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Sobrevivi ao câncer: análise fenomenológica da linguagem dos sobreviventes

Resumos

Buscou-se compreender os sentimentos de pessoas que sobreviveram ao câncer, por meio da pesquisa qualitativa, com a abordagem fenomenológica heideggeriana. Foram sujeitos cinco sobreviventes de câncer, acompanhados entre os anos de 2004 e 2005 por um projeto de extensão universitária no Noroeste do Paraná. Para captar os sentimentos dos sobreviventes, foi utilizada a entrevista fenomenológica. As pessoas foram entrevistadas, no próprio domicílio, entre os meses de janeiro a fevereiro de 2013, com a seguinte questão norteadora: "Como está sendo para você ter sobrevivido ao câncer?" Da análise dos discursos, emergiram quatro temáticas ontológicas: (Re) Lembrando o vigor de ter sido; (Re) Encontrando-se com a espiritualidade; Temendo a recidiva da doença; Esquecendo-se da temporalidade de existir com câncer. Concluímos que, em seu sendo-curada, as pacientes convivem com a angústia, que as lança a um estado aflitivo pelo temor da recidiva, como também as possibilita encontrar um novo sentido à vida.

Neoplasias; Sobrevida; Cuidados de enfermagem


The study attempted to understand the feelings of people who have survived cancer, through qualitative research with Heidegger's phenomenological approach. The study subjects were five cancer survivors, followed up during 2004 and 2005 through a university extension project in the northwestern region of the state of Paraná. Phenomenological interviews were held to capture the survivors' feelings, at their homes, during January and February 2013. "How is it for you to have survived cancer?" was the orienting question. Four ontological issues emerged from the analysis of their discourses: (re-) remembering the vigor of having been; (re-) encountering spirituality; fear of the disease's recurrence; forgetting the temporality of living with cancer. We conclude that, in their being-healed, patients live with anxiety, that throws them into a distressing state for fear of recurrence, as well as enabling them to find a new meaning to life.

Neoplasms; Survivorship; Nursing care


Buscamos comprender los sentimientos de personas que sobrevivieron al cáncer, por medio de la investigación cualitativa e abordaje fenomenológica heideggeriana. Fueron sujetos cinco sobrevivientes de cáncer, acompañados entre los años de 2004 y 2005 por un proyecto de extensión en el Noroeste de Paraná. Para captar los sentimientos de los sobrevivientes fue usada la entrevista fenomenológica. Las personas fueron entrevistadas, en el propio domicilio, entre los meses de enero a febrero de 2013, con la siguiente cuestión: "¿Cómo es para usted haber sobrevivido al cáncer?" Emergieron cuatro temáticas ontológicas: (Re) Acordándose el vigor de haber sido; (Re) Encontrándose con la espiritualidad; Temiendo la recidiva de la enfermedad; Olvidándose de la temporalidad de existir con cáncer. Llegamos a la conclusión que, en su ser-sanado, los pacientes viven con la angustia, que lanza en un estado penoso, por temor a la recurrencia, así como permite encontrar un nuevo sentido a la vida.

Neoplasias; Sobrevida; Atención de enfermería


INTRODUÇÃO

O câncer tem se mostrado como uma das principais causas de mortalidade no mundo, merecendo especial atenção por parte dos profissionais de saúde, no sentido de amenizar o sofrimento, pois a taxa de mortalidade é alta, sabendo que há cura para muitos casos. Portanto, quando alguém recebe o diagnóstico de câncer, que traz consigo o estigma de enfermidade incurável, surge em sua vida a possibilidade inevitável da morte.11. Martins AM, Almeida SSL, Modena CM. O ser-no-mundo com câncer: o dasein de pessoas ostomizadas. Rev Soc Brasil Psicol Hosp. 2011 Jan-Jun; 14(1):74-91.

Desta forma, estar com câncer vai além de uma dor física e um desconforto emocional, que faz com que a pessoa mergulhe em um nada existencial, por interferir nos ideais de vida do paciente, de sua família, de seu trabalho e renda. Sua mobilidade, imagem corporal e estilo de vida podem ser drasticamente alterados, de maneira temporária ou permanente, e produzir repercussões que afetem todos os envolvidos.22. Silva RCV, Cruz EA. Planejamento da assistência de enfermagem ao paciente oncológico. Rev Enferm Anna Nery. 2011 Jan-Mar; 15(1):180-85. Dentro desta temporalidade, a pessoa caminha entre a sombra constante da morte e a esperança de sobreviver à doença.

