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A não implementação do processo de enfermagem: reflexão apoiada em conceitos de Deleuze e Guattari

Resumos

O processo de enfermagem pode contribuir para a consolidação da enfermagem como ciência, já que explicita a sistematização do seu pensar e do seu fazer, proporcionando visibilidade ao trabalho que é realizado. Entretanto, há muitas dificuldades de implementá-lo, relatadas em estudos nacionais e internacionais. Essas dificuldades motivaram a realização desse estudo, que teve como objetivo discutir e refletir sobre o trabalho da enfermagem, a partir de revisão teórica apoiada em aspectos da subjetividade, segundo Deleuze e Guattari, tendo em vista que podem ser inconscientemente manifestados pelas enfermeiras no seu cotidiano profissional, resultando na não implementação do processo de enfermagem.

Processos de enfermagem; Trabalho; Enfermagem


The nursing process can contribute to consolidate nursing as a science, as it evidences the systematization of its thinking and its actions, providing visibility to the work that is done. However, national and international studies have reported many difficulties that are faced when implementing it. These difficulties motivated the development of this study, which had the objective of discussing and reflecting on nursing work from a theoretical revision supported by aspects of subjectivity according to Deleuze and Guattari, considering that they may be unconsciously expressed by nurses in their daily professional tasks, resulting in the non-implementation of the nursing process.

Nursing process; Work; Nursing


El proceso de enfermería se constituye una fortaleza en la ciencia de Enfermería, pues contribuye para su consolidación, ya que explicita la sistematización del su pensar y hacer, dando visibilidad al trabajo que es realizado. Todavía, hay muchas dificultades en su implementación, reportadas en estudios nacionales e internacionales. Esas dificultades han motivado la construcción de este texto, que tuvo por objetivo reflexionar acerca del trabajo de enfermería, a partir de una reflexión teórica apoyada en aspectos de la subjetividad, de acuerdo con Deleuze y Guattari, llevando en cuenta que ellos pueden ser inconscientemente expresados por las enfermeras en su trabajo diario, afectando la implementación del proceso de enfermería.

Procesos de enfermería; Trabajo; Enfermería


INTRODUÇÃO

O Processo de Enfermagem (PE) constitui uma fortaleza na ciência da enfermagem, sendo considerado um instrumento que possibilita o planejamento e o desenvolvimento de cuidados qualificados ao indivíduo, família e comunidade, assim como o registro da prática profissional.11. Bordinhão RC. Processo de enfermagem em uma unidade de tratamento intensivo à luz da Teoria das Necessidades Humanas Básicas [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande Sul. Programa de Pós-Graduação em Enfermagem; 2010. Pode ser considerado, também, um modelo metodológico que auxilia a identificar, compreender, descrever, explicar ou predizer as necessidades humanas de saúde daqueles a quem a enfermagem presta seus cuidados,22. Garcia TR, Nóbrega MML. Processo de enfermagem: da teoria à prática assistencial e de pesquisa. Rev Enferm Esc Anna Nery. 2009 Jan-Mar; 13(1):188-93. pois favorece tomadas de decisão seguras, nas mais variadas situações clínicas, diminui a fragmentação dos cuidados e garante a sua continuidade, podendo, inclusive, servir de fundamentação permanente para a educação, a pesquisa e o gerenciamento em enfermagem.

Assim, o PE pode revigorar o pensamento crítico, desenvolver o raciocínio clínico e investigativo e fomentar a busca contínua de informações que visam a obter evidências científicas.33. Barra DCC, Dal Sasso GTM, Monticelli M. Processo de enfermagem informatizado em unidade de terapia intensiva: uma prática educativa com enfermeiros. Rev Eletr Enferm [online]. 2009 [acesso 2012 Abr 25]; 11(3). Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a15.htm
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Ao reunir estas características, reflete o comprometimento da enfermeira para com o cliente sob seus cuidados e o seu compromisso com a assistência e a satisfação das necessidades humanas de saúde afetadas.

