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Colaboração na pesquisa qualitativa em saúde na América Latina: mais uma utopia?

La colaboración en la investigación cualitativa en salud en Ibero América: ¿una utopía más?

EDITORIAL

Colaboração na pesquisa qualitativa em saúde na América Latina: mais uma utopia?

Francisco J. Mercado-Martinez

Mestre em Medicina Social e Doutor em Ciências Sociais. Professor Pesquisador da Universidade de Guadalajara. Também foi professor visitante em várias universidades da América Latina. Seus interesses de pesquisa relacionam-se com as teorias interpretativas críticas sobre saúde, doação e transplante de órgãos, através da ótica de diferentes atores sociais, e as redes sociais como estratégia para reduzir as desigualdades sociais

Muitas são as evidências de progresso no campo da pesquisa qualitativa na América Latina. Entre elas podemos destacar a publicação de textos introdutórios, manuais e textos especializados sobre projetos, estratégias e técnicas de pesquisa, não esquecendo a tradução de textos clássicos de autores anglo-saxões, a realização de conferências regionais e a publicação dos resultados das pesquisas sob a forma de artigos, livros e relatórios. Analisando a produção gerada durante as últimas três décadas, há um sentimento de otimismo pelas conquistas e os progressos alcançados no campo.

Diante de um cenário como esse, eu não posso deixar de questionar sobre a colaboração entre pesquisadores e acadêmicos dos países da região para alcançar os resultados descritos neste campo. Este assunto está longe de ser irrelevante, considerando a crescente cooperação científica e tecnológica, que ocorre em todo o mundo, e não apenas se vê favorecida por diversos fatores, mas pelas vantagens que oferece. Basta recordarmos as vantagens que podem ser listadas a partir de tal colaboração, tais como: maior número de citações de artigos em coautoria internacional, o aumento do acesso aos recursos de informação, equipamentos e financiamento, bem como as vantagens na formação de pesquisadores.

Não possuo conhecimento de qualquer trabalho que explorou a cooperação científica nesta área específica na região. As informações disponíveis mostram que, historicamente, os investigadores e as instituições acadêmicas latino-americanas têm estabelecido parcerias com os EUA e a Europa. Por exemplo, um trabalho recente sobre a colaboração científica de pesquisadores brasileiros, relatado nos trabalhos mais citados, mostra que quase 73% dos trabalhos têm colaboração com autores norte-americanos ou europeus, mas o número é inferior em termos de colaboração com latino-americanos. Esta pouca atenção dada à cooperação científica com os vizinhos próximos da região chama muito atenção porque os países da América Latina assinaram mais acordos comerciais regionais do que qualquer outra região em desenvolvimento, além de sua proximidade em termos históricos, linguísticos e culturais.

Enfrentando a colaboração descrita no campo da pesquisa em geral, volta a aparecer mais uma vez a questão: que avanços concretos foram realizados no que diz respeito à cooperação no domínio da Pesquisa Qualitativa em Saúde (PQS) entre os investigadores da América Latina? Minha impressão é que houve avanços nesse campo em várias áreas, tais como a organização de conferências, publicação de livros e coleções, bem como no desenvolvimento de trabalhos teóricos. Por exemplo, a troca de ideias e experiências dos pesquisadores tem sido a tônica dos Congressos Latino-Americanos de Pesquisa Qualitativa em Saúde, que chegaram a alcançar sua sexta celebração em Medellín, em outubro de 2014. Por outro lado, não se pode minimizar o papel desempenhado pelos cursos, oficinas e número de graduados, pois apesar de a maioria ser de cunho introdutório, têm sido cada vez mais frequentes aqueles que se destinam a aprofundar certas questões teóricas e metodológicas. Outro mecanismo em que a colaboração tem sido demonstrada é através de intercâmbios; um número crescente de pesquisadores realizou ou ofereceu espaços para realização. Só para citar alguns centros reconhecidos por propiciar esse tipo de atividade, a Fundação Index, a Universidade Autônoma de Barcelona, a Universidade de Guadalajara e a Universidade de São Paulo tornaram-se referências nessa prática.

Os avanços expostos são inegáveis, mas a questão permanece: qual tem sido especificamente a cooperação na pesquisa ou na realização de estudos qualitativos sobre saúde nos países da América Latina? Não tenho conhecimento de estudos que tenham explorado o tema, nem bancos de dados, repositórios, ou alguma outra fonte que possa ajudar a compreender a natureza e as experiências neste campo. Embora a informação disponível seja escassa e dispersa, tenho conhecimento de projetos isolados nos quais investigadores e/ou instituições já começaram a cooperação em projetos específicos.

