Acessibilidade / Reportar erro

Práticas de cuidado dos enfermeiros intensivistas face às tecnologias: análise à luz das representações sociais1 1 Recorte da tese - Estilos de cuidar na terapia intensiva em face das tecnologias: uma contribuição à clínica do cuidado de enfermagem, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2012

Resumos

Objetivou-se analisar as representações sociais das práticas de cuidado dos enfermeiros em face das tecnologias aplicadas ao cliente hospitalizado na terapia intensiva. Pesquisa de campo, qualitativa, cujo referencial foi a teoria das representações sociais. Realizou-se entrevista semiestruturada com 21 enfermeiros de uma unidade de terapia intensiva, de um hospital público do Rio de Janeiro. Aplicou-se análise de conteúdo temática, que evidenciou as tecnologias como dispositivos tradutores dos sinais do corpo do cliente, nas quais os enfermeiros se apoiam para cuidar. As formas de assistir denotam ações burocráticas e de cuidado, demandadas pelas tecnologias, que implicam o distanciamento e a proximidade do cliente. Concluiu-se que há uma imagem idealizada do cliente de terapia intensiva ligada às tecnologias, organizada na formação profissional e sustentada na prática clínica da unidade de terapia intensiva.

Enfermagem; Psicologia social; Cuidados de enfermagem; Tecnologia biomédica; Unidades de Terapia Intensiva


The aim was to analyze the social representations of nurses' care practices in the face of the technologies applied to the clients hospitalized in intensive therapy. Qualitative field research in the framework of the social representations theory. Semi-structured interviews were held with 21 nurses of an intensive therapy unit at a public hospital in Rio de Janeiro. Thematic content analyses were applied, which showed that the technologies are devices that translate the signs from the client's body, which nurses base themselves on for care. The ways of assisting indicate bureaucratic and care actions demanded by the technologies, which imply detachment from and proximity to the client. It was concluded that there is an idealized image of the intensive therapy client linked to the technologies, organized in the professional training and supported by the clinic practice of the intensive therapy unit.

Nursing; Psychology, social; Nursing care; Biomedical technology; Intensive Care Units


Se objetivó analizar las representaciones sociales de las prácticas de atención de los enfermeros frente a las tecnologías aplicadas al cliente hospitalizado en la terapia intensiva. Investigación de campo, cualitativa, cuyo referencial fue la teoría de las representaciones sociales. Se realizó entrevista semi-estructurada con 21 enfermeros de una unidad de terapia intensiva, de un hospital público de Río de Janeiro. Se aplicó análisis de contenido temático, la cual evidenció que las tecnologías son dispositivos traductores de los señales del cuerpo del cliente, en las cuales los enfermeros se apoyan para cuidar. Las maneras de asistir denotan acciones burocráticas y de atención demandadas por las tecnologías, que implican en el distanciamiento y en la proximidad del cliente. Se concluye que hay una imagen idealizada del cliente de la terapia intensiva que se relaciona a las tecnologías, organizada en la formación profesional y sustentada en la práctica clínica de la unidad de terapia intensiva.

Enfermería; Psicología social; Atención de enfermería; Tecnología biomédica; Unidades de Terapia Intensiva


INTRODUÇÃO

As práticas de cuidar da enfermagem na Terapia Intensiva (TI) se apresentam como tecnológicas, na medida em que envolvem conhecimento e sua aplicação no domínio das máquinas. Por sua vez, tais práticas também abrangem elementos do cuidado humano, já que no momento de encontro, intermediado pelas máquinas, incide a expressividade de cuidar.

No caso da sua dimensão tecnológica, ressalta-se que o uso desses recursos pode colocar o cliente em risco se eles não forem corretamente "vigiados". Logo, é preciso "assistir" a máquina, com o propósito de manter a vida dos clientes. Este cuidado implica conhecimentos técnicos, que possibilitem fundamentar as ações perante as tecnologias.11. Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009 Jul-Ago; 22(4):210-8.

A utilização de aparatos tecnológicos, que facilitam a assistência ao cliente crítico e que requerem cuidados para garantir a fidedignidade dos dados, não deve invalidar uma compreensão acerca dos cuidados de enfermagem, considerando o uso de tecnologias como uma ação humana.1 1. Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009 Jul-Ago; 22(4):210-8.Embora as máquinas se expressem por valores objetivos, estes devem ser complementados com aqueles referentes à subjetividade humana.

Os resultados das investigações no campo da TI, que investem no estudo desta temática, vêm alertando para a caracterização de linhas de ação, que se desenvolvem em face das tecnologias. Ora sublinham a existência de menor reconhecimento aos aspectos expressivos, destacando a necessidade de que mesmo o cuidado, que se dá com o auxílio de aparelhos, seja experimentado pelo cliente como uma ação técnica e sensível; ora demonstram erros no manejo da tecnologia pelos profissionais, na tentativa de minimizar os riscos à população.11. Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009 Jul-Ago; 22(4):210-8.

2. Pols J, Moser I. Cold technologies versus warm care? On affective and social relations with and through care technologies. Alter. 2009 Mar; (3):159-78.
- 33. Vargas MAO, Ramos FRS. Tecnobiomedicina: implicações naquilo e daquilo que a enfermagem faz em terapia intensiva. Texto Contexto Enferm [online]. 2008 Jan-Mar [acesso 2008 Jun 13]; 17(1): Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072008000100019&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...

Há indícios, também, de que a tecnologia oriente a formação de estilos de cuidar na enfermagem, como é o caso do cuidado e ação tecnológica. O cuidado tecnológico é marcado pela aplicação de maior conhecimento pelo enfermeiro, o qual orienta sua atenção na busca por dados objetivos e subjetivos oriundos do cliente, bem como objetivos provenientes do maquinário. Na ação tecnológica, o cuidado se sustenta nas informações advindas da aparelhagem, deixando-se de observar os dados fornecidos pelo cliente. Logo, os profissionais se deixam conduzir somente pela máquina, não existindo interlocução com o cliente.44. Silva RC, Ferreira MA. A dimensão da ação nas representações sociais da tecnologia no cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery. 2011 Jan-Mar; 15(1):140-8.