Ultrapassando conceitos mais generalistas, cabe destacar que o PE pode contribuir para a consolidação da enfermagem como ciência, já que torna explícita a sistematização do seu pensar e do seu fazer, proporcionando visibilidade ao trabalho que realiza, sob a sua própria ótica, a ótica dos demais profissionais que compõem a equipe de enfermagem/saúde, assim como dos sujeitos individuais e/ou coletivos a quem assiste. No Brasil, sua implementação é preconizada pela Resolução n. 358/2009 do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), que propõe que ele seja implantado em cinco etapas inter-relacionadas, interdependentes e recorrentes: 1) Coleta de dados de enfermagem (histórico de enfermagem); 2) Diagnóstico de enfermagem; 3) Planejamento de enfermagem; 4) Implementação; 5) Avaliação de enfermagem.44. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução COFEN n. 358/2009. Sistematização da assistência de enfermagem e a implementação do processo de enfermagem em ambientes, públicos ou privados, em que ocorre o cuidado profissional de Enfermagem. [acesso 013 Jun 17]. Disponível em: http://novo.portalcofen.gov.br/resoluo-cofen-3582009_4384.html
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Entretanto, apesar disso e da sua importância, ainda são verificadas recusas e dificuldades na sua implementação, as quais são atribuídas a fatores como a diferença entre a teoria e a prática, a falta de tempo dos profissionais, a insuficiência na instrumentalização das enfermeiras para a sua execução, o acúmulo de atividades nos ambientes de cuidado, os desvios de função, a pouca percepção dos trabalhadores da enfermagem sobre o impacto do PE na organização do seu trabalho e na qualidade do cuidado; assim como a insuficiência de enfermeiras nas unidades de internação, a descrença, a resistência particularizada e as fragilidades na formação, durante a graduação.22. Garcia TR, Nóbrega MML. Processo de enfermagem: da teoria à prática assistencial e de pesquisa. Rev Enferm Esc Anna Nery. 2009 Jan-Mar; 13(1):188-93. - 33. Barra DCC, Dal Sasso GTM, Monticelli M. Processo de enfermagem informatizado em unidade de terapia intensiva: uma prática educativa com enfermeiros. Rev Eletr Enferm [online]. 2009 [acesso 2012 Abr 25]; 11(3). Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a15.htm
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, 55. Backes DS, Esperança MP, Amaro AM, Campos IEF, Cunha ADO. Sistematização da assistência de enfermagem: percepção dos enfermeiros de um hospital filantrópico. Acta Sci Health Sci. 2005; 27(1):25-9. - 66. Amante LN, Anders JC, Meirelles BHS, Padilha MI, Kletemberg DF. A interface entre o ensino do processo de enfermagem e sua aplicação na prática assistencial. Rev Eletr Enferm [online]. 2010 [acesso 2012 Abr 21]; 12(1). Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen/article/view/9538/6608
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No contexto internacional, também, são apontadas justificativas para a não implementação do PE, como a falta de tempo, devido a cargas de trabalho elevadas, a escassez de recursos humanos e materiais, a ausência de instrumentos para sua operacionalização, a recusa de profissionais e a necessidade de formação contínua dos enfermeiros.77. Fernández-Sola C, Granero-Molina J, Aguilera-Manrique G, Peredo-de MHG, Castro-Sánchez AM, Pérez AG. Strategies to develop the nursing process and nursing care plans in the health system in Bolivia. Int Nurs Rev. 2011 Set; 58(3):392-9.

