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Enfermeiras diplomadas para a aeronáutica: a organização de um quadro militar para a Segunda Guerra Mundial

Enfermeras diplomadas para la aeronáutica: la organización de un cuadro militar para la Segunda Guerra Mundial

Resumos

Estudo histórico-social, cujos objetivos foram: descrever as circunstâncias que ensejaram o estabelecimento de relações entre a Escola Anna Nery e a Força Aérea Brasileira, durante a Segunda Guerra Mundial, e analisar o processo de organização do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica, que foi formado com alunas egressas desta Escola para atuar junto ao 1º Grupo de Caça da Força Aérea Brasileira, no Teatro de Operações Italiano. As fontes históricas constaram de documentos escritos e fotográficos. Para a análise e interpretação dos dados, foram considerados os conceitos da Teoria do Mundo Social de Pierre Bourdieu. Os resultados evidenciaram a participação ativa desta Escola no processo de incorporação oficial de enfermeiras na Força Aérea durante a guerra, o que viabilizou a conquista de um espaço inédito para a prática profissional em um momento histórico de extrema dramaticidade, quando se evidenciou a atuação honrosa e requerida de enfermeiras em cenários militarizados.

Enfermagem; História da enfermagem; Enfermagem militar; II Guerra Mundial


Estudio histórico-social, cuyos objetivos son: describir las circunstancias del establecimiento de las relaciones entre la Escuela Anna Nery y la Fuerza Aérea Brasileña, durante la Segunda Guerra Mundial, y analizar el proceso de organización del Cuadro de las Enfermeras de la Reserva de la Aeronáutica, que se formó con las estudiantes graduadas de esta escuela para trabajar con el Grupo del Caza de la Fuerza Aérea Brasileña, en el Teatro de Operaciones Italiano. Las fuentes históricas consistieron en documentos escritos y fotográficos. Para el análisis y la interpretación de los datos, fueron considerados los conceptos de la Teoría del Mundo Social de Pierre Bourdieu. Los resultados mostraron la participación activa de esta Escuela en el proceso de incorporación oficial de enfermeras en la Fuerza Aérea durante la Guerra, que permitió la conquista de un espacio único para la práctica profesional en un momento histórico, de extremo drama; cuando se evidenciaron las acciones honorables y necesarias de las enfermeras en escenarios militarizados.

Enfermería; Historia de la enfermería; Enfermería Militar; Segunda Guerra Mundial


The objectives of this historical and social study were: to describe the circumstances of the case that prompted the establishment of relations between Anna Nery School and the Brazilian Air Force, during World War II, and analyze the organization process of the Nurses Group of the Air Force Reserves, which consisted of alumni from this School, to work with the Brazilian Air Force's 1st Hunting Group on the Italian front. The historical sources consisted of written and photographic documents. For the analysis and interpretation of the data, the concepts of Pierre Bourdieu's Social World Theory were considered. The results showed the active participation of this School in the official incorporation process of nurses in the Air Force during the war, which permitted the conquest of a unique space for professional practice at a historic moment of extreme drama, when the honorable and necessary actions of nurses were observed in military scenarios.

Nursing; History of nursing; Military nursing; World War II.


ARTIGO ORIGINAL

Enfermeiras diplomadas para a aeronáutica: a organização de um quadro militar para a Segunda Guerra Mundial1 1 Artigo derivado da tese - Enfermeiras da Força Expedicionária Brasileira no front do pós-guerra: o processo de reinclusão no Serviço Militar Ativo do Exército (1945-1957), apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em dezembro de 2010

Enfermeras diplomadas para la aeronáutica: la organización de un cuadro militar para la Segunda Guerra Mundial

Alexandre Barbosa de OliveiraI; Mariane Bonfante CesarioII; Tânia Cristina Franco SantosIII; Ana Paula Carvalho OrichioIV; Marcleyde Silva de Azevedo AbreuV

IDoutor em Enfermagem. Professor Adjunto do Departamento de Enfermagem Fundamental (DEF) EEAN/UFRJ. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: alexbaroli@yahoo.com.br

IIMestranda do Programa de Pós-Graduação da EEAN/UFRJ. Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: marianecesariotr@hotmail.com

IIIDoutora em Enfermagem. Professora Associado do DEF/EEAN/UFRJ. Pesquisadora do CNPq. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: taniacristinafsc@terra.com.br

IVDoutoranda do Programa de Pós-Graduação da EEAN/UFRJ. Oficial do Corpo de Saúde da Marinha do Brasil. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: anaorichio@gmail.com

VMestre em Enfermagem. Oficial do Corpo de Saúde da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: marcleydeazevedo@yahoo.com.br

Correspondência Correspondência: Alexandre Barbosa de Oliveira Rua Afonso Cavalcanti, 275 - Cidade Nova 20211-110, Rio de Janeiro, RJ, Brasil E-mail: alexbaroli@yahoo.com.br

RESUMO

Estudo histórico-social, cujos objetivos foram: descrever as circunstâncias que ensejaram o estabelecimento de relações entre a Escola Anna Nery e a Força Aérea Brasileira, durante a Segunda Guerra Mundial, e analisar o processo de organização do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica, que foi formado com alunas egressas desta Escola para atuar junto ao 1º Grupo de Caça da Força Aérea Brasileira, no Teatro de Operações Italiano. As fontes históricas constaram de documentos escritos e fotográficos. Para a análise e interpretação dos dados, foram considerados os conceitos da Teoria do Mundo Social de Pierre Bourdieu. Os resultados evidenciaram a participação ativa desta Escola no processo de incorporação oficial de enfermeiras na Força Aérea durante a guerra, o que viabilizou a conquista de um espaço inédito para a prática profissional em um momento histórico de extrema dramaticidade, quando se evidenciou a atuação honrosa e requerida de enfermeiras em cenários militarizados.