Acrescenta-se o fato de que existe uma vinculação entre os interesses capitalistas na saúde e a incorporação tecnológica na produção dos serviços. O valor positivo da tecnologia é estimulado através de estratégias de marketing, sendo internalizado nos indivíduos durante a sua socialização. Essa legitimação da tecnologia repercute-se no cuidado em saúde.

Os requisitos das práticas de cuidado da enfermagem em TI, pelos seus atributos, mormente por serem intermediadas pelas máquinas, suscitam diálogos entre os enfermeiros, os quais produzem sentidos de ação diferenciados frente ao cliente. Parte-se do princípio que estas práticas são importantes para estes sujeitos, impregnando-se no seu cotidiano, gerando informações acerca do manejo do cliente, da participação do enfermeiro e de aplicação de estratégias de cuidado. Configura-se como objeto socialmente relevante, produzindo mudanças no padrão de comportamento destes indivíduos, ajudando-os a se orientarem nesta realidade.55. Jodelet D. Representações Sociais: um domínio em expansão. Tradução Lilian Ulup. In: Jodelet D, organizadora. As representações sociais. Rio de Janeiro (RJ): EdUERJ; 2001. p. 17-44.

O imaginário que circula no meio profissional acerca da figura do enfermeiro de TI e de seus modos de atuar, da relação que ele estabelece com a tecnologia, juntamente com a ideia de complexidade que se atribui aos cuidados intensivos de enfermagem são diferentes dimensões que fazem com que as práticas de cuidar, nesse universo, importem para os enfermeiros que com elas se inter-relacionam, integrando seus pensamentos e configurando-se, por fim, num objeto de Representação Social (RS). Frente a isso, questiona-se: que conteúdos integram as RSs das práticas de cuidado de enfermeiros que atuam na TI? O objetivo desta pesquisa é analisar as RSs das práticas de cuidado dos enfermeiros em face das tecnologias aplicadas ao cliente hospitalizado na TI.

As RSs formam um sistema de interpretação socialmente compartilhado, que orienta os comportamentos do grupo frente a um fenômeno. Identificar como as representações sobre as práticas de cuidado são elaboradas, como se constituem e se organizam, contribui para a compreensão dos estilos de cuidar dos enfermeiros. Potencializa as discussões sobre os processos de cuidar na TI, revelando em que medida o modelo assistencial, a formação profissional, as políticas públicas, o contexto institucional incidem na prática assistencial, fomentando proposições e intervenções, com vistas à qualidade da assistência de enfermagem neste cenário, justificando-se, portanto, a realização desta pesquisa.

METODOLOGIA

Pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, com aplicação da Teoria das Representações Sociais (TRS), na vertente processual.55. Jodelet D. Representações Sociais: um domínio em expansão. Tradução Lilian Ulup. In: Jodelet D, organizadora. As representações sociais. Rio de Janeiro (RJ): EdUERJ; 2001. p. 17-44. Como uma teoria dos saberes sociais, as pesquisas que a aplicam investem em elucidar os conteúdos de tais saberes, que formam representações sobre dado objeto. A representação é uma estrutura que medeia a relação entre o sujeito-outro, sujeito-objeto, através da ação comunicativa. O trabalho comunicativo da representação gera símbolos que fornecem sentido, ou seja, coloca algo no lugar de algo, promovendo um deslocamento simbólico.66. Jovchelovitch S. Os contextos do saber-representações, comunidade e cultura. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008. Em face do avanço tecnológico em saúde, e de suas repercussões no cotidiano do enfermeiro na TI, mormente acerca do conhecimento, as práticas de cuidado neste local são foco de uma ação comunicativa. Fazem parte das conversações dos enfermeiros, suscitando-lhes reflexões e debates, conduzindo a uma elaboração cognitiva, a partir da qual tais profissionais pré-codificam sua realidade, conferindo uma lógica e sentido próprio às ações, que se constroem não somente amparados em saberes reificados.

O cenário foi um hospital federal no município do Rio de Janeiro, e o campo a Unidade de Terapia Intensiva (UTI), a qual comporta 10 leitos, com alta demanda pelo fato da instituição ser considerada porta de emergências, cujos pacientes requerem cuidados de alta complexidade clínica e tecnológica. A equipe é multiprofissional e a escala de trabalho da enfermagem é de 12 por 60 horas, com uma média de dois a três enfermeiros e cinco a seis técnicos de enfermagem por turno. Dos 24 enfermeiros deste setor, 21 participaram da pesquisa, sendo 17 mulheres e quatro homens, pois atenderam aos critérios de inclusão: ser enfermeiro com atuação em UTI, diretamente na assistência durante o período da pesquisa.

A produção dos dados deu-se por entrevista individual com roteiro de questões semiestruturadas. O pesquisador realizou um período inicial de exploração do campo, para se aproximar da realidade e convidar os enfermeiros a participar. As entrevistas duraram em média uma hora e trinta minutos, se realizaram à tarde, em sala reservada no próprio setor.

A análise foi de conteúdo, do tipo temático, com a identificação de unidades de significação que se organizaram em torno de grandes temas.77. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Edições 70; 2007. Regras de contagem foram aplicadas para se rastrear os depoimentos, na busca da ocorrência e coocorrência dos temas que traduzissem os sentidos dos discursos. Fez-se a categorização pela classificação dos elementos que faziam parte de um conjunto temático, inicialmente por diferenciação, para posterior reagrupamento por analogias, de acordo com o critério semântico. O tratamento analítico do material foi feito a partir do mapeamento dos conteúdos, por milha.77. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Edições 70; 2007. As categorias e subcategorias foram definidas à luz do conteúdo expresso e latente dos discursos.

A confluência dos temas, que integram as categorias, estruturou dois eixos orientadores da análise, sendo o primeiro denominado "O enfermeiro e o lidar com as tecnologias nas práticas de cuidar na TI" e, o segundo, "As formas de assistir o cliente na TI". Estes eixos foram interpretados à luz da TRS, buscando-se retratar como se dá a construção da representação, sua gênese, processos de elaboração e aspectos constituintes.

O projeto foi aprovado no Comitê de Ética do hospital lócus do estudo, sob protocolo n. 35/10. Aos sujeitos foi solicitado aceite e participação voluntária pela assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Realizou-se a coleta de dados de novembro de 2010 a maio de 2011.