No que tange a sobrevivência após o câncer, a literatura indica que, nos Estados Unidos da América, a sobrevida dos doentes triplicou nos últimos 30 anos, apontando quase 10 milhões, pelo avanço das descobertas de diagnóstico precoce e de novas tecnologias de tratamento. Naquele País, o paciente com diagnóstico de câncer tem 64% de chance de sobrevida por cinco anos, comparada com a taxa de 50% de três décadas atrás.33. Muniz RM, Zago MMF, Schwartz E. As teias da sobrevivência oncológica: com a vida de novo. Texto Contexto Enferm. 2009 Jun-Mar; 18(1):25-32. No Brasil, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca),44. Ministério da Saúde (BR). A situação do Câncer no Brasil: sobrevida, estadiamento, relações incidência/mortalidade [página na Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Câncer; 2006. [acesso 2013 Jun 06]. Disponível em: http://www.inca.gov.br/situacao/
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a sobrevida relativa esperada para todos os tipos de cânceres é de, aproximadamente, 50% em cinco anos. Contudo, ainda necessitamos de estudos que avaliem a sobrevida de pacientes com câncer, de forma mais rotineira e continuada, por longos períodos de tempo, como já sucede em alguns países.44. Ministério da Saúde (BR). A situação do Câncer no Brasil: sobrevida, estadiamento, relações incidência/mortalidade [página na Internet]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Câncer; 2006. [acesso 2013 Jun 06]. Disponível em: http://www.inca.gov.br/situacao/
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A temporalidade de conviver com o câncer e seu tratamento remetem o doente a sensações negativas, tornando-o muitas vezes entristecido e com o pensamento de que as coisas se tornam cada vez mais difíceis. Tal pensar vai ao encontro do sentimento de incapacidade e de impotência diante das situações.55. Ferreira NML, Dupas G, Costa DB, Sanchez KOL. Câncer e família: compreendendo os significados simbólicos. Cienc Cuid Saúde. 2010 Abr-Jun; 9(2):269-77.

O projeto "Cuidados paliativos ao doente com câncer e suas famílias" surgiu em 2004, a fim de oportunizar um encontro com os pacientes que vivenciam o câncer em seu cotidiano. Este possui como objetivo fundamental o acompanhamento dos doentes com câncer e famílias em seus domicílios, a oferta de suporte holístico a estes pacientes e suas necessidades, mediante a utilização dos princípios dos cuidados paliativos.66. Sales CA, Silva MRB, Borgognoni K, Rorato C, Oliveira W. Cuidados paliativos: a arte de estar-com-o-outro de uma forma autêntica. Rev Enferm UERJ. 2008 Abr-Jun; 16(2):174-9.

No projeto acima mencionado, percebemos que, ao vivenciar a confirmação do diagnóstico de neoplasia, a pessoa sente o desejo de ser cuidada, amada, compreendida e, principalmente, de compartilhar suas preocupações e seus medos.77. Sales CA, Violin MR, Santos EM, Salci MA, D'Artibale EF, Decesaro MN. Cuidados paliativos: relato de experiência de sua aplicabilidade em um projeto de extensão. Cienc Cuid Saúde. 2009 Out-Dez; 8(supl):125-9. Nesta trajetória, compartilhamos o temor do doente ante a possibilidade incômoda da morte, que persistia em silenciar a vida, que ainda habitava em seu corpo, aniquilando não apenas as coisas particulares da pessoa doente, mas também seus sonhos de viver um porvir prazeroso.

De igual modo, ao ter o cotidiano invadido por uma doença neoplásica, o indivíduo tem a possibilidade de encontrar um novo significado à vida e transcender as suas vicissitudes,88. Soares PBM, Carneiro JA, Rocha LA, Gonçalves RCR, Martelli DRB, Silveira MF, et al. The quality of life of disease-free Brazilian breast cancer survivors. Rev Esc Enferm USP. 2013 Fev; 47(1):69-75. de forma que a mesma angústia que acompanhou o doente e sua família por difíceis caminhos em busca da cura, faz com que os mesmos saiam do estado de queda em que se encontram e vislumbrem o resplandecer de um novo horizonte. Assim, dos raros momentos resultantes da temporalidade vivenciada por aqueles que tiveram seu câncer estabilizado, surge a inquietação: qual o significado de vida para as pessoas que sobreviveram ao câncer?

Tal condição existencial faz emergir uma compreensão diferenciada para o cuidado em oncologia, transpondo um "fazer" que vai além do cuidado com sinais e sintomas da doença e exige do profissional de saúde uma preocupação com os aspectos emocionais, sociais e psicológicos para manter a qualidade de vida da pessoa. Diante do exposto, a finalidade deste estudo foi compreender os sentimentos de pessoas que sobreviveram ao câncer.

MÉTODO

Para este estudo, optamos pela pesquisa qualitativa, com a abordagem fenomenológica existencial heideggeriana. A fenomenologia coloca, como ponto de partida de sua reflexão, aquele ser que se dá a conhecer imediatamente, ou seja, o próprio homem, colocando-o dentro de uma dimensão ontológica. Possibilita a compreensão do ser, pois ele é aquilo que se oculta naquilo que se manifesta por meio da linguagem.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006.

A averiguação fenomenológica não vai partir de um problema, mas de uma interrogação. Quando o pesquisador interroga, ele terá uma trajetória e caminhará em direção ao fenômeno, naquilo que se manifesta por si, por meio da linguagem da pessoa que experiencia a situação. Destarte, para saber algo que nos leve à compreensão das concepções das pessoas que sobreviveram ao câncer, devemos interrogá-las em sua mundanidade de mundo, ou seja, em seu próprio mundo humano onde elas vivenciam o fenômeno a ser desvelado,99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006. o qual constitui nossa região de inquérito.