Descritores: Enfermagem. História da enfermagem. Enfermagem militar. II Guerra Mundial.

RESUMEN

Estudio histórico-social, cuyos objetivos son: describir las circunstancias del establecimiento de las relaciones entre la Escuela Anna Nery y la Fuerza Aérea Brasileña, durante la Segunda Guerra Mundial, y analizar el proceso de organización del Cuadro de las Enfermeras de la Reserva de la Aeronáutica, que se formó con las estudiantes graduadas de esta escuela para trabajar con el Grupo del Caza de la Fuerza Aérea Brasileña, en el Teatro de Operaciones Italiano. Las fuentes históricas consistieron en documentos escritos y fotográficos. Para el análisis y la interpretación de los datos, fueron considerados los conceptos de la Teoría del Mundo Social de Pierre Bourdieu. Los resultados mostraron la participación activa de esta Escuela en el proceso de incorporación oficial de enfermeras en la Fuerza Aérea durante la Guerra, que permitió la conquista de un espacio único para la práctica profesional en un momento histórico, de extremo drama; cuando se evidenciaron las acciones honorables y necesarias de las enfermeras en escenarios militarizados.

Descriptores: Enfermería. Historia de la enfermería. Enfermería Militar. Segunda Guerra Mundial.

INTRODUÇÃO

O presente estudo trata da contribuição da Escola Anna Nery (EAN) ao Serviço de Saúde da Força Aérea Brasileira (FAB), que culminou com a organização do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica. Formado por seis alunas egressas da EAN, este Quadro atuou junto ao 1º Grupo de Caça da da FAB durante a Segunda Guerra Mundial, no Teatro de Operações Italiano* * Nas guerras, os teatros de operações são vastas áreas físicas que, em geral, concentram as forças militares, as fortificações e as trinheiras, e onde se travam as principais batalhas. .

O Estado Novo de Getúlio Vargas e a Segunda Guerra fazem parte do contexto político-social que serviu de pano de fundo desse processo, quando se fez favorável a possibilidade de participação ativa de mulheres enfermeiras em cenários militarizados. Com efeito, a guerra difundida pela imprensa estadonovista trouxe em seu bojo uma dramaticidade tamanha, que fez com que inúmeras enfermeiras se colocassem à disposição da Pátria.1

Neste ínterim, a EAN procurou legitimar sua participação ao ter se envolvido com a organização do primeiro quadro feminino de oficiais enfermeiras da Aeronáutica. Assim, ao tempo que esta Escola atendia aos apelos de guerra, também buscava reunir lucros simbólicos para a construção de um modelo de enfermeira altruísta, mas também emancipada.1

Nessa vertente, foram traçados os seguintes objetivos: descrever as circunstâncias que ensejaram o estabelecimento de relações entre a Escola Anna Nery (EAN) e a Força Aérea Brasileira (FAB), durante a Segunda Guerra Mundial; e analisar o processo de organização do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica, que foi formado com alunas egressas desta Escola para atuar junto ao 1º Grupo de Caça da FAB, no Teatro de Operações Italiano.

Dentre os estudos de História da Enfermagem Brasileira sobre a organização de corpos militarizados de enfermagem durante a Segunda Guerra, onde geralmente destacou-se as enfermeiras que foram incorporadas ao exército através da Força Expedicionária Brasileira, este caracteriza-se em particularizar o caso das enfermeiras aeronautas do 1º Grupo de Caça, que tiveram uma atuação diferenciada em relação às do exército, especialmente pelos critérios de seleção, treinamento e atuação no front. Outrossim, sua relevância é evidenciada por trazer para o tempo presente alguns recortes de uma história marcada por estratégias que visaram à distinção positiva da prática de enfermagem, inclusive em situações de caos, o que acabou por dar uma nota prévia sobre a (re)organização dos quadros femininos nas Forças Armadas do país, a partir da década de 1980.

ABORDAGENS METODOLÓGICA E TEÓRICA

Trata-se de um estudo histórico-social, de natureza qualitativa e documental, cujas fontes primárias constaram de documentos escritos localizados no Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna Nery, nas séries "A Missão: 1922-1931", "As Pioneiras (Lays Netto dos Reys)", "Socorristas Voluntárias de Guerra (1942-1945)" e "Curso de Graduação". Nesta última série, foram encontrados dados sobre as enfermeiras que participaram do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica, enquanto fizeram parte do corpo discente da EAN. As duas fotografias aqui utilizadas foram encontradas no Acervo Iconográfico do centro de documentação referido e no Acervo da Força Expedicionária Brasileira (Palácio Duque de Caxias, Rio de Janeiro). Também foram aproveitados documentos oficiais, resumos biográficos, livros raros, elogios publicados em boletins militares, estes, pertencentes ao acervo do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (Rio de Janeiro). No que diz respeito às fontes secundárias, o estudo valeu-se de referências que possuíssem nexos estreitos com a temática.