RESULTADOS

O enfermeiro e o lidar com as tecnologias nas práticas de cuidar na Terapia Intensiva

A utilização de recursos tecnológicos na assistência de enfermagem na TI gera efeitos positivos e negativos. A positividade do uso da tecnologia obteve 18 ocorrências no corpus de análise, as quais estiveram relacionadas, sobretudo, ao impacto direto que a incorporação de tal instrumental traz às ações profissionais. Dentre estes efeitos benéficos está o fornecimento de informações mais qualificadas ao enfermeiro, as quais possibilitarão orientar suas condutas, tema recorrente em 10 das 18 unidades de registro (URs).

Acho que influencia no aspecto de você ter um olhar até mais direcionado durante a sua avaliação do teu paciente. A gente começa a avaliar esse paciente e olha logo para o monitor, e a gente já tem um retrato mais ou menos de como está esse paciente (Enf. 8).

Vai dizer o modo como eu tenho que agir, o que eu tenho que fazer, se ela está me mostrando que uma coisa não é normal e pelo meu conhecimento eu vejo que não é normal, eu vou agir de determinada maneira para resolver ou minimizar o problema (Enf. 9).

Um dos processos que concorre para a elaboração da RS de um fenômeno é a objetivação, operação do imaginário, através da qual o indivíduo concretiza e estrutura os conhecimentos relacionados ao objeto da representação.55. Jodelet D. Representações Sociais: um domínio em expansão. Tradução Lilian Ulup. In: Jodelet D, organizadora. As representações sociais. Rio de Janeiro (RJ): EdUERJ; 2001. p. 17-44. Para tanto, lança mão de imagens no intuito de dar concretude às noções abstratas. As URs que tratam das tecnologias trazem exemplos de objetivações ao referi-las como um retrato ou dispositivo tradutor do corpo do cliente, que mostra algo sobre ele ao profissional. Tais imagens ancoram a tecnologia na função de uma máquina fotográfica, materializando e tornando a doença visível.

Entretanto, situado em um polo oposto estaria a influência negativa produzida pela tecnologia, tema mencionado por nove enfermeiros, dos quais, no relato de sete deles, houve coocorrência com a influência positiva. A avaliação negativa se dá calcada no fato de causar dependência do profissional às informações enviadas pelo maquinário, fazendo com que este gradativamente se distancie do cliente e priorize os dados codificados pelos aparelhos.

A influência que a gente vê em relação aos maquinários, a criar uma dependência por parte de alguns enfermeiros para estar realizando o cuidado, então, o cara, ele fica limitado observando ali só o que está no monitor ou no respirador e falta, em alguns momentos, o enfermeiro chegar à beira do leito, auscultar o paciente, tocar o paciente, ver o que está acontecendo com ele [...] elas não podem se transformar aí em uma muleta (Enf. 21).

Identifica-se, nesta UR, o processo de objetivação na comparação da tecnologia a uma muleta, objeto formado por um encosto côncavo, em que os aleijados apoiam as axilas para se moverem. A muleta exprime simbolicamente o auxílio para uma pessoa deficiente, permitindo complementar o que está lhe faltando. No caso, o enfermeiro se apoia na tecnologia para suprir sua ausência à beira do leito, minimizando suas insuficiências.

Esta coocorrência entre positivo versus negativo mostra o caráter ambivalente das tecnologias ao congregar, simultaneamente, dois aspectos opostos, quando pensadas no âmbito das práticas pelos enfermeiros. A tecnologia é, por assim dizer, intensamente carregada do ponto de vista emocional, pois ao ser abordada pelos profissionais nos seus diferentes campos de atuação, em especial na TI, frequentemente é foco de discussões, levando-os a atribuir avaliações positivas e negativas do seu uso, que guiam os comportamentos perante a elas.

À luz dos dados, evidencia-se que a partir do modo como o profissional integra os aparatos tecnológicos, na sua prática cotidiana, estes podem influenciar de forma positiva ou negativa no contexto do cuidado, o que leva a pensar na maneira como lidam com as tecnologias.

Nesta perspectiva, ao reportar-se à análise, verifica-se a emergência desta temática no material, expressa sob a ideia de uso adequado/inadequado das tecnologias em relação ao grupo de enfermeiros que faz parte da TI, e sendo composta por 19 URs. Assim, aparece em destaque, inicialmente, o grupo que a utiliza, em conformidade com os colegas desta área, dando-lhe a importância apropriada, com 14 ocorrências.

Meus colegas são muito bons nessa parte também. Eles usam da mesma forma que eu uso, da mesma forma que eu vejo eles veem também, é impossível não ver (Enf. 3).

A outra parcela é representada por dois contrários, de um lado os enfermeiros que descartam a aplicação deste tipo de suporte e, do outro, os que direcionam seu planejamento prioritariamente pelos indicativos dessas tecnologias, totalizando 10 ocorrências.

Ela se baseia exclusivamente na tecnologia, esquecendo do que a clínica esteja mostrando. Parte do princípio que se não está mostrando aquilo, o que o paciente fala não tem valor [...]. Tem pessoas que a tecnologia não serve, não é aquilo e ponto final (Enf. 2).

Tem pessoas que tem aversão a essa tecnologia, não gostam de lidar, e tem umas que realmente não sabem [...] tem gente lá que tem dificuldade em lidar com equipamentos novos, tem pessoas que veem a tecnologia como um afastamento do profissional (Enf. 7).

Este modo como o uso das tecnologias se processa diariamente releva-se para os investigados, estando presente em 17 das 21 URs. Então, quando discutida sob esta ótica, nuances da sua rotina de cuidados vêm à tona, retratando com clareza tal implementação. É o que acontece durante técnicas, como a do banho no leito, em que o profissional prefere substituir a tecnologia pela sua avaliação, atribuindo-lhe papel secundário.

O ideal seria você manter o paciente com a monitorização, para te oferecer dados enquanto está fazendo a mobilização, que podem ocorrer intercorrências e passar sem serem percebidas. A proximidade vai minimizar isso, você está vendo, olhando se vai alterar um padrão respiratório, se o paciente tem uma cianose que não tinha antes (Enf. 21).