Os sujeitos da pesquisa em questão surgiram do projeto de extensão "Cuidados paliativos ao doente com câncer e suas famílias", elaborado e implantado, em 2004, na Universidade Estadual de Maringá, que acompanhou doentes com câncer em cuidados paliativos entre os anos de 2004 até a presente data. Entre os anos de 2004 e 2005, o projeto acompanhou 15 pessoas em tratamento de câncer, que permaneceram em acompanhamento até o estabelecimento do quadro, isto é, não apresentar sintomas da doença ou até a ocorrência de sua morte. Em 2012, através da solicitação de uma sobrevivente que desejava expor suas vivências, surgiu o interesse em investigar a sobrevida destas pessoas.

Ao buscar os sujeitos desta pesquisa, em visitas previamente agendadas, foram encontrados oito ex-participantes do projeto que sobreviveram ao câncer. Destaca-se o número expressivo de sobreviventes, considerando que o projeto em questão acompanhava pacientes com poucas perspectivas de cura. Reiteramos que, nesse projeto, consideramos que os cuidados paliativos devam ser introduzidos ao doente com câncer desde o diagnóstico, e não somente para aqueles sem perspectiva de cura.10 10. Boemer MR. Sobre cuidados paliativos. Rev Esc Enferm USP. 2009 Set; 43(3):500-1. Como critérios de inclusão dos depoentes, além da participação no projeto acima mencionado, o paciente não poderia apresentar recorrência do câncer nos últimos sete anos; deveria residir na cidade de Maringá-PR e possuir idade superior a 18 anos. Foram excluídos aqueles que possuíam outras comorbidades, que impossibilitavam sua participação, e os que morreram até o período de coleta de dados.

Dentre os oito pacientes encontrados, foram excluídas três pessoas, pois, uma apresentou recidiva da doença e morreu antes do período de coleta de dados; uma segunda mudou-se de cidade, sendo que perdemos seu contato; e a terceira não possuía condições psíquicas para responder às perguntas, pela instalação da doença de Alzheimer. Entrevistaram-se, portanto, no período de janeiro a fevereiro de 2013, cinco pessoas que sobreviveram ao câncer.

Como se trata de uma pesquisa que envolve seres humanos, observaram-se os aspectos éticos disciplinados pela Resolução n. 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde. A proposta de intenção para realização do estudo foi apreciada e aprovada pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá (Parecer n. 233.634). Esclarecemos, também, que foi assegurado aos partícipes o livre consentimento e a liberdade de desistir do estudo, se em qualquer momento assim desejassem; o sigilo quanto às informações prestadas; e o anonimato sempre que os resultados forem divulgados.

Assim, posteriormente ao primeiro contato com os antigos participantes do projeto, retornamos em seus domicílios para explicar a pesquisa e solicitar sua participação. Após a anuência do sobrevivente, iniciamos as entrevistas no domicílio de cada pessoa, com o intuito de captar seus sentimentos, como também, a sua expressão corporal. Utilizou-se um gravador digital e as gravações geradas, a partir dos discursos dos sujeitos, estarão guardadas por um período de cinco anos, quando serão descartadas.

A nosso ver, a descrição de experiências deve envolver pensamentos, sentimentos e ações sobre a realidade vivida. Nesse sentido, inquirimos os informantes com a seguinte questão norteadora: "Como está sendo para você ter sobrevivido ao câncer?" Para manter seu anonimato, foram referenciados como S1, S2, S3, S4 e S5.

Para captar a plenitude expressa pelos sujeitos em suas linguagens, optamos pela análise individual de cada discurso. Assim, a priori, realizamos leituras atentas de cada depoimento, separando os trechos ou unidades de sentidos que, para nós, mostraram-se como estruturas fundamentais da existência dos participantes entrevistados.1111. Josgrilberg RS. A fenomenologia como novo paradigma de uma ciência do existir. In: Pokladek DD, organizadora. A fenomenologia do cuidar: prática dos horizontes vividos nas áreas da saúde, educacional e organizacional. São Paulo (SP): Vetor; 2004. p.31-52. A posteriori, passamos a analisar as unidades de sentido de cada depoimento, realizando seleção fenomenológica da linguagem de cada sujeito,1111. Josgrilberg RS. A fenomenologia como novo paradigma de uma ciência do existir. In: Pokladek DD, organizadora. A fenomenologia do cuidar: prática dos horizontes vividos nas áreas da saúde, educacional e organizacional. São Paulo (SP): Vetor; 2004. p.31-52. que deu origem as temáticas ontológicas, analisadas à luz de algumas ideias heideggerianas, como também de estudiosos sobre o tema e pesquisadores que versam sobre os cuidados paliativos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise da linguagem dos participantes, emergiram quatro temáticas ontológicas: (Re) Lembrando o vigor de ter sido; (Re) Encontrando-se com a espiritualidade; Temendo a recidiva da doença; Esquecendo-se da temporalidade de existir com câncer.