O tratamento das fontes históricas selecionadas se deu através de análise documental e de conteúdo, contextualização e triangulação, sendo as mesmas submetidas à crítica interna e externa.2 Em seguida, procedeu-se a organização e classificação dos achados da pesquisa. Serviram de suporte teórico para a versão histórica aqui apresentada os conceitos da Teoria do Mundo Social de Pierre Bourdieu, o qual compreende que os agentes estão imersos espacialmente em determinados campos sociais, e que a posse de grandezas de certos capitais e o habitus de cada agente condiciona seu posicionamento espacial e, na luta social, identifica-se com sua classe social.

No que diz respeito aos aspectos ético-legais, o projeto de doutorado que originou este estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery e Hospital Escola São Francisco de Assis em 27 de agosto de 2008 (Protocolo n. 068).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Relações entre a Escola Anna Nery e a Força Aérea Brasileira durante a Segunda Guerra Mundial

Após um golpe de Estado em 1937, o Brasil passou a viver um período ditatorial liderado por Getúlio Dornelles Vargas. Através do regime conhecido como Estado Novo (1937-1945), Getúlio dominou os poderes Legislativo e Judiciário do país através do fechamento do Congresso Nacional e de todas as câmaras legislativas municipais e estaduais. A nova constituição imposta por este modelo baseava-se no autoritarismo, censura, repressão e centralização total do poder.3

Nesta época, consolidou-se a importante aliança entre o governo e suas forças armadas. Com efeito, as características e o modus operandi das instituições militares regalaram possibilidades de manutenção da ordem e da união pretendidas por Vargas, o que fez das forças armadas a base de sustentação do Estado Novo.4

Enquanto isso, eclodia a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) na Europa que, inicialmente, tratou-se de um conflito de média intensidade. Liderados por Adolf Hitler, os germânicos acreditavam na reconstrução do Império Alemão e na superioridade da raça Ariana. Ao terem se aliado à Itália, invadiram a França e a Inglaterra, as quais uniram forças com o objetivo de lutar contra seus invasores. Alemanha e Itália ganham um novo inimigo ao romperem o pacto de neutralidade mútua feito com a União Soviética, que posteriormente foi invadida. Após este ataque, o Japão uniu-se aos dois países nazifascistas e atacou os Estados Unidos, o que tornou o conflito mundial, após três anos do seu início, em 1939. Assim, foi formado o Eixo, constituído por Alemanha, Itália e Japão.5

Paralelamente à formação do Eixo, Estados Unidos, Inglaterra e União Soviética integraram o bloco dos Aliados. Mais tarde, China e França também aderiram ao bloco formando os cinco grandes. Justificou-se a formação do bloco dos Aliados não por desejo de seus estadistas, mas pela falta de opção que Hitler proporcionara a estes países, não restando nenhuma outra para apaziguar a situação de guerra.5

O Brasil manteve-se, enquanto pôde, neutro durante os primeiros anos de conflito. Não obstante, a região Nordeste do país era estratégica tanto para os Aliados quanto para o Eixo, e isso levou esses dois blocos a insistirem em uma tomada de decisão por parte do governo brasileiro.3 Paulatinamente pressionado por questões políticas que tendiam para a consolidação do Pan-Americanismo, o Brasil passou a integrar o bloco dos países Aliados. Em contrapartida, esta aliança rendeu ao país alguns acordos com os Estados Unidos, entre eles o de fornecimento de material e treinamento militar às Forças Armadas, quando passou-se a vislumbrar a participação de tropas brasileiras diretamente no conflito.4

Nesse contexto ardiloso e tenso é que foi criado o Ministério da Aeronáutica, em 20 de janeiro de 1941, cuja liderança ficou a cargo do civil Joaquim Pedro Salgado Filho. Antes disso, a aviação brasileira estava atrelada ao Exército, à Marinha e ao Departamento de Aeronáutica Civil. Porém, em virtude da guerra, houve o propósito de se contar com um ministério independente apenas para a aviação militar.6

Após a sua formação, o Ministério da Aeronáutica procurou estabelecer uma aproximação com a Escola Anna Nery, provavelmente por sua reconhecida adesão aos apelos patrióticos, quando, por exemplo, colocou-se do lado do governo durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Há algum tempo e notadamente no período da Segunda Guerra, um forte sentimento de patriotismo era imputado às alunas e funcionárias desta Escola. Com efeito, tal característica serviria de bom argumento para que houvesse uma efetiva ligação entre essas duas instituições, pois o amor à pátria conjugado com o sentimento de abnegação e de prontidão em momentos de caos eram discursos reproduzidos com alguma constância pelas lideranças da Escola, e que ganharam intensidade nos anos do conflito.7

Exemplo disto foi o tipo de participação que a EAN teve no preparo de moças da sociedade carioca para o esforço de guerra, quando ofereceu diversos cursos de extensão de enfermagem de guerra entre os anos 1940 e 1943. Neste período, foram ministrados cursos de duração variável, de dois a dez meses, com oito denominações diferentes, a saber: Voluntárias Socorristas, Voluntárias de Socorro de Guerra, Socorro de Guerra do Instituto Social, Voluntária Socorrista Hospitalar, Voluntária Samaritana Hospitalar, Socorros de Guerra, Samaritana Socorrista da Associação das Senhoras Brasileiras e Voluntárias Socorristas do Serviço de Recenseamento. Outrossim, o próprio nome da Escola reiterava sua vocação para as situações de guerra, quando rememora a figura heróica de uma mulher que atuou como voluntária nos hospitais de campanha durante a Guerra do Paraguai (1864-1870), sendo mais tarde cognominada "a mãe dos brasileiros".