Identifica-se que a falta de capacitação técnico-científica de uma parcela da equipe, no manejo dos equipamentos e na interpretação dos sinais oriundos destes, interfere no uso correto destas tecnologias, podendo trazer prejuízos à recuperação do cliente.

Nem todos estão preparados e treinados a lidar com os tipos de equipamentos que nós temos, tem funcionários que têm mais tempo de serviço, que não se atualizaram (Enf. 7).

Outro ponto interessante é que a convivência habitual com casos clínicos, que requerem tecnologias para cuidar, torna estes aparatos naturalizados à assistência de enfermagem e, neste sentido, por lidarem frequentemente com esta modalidade de informação, os profissionais se acostumam com ela. Este fato configura-se um risco, pois caso isso ocorra há possibilidade de subestimarem tais dados, aumentando as chances de uma complicação clínica. Um exemplo típico acontece com os cuidados com os alarmes ligados às máquinas.

Dentro da UTI, às vezes, as pessoas se acomodam em ter essa tecnologia, que traz dois pontos: a praticidade, a otimização, mas, por outro lado, as pessoas acabam se acomodando, porque tem tudo ali muito fácil, e acabam se acostumando com aquelas informações, sons e alarmes. A gente tem que parar um pouco e ficar se cobrando mesmo de estar atento, porque a gente se pega, às vezes muito tempo, estar fazendo uma coisa e nem olhar o monitor (Enf. 8).

Uma das funções das RSs é realizar a apropriação daquilo que é novo ou desconhecido, permitindo ao sujeito familiarizar-se com tal objeto estranho, de modo a lidar com ele. O enfermeiro oito leva a entender que a tecnologia transformou-se numa prótese que faz parte do corpo do cliente. Então, neste caso, a tecnologia já se tornou algo visto como naturalizado pelo enfermeiro, que não lhe causa estranhamento, fazendo com que não preste atenção nas informações por ela enviadas. A representação perdeu assim sua função, já que duram enquanto circulam e são úteis, deixando de ser eficaz e trazendo riscos ao cliente.

O entendimento deste tema, que inclui os tipos de atuação do enfermeiro frente à tecnologia no seu cotidiano prático, pode ser complementado por um aspecto presente em 17 URs que é a interação com o cliente, através da qual se captam informações objetivando atender às suas necessidades integrais. Sobre isso, duas características destacam-se: uma pauta-se na justificativa de que, na UTI, a prioridade é a de atender aos doentes mais graves, valorizando-se os dados objetivos a ele relacionados, desvalorizando-se, portanto, as situações que envolvem uma interação mais aprofundada. Este aspecto esteve mais presente nos depoimentos dos enfermeiros mais jovens e com menos tempo de formado, o que leva a conjecturar que tal concepção possa já vir se organizando durante sua formação acadêmica.

Eu tenho enfermeiro que quando vai fazer uma escala, vai pedir para não ser escalado com paciente que esteja lúcido e orientado [...] agora a questão objetiva, a questão palpável é importante na UTI, isso é o diferencial na UTI e vai continuar sendo para sempre, o subjetivo na UTI sempre vai ser tratado como algo secundário àquilo que é o elemento principal, o cuidado tecnológico direcionado a evidências claras, concretas, e disso não tem como fugir, porque nossa formação em terapia intensiva é voltada para evidência (Enf. 15).

Sublinha-se que neste cenário muitas são as demandas administrativas que recaem sobre o enfermeiro. Então, como ele tem diversas rotinas burocráticas a cumprir, passa a interagir com o cliente de forma pontual ou superficial, já que a execução de tais atividades ocupa um lugar diferenciado numa escala de importância, quando comparada à interação com o cliente. Isto se torna evidente nos depoimentos dos enfermeiros do turno diurno.

O mais acordado é o menos observado, a gente gosta de pacientes mais sedados, mais graves, e quando a gente vai nesse paciente, acaba não conversando além, sobre a família, alguma coisa que pode trazer dados ao nosso diagnóstico. Como ele está bem clinicamente, eu acabo indo para outras coisas a fazer, volto para burocracia que eu tenho quinhentos milhões de coisas, não dá para ficar à beira do leito, ouvindo todas as histórias que ele tem para contar. O paciente é examinado, mas ele não é a menina dos olhos (Enf. 6).

O paciente é objetivado pelo enfermeiro 6 como "menina dos olhos". Esta expressão faz alusão à pupila, termo oriundo do latim pupilla, que significa menininha, parte do olho (orifício) responsável pela passagem da luz do meio exterior até os órgãos sensoriais da retina, importante para visão. A analogia do paciente crítico à menina dos olhos atribui-lhe um cunho de preciosidade na TI, como da pupila para a visão, merecendo atenção especial dos enfermeiros.

As formas de assistir ao cliente na Terapia Intensiva

Tomando por referência estes resultados preliminares, em articulação com a busca dos temas organizadores das categorias empíricas, constata-se a veiculação de outros elementos, além desta interface entre o enfermeiro e a tecnologia, que denotam contribuir para a configuração dos estilos de cuidar, e que estão reproduzidos no cotidiano da assistência neste ambiente. Ao produzirem um discurso sobre sua prática, os enfermeiros diferenciam duas linhas de ação em relação às atividades de cuidado ao cliente, sendo uma definida como burocrática e a outra assistencial, às quais remetem a uma compreensão de proximidade ou distância do cliente. O cunho burocrático estaria mais voltado para as tarefas gerenciais e administrativas, enquanto o assistencial centra-se no atendimento direto ao cliente. Esta dialética entre o burocrático versus assistencial está presente em 13 URs.

A gente tem muitos enfermeiros que são assistencialistas, que gostam do cuidado, de estar à beira do leito. Pessoas que se aproximam dos doentes, que cuidam de verdade do paciente na sua totalidade [...] mas eu tenho muitos enfermeiros que são mais burocratas, que eu percebo que não têm ainda o comprometimento com o cuidado de enfermagem [...] o outro presta, mas mais indiretamente, e quando vai ao paciente, ele faz o que tem que fazer e terminada aquela tarefa, ele se distancia e só vai chegar de novo em um caso extremo, quando muito solicitado, entendeu? [...] tem enfermeiros que o monitor está tocando, o paciente está dessaturando e ele é incapaz de ir lá e aspirar o paciente (Enf. 13).

