunção e disjunção da Hermenêutica com a Psicanálise pode preencher essa lacuna, tanto do entendimento quanto da precisão de questões qualitativas, em geral, conseguidas através de entrevistas, mas que são próprias de qualquer texto.

A utilização de entrevista em pesquisa, sob essa perspectiva, permite a interpretação do material proferido pelos entrevistados, seja na direção de uma convergência para um mesmo significado, seja na direção oposta, diferentemente do que na utilização de um questionário ou outro instrumento de registro escrito. No caso da pesquisa na qual foi utilizada a entrevista, esse procedimento permitiu que muitos termos usados nas respostas fossem entendidos como designando os mesmos sentidos, o que modificou em muito o resultado da pesquisa. Também é fácil concluirmos pela possibilidade de acontecer o contrário, na medida em que, muitas vezes, o mesmo termo usado em situações diferentes conota significados muito distintos ou até opostos.

O que confirmou o resultado da segunda pesquisa citada neste artigo foi a utilização da interpretação por via da Hermenêutica e da Psicanálise e a própria entrevista moldada nestes termos. Um instrumento em que os dados fossem obtidos somente a partir do registro escrito, não permitiria os mesmos resultados.

A entrevista, na obtenção de dados de uma pesquisa, mostrou-se fundamental para mostrar uma situação distorcida, que dava uma ideia diferente do que acontecia. Inicialmente o entrevistador tinha uma ideia de que os entrevistados não diferenciavam alguns conceitos do tema objeto da pesquisa. Contudo, pela análise das entrevistas, essa ideia mudou, dado que essa aparência somente devia-se aos efeitos da coloquialidade da fala cotidiana. A situação permitida pela entrevista pôde buscar essa coloquialidade para interpretá-la e concluir que os termos utilizados embora aparentemente diferentes, convergiam no sentido.

Por fim, os resultados obtidos através de entrevista com a aplicação prática da Hermenêutica e da Psicanálise foram diferentes do que inicialmente se pensava encontrar, e atingiram patamares que se situam além do previamente esperado. A interpretação minuciosa de que cada dado, desde o proferimento objetivo, subjetivo, interdito, ou não dito caracterizou a riqueza da pesquisa e os seus resultados.

Recebido: 22 de Dezembro de 2010

Aprovação: 4 de Outubro de 2011

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  • Correspondência:

    Carlos Augusto Monguilhott Remor
    Rua Presidente Coutinho, 212, ap. 101
    88015-230 – Centro, Florianópolis, SC, Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      22 Dez 2010
    • Aceito
      04 Out 2011
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