(Re) Lembrando o vigor de ter sido

Em sua obra Ser e Tempo, Heidegger expõe a interpretação do homem autenticamente existente, isto é, o ser-aí em sua totalidade. Para o pensador, na antecipação da morte, o ser-aí existe autenticamente. Os alicerces ontológicos naturais da existencialidade do ser-aí são a temporalidade e a historicidade.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006.

Na decisão antecipativa, ou seja, na forma originária e autêntica do cuidar, o homem desvela todo o seu poder-ser, sendo que esse poder-ser manifesta-se em uma constituição temporal. É uma temporalidade primitiva que se temporaliza conforme três ek-stases. O porvir (futuro), o vigor de ter sido (passado) e a atualidade (presente).

Nesta temporalidade, apreendendo ser um ente para a morte, o ser-aí percebe-se lançado no mundo e vivenciando a facticidade de sua existência. O movimento temporal pelo qual ele faz o retorno ao seu estar-lançado constitui o passado. No pensar heideggeriano, é projetando-se em direção ao passado que o homem pode avistar e assumir o seu estar-no-mundo.9 9. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006.

E, nesta projeção temporal, o ser-aí se torna também histórico, mas a historicidade deste ser não reside no simples fato do ser-no-mundo ser objeto ou sujeito da história, mas de ter um destino. Nesse caso, história não significa somente o que passou, mas também a sua origem e seu significado para a pessoa.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006. "O ser humano pode voltar ao passado, porque a vida se compacta, se cristaliza sob formas significativas, de sentido e valor."12:137

A partir do exposto, visualizamos, nas linguagens dos sujeitos, que estar curado do câncer nesse ik-stante não apaga as lembranças de seu vigor de ter sido. "O passado sempre tem sentido somente, na medida em que é visto a partir de um presente."12:136 E, nesta atualidade, os pacientes demonstram angústia e sofrimento vivenciados nos momentos em que foram submetidos ao tratamento. O momento da quimioterapia se destaca dos demais, como sendo o de maior impacto, com seus efeitos e características que invadem o viver dos pacientes.

Aí eu comecei a fazer, fiz seis meses, mas aí eu fazia a semana toda, segunda, terça, quarta, quinta e sexta, todos os dias fazia, e era muito forte a quimioterapia. Eu perdi o cabelo, descasquei toda, era que nem um fogo dentro, assim, e não parava nada no estômago, nada, nada, nada, uma disenteria que não parava nada de comida. Aí, comia e ficava deitada na cama bem quietinha, se mexesse, pronto, tinha que ir ao banheiro, aí eu ia para cozinha comer de novo, porque parece que faltava o ar. Por seis meses, passei mal, mal, por seis meses... Eu tenho 77 anos de idade, agora, hoje eu estou boa, só que agora a gente chora (S1); [...] eu falei que enfrento, mas não sabia que era tão sofrido assim o tratamento. Eu fiz o tratamento, mas sofri, porque dá muito enjôo, dor de cabeça, foi câncer de mama, sofri bastante ... nossa! Depois de tanta oração, fui fazendo oração, aí eu me arribei, mas eu estava para baixo mesmo, achei que eu ia morrer, não apostava mais em nada. Seis meses de quimioterapia, esses foram sofridos (S2); A cirurgia transcorreu dentro da normalidade. O difícil veio depois, que era fazer as quimioterapia e radioterapia. A mais difícil era a quimioterapia, pois você tinha que estar bem alimentada, as plaquetas tinham que estar normalizadas, se não, não poderia fazer as seções, e teria que me fortalecer e voltar outro dia. Tinha muito enjoo e não tinha vontade de me alimentar (S3).

Nas narrativas, depreendemos que o tratamento quimioterápico se desvelou para estes seres impregnados de sofrimento, não somente na esfera física, mas abrangendo toda a dimensão humana dos mesmos. Esse sentimento nos fez compreender que, ao se descobrir-no-mundo com câncer, em muitos momentos, o doente torna-se incapaz de compreender a si próprio, vivendo mergulhado em sua própria solidão, em que seus sonhos permanecem enredados na existência, em uma relação natural em que o eu-doente está inteiro em seu mundo e o mundo está inteiro em sua doença.

Em consonância com estes achados, a literatura revela que, mesmo após ter ciência de que sua doença está estabilizada, o paciente que já vivenciou o câncer permanece com sentimentos aflorados acerca da doença, que circundam desde o temor ante a dependência do outro até o medo da finitude.1313. Ferreira DB, Farago PM, Reis PED, Funghetto SS. Nossa vida após o câncer de mama: percepções e repercussões sob o olhar do casal. Rev Bras Enferm. 2011 Mai-Jun; 64(3):536-44. Pois, as marcas profundas deixadas pelo conviver com o câncer permanecem atreladas a vida do indivíduo e perduram enquanto suas lembranças forem igualmente intensas e conexas aos seus sentimentos.