Mesmo quando se referem aos assistenciais, as narrativas sinalizam as diferenças entre eles em níveis de participação, demonstrando a existência de um cuidado mais pontual.

Tem enfermeiros e os enfermeiros. Tem enfermeiros que são mais burocráticos, que vão e sentam na cadeira, só querem saber de prontuário, de livro, controle de psicotrópico. Em termos de assistência, não querem nem saber do paciente. Tem outros que gostam mais da assistência, mas, mesmo na assistência, tem diferença. Tem uns que acham que só tem o banho, aquela coisa bem pontual e acabou. Tem outros, não, são bem minuciosos (Enf. 1).

Nos resultados delineiam-se também, uma qualidade do profissional, que se repercute no comportamento que este assume frente às atividades a serem desempenhadas. Em 10 depoimentos ressaltam-se os profissionais comprometidos e os não comprometidos, evidenciando-se a postura do enfermeiro diante das situações clínicas que se apresentam na prática. Tal postura aponta a importância atribuída aos componentes que integram a assistência e a sua implicação com os acontecimentos que se sucedem neste cenário.

Você vê que a pessoa fica dali de cima, faz tudo ali de cima, não entra nos leitos. Assim como você tem outros enfermeiros que são extremamente dedicadas, que se tiver que passar o dia inteiro assistindo, ali do lado do paciente [...] tem enfermeiros, equipe no geral, que tem comprometimento, tem responsabilidade, se responsabilizam pelo serviço (Enf. 16).

O paciente estava com o abdome cheio de líquido, que não deixava ele respirar melhor. Então eu detectei, disseram: 'como você fez isso?' Olhar para o doente [...] tem enfermeiro que trabalha em dois, três lugares, que está ali para ganhar dinheiro [...] tem enfermeiro que vê as coisas e ele finge que não vê, para ele é mais cômodo (Enf. 14).

Com um número de seis ocorrências no corpus, o envolvimento com o cliente, citado pelas mulheres, desponta como outra característica indicativa da perspectiva de ação adotada pelo profissional. Isto quer dizer que, para elas, importam, além das informações clínicas pautadas no processo saúde-doença, a vivência do cliente, situada no seu contexto de vida, acerca do adoecimento. Neste sentido, valoriza-se o diálogo com ele e a família, com vistas à apreensão de demandas que requeiram intervenções, aproximando-se de um cuidado integral.

Tem pessoas que são mais secas, estabelecem uma relação mais profissional com o paciente. Tem pessoas, como eu já ouvi falar aqui: 'ah, não me coloca com paciente acordado, eu prefiro paciente sedado'. Tem pessoas que, às vezes, não valorizam alguns sentimentos do paciente, não dão importância a alguns sentimentos ou banalizam, se o paciente está depressivo, é queixoso, é choroso (Enf. 8).

DISCUSSÃO

A análise da prática de cuidar, e dos elementos que integram os processos de trabalho dos enfermeiros no campo da terapia intensiva, tem sido alvo de discussões que tentam entender o modo como são desempenhadas as ações de cuidar no cotidiano destes setores.88. Silva LF, Damasceno MMC. Modos de dizer e fazer o cuidado de enfermagem em terapia intensiva cardiológica: reflexões para a prática. Texto Contexto Enferm. 2005 Abr-Jun; 14(2):258-65.

9. Pinho LB, Santos SMA. Dialética do cuidado humanizado na Unidade de Terapia Intensiva: contradições entre o discurso e a prática profissional do enfermeiro. Rev Esc Enferm USP. 2008 Mar; 42(1):66-72.
- 1010. Oliveira BRG, Lopes TA, Vieira CS, Collet N. O processo de trabalho da equipe de enfermagem na UTI neonatal e o cuidar humanizado. Texto Contexto Enferm. 2006; 15(Esp):105-13. Os autores ratificam a necessidade do debate em torno dos modos de fazer o cuidado de enfermagem na TI. Ao se desvelar os significados presentes nos modos de pensar e fazer o cuidado em UTI cardiológica sinaliza-se que, embora os profissionais se utilizem de um planejamento sistematizado, a sua implementação é baseada nas situações clínicas do cliente, buscando-se atender às suas necessidades biológicas.88. Silva LF, Damasceno MMC. Modos de dizer e fazer o cuidado de enfermagem em terapia intensiva cardiológica: reflexões para a prática. Texto Contexto Enferm. 2005 Abr-Jun; 14(2):258-65. Neste processo de cuidar, eles se pautam em instrumentos elétricos, eletrônicos e computadorizados, preocupam-se em viabilizar procedimentos voltados à evolução clínica, aprisionando-se em um cotidiano instrumental, que dificulta sua aproximação ao sujeito do cuidado, a qual se dá apenas em momentos pontuais. Portanto, acentua-se a distância entre a retórica e o real, marcado, sobretudo, pelo não atendimento às dimensões das necessidades humanas e pelo foco nos protocolos clínicos e atividades gerenciais.88. Silva LF, Damasceno MMC. Modos de dizer e fazer o cuidado de enfermagem em terapia intensiva cardiológica: reflexões para a prática. Texto Contexto Enferm. 2005 Abr-Jun; 14(2):258-65.

Estas considerações são complementadas pela investigação que objetivou revelar as contradições na prestação do cuidado na UTI.99. Pinho LB, Santos SMA. Dialética do cuidado humanizado na Unidade de Terapia Intensiva: contradições entre o discurso e a prática profissional do enfermeiro. Rev Esc Enferm USP. 2008 Mar; 42(1):66-72. Assim, o discurso dos enfermeiros veicula a ideia de um cuidado integral, no qual além de permanecerem atentos às questões clínicas do cliente, esforçam-se para suprir suas demandas psicoemocionais, e às de seus familiares.99. Pinho LB, Santos SMA. Dialética do cuidado humanizado na Unidade de Terapia Intensiva: contradições entre o discurso e a prática profissional do enfermeiro. Rev Esc Enferm USP. 2008 Mar; 42(1):66-72. Entretanto, o conjunto do seu processo de trabalho na UTI denota uma dissociação deste, pois põe em evidência que apesar de em alguns momentos valorizarem o sofrimento físico/psíquico dos acompanhantes e pacientes, o contexto intersubjetivo não é aprofundado na relação de cuidado. Significa dizer que a interação caracteriza-se como superficial, com o cumprimento de rotinas burocráticas que contribuem para um distanciamento entre eles.99. Pinho LB, Santos SMA. Dialética do cuidado humanizado na Unidade de Terapia Intensiva: contradições entre o discurso e a prática profissional do enfermeiro. Rev Esc Enferm USP. 2008 Mar; 42(1):66-72.