Essas demonstrações de afinidades entre a enfermagem e o universo militar eram estratégicas para ambos os lados. No caso da enfermagem, a adesão ao apelo patriótico e a formação de contingentes de mulheres para atuarem em situações de guerra davam visibilidade à profissão, mediante a divulgação de sua importância humanitária e social. Nesse sentido, fez-se explícita a incorporação de representações objetivas das estruturas militares, como o sentido de prontidão, de alerta, de marcha e de abnegação. Não por acaso constata-se, em diversos registros fotográficos de rituais realizados na EAN, a presença habitual e destacada de oficiais de alta patente. Do lado militar, tais aproximações poderiam garantir a intensificação do preparo de enfermeiras profissionais e voluntárias que, pela contingência de guerra, serviriam aos interesses da Nação, o que foi concretamente fortalecido quando o Brasil colocou-se em definitivo do lado dos países Aliados.

A título de exemplificação, um dos primeiros e significativos indícios de tentativas de se estabelecer vínculos entre a recém criada Força Aérea e a EAN foi o batismo de um avião-ambulância como o nome "Anna Nery". Este avião foi doado por empresários à Aeronáutica, para os seus exercícios militares. A fotografia estampa esta ocasião:

Figura 1


A cerimônia do batismo do avião Anna Nery aconteceu em 26 de maio de 1943 no aeroporto Santos Dumont (Rio de Janeiro), onde compareceram Laís Netto dos Reys, diretora da EAN à época (ao centro), junto a uma comitiva de professoras e suas alunas. Ao que se depreende do texto fotográfico, a presença da enfermeira naquele evento de caráter militar tendia a valorizar a sua importância em momentos de crise, mas também a reforçar a tese de inserção da mulher no mercado de trabalho e de sua emancipação.8

Com base no prestígio e visibilidade (capital simbólico) que gozava a EAN até então, garantido pela prescrição do Decreto n. 20.109/1931 que a definia como a Escola Oficial Padrão para efeito de equiparação das outras escolas de enfermagem do país, o ministro da Aeronáutica encaminhou um ofício com caráter de urgência em dezembro de 1943 à diretora Laís Netto dos Reys, no qual solicitava a participação da Escola no Serviço Militar da FAB.

Tal proposta se daria através da atuação do corpo docente, que acompanharia o estágio das alunas no recém inaugurado Hospital Central da Aeronáutica (HCA). Antes, este hospital era uma casa de saúde destinada à colônia alemã do Rio de Janeiro, que ficava no bairro Tijuca, quando foi administrado por Irmãs Diaconisas de Kaiserswerth.7-9

No processo de transformação de casa de saúde em hospital militar, procedeu-se a substituição de todo o pessoal técnico especializado, quando foram incorporados médicos procedentes da Aviação Militar e realizado o primeiro concurso para oficiais médicos da nova Força. Em seguida, o diretor, major médico Edgard Barroso Tostes, com o apoio do ministro Salgado Filho, recorreu à EAN, a fim de recrutar enfermeiras diplomadas para auxiliarem na missão de fazer daquele nosocômio um hospital modelo.9

Esta iniciativa da parte do Ministério da Aeronáutica, de aproximação com as professoras e alunas da Escola, serviu para sanar parte das carências de pessoal qualificado para exercer o serviço de enfermagem do HCA, temporariamente. Além disso, também serviu para se averiguar se realmente elas seriam enfermeiras de bom padrão para, provavelmente, em futuro recente, estarem empenhadas em outras ações junto à Força, inclusive nas de guerra.

Dessa maneira, um mês depois do ofício recebido pela Escola, e após autorização do ministro da Educação e Saúde Pública e da concordância do reitor da Universidade do Brasil, Laís Netto dos Reys enviou ao Chefe do Serviço de Saúde da Aeronáutica algumas considerações, que foram definidas por ela como essenciais para a efetivação do intercâmbio entre as duas instituições.

No corpo do texto, a Diretora expôs a honra da Escola em receber o convite para atuar no Serviço, e procurou reiterar que o ideal de servir era uma missão fundamental da profissão em momentos de crise. Ela também propôs que gostaria de possuir total autonomia dentro do HCA, para que pudesse administrar todo o Serviço de Enfermagem, podendo modificar as equipes de enfermagem quando fosse necessário. Para tal, poderia admitir, transferir, suspender ou despedir qualquer membro do corpo de enfermagem, não somente as alunas e enfermeiras egressas da Escola, como também as enfermeiras pertencentes ao próprio Quadro da Aeronáutica. A Diretora propôs, ainda, que fossem conferidos às enfermeiras e alunas da EAN o mesmo tratamento e consideração atribuídos aos oficiais e cadetes da Aeronáutica, na tentativa de harmonizar suas posições dentro da hierarquia militar.

Laís Netto dos Reys enviou também um ofício ao diretor do Hospital Miguel Couto, onde as alunas estagiavam nos setores de cirurgia e medicina há cerca de dois anos. No documento, ela explicitou como seria feita a transferência das alunas que realizavam estágio naquele nosocômio para o HCA. Além disso, procurou esclarecer que o motivo desta transferência era por injunção do momento, por obrigação de patriotismo e que as enfermeiras possuíam a missão de viver para servir, tentando reconsiderar aspectos sobre o ofício da enfermagem, sustentado por um modelo de profissional altruísta e patriótico.