(Re) Encontrando-se com a espiritualidade

Quando a possibilidade da iminência de morte vem ao encontro do ser-no-mundo, principalmente, por meio de uma doença como o câncer, inicialmente o mesmo se abate, perde o sentido de sua vida, sentindo-se abandonado por Deus. Mas, sendo este ser um ser temporal, e esta temporalidade de existir-no-mundo com câncer o faz compreender-se sempre dessa ou daquela maneira, considerando que o estar-fora-de-si também traz consigo a possibilidade positiva de tornar-se um todo em alguma coisa.

No âmbito da analítica heideggeriana, é projetando-se em direção à possibilidade mais própria que o homem pode avistar e assumir o seu estar-no-mundo, realizando-se e aperfeiçoando-se no tempo real de sua vida, baseando-se em sua temporalidade.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006. E esta temporalidade traz ao ser-aí a capacidade de anteceder a si mesmo e reencontrar-se com Deus, e com sua espiritualidade, durante o tratamento e após, sentir sua vida restaurada e, principalmente, ao seu poder próprio, ou seja, como um ser do cuidado.

Para estes indivíduos, a espiritualidade é considerada um elemento vital na busca de propósitos e significados à vida, alcançando o mais íntimo da existência.1414. Asgeirsdottir GH, Sigurbjörnsson E, Traustadottir R, Sigurdardottir V, Gunnarsdottir S, Kelly E."To cherish each day as it comes": a qualitative study of spirituality among persons receiving palliative care. Support Care Cancer. 2013 May; 21(5):1445-51. É uma busca por respostas que transcende o momento vivido, ao auxiliar a adaptação e reorganização em prol de propósitos elevados, repensando os conceitos e prioridades da vida, ou seja, a busca de sentido.15 15. Rodrigues Gomes AM. La espiritualidade ante la proximidad de la muerte. Enfermería Globa [online]. 2011 Abr [acesso 2013 Jun 07]; 10(22):1-10. Disponível em: http://revistas.um.es/eglobal/article/view/122831/115471
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Ao avaliar a relação entre espiritualidade e câncer, estudo menciona que pacientes oncológicos atravessam delicados momentos no transcorrer da descoberta, tratamento e a cura, pois, inicialmente, passam por um estado de choque; depois percebem que o que está acontecendo é real e não sabem o que pensar; e, posteriormente, começam a planejar o futuro com esperança,1616. Guerero GP, Zago MMF, Sawada NO, Pinto MH. Relação entre espiritualidade e câncer: perspectiva do paciente. Rev Bras Enferm. 2011 Jan-Fev; 64(1):53-9. agarrando-se à sua fé.

Nesse entender, compreendemos, a partir da linguagem dos sujeitos, que os pacientes ao assumirem ser um sobrevivente do câncer, buscam novos horizontes para reconstruir suas vidas. E, principalmente, retribuir a graça recebida, cuidando do próximo e estando ao lado de outros doentes que vivenciam a mesma situação existencial. Nesses casos, a doença pode ser entendida como libertadora, pois possibilita à pessoa encontrar o verdadeiro sentido da vida, uma descoberta de si mesmo.33. Muniz RM, Zago MMF, Schwartz E. As teias da sobrevivência oncológica: com a vida de novo. Texto Contexto Enferm. 2009 Jun-Mar; 18(1):25-32.

Eu agradeço a Deus toda hora, toda hora. A gente se emociona [...] eu agradeço o meu médico toda hora e agradeço a Deus por ter devolvido a minha saúde. Agora eu me sinto bem, por isso que eu tenho que cuidar dos doentes. Deus me deu a saúde que eu tinha, melhor do que antes, eu ajudo todos os doentes que vêm aqui. Os que precisavam de mim, eu vou até o hospital junto, e em casa cuido ajudando a dar banho, porque parece que é uma obrigação que eu tenho de ajudar quem precisa, pois Deus devolveu a minha saúde (S1); Já faz 11 anos, sobrevivi, mas para essa sobrevivência eu lutei muito, acreditei em Deus e nos médicos que me trataram, cada vez que fazia os exames, eles me reconfortavam dizendo 'parabéns, você está conseguindo e vai conseguir'. Hoje faço apenas manutenção anual, estou bem e não penso mais sobre isso, apenas agradeço a Deus por essa sobrevivência (S3).