Tais estudos se alinham a outro de origem internacional,1111. Terraneo F, Seferdjeli L, Diby M. Le tour de lit aux soins intensifs: representations et prise d'information. Trav Humain. 2010 Oct; 73(4):339-59. cuja atenção centrou-se na compreensão de como se elabora a tomada de informação pelo enfermeiro durante sua atividade de observação sistemática da pessoa cuidada, dos equipamentos médicos que ela porta e dos tratamentos que estão sendo administrados, para que tal profissional possa formular um diagnóstico e tomada de decisão. Esse estudo exploratório mostrou que, ao contrário do que acontece com os documentos que prescrevem tal atividade, que se organizam essencialmente por referência aos sistemas fisiológicos, há uma variabilidade relativa aos elementos que o enfermeiro toma em conta na situação, no contato com o cliente. Logo, a tomada de informação em situação real não deve se apoiar na representação a priori da tarefa, mas no funcionamento cognitivo do enfermeiro em situação real, incluindo os diversos aspectos implicados no cuidado ao paciente.1111. Terraneo F, Seferdjeli L, Diby M. Le tour de lit aux soins intensifs: representations et prise d'information. Trav Humain. 2010 Oct; 73(4):339-59.

Estes elementos apontados pelos autores na interface com os resultados do estudo em tela indicam que, no âmbito das práticas, tem efeito um ritual de cuidar, que ganha sentido a partir do momento que o enfermeiro se inscreve em um referencial biomédico de assistência. Este circunda um ambiente atravessado pela carga da doença e de predomínio dos instrumentais terapêuticos, exercendo "força" sobre os profissionais na elaboração que fazem sobre a prática. Este comportamento ritualizado, identificado por meio das rotinas e repetições implementadas, expressa os valores simbólico e afetivo investidos, que são bases do porquê da RS, permitindo mapear a lógica que orienta a perspectiva de ação adotada.66. Jovchelovitch S. Os contextos do saber-representações, comunidade e cultura. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.

Com base nos dados deste estudo, evidencia-se a conformação de um ritual de cuidar que expressa a dimensão simbólica da RS sobre a prática na TI, na qual há um tipo de cuidado que, intermediado pelo saber clínico, valoriza as evidências e os dados objetivos, assim como todas as atividades destinadas diretamente à recuperação do cliente, como acontece com os afazeres burocráticos, sobretudo os que se referem à terapia medicamentosa. Prioriza-se esta atividade e tudo que possa facilitar sua realização (a exemplo da retirada da monitorização durante o banho), fazendo o enfermeiro agir de maneira protocolizada.

Por conseguinte, neste modelo, a interação com o cliente é estritamente clínica, e os que estão acordados e demandam interação mais aprofundada não se alinham com essa lógica, sendo por vezes classificados como "queixosos", ou levando o enfermeiro a "perder a paciência" com ele, já que não pode ouvir as histórias que ele tem para contar, como evidenciado em uma das URs extraída do depoimento do enfermeiro 6.

A discussão sobre a prática de cuidar ao cliente na TI tem espaço, também, no campo acadêmico, mormente quanto à formação e aquisição de competências, que atendam as exigências do exercício profissional neste cenário, frente às mudanças no perfil de morbimortalidade brasileiro. A formação deve abranger aspectos do processo saúde-doença, ético-legais, sociais e humanitários. Todavia, os documentos regulamentadores, que embasam tal processo de formação, definem a assistência aos pacientes críticos como "pacientes graves com comprometimento de um ou mais dos sistemas fisiológicos, com perda da autorregulação, necessitando substituição artificial de funções e assistência contínua".12:3

Especificamente falando da formação do enfermeiro, ressalta-se que ela deve incluir: "além dos conteúdos que abrangem os desequilíbrios das funções orgânicas, estratégias facilitadoras ao desenvolvimento de competências, em nível prático, que permitam a avaliação sistemática, interpretativa, evolutiva e articulada, objetivando o reconhecimento das situações atuais ou potenciais de deterioração clínica, a implementação precoce de intervenções eficazes e a avaliação das respostas a essas intervenções".13:180

Muito embora se reconheça as múltiplas dimensões desse nível assistencial interdisciplinar, a formação do enfermeiro para atuar nessa área parece priorizar a gravidade do cliente e sua recuperação por meio das ações clínicas do enfermeiro na identificação das intercorrências. Essas características, presentes nos documentos regulamentadores, estão demarcadas nas experiências acadêmicas, como se visualiza na análise de conteúdo dos dados, quando uma das depoentes afirma que desde a época de estudante preferia cuidar dos pacientes mais graves em relação àqueles de "menor cuidado". Isso, por sua vez, ilustra como a circulação de informações, no grupo social, cria normas que servem de referência para aqueles que o integram, ou seja, os saberes partilhados fornecem aos participantes normas, regulamentações e padrões de comportamento que concorrem para a sua pertença.

Além do que os estudos que tratam com mais detalhes acerca do perfil profissional e das competências para trabalho em UTI vão ao encontro dessas afirmações. Em revisão sobre as competências profissionais necessárias aos enfermeiros que atuam em UTI, a comunicação com clientes e familiares tem uma presença tímida frente a todos os outros elementos, já que estes vêm revestidos de um sentido clínico voltado à melhora do cliente, através do acesso a determinadas qualidades do profissional, principalmente as de cunho técnico-científico.14

Os resultados desta pesquisa, articulados ao que tais literaturas evidenciam, conduzem ao entendimento que as RSs dos enfermeiros sobre suas práticas de cuidar, em face das tecnologias, constroem-se ligadas à imagem do paciente de UTI, que vem se elaborando desde a formação acadêmica. Tal imagem se ancora no princípio da gravidade/recuperação, o qual organiza uma figura-tipo de paciente de UTI, objetivada na expressão "menina dos olhos", que indica que o paciente ideal é o grave/sedado/intubado recuperável.