Com a transferência para o HCA, as alunas passaram a ter contato com equipamentos mais modernos, abundância de material e conforto nas instalações, diferentemente do que estavam habituadas nos locais de estágio até então utilizados pela EAN, entre eles o Hospital Escola São Francisco de Assis, principal campo de prática desde a criação desta Escola.7

Esses são alguns recortes que evidenciam o estreitamento de relações entre a EAN e a FAB, e que favoreceriam, meses mais tarde, a criação de um quadro de enfermeiras militares, no âmbito da Aeronáutica, formado somente com alunas egressas da Escola.

A contribuição da Escola Anna Nery no processo de organização do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica

Após o Brasil ter declarado abertamente guerra contra o Eixo, tropas da Marinha, Exército e Aeronáutica passaram a ser mobilizadas, o que tornou efetiva a participação do país na Segunda Guerra Mundial. Assim, a FAB criou o 1º Grupo de Caça a 18 de dezembro de 1943, que atuaria juntamente com os Estados Unidos no Teatro de Operações Italiano. Para organizar o seu quadro efetivo, optou-se pelo critério de voluntariado. Em seguida, os pilotos seriam submetidos a um treinamento inicial nos Estados Unidos e Panamá e, depois, partiriam para o front.6

Praticamente ao mesmo tempo, encetaram-se providências que visaram à organização do Serviço de Saúde deste grupo, que contaria com a participação de médicos e enfermeiras. Desse modo, o Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica foi criado através do Decreto n. 6.663, em 7 de julho de 1944. Na ocasião, o ministro Salgado Filho passou a baixar algumas instruções para o recrutamento de enfermeiras para o quadro. As condições pontuadas foram: ser brasileira nata; ter 20 a 45 anos de idade; apresentar diploma de enfermeira devidamente registrado, expedido pela Escola Oficial Padrão do Brasil ou por Escola de Enfermagem reconhecida oficialmente ou a ela equiparada; apresentar histórico escolar julgado em condições; atestado de capacidade passado pela direção da escola em que fez sua formação profissional; e atestado assinado por dois oficiais das Forças Armadas do país de possuir as condições de honorabilidade indispensáveis ao exercício do ofício.

Para o que previam as instruções, definiu-se a EAN como a referência na questão de formação profissional das candidatas. Aliás, há que se considerar que desde a sua criação em 1922, esta Escola buscava reiterar a necessidade de se fazer ver e de se dar a reconhecer como uma instituição que primava pela rigidez na seleção de suas alunas. Àquela época, convocava moças não apenas possuidoras de capacidade intelectual, mas que fossem de "boa família", com vocação para o serviço e com experiências de trabalho anteriores. Além disso, era necessário que a candidata estivesse dentro da faixa etária de 20 a 35 anos. Nas primeiras fichas de admissão à Escola, havia inclusive um espaço para que as candidatas descrevessem suas motivações, argumentos e méritos pessoais para serem aceitas. Chama a atenção que, neste texto, eram avaliadas, além do conteúdo e observância da correta ortografia e letra legível, a vocação patriótica das candidatas.10

É possível identificar semelhanças entre os critérios de seleção do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica, em 1944, com os da EAN, em 1923, ano do ingresso da primeira turma. Percebe-se que a idade mínima de 20 anos era um requisito necessário para ingressar tanto numa quanto noutra instituição. Os antecedentes familiares também se mostraram um item comum e bem considerado por ambas. E também, a candidata à aluna da EAN apenas seria efetivada com permissão de sua família, e, na FAB, era preciso apresentar um documento com a autorização do marido, quando a candidata fosse casada.10-11

Esses dados sobre os afinados critérios de admissão nos remetem à idéia de que este foi um dos motivos pelos quais a FAB elegeu a EAN para organizar o seu Quadro de Enfermeiras, pois, além da EAN ser a Escola Oficial Padrão, suas enfermeiras seriam aquelas com o perfil mais apropriado e desejado pela Aeronáutica, a princípio. É válido ressaltar ainda que a EAN seguia o modelo de enfermagem anglo-americano, e que, por um bom tempo (1923-1938), a Escola foi dirigida por diretoras norte-americanas, as quais defendiam a incorporação de um modelo profissional respaldado na observância da disciplina e hierarquia e em ideais de cunho patriótico, características também perseguidas no campo militar.10 Por isso, a verificação dessas afinidades remete à idéia da influência das instituições militares na administração de enfermagem e, sobre este aspecto, reiteram-se as impressões sobre o habitus paramilitar incorporado pelas professoras e alunas da própria EAN ao longo de sua história.