Na Finlândia, os obstáculos para o uso dos diagnósticos de enfermagem podem ser representados pela falta de motivação, falta de informações suficientes sobre os mesmos, limitações de tempo, resistência das enfermeiras mais velhas ou falta de capacidade ou poder de fazer mudanças, a resistência de médicos e assistentes e pelo fato de considerar que a classificação não é útil ou compreensível para as próprias enfermeiras.88. Juntilla K, Salanterä S, Hupli M. Perioperative nurses' attitudes toward the use of nursing diagnoses in documentation. J Adv Nurs. 2005 Nov; 52(3):271-80. No que se refere à implementação e manutenção de planos de cuidados individuais, estudo realizado na Suécia destaca uma grande diferença entre o que é preconizado na legislação de enfermagem e o que é feito na prática. Portanto, parece que, por lá, países exemplares do primeiro mundo, a implantação de todas as etapas do PE também tem sido deficiente e/ou não priorizada.99. Jansson I, Pilhamar E, Forsberg A. factors and conditions that have an impact in relation to the successful implementation and maintenance of individual care plans. World views on Evidence-Based Nursing. 2011 Jun; 8(2):66-75.

Desse modo, pode-se considerar que determinados comportamentos característicos reproduzidos na maioria das instituições de saúde, sobretudo nas hospitalares, é fruto da composição heterogênea das equipes que as constituem, sejam elas de chefias, de médicos, de enfermagem ou de outros trabalhadores da saúde. Cada equipe, por sua vez, é feita de sujeitos individuais, que têm conhecimentos, crenças, valores e atitudes, histórica e socialmente, construídos e que são incorporados à sua subjetividade, manifestando-se, consciente ou inconscientemente, no seu modo de trabalhar. Portanto, aprofundar o conceito de subjetividade mostra-se necessário para discutir e refletir sobre o trabalho da enfermagem, pois, identificando como a subjetividade é produzida pode-se ultrapassar a curiosidade ingênua que permeia os motivos pelos quais o PE não é implementado e partir para a geração de novos conhecimentos.

A partir do exposto, justifica-se a relevância de discutir e refletir mais profundamente sobre o trabalho da enfermagem e possíveis aspectos que nele possam influenciar, de modo que a implementação do PE não venha a ser prejudicada e, até mesmo, inviabilizada. Para tanto, adotou-se uma abordagem apoiada no referencial filosófico de Deleuze e Guattari, que se fundamenta nas concepções de rizoma e árvore e apropria-se de aspectos da subjetividade para a explicação de fenômenos capitalísticos que influenciam todos os setores de produção social, inclusive, o trabalho da enfermagem/saúde. O objetivo deste estudo, então, é discutir e refletir sobre o trabalho da enfermagem, a partir de revisão teórica apoiada em aspectos da subjetividade, tendo em vista que podem ser inconscientemente manifestados pelas enfermeiras no seu cotidiano profissional, resultando na não implementação do Processo de Enfermagem.

A SUBJETIVIDADE E SUA PRODUÇÃO SOB A ÓTICA DE DELEUZE E GUATTARI

Antes de refletir sobre o trabalho da enfermagem sob a perspectiva proposta, é preciso abordar conceitualmente o que é e como é produzida a subjetividade, pois isso permitirá pensar para além das dificuldades de implementação do PE, por meio da implantação de todas as suas etapas. O subsídio teórico busca proporcionar elementos para a discussão e reflexão sobre aspectos que não tenham sido cogitados ainda e possibilite, também, o aprofundamento dos motivos relatados na literatura para não implementar o PE.

Para Deleuze e Guattari, a subjetividade é de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011. "Os processos de subjetivação não são centrados em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egoicas, microssociais) nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extraindividual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, ou seja, sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagem e de valor, modos de memorização e de produção de ideias, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos e assim por diante)".10:39

Deste modo, a subjetividade parece estar caracterizada de uma dupla maneira: de um lado, o fato de habitar processos infrapessoais e, de outro, o fato de ser essencialmente agenciada em nível de relações sociais, econômicas, maquínicas, de ser aberta a todas as determinações socioantropológicas e econômicas. Em síntese, são características da subjetividade: 1) não ser passível de totalização ou de centralização no indivíduo, pois é essencialmente fabricada e modelada no registro do social; 2) ser essencialmente social e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares; e 3) ser manufaturada como o são a energia, a eletricidade ou o alumínio.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