Esse resultado, em especial, evidencia a dimensão normativa das RSs, as quais funcionam como normas grupais, modulando um determinado objeto social, isto é, estabelecendo as prioridades que ele deve ter para este grupo para que seja reconhecido como tal.1515. Campos PHF. As representações sociais como forma de resistência ao conhecimento científico. In: Oliveira DC, Campos PHF, organizadores. Representações sociais: uma teoria sem fronteiras. Rio de Janeiro (RJ): Museu da República; 2005. p.85-98. Por outro lado essas mesmas normas grupais produzem regras de conduta, prescrevendo os comportamentos comuns, os pouco prováveis e os inaceitáveis. Os enfermeiros de TI, então, ao definirem uma figura-tipo de paciente, reafirmam o que é para eles o foco de sua assistência neste setor, resultando na configuração de uma série de comportamentos percebidos como comuns (uso da tecnologia e dos dados objetivos) ou pouco prováveis (interação aprofundada), que caracterizam a dinâmica da assistência neste ambiente.

Em paralelo a este elemento da RS da prática, acrescenta-se ao debate que a UTI se conforma como um campo de conhecimentos e práticas. Então, a TI se constitui como uma disciplina instituída, na convergência do prestígio da ciência médica, com o advento da indústria tecnobiomédica, balizada em pressupostos teóricos do positivismo. À luz disso, herda todo um modelo objetificado, subdividido e explicado por diferentes áreas do saber, que, na atualidade, legitima-se pela incorporação de novas tecnologias que fortalecem a noção de evidência, e, por consequência, trazem implicações de vulto na formação do profissional, como é o caso do enfermeiro,33. Vargas MAO, Ramos FRS. Tecnobiomedicina: implicações naquilo e daquilo que a enfermagem faz em terapia intensiva. Texto Contexto Enferm [online]. 2008 Jan-Mar [acesso 2008 Jun 13]; 17(1): Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072008000100019&lng=pt
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
priorizando a gravidade do cliente e sua recuperação clínica.

Um estudo clássico de RS, desenvolvido na França com enfermeiros contribui para entender como estes profissionais representam sua própria função, propiciando desvelar os motivos que explicam a dinâmica do seu processo de trabalho.1616. Abric-JC. Pratiques sociales et représentations. Paris (FR): Presses Universitaires de France; 2011. Nesse, investigaram-se dois grupos: um em que os sujeitos eram estimulados regularmente a exercer o papel próprio, com real autonomia aplicando seu próprio saber, o que os levavam a implementar práticas novas; e outro, em que os sujeitos exerciam a sua função de maneira mais tradicional, no qual o enfermeiro executava atos prescritos pelo médico.

Nos indivíduos marcados pelas práticas tradicionais, o papel prescrito ocupa lugar importante na representação e integra algumas prescrições do papel próprio. Ao passo que no momento que as práticas novas são mais frequentes, as prescrições relativas ao papel próprio se destacam no campo representacional. Tais resultados contribuem para o estabelecimento dos nexos que se constroem pelos enfermeiros no arranjo conferido às práticas de cuidar.1616. Abric-JC. Pratiques sociales et représentations. Paris (FR): Presses Universitaires de France; 2011.

No âmbito da análise dos resultados, esta influência de um modelo objetificado e calcado numa ciência médica é retratado quando os entrevistados abordam o papel exercido pela tecnologia, que funciona como uma "máquina fotográfica" que produz, por meio de códigos clínicos, um retrato objetivo do corpo do cliente, necessário para o direcionamento das ações. Isto explica, em muitos casos, a dependência criada ao seu redor pelo enfermeiro, que a utiliza, como metaforicamente diz o depoente 21, como uma "muleta" que supre sua ausência no leito para a obtenção e integração dos dados sobre o cliente.

A espessura social da tecnologia é, ainda, percebida quando os enfermeiros abordam seus efeitos positivos e negativos. Trata-se da dimensão dos afetos nas RSs, os quais contribuem na sua elaboração, pois o objeto provoca os sujeitos de tal maneira, que eles se veem impelidos a falar, a fim de participar das conversações para se sentirem incluídos.17 17. Arruda A. Meandros da teoria: a dimensão afetiva das representações sociais. In: Almeida AMO, Jodelet D, organizadores. Interdisciplinaridade e diversidade de paradigmas. Brasília (DF): Thesaurus; 2009. p. 83-102.Sobre isso, as preocupações com as repercussões da tecnologia na atualidade são frequentes, direcionando o foco para a necessidade de um exame moral no contexto tecnologicamente mediado da UTI, pois quando os enfermeiros aplicam a tecnologia para interpretar e avaliar os resultados clínicos, produz-se uma distância que os coloca em posições de poder, como autoridade epistêmica constrangendo os pacientes.18 18. O'Keefe-McCarthy S. Technologically mediated nursing care: the impact on moral agency. Nurs Ethics. 2009 Nov; 16(6):786-96.Por fim, à luz dos resultados, quando se alcança o restabelecimento do cliente a partir do uso das tecnologias, o produto do trabalho reflete-se na imagem do enfermeiro da UTI, que passa a ser admirado pelo seu preparo diferenciado, ratificando o senso comum, sendo compartilhada pelos intensivistas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os conteúdos das RSs de enfermeiros que atuam na TI sobre suas práticas de cuidado revelaram os elementos que as integram e que conformam, ao mesmo tempo, a perspectiva de ação assumida pelo profissional. As elaborações dos sujeitos sobre esse fenômeno trazem as marcas dos seus estilos de cuidar, as quais se constroem à luz da imagem idealizada de um paciente, ligada à tecnologia, organizada na formação profissional e sustentada na prática clínica da TI.

Esta imagem idealizada define uma figura-tipo de cliente próprio da TI, o qual demanda o uso de tecnologias para traduzirem em dados objetivos as reações do corpo, uma vez que não se espera que este cliente esteja comunicativo. Portanto, a interação enfermeiro-cliente é uma expressão de cuidado pouco esperada na assistência de enfermagem de TI.