Antes mesmo das aproximações com a FAB, o Exército já tentara negociar a participação da EAN na organização do seu Quadro de Enfermeiras, que acompanharia a Força Expedicionária Brasileira (FEB), o qual foi criado há cerca de sete meses antes do Quadro da Aeronáutica. Entretanto, Laís Netto dos Reys optou por não atender a solicitação do exército, em virtude da indefinição do posto militar e do pequeno soldo oferecido pela FEB, que julgou insatisfatório.12 Esta situação é explicitada por uma das enfermeiras que acompanharam o exército: "fiquei sabendo que a diretoria da Escola Anna Nery foi procurada pelo exército para formar o quadro de enfermagem (da FEB). Não houve acordo, porque a diretoria queria que as enfermeiras fossem como oficiais, o que não foi aceito pelo Ministério da Guerra".13:78

Pela alegação apresentada, fica algo evidente a forma suspeitosa que o Exército assumiu ao não adequar convenientemente a incorporação de enfermeiras em seus quadros, situação que provavelmente tenha sido condicionada pelos limites e possibilidades nas relações entre os homens e as mulheres à época, no campo social e mesmo no militar. Infelizmente, toda essa situação resultou em um desajeitado remendo, onde as primeiras intenções não foram suficientes para mascarar a fragilidade do grupamento feminino de enfermagem do Exército, que seria apressadamente criado e organizado, debilmente treinado, e reservadamente reconhecido.

Mesmo assim, das 67 voluntárias que foram selecionadas pelo Exército, seis eram diplomadas/profissionais: três pela Escola Anna Nery [Altamira Pereira Valadares, Nair Paulo de Melo e Olga Mendes], uma [Antonieta Ferreira] pela Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha (Rio de Janeiro), uma [Ondina Miranda de Souza] era formada pela Escola Alfredo Pinto, e mais uma [Maria Apparecida França] pela Escola de Enfermagem de São Paulo. Com o Curso de Samaritanas, o Exército aproveitou 16, sendo a grande maioria (42) composta por voluntárias socorristas, cuja formação se dera em torno apenas de três meses. De três restantes, não foi possível a identificação de sua formação.14

A despeito das dificuldades havidas com o Exército, encaminhamentos mais satisfatórios foram tomados nas negociações para a convocação de enfermeiras da EAN pela FAB que, a exemplo das enfermeiras do Exército, também atuariam no Teatro de Operações Italiano, mas de modo supostamente mais destacado, bem em função do tipo de preparo prévio que teriam antes do embarque e pelo capital profissional já anteriormente acumulado.

Sobre a heterogeneidade do capital profissional e sobre o desentendimento da diretora da EAN com o Exército relacionado à questão do posto, está o trecho a seguir de uma das três enfermeiras diplomadas pela EAN, que seguiram com esta Força para a guerra: "[...] Isso foi ruim para a imagem das enfermeiras brasileiras. Algumas das escolhidas tinham pouca ou nenhuma formação [...]. Depois do que aconteceu conosco, a FAB resolveu recrutar todas as seis enfermeiras entre as diplomadas da Anna Nery. Algumas delas, inclusive, foram minhas alunas (na EAN). Eu teria gostado de ir com a FAB, mas quando me apresentei não havia ainda sido organizado o 1º Grupo de Caça".13:80-81

Antes mesmo da criação oficial do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica, Laís Netto dos Reys enviou um ofício em junho de 1944 ao ministro da Aeronáutica, onde destacou a honra de ter sido incumbida para organizar o referido Quadro. No ofício, ela relacionou o nome de oito enfermeiras por ela selecionadas, todas formadas pela EAN. O texto ressaltava que estas haviam demonstrado grande sentimento patriótico, e estavam em prontidão para compor o Quadro de Enfermeiras do 1º Grupo de Caça. Os nomes listados foram: Antonina Hollanda Martins, Francisca Sampaio Santos, Izaura Barbosa Lima, Judith Arêas, Maria Diva Campos, Ocimara Moura Ribeiro, Odete dos Reis Moreira e Regina Cerdeira Bordallo. Apesar da inclusão do nome de oito, duas não chegaram a seguir para o Teatro de Operações, as enfermeiras Francisca e Odete, por motivos ainda desconhecidos.

Neste mesmo documento, foram expostos dez motivos para que fossem concedidas às enfermeiras as prerrogativas, regalias, vantagens e honras oficiais, assim como era garantido às enfermeiras norte-americanas militares. Os principais argumentos utilizados pela Diretora foram a ênfase na formação das enfermeiras brasileiras que, segundo ela, era semelhante à das norte-americanas, muito em função da influência das primeiras diretoras da EAN que eram procedentes dos Estados Unidos; logo, tanto as enfermeiras brasileiras quanto as norte-americanas possuíam a mesma capacidade intelectual e habilidade técnica. Ela também endossou que o Brasil deveria seguir o exemplo dos Estados Unidos mais uma vez, concedendo às enfermeiras aeronautas o posto militar, pois, fazendo assim, nosso país também daria o exemplo para os outros países e, concomitantemente, favoreceria a profissão de enfermagem em escala mundial.

Pelo exposto através deste documento, fica clara a utilização de estratégias por parte da diretora da EAN para o atendimento dos interesses que visavam não somente certas regalias para o grupo de enfermeiras que seguiria para a guerra, mas também para a observância de preceitos que sustentassem o desenvolvimento e reconhecimento público da profissão naquele contexto.