A subjetividade é, portanto, plural e pode ser interna ou externamente construída. No que se refere ao trabalhador, a sua subjetividade veio sendo construída desde a infância, a partir da família e da escola, seguindo-se por toda a vida, sempre com o intuito de atender às demandas impostas pelo capitalismo. Essa subjetividade, denominada de subjetividade capitalística, pode ser construída inconscientemente pelos equipamentos sociais (instituições religiosas, militares, corporativistas, etc.), pelos meios de comunicação e pelos métodos psicológicos de adaptação de todos os tipos, inclusive, as relações de poder dominante. A função dessa subjetividade capitalística é fazer com que as pessoas entrem em quadros preestabelecidos, para adaptá-las a finalidades pretensamente universais e eternas, as quais podem ser contrárias aos seus interesses.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011. - 1111. Lunardi-Filho WD. O mito da subalternidade do trabalho da enfermagem à medicina. 2ª ed. Pelotas (RS): Universitária UFPel; 2004.

Assim, a subjetividade capitalística acaba por ser naturalizada nos indivíduos, de modo que eles, inconscientemente, possam se tornar cúmplices das formações repressivas dominantes, o que os leva a participarem, também, da produção de controle e repressão. A obediência a esse sistema pode estar relacionada à aceitação de que esse é o único sistema possível, pois, do contrário, se desobedecida essa ordem, poderia ser comprometida a organização da sociedade. Portanto, a obediência à autoridade está incorporada ao comportamento humano e é histórica e socialmente construída. A mudança de tal condição, no entanto, depende da emergência do desejo de desobedecer, o qual é percebido, geralmente, como perigoso e associal e fora das normas do sistema.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011. - 1111. Lunardi-Filho WD. O mito da subalternidade do trabalho da enfermagem à medicina. 2ª ed. Pelotas (RS): Universitária UFPel; 2004.

Justamente pelas concepções construídas ao longo da trajetória social e individual, o enfrentamento das condições opressoras é geralmente reprimido, tanto pelo sistema quanto pelos indivíduos, o que significa que eles próprios boicotam o seu desejo de fazer diferente, de criar e de se libertar. É possível afirmar, então, que somos colaboradores com a produção de uma subjetividade infantilizada, em que se estabelece uma relação de dependência para com o Estado, o qual tende a ser o mediador de tudo o que se faz e o que se pensa ou que se possa vir a fazer ou a pensar; ou seja, o Estado passa a ser o mediador de qualquer produção social.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011. - 1111. Lunardi-Filho WD. O mito da subalternidade do trabalho da enfermagem à medicina. 2ª ed. Pelotas (RS): Universitária UFPel; 2004.

Essa postura também pode ser justificada pelo medo que temos de ser confinados à marginalidade, ou seja, de nos transformarmos em "pessoas-margens" (marginais) e, como tal, virarmos vítimas de maior controle, vigia e punição e, até mesmo, termos comprometida a própria possibilidade de sobrevivência. Nesse caso, então, a tendência é assumir uma posição meramente defensiva, mesmo que vá de encontro aos nossos ideais e consciência.

O modo pelo qual os indivíduos vivem a subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, como já foi destacado; ou, então, uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que é denominado de singularização, ou seja, "algo que frustra esses mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos cercam e espreitam de todos os lados".10:55

O que vai caracterizar esse processo de singularização do trabalhador é que ele seja automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem ficar numa posição constante de dependência em relação ao poder global, em nível econômico, em nível do saber, em nível técnico, em nível das segregações, dos tipos de prestígio que são difundidos. A partir do momento em que os indivíduos e grupos adquirem essa liberdade de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de ler sua própria situação e aquilo que se passa em torno deles. Essa capacidade é que lhes vai dar um mínimo de possibilidade de criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autonomia tão importante.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011. Após essa breve apresentação do conceito de subjetividade, parte-se para a abordagem dos conceitos de rizoma e árvore, que permitem fazer, posteriormente, uma analogia entre o modo como as enfermeiras organizam o seu trabalho e as questões subjetivas que as constituem.