No processo de formação destas RSs observam-se imagens que objetivam e ancoram a tecnologia, dando-lhe concretude e explicando sua funcionalidade cotidiana, tais como: retrato (máquina fotográfica), dispositivo tradutor do corpo, muleta, prótese, menina dos olhos, que realçam o protagonismo da tecnologia no cuidado a um paciente típico de TI. Nesta perspectiva, os enfermeiros pré-codificam sua realidade cotidiana, determinando um conjunto de antecipações e expectativas ante a tecnologia, que funciona como um sistema de interpretação socialmente compartilhado e orienta os comportamentos do grupo: ora de afastamento, ora de aproximação do cliente.

Este estudo suscita ações diretivas no campo da formação dos enfermeiros, mormente na reflexão dos referenciais teórico e filosóficos que a orientam, já que a tipificação do cliente dá origem a um modelo assistencial desintegrado e centrado na doença objetiva e nas suas evidências clínicas. No campo da prática, as reflexões suscitadas nesta pesquisa podem subsidiar a reinterpretação desta realidade pelos sujeitos, principalmente acerca das ideias ligadas ao paciente, ressignificando o cuidado de enfermagem a ele devido e prestado.

Em se tratando dos limites, reconhece-se que os dados apresentados guardam nexos com o contexto escolhido, não cabendo generalizações, já que as RSs filiam-se aos grupos que a constroem. A despeito disso, outras pesquisas em cenários de TI, de instituições públicas e privadas, permitirão ampliar o número de participantes, com maior abrangência dos resultados, mais parâmetros de comparação, possibilitando explorar outras vertentes.

REFERENCES

  • 1
    Silva RCL, Kaczmarkiewicz CC, Cunha JJSA, Meira IC, Figueiredo NMA, Porto IS. O significado da tecnologia no pós-operatório imediato de cirurgia cardíaca. Rev SOCERJ. 2009 Jul-Ago; 22(4):210-8.
  • 2
    Pols J, Moser I. Cold technologies versus warm care? On affective and social relations with and through care technologies. Alter. 2009 Mar; (3):159-78.
  • 3
    Vargas MAO, Ramos FRS. Tecnobiomedicina: implicações naquilo e daquilo que a enfermagem faz em terapia intensiva. Texto Contexto Enferm [online]. 2008 Jan-Mar [acesso 2008 Jun 13]; 17(1): Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072008000100019&lng=pt
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072008000100019&lng=pt
  • 4
    Silva RC, Ferreira MA. A dimensão da ação nas representações sociais da tecnologia no cuidado de enfermagem. Esc Anna Nery. 2011 Jan-Mar; 15(1):140-8.
  • 5
    Jodelet D. Representações Sociais: um domínio em expansão. Tradução Lilian Ulup. In: Jodelet D, organizadora. As representações sociais. Rio de Janeiro (RJ): EdUERJ; 2001. p. 17-44.
  • 6
    Jovchelovitch S. Os contextos do saber-representações, comunidade e cultura. Petrópolis (RJ): Vozes; 2008.
  • 7
    Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa (PT): Edições 70; 2007.
  • 8
    Silva LF, Damasceno MMC. Modos de dizer e fazer o cuidado de enfermagem em terapia intensiva cardiológica: reflexões para a prática. Texto Contexto Enferm. 2005 Abr-Jun; 14(2):258-65.
  • 9
    Pinho LB, Santos SMA. Dialética do cuidado humanizado na Unidade de Terapia Intensiva: contradições entre o discurso e a prática profissional do enfermeiro. Rev Esc Enferm USP. 2008 Mar; 42(1):66-72.
  • 10
    Oliveira BRG, Lopes TA, Vieira CS, Collet N. O processo de trabalho da equipe de enfermagem na UTI neonatal e o cuidar humanizado. Texto Contexto Enferm. 2006; 15(Esp):105-13.
  • 11
    Terraneo F, Seferdjeli L, Diby M. Le tour de lit aux soins intensifs: representations et prise d'information. Trav Humain. 2010 Oct; 73(4):339-59.
  • 12
    Ministério da Saúde (BR). Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Consulta Pública n. 21, de 27 de abril de 2006- Anexo. Minuta de Resolução que define o regulamento técnico para funcionamento de serviços de atenção ao paciente crítico e potencialmente crítico. [acesso 28 Ago 2012]. Disponível em: http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/CP/CP%5B14558-1-0%5D.PDF
    » http://www4.anvisa.gov.br/base/visadoc/CP/CP%5B14558-1-0%5D.PDF
  • 13
    Lino MM, Calil AM. O ensino de cuidados críticos/intensivos na formação do enfermeiro: momento para reflexão. Rev Esc Enferm USP. 2008 Dez; 42(4):777-83.
  • 14
    Camelo SHH. Competência profissional do enfermeiro para atuar em Unidades de Terapia Intensiva: uma revisão integrativa. Rev Latino-Am Enferm. 2012 Jan-Fev; 20(1):192-200.
  • 15
    Campos PHF. As representações sociais como forma de resistência ao conhecimento científico. In: Oliveira DC, Campos PHF, organizadores. Representações sociais: uma teoria sem fronteiras. Rio de Janeiro (RJ): Museu da República; 2005. p.85-98.
  • 16
    Abric-JC. Pratiques sociales et représentations. Paris (FR): Presses Universitaires de France; 2011.
  • 17
    Arruda A. Meandros da teoria: a dimensão afetiva das representações sociais. In: Almeida AMO, Jodelet D, organizadores. Interdisciplinaridade e diversidade de paradigmas. Brasília (DF): Thesaurus; 2009. p. 83-102.
  • 18
    O'Keefe-McCarthy S. Technologically mediated nursing care: the impact on moral agency. Nurs Ethics. 2009 Nov; 16(6):786-96.
  • 1
    Recorte da tese - Estilos de cuidar na terapia intensiva em face das tecnologias: uma contribuição à clínica do cuidado de enfermagem, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery (EEAN), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2012

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2012
  • Aceito
    23 Mar 2014
Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós Graduação em Enfermagem Campus Universitário Trindade, 88040-970 Florianópolis - Santa Catarina - Brasil, Tel.: (55 48) 3721-4915 / (55 48) 3721-9043 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: textoecontexto@contato.ufsc.br