Este tipo de reação encontra alguma explicação ao se observar a forma pretendida de institucionalização da profissão de enfermagem no Brasil na década de 1920, que se preocupava em termos de inserção e aprovação social em resposta ao desprestígio histórico com o qual a sua prática foi atrelada. Até então, o saber da enfermagem no país era visto como um saber manual desprovido de qualquer embasamento científico, intelectual ou político, enquanto outras profissões da área eram caracterizadas como saber intelectual e científico, sendo este pensamento e esta postura de extrema importância no atraso do desenvolvimento político e social da enfermagem.15

Com efeito, pela influência do capital social e simbólico acumulado por Laís Netto dos Reys, as aeronautas foram nomeadas pelo ministro da Aeronáutica como enfermeiras de 2ª Classe e incorporadas às fileiras da Força Aérea no posto de 2º tenente, o que as colocou em uma situação de igualdade de condições em relação aos homólogos masculinos. Tal fato não se deu, inicialmente, com o grupamento que seguiu com o Exército para a guerra, que foi nomeado como de 3ª classe, ou seja, sem direito a posto de oficial e ao gozo dos direitos e regalias inerentes a esta condição.12-14

Por certo, as providências relacionadas ao tratamento diferenciado das enfermeiras da Aeronáutica se deram em função da valorização de seus diplomas (capital cultural institucionalizado, nos termos de Bourdieu16) que, além de assegurar formalmente o aprimoramento de uma competência específica, também determinou a ocupação de posições prestigiosas no cenário militar, uma vez que as diferenças oficiais produzidas pelos títulos escolares tendem a produzir ou fortalecer, nos indivíduos, a crença na naturalização dessas diferenças. Destarte, o capital cultural institucionalizado transforma a representação que a pessoa faz de si mesma e os comportamentos que ela acredita ser obrigada a adotar para se ajustar a tal representação, o que também era potencializado pelas práticas culturais naturalmente impostas às alunas da EAN alicerçadas pela chancela do "padrão Anna Nery".16

Antes de embarcarem, as enfermeiras selecionadas passaram por inspeção de saúde e receberam imunizações. Também foram tomadas providências quanto aos seus uniformes e documentos de identificação, e à uma procuração em favor da pessoa responsável pelo recebimento de parte do seu soldo no Brasil. Além disso, a diretora solicitou ao ministro da FAB que se encontrasse com elas, antes do embarque, pois pontuou que as enfermeiras desejavam apresentar seus respeitos e receber o estímulo moral do próprio Ministro.

Já na etapa de treinamento, a FAB valeu-se da influência da enfermeira norte-americana Clara Louise Kieninger, primeira diretora da EAN (gestão 1922-1925), a fim de intermediar o treinamento nos Estados Unidos para as seis enfermeiras. Desse modo, elas seguiram para os Estados Unidos em 12 de julho de 1944, por via aérea, junto a quatro oficiais médicos, com destino à base de Mitchell Field, em Long-Island (New York).7,14

Outrossim, quando visitou o Brasil em maio de 1942, foi solicitado à Clara Louise Kieninger que aqui permanecesse, a fim de organizar os cursos de defesa passiva e de voluntárias de guerra na Cruz Vermelha Brasileira.7 Esta situação atesta o reconhecimento da ex-diretora da EAN no que diz respeito ao seu papel na mobilização de mulheres para a guerra à época, o que se coadunava com os propósitos do governo norte-americano em relação à expressiva mobilização de suas enfermeiras durante a Segunda Guerra.17

A próxima fotografia ilustra a participação de Clara Louise Kieninger nesta missão de intermediadora no preparo das enfermeiras brasileiras para a guerra, já nos Estados Unidos:

Figura 2


No espaço fotográfico, da esquerda para a direita, está a enfermeira militar norte-americana Joella Patterson, seguida das enfermeiras Ocimara Ribeiro, Regina Cerdeira Bordallo e Izaura Barbosa Lima (a chefe do grupo de enfermeiras brasileiras). Na sequência, está Lutero Vargas (médico ortopedista, filho do presidente Getúlio Vargas), ao lado de Clara Louise Kieninger e de mais uma enfermeira militar norte-americana e um médico militar brasileiro. Depois, estão: Judith Arêas, Antonina Holanda Martins e Maria Diva Campos, seguidas de mais dois médicos militares brasileiros.

O cenário desta foto é o de uma instituição militar norte-americana. A imagem registra a presença de enfermeiras do 1º Grupo de Caça junto a personagens prestigiosas, uma vez que a composição fotográfica contempla: a presença de uma figura masculina que agregava às suas credenciais de médico da FAB, o capital social e simbólico advindo de sua condição de filho do então presidente da República, Getúlio Vargas, bem como a presença ilustre de Claire Louise Kieninger. Assim sendo, a fotografia, ao tempo em que sacraliza o prestígio das enfermeiras brasileiras pela ocupação de um espaço militar e internacional, também reafirma o poder simbólico daquele grupo que concedeu às enfermeiras tal distinção, uma vez que as proximidades ou as distâncias podem ser utilizadas pelos agentes para se obter certas vantagens.

Durante o treinamento militar, elas contaram com o apoio da capitã americana Joella Patterson como oficial de ligação. Após esta fase, foram transferidas para a base de Suffolk Field no Estado de Virginia, e, em seguida, para o campo de Patrick Henry, de onde seguiram de navio para a Itália, em 19 de setembro de 1944. No Teatro de Operações, elas chegaram em 6 de outubro, onde atuaram efetivamente nos cuidados ao pessoal brasileiro do 1º Grupo de Caça nos hospitais da retaguarda.14