Outra forma de avaliar a colaboração científica é através dos trabalhos publicados. Ao analisar os 10 trabalhos de pesquisa qualitativa em saúde mais citados e cuja primeira autoria é atribuída a uma instituição no Brasil, Espanha, México e Portugal encontramos diferenças significativas em tal colaboração. Nenhum dos trabalhos de autores brasileiros mais citados foi realizado em colaboração com pesquisadores de outros países; em contrapartida, três trabalhos espanhóis foram feitos em colaboração com pesquisadores do Brasil, Colômbia e Portugal, outros três trabalhos mexicanos também foram feitos em colaboração, mas com pesquisadores dos Estados Unidos, Arábia Saudita, Argentina, Cuba, Inglaterra, Noruega, Suécia, Tailândia e Uruguai, enquanto dois trabalhos de portugueses foram feitos em colaboração com acadêmicos do Reino Unido.

Diante de tais dados, parece-me urgente e necessária a colaboração entre os estudiosos latino-americanos em torno das ICSs. Essa cooperação pode entrar numa fase de desenvolvimento, na medida em que não só se tenha a capacidade de imaginar os lucros de tal colaboração, mas também identificar os desafios e obstáculos enfrentados na sua implementação. Entre eles, vale destacar o seguinte:

Em primeiro lugar deve-se ter em consideração os desafios históricos. Uma questão a considerar é se existe alguma justificativa para a cooperação regional, tendo em vista que, historicamente, os países do Sul não mostraram um interesse "espontâneo", sistemático e significativo de cooperação científica entre si. Nesse contexto, os pesquisadores do Sul ofereceram pouco a seus colegas do Sul em termos intelectuais, materiais e financeiros.

Também deve ser lembrado que, muitas vezes, os pesquisadores do Sul preferem trabalhar com os do Norte, mesmo sendo uma colaboração que, muitas vezes, toma traços de dependência ou subordinação. Consequentemente, as relações estabelecidas entre os pesquisadores não estão isentas de conflito, por exemplo, em relação à propriedade da informação. Para complicar a questão, não podemos descartar o fato de que o modelo dominante da globalização não é propício para a cooperação entre os países do Sul.

Neste contexto, e de frente para um aumento da sensibilidade contra o colonialismo, a colaboração no campo da pesquisa qualitativa na região latino-americana poderia evitar as práticas do passado, na medida em que fosse capaz de adotar outros paradigmas, como o contra-hegemônico ou o pós-colonial. Entre outras coisas, poderia gerar temas e projetos de pesquisa, utilizando modelos dialógicos em que a pesquisa e os temas fossem definidos a partir dos interesses e prioridades dos vários intervenientes.

Consequentemente, sendo inexistente ou emergente a tradição de colaboração em pesquisa qualitativa na região, os desafios a serem enfrentados são múltiplos, dada a diversidade de perspectivas teóricas, a variedade de formas de sistemas de organização e avaliação prática de pesquisa, a ausência de marcos regulatórios ou de apoio na região, somando as barreiras linguísticas e a distância entre os países.

Diante desses desafios, eu não iria terminar sem expressar algumas propostas para avançar neste campo. Uma seria a criação de sistemas de organização e recuperação de trabalhos em nível regional, tais como repositórios e bancos de dados. Outra seria aumentar as redes embrionárias de pesquisa na região ou grupos existentes: por exemplo, o MERCOSUL, o grupo dos 3, ou os países do Pacífico - e outra ainda seria a de identificar temas ou problemas comuns a partir do local, como seriam os processos de políticas de exclusão, de resistência ou as políticas de igualdade de gênero e seus efeitos sobre o processo saúde-doença-cuidado.

Outras estratégias a serem consideradas, dado que provaram ser úteis em outros contextos, seria iniciar o debate sobre questões como sensibilidade cultural, ética global, padrões profissionais e prestação de contas. Não esquecendo temas relativos à disponibilidade e utilização de tecnologias apropriadas. As experiências de estudiosos brasileiros, espanhóis e mexicanos poderiam ser muito úteis para fazer avançar a temática.

Quero terminar mencionando outras propostas específicas, como visitas recíprocas para compreender o contexto em que os pesquisadores colaboradores trabalham o uso de estratégias de comunicação eficazes e discutir questões como: quem produz o conhecimento, em que contexto e para quem é produzido? Assuntos como a utilidade e a transferência de conhecimentos, poderiam enriquecer as propostas de pesquisas qualitativas na área da saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Fev 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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