Nas narrativas, apreendemos, também, que ter sobrevivido ao câncer possibilitou, às depoentes, uma forma nova de olhar o mundo e as pessoas ao seu redor, fato este corroborado por estudos que evidenciaram a reorganização de estratégias de vida e uma nova significação aos fatos cotidianos por pacientes que vivenciaram o câncer em suas vidas.1717. Salci MA, Marcon SS. Após o câncer: uma nova maneira de viver a vida. Rev Rene. 2011 Abr-Jun; 12(2):374-83. - 1818. Salci MA, Marcon SS. A convivência com o fantasma do câncer. Rev Gaúcha Enferm. 2010 Mar; 31(1):18-25. Nesta visão, a espiritualidade é uma dimensão importante do homem que, somada com a biológica, intelectual, emocional e social, constitui aquilo que o diferencia na sua singularidade e pessoalidade.1919. Pinto C, Ribeiro JL. Avaliação da espiritualidade dos sobreviventes de cancro: implicações na qualidade de vida. Rev Port Sau Pub [online]. 2010 Jan-Jun; [acesso 2013 Jun 06]; 28(1):49-56. Disponível em: http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/pdf/rpsp/v28n1/v28n1a06.pdf
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A espiritualidade é uma expressão da identidade e o propósito da vida de cada um mediante a própria história, experiências e aspirações. O alívio do sofrimento acontece na medida em que a fé religiosa permite alterações na perspectiva pela qual o paciente e a comunidade percebem a doença grave.1616. Guerero GP, Zago MMF, Sawada NO, Pinto MH. Relação entre espiritualidade e câncer: perspectiva do paciente. Rev Bras Enferm. 2011 Jan-Fev; 64(1):53-9.

Temendo a recidiva da doença

Na analítica heideggeriana, a disposição ou tonalidade afetiva edifica-se sobre o passado, quando o homem se retrai eventualmente ao mundo do esquecimento, ao seu ter-sido-lançado. O filósofo refere que a disposição caracteriza-se no humor ou afetividade, representando os modos como o homem se expressa ao mundo em seu sendo-lançado. Nessa análise temporal do humor, o autor patenteia o temor e a angústia.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006.

O temor caracteriza-se como uma disposição imprópria, pois o temor encontra seu ensejo nos entes que vêm ao seu encontro descortinando um "malum futurum". O significado existencial e temporal do temor constitui-se de um esquecimento de si mesmo. O temor proporciona o afastamento do ser-aí do seu poder-ser mais próprio e, nesse esquecimento, ele não se reconhece mais em seu mundo circundante e não visualiza as várias possibilidades ao seu redor, pois, no temor, o homem perturba-se diante do mundo, tornando-se aflito e conturbado.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006.

Durante a leitura dos depoimentos, visualizamos a possibilidade da recidiva do câncer como o ente intramundano que já esteve presente e pode vir novamente ao encontro dos seres humanos deste estudo, provocando-lhes o sentimento de temor diante da probabilidade de terem que vivenciar, novamente, a presença do câncer em seus corpos. E, esta possibilidade faz de seu viver um misto de medo e incertezas, que circunda o temor da recidiva e a reaproximação da morte em cada momento em que este é lembrado.2020. Bennion AE, Molassiotis A. Qualitative research into the symptom experiences of adult cancer patients after treatments: a systematic review and meta-synthesis. Support Care Cancer. 2013 Jan; 21(1):9-25.

Eu falo assim, que estou bem, mas de repente os outros começam a falar, um morreu com isso e com aquilo, ai eu começo a ficar para baixo. Esses dias morreu a amiga da minha filha, minha colega, a mãe dela quer dizer, morreu... estava com câncer também, tem cinco anos, aí ela entrou em desespero, eu comecei a chorar. Aí, esses dias, trazem muitas lembranças e eu falo, 'não quero pensar nisso', mas, dali a pouco, vem a notícia morreu disso, daí a gente fica de novo com aquilo na cabeça. Eu faço de tudo para tirar, mas é duro, que nem, em Junho eu vou ter que fazer de novo os exames, cada vez que eu vou eu começo a rezar, pedir para não dar nada nos exames. Vai chegando perto de fazer exames eu fico angustiada, aquela angustia com medo (S2); Os primeiros tempos, eu ficava naquela coisa, qualquer coisinha de diferente, eu já achava já, ai será que tem a ver? Será que pode ser alguma coisa? Teve uma vez que eu tive sangramento retal, então já preocupada, será que pode ser? Já procurei um gastro, fui fazer exame (S4).

Na meditação heideggeriana, a linguagem faz parte ontológica existencial do ser-aí, isto é, um fenômeno positivo, que constitui a maneira do ser humano compreender e interpretar os fatos em sua mundaneidade de mundo. No entanto, enquanto projeto, o Dasein jamais alcançou a referência ontológica da fala, contentando-se em repetir e passar adiante o falado na falação. Neste caso, o falatório constitui-se em um modo inautêntico do ser-aí estar-no-mundo-com o outro.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006.

Um estudo que teve enfoque em mulheres que sobreviveram ao câncer corrobora com estes achados, ao aludir a presença do câncer na vida destas pessoas como um "fantasma", pois, mesmo após o término do tratamento, qualquer sinal de sua presença os faz reviver todo o sofrimento do passado.1818. Salci MA, Marcon SS. A convivência com o fantasma do câncer. Rev Gaúcha Enferm. 2010 Mar; 31(1):18-25.