O fato do treinamento militar e técnico dessas seis enfermeiras ter-se realizado nos Estados Unidos facilitou o seu desempenho durante a campanha, pois lá chegaram já conhecendo toda a rotina hospitalar e de trabalho, que se deu inicialmente no 154thStation Hospital. Nesta unidade, situada entre as cidades de Cevitacecchia e Tarquínia, elas ficaram por cerca de dois meses, onde atenderam militares brasileiros e norte-americanos. Em 12 de dezembro de 1944, foram instaladas no 12thGeneral Hospital, em Livorno, onde permaneceram até o dia 19 de junho de 1945, atendendo casos clínicos e cirúrgicos do pessoal do 1º Grupo de Caça, que ficou incorporado ao 350º Grupo dos Estados Unidos, que integrava a Força Aérea Aliada do Mediterrâneo.14

Após o término da guerra, as enfermeiras aeronautas deixaram o front italiano no dia 20 de junho de 1945, por via aérea, com escalas no norte da África, e chegaram ao Brasil em 3 de julho de 1945. Na ocasião, elas foram licenciadas do Serviço Ativo da Aeronáutica no posto de 2º tenente, e excluídas do estado efetivo do 1º Grupo de Caça, por ordem do ministro da Aeronáutica, a exemplo do que também ocorreu com as enfermeiras do Exército.14-18

Enquanto no Brasil praticamente nada foi feito de concreto para aproveitar a experiência de prática de guerra que as enfermeiras do Exército e da Aeronáutica tiveram, nas demais nações aliadas, destacadamente nos Estados Unidos, as tarefas de reconversão material e humana para os tempos de paz já eram estudadas desde o início da guerra.17-18

Nas palavras de Elza Cansanção Medeiros, uma das enfermeiras brasileiras que participaram da guerra através do Exército, "as seis heroínas da FAB não receberam o carinho e as reverências a que faziam jus. Foram muito esquecidas pela própria Força [...]. As atuais oficiais enfermeiras, em sua maioria, nem se dão conta de que, se hoje estão na Força Aérea, devem àquelas precursoras esquecidas [...]. Glória, pois, às oficiais enfermeiras do 1º Grupo de Caça da FAB".19:43

Esses são alguns trechos de uma história que conjugou a prática da enfermagem com os apelos e demandas de um contexto ardiloso de guerra. Situações essas que reiteram a vocação auspiciosa da profissão em atender às necessidades humanas em momentos de caos, como nos emblemáticos casos de Florence Nightingale, durante a Guerra da Criméia, e de Anna Nery, nosso exemplo nacional, durante a Guerra do Paraguai. O diferencial aqui é justamente a primazia de seis mulheres enfermeiras em terem sido incorporadas às fileiras das Forças Armadas do país como oficiais, fato inédito até então, bem como as explicitações do envolvimento de lideranças da enfermagem à época, no sentido de contribuírem para se conferir uma boa posição à profissão no campo militar e, por extensão, uma boa imagem da enfermeira no campo social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a declaração de guerra do Brasil aos países nazifascistas, várias iniciativas de caráter militar passaram a ser tomadas pelo governo, entre elas a da criação do Ministério da Aeronáutica e, mais tarde, a do 1º Grupo de Aviação de Caça, para o qual foi criado um Quadro de Enfermeiras que iria compor o Serviço de Saúde da Aeronáutica na guerra.

Para a organização deste Quadro, o Ministério da Aeronáutica procurou estreitar as suas relações com a EAN, a qual, naquela época, era tida como a Escola Oficial Padrão do país. O status gozado pela Escola à época, os pontos algo comuns sobre os critérios de admissão na FAB e na Escola, e as amistosas e estratégicas relações prévias entre estas instituições foram fundamentais para que todo o processo de organização do Quadro de Enfermeiras da Reserva da Aeronáutica fosse realizado a contento pela EAN.

Neste processo, Laís Netto dos Reys impôs condições que favorecessem a atuação destacada das alunas da Escola naquele cenário militar, quando garantiu às enfermeiras selecionadas o posto de oficial, uma remuneração que fosse condizente com suas responsabilidades, bem como o gozo de honras e regalias inerentes ao posto assumido, tomando o caso norte-americano como exemplo a ser seguido, neste comenos. Assim, a criação deste Quadro oportunizou a primeira inicativa de incorporação oficial de mulheres na Força Aérea do país, que foi organizado por uma Escola de Enfermagem, a qual defendeu uma posição sustentada de defesa dos interesses da profissão à época, mas sem desconsiderar o esforço mobilizatório do Estado Novo, que buscava ressaltar a nobilíssima contribuição das mulheres de abnegação, de devoção e de doação às causas de guerra.

Essa intervenção acabou por render para a EAN, como de certa forma para a própria enfermagem, certos ganhos simbólicos que influenciariam na representação da atuação e da imagem pública de enfermeiras diplomadas, quando reiterou o discurso sobre a função social da profissão e a necessidade de adequado preparo para o seu exercício, a fim de atenderem a contento às demandas dramáticas de guerra.

Recebido: 27 de Fevereiro de 2012

Aprovação: 03 de Dezembro de 2012

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  • Correspondência:
    Alexandre Barbosa de Oliveira
    Rua Afonso Cavalcanti, 275 - Cidade Nova
    20211-110, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
    E-mail:
  • *
    Nas guerras, os teatros de operações são vastas áreas físicas que, em geral, concentram as forças militares, as fortificações e as trinheiras, e onde se travam as principais batalhas.
  • 1
    Artigo derivado da tese - Enfermeiras da Força Expedicionária Brasileira no front do pós-guerra: o processo de reinclusão no Serviço Militar Ativo do Exército (1945-1957), apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em dezembro de 2010
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      27 Fev 2012
    • Aceito
      03 Dez 2012
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