Diante do exposto, abarcamos na linguagem do sobrevivente 2, que se sentir curado do câncer é conviver também com diz que diz dos entes ao seu redor, os quais não buscam entender realmente sua situação, pois a falação não apenas dispensa a tarefa de um compreender autêntico, como ainda elabora uma compreensibilidade indiferente da qual nada é excluído.99. Heidegger M. Ser e tempo. 16ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Universitária São Francisco; 2006.Sentimentos semelhantes foram encontrados em um relato de experiência lançado em 2010, no qual a autora, após sobreviver a um câncer de cólon, menciona que "[...] há pessoas que te questionam de uma forma normal, outras não te perguntam nada e vão falando coisas sem nada saber. Vieram me perguntar se eu tenho câncer de mama, pessoas que mesclam informações, pessoas que não me chamam por medo da reação que eu pudesse ter".21:6

A fenomenologia existencial da percepção analisa o corpo não enquanto um organismo físico, mas o contempla como uma totalidade, uma estrutura com relação às coisas que estão aí, ou seja, o sentido é algo que acontece no próprio corpo.22 22. Merleau Ponty M. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. 3ª ed. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2006.Assim, observamos também na fala da sobrevivente 4, que a mesma relata viver em um paradoxo existencial, isto é, por um lado sentir a vida outra vez em seu corpo, mas ao mesmo tempo viver com o prenúncio do reaparecimento da doença. Tal pensar nos leva a crer que a experiência de ser um sobrevivente só pode ser vivida e sentida em toda sua plenitude pela pessoa que sobrevive33. Muniz RM, Zago MMF, Schwartz E. As teias da sobrevivência oncológica: com a vida de novo. Texto Contexto Enferm. 2009 Jun-Mar; 18(1):25-32. e traz consigo a esperança, pois a mesma funda-se em um fenômeno importante na vida humana, assumindo especial relevo nas situações de crise.2323. Pinto S, Caldeira S, Martins JC. A esperança da pessoa com cancro: estudo em contexto de quimioterapia. Rev Enferm Ref [online]. 2012 [acesso 2013 Abr 18]; serIII(7). Disponível em: http://www.scielo.gpeari.mctes.pt/scielo.php?pid=S0874-02832012000200003&script=sci_arttext
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Esquecendo-se da temporalidade de existir com câncer

O ser humano em seu sendo-lançado-ao-mundo pode manifestar-se de forma inautêntica ou autêntica. A inautenticidade é uma maneira do ser-aí estar-no-mundo, mas é caracterizada pelo abandono de si mesmo, ou seja, o próprio ser abdica-se de si em favor do mundo. E, nesta condição, ele se esquece de sua possibilidade de ser um ser do cuidado.

Na analítica heideggeriana, o ser humano é um ser-no-mundo de possibilidades de transcendência,2424. Sebold LF, Carraro TE. Autenticidade do ser-enfermeiro-professor no ensino do cuidado de enfermagem: uma hermenêutica Heideggeriana. Texto Contexto Enferm. [online]. 2013 [acesso 2013 Mai 20] 22(1). Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072013000100003&script=sci_arttext&tlng=pt
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isto porque "o nosso existir caracteriza-se por um ter que ser que deve, a cada vez, isto é, a cada nova situação, ser assumido".25:62 Diante disto, depreendemos, nos discursos, que após transcender sua angústia existencial ante a probabilidade do retorno da doença em sua vida e, vivendo a temporalidade de estar curado, o ser-aí se abandona ao descuidado consigo próprio, olvidando sua facticidade de ser um ser arremessado no mundo, vivendo à mercê dos fatos e acontecimentos.

Nos depoimentos, desvelamos que a temporalidade de ser um sobrevivente do câncer os faz mergulharem em um estado de decadência existencial, perdendo-se nas banalidades cotidianas. E, neste estado, deixam de valorizar certos cuidados importantes para a permanência de sua saúde.

Eu particularmente me sinto assim: eu [...] eu esqueço que eu tive, na verdade. O ano passado inclusive eu fiz uma coisa que eu não podia fazer, devia ter feito os meus controles no início do ano, e na correria eu fui deixando, fui deixando e só fui na médica em julho. Tem época que eu estou assim, tão tranquila que eu deixei de valorizar. Todo ano tem que fazer a bateria de exames, já que no ano passado eu atrasei, daí eu faço a partir de julho, vai na médica que fez a quimioterapia e no médico mastologista. No começo, tinha aquela preocupação de ficar vendo se estava alterado, ficar apreensiva, hoje em dia, eu faço assim, normalmente, como se fosse um exame para ver glicemia, para ver colesterol. Isso seja talvez até ruim, eu já não tenho mais preocupação, acho que é ruim, porque eu deixo de valorizar talvez, algo que precisava ter um acompanhamento melhor, mas eu estou super tranquila, não vejo problema mais (S4); Saí do hospital, graças a Deus e não voltei mais, eu estou tão safada que nem para fazer exame. A minha filha fala: 'mãe, você precisa ir ao médico'; não gosto de médico, mas tem que estar sempre no médico. A gente tinha que ir, pelo menos, de ano em ano, ao médico, fazer um checape, tudo, mas vê se vai, vai nada. Graças a Deus e ao bom santo, não, na verdade não filha, graças a Deus de não sofrer e, às vezes, ficar aí traumatizada, com depressão, não, não, eu até esqueço filha, esqueço, para te falar a verdade eu esqueço que eu já fiz isso ai, nem lembro (S5).

Em seu sendo-no-mundo o ser-aí tem a liberdade de escolher seu próprio caminho, vivendo a vida conforme seu modo de ser e sentir o mundo, "o que significa assumir responsabilidades com o presente e com o futuro".24:27 Diante disto, podemos compreender através dos depoimentos de S4 e S5 que estas demonstram um viver presas ao presente. E, aprisionadas nesta temporalidade, deixam-se guiar pela situação, olvidando de si próprias e de seu cuidado. Tal atitude pode demonstrar que se sentir curado é carregar consigo o fantasma do câncer, como se o mesmo estivesse presente em seus corpos, mas em silêncio, podendo acordar a qualquer momento. Apreendemos, também, que desvelar o fenômeno vivido pelas sobreviventes, permitiu-nos "a compreensão do ser em suas múltiplas facetas, em suas vivências e relações no mundo cotidiano".26:985

Da análise das falas das sobreviventes, nesta temática ontológica, depreendemos ainda, que a anuência do câncer e seus tratamentos trazem consigo alterações cotidianas que transformam um indivíduo, deixando marcas que perduram por todo seu viver.2727. Pereira CM, Knob Pinto B, Manfrin Muniz R, Habekost Cardoso D, Pasolius Wexel W. Falling ill and surviving breast cancer: the experience of mastectomized women. Rev Pesq Cuid Fundam [online]. 2013 [acesso 2012 Mai 29] 5(2). Disponível em http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/2003
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Assim, o espectro da neoplasia e suas consternações permanecem nas memórias daqueles que com ela já conviveram, sendo que a maneira de encará-la se traduz de forma particular a cada indivíduo.

REFLEXÕES ACERCA DO ESTUDO

Ao adentrar no mundo do ser-aí sobrevivente do câncer, buscamos não apenas vislumbrar o ser humano, mas compreender este ser em sua existencialidade temporal. E, nesta vivência, esse tempo é o aspecto fenomenal mais imediato da temporalidade. Nesta situação, ele manifesta seu modo de ter sobrevivido ao câncer, pois, como um ser ôntico-ontológico, o homem desvela aos entes ao seu redor as alegrias, tristezas e, principalmente, as necessidades que abarcam suas prioridades ôntico-ontológicas.

A análise fenomenológica existencial permitiu-nos compreender os sentimentos dos depoentes, sendo que, para estes, sobreviver ao câncer é encontrar-se em uma temporalidade que ouve, vê e conhece; imagina e espera, alegra-se e angustia-se no contexto de sua facticidade existencial.

Assim, por este estudo, entendemos que, em seu sendo-curada, as pessoas passam a viver com a névoa da doença em seu cotidiano e, nestes momentos, a angústia se faz presente e o medo do retorno do câncer lança-as em um estado aflitivo, e, neste ik-stante de suas vidas, as pessoas tentam de todas as formas esquecerem seu vigor de ter sido e, esta atitude, fá-las não assumirem suas responsabilidades com o presente e com o futuro.

Entretanto, em alguns momentos, a angústia dá asas a um novo olhar para a vida, que se reflete em uma nova maneira de encarar problemas e aflições, restando apenas o sentimento de gratidão a um ente superior, por tudo que ficou no passado. De tal forma, estes indivíduos vivem ora de forma autêntica, demonstrando solicitude pelo próximo e ora de maneira inautêntica, quedando-se diante de suas possibilidades de permanecerem curadas.

Embasados nos sentimentos construídos ao longo do tempo pelos sobreviventes, demonstra-se a necessidade de ampliar o foco de atenção dos profissionais enfermeiros, haja vista que esta profissão tem papel relevante na manutenção da saúde e qualidade de vida das pessoas que sobreviveram ao câncer, pelo planejamento de ações dirigidas aos processos educacionais e apoio psicossocial destes seres, sensibilizando-as quanto à importância do cuidado de si por meio da realização de exames e acompanhamento médico, como forma de detectar precocemente qualquer anormalidade e, assim, poderem viver suas vidas de forma plena e saudável.

Somos impulsionados assim, à reflexão do cuidado praticado, a fim de proporcionar uma assistência que contemple as necessidades destes seres-no-mundo. Neste contexto, é imprescindível olhar não somente para sua dimensão física, mas para a totalidade de seu ser. A nosso ver, torna-se evidente a necessidade de o profissional utilizar o tempo como uma ferramenta de escuta para melhorar a qualidade da assistência, uma vez que a temporalidade de ser um sobrevivente do câncer aviva sentimentos de angústia, provenientes de não ter com quem, nem como partilhar os anseios que lhe causa desconforto físico e mental, restringindo assim sua qualidade de vida.

Apesar da magnitude dos sentimentos emergidos entre os sobreviventes, o estudo possui limitações, que não nos permitem generalizar seus achados a todos os sobreviventes do câncer; entretanto, reitera-se a oportunidade de oferecer aos profissionais de saúde algumas facetas que englobam o viver destes seres e, que merecem a atenção devida frente aos seus cuidados.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2013
  • Aceito
    06 Dez 2013
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