OS CONCEITOS DE RIZOMA E ÁRVORE COMO REFERENCIAL PARA PENSAR O TRABALHO DA ENFERMAGEM

Um dos conceitos de Deleuze e Guattari utilizados neste trabalho é o de "rizoma" que, para os autores, tem uma aproximação com a botânica, porém, de forma mais ampliada. Em botânica, o rizoma é um tipo de caule que algumas plantas verdes possuem, caracterizado por crescimento horizontal, comumente subterrâneo, mas que também pode ter porções aéreas. Ele pode servir como órgão de reserva de energia, tornando-se tuberoso, mas mantendo uma estrutura diferente de um tubérculo.1212. Cabral C, Borges D. Rizoma: uma introdução aos mil platôs de Deleuze e Guattari. Rev Critério [online]. 2005 [acesso 2012 Mai 21]; 1(4). Disponível em: http://www.academia.edu/482209/Rizoma_uma_introducao_aos_Mil_Platos_de_Deleuze_e_Guattari
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Assim, o rizoma é mais do que um tipo de caule, pois contempla a multiplicidade. Essa multiplicidade pode estar, seguindo-se a abstração, no conjunto do caule com "a terra, o ar, os animais, a ideia humana de solo e a árvore, o que não se limita apenas à pura materialidade, mas à imaterialidade de uma máquina abstrata que o arrasta, sendo, portanto, um conceito ao mesmo tempo ontológico e pragmático de análise".12:2- 33. Barra DCC, Dal Sasso GTM, Monticelli M. Processo de enfermagem informatizado em unidade de terapia intensiva: uma prática educativa com enfermeiros. Rev Eletr Enferm [online]. 2009 [acesso 2012 Abr 25]; 11(3). Disponível em: http://www.fen.ufg.br/revista/v11/n3/v11n3a15.htm
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Um rizoma não tem início nem fim. Ele não é subordinado a um ponto nem à verticalidade e não é exato. O rizoma é um conjunto de elementos vagos, nômades, desorganizados e não de classes, apresentando como princípios a conexão e a heterogeneidade; a multiplicidade; a ruptura a-significante e a cartografia. Assim, "qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo".13:15 O rizoma não fixa pontos nem ordens, havendo apenas trajetos de diversas semióticas, estados e coisas, e nada remete necessariamente a outra coisa. Uma análise rizomática, portanto, procura "estabelecer conexões transversais entre os estratos e os níveis, sem centrá-los ou cercá-los, mas atravessando-os, conectando-os".10:322

Seguindo o princípio de ruptura a-significante, um rizoma pode ser rompido e quebrado em qualquer ponto, assim como pode ser retomado, segundo uma ou outra de suas linhas ou mesmo outras linhas. Quando ocorre essa ruptura, as linhas segmentares que formam o rizoma explodem numa linha de fuga, que pode encontrar-se com elementos que reordenam o conjunto e reconstituem o sujeito.1313. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo (SP): editora 34; 2004. Assim como um mapa, o rizoma é aberto e desmontável, podendo ser conectado em qualquer uma de suas partes ou dimensões, sendo ainda reversível e suscetível de receber montagens de qualquer natureza e passível de ser (re)construído por um indivíduo ou uma formação social, como obra de uma ação política, por exemplo. A essa analogia com um mapa pode-se atribuir o princípio de cartografia do rizoma.

Por ser mapa, o rizoma se opõe ao decalque. Por ser mapa, o rizoma compreende a multiplicidade, a qual é negada pelo decalque; ou seja, o decalque, como resultado de reprodução estática de uma condição, modela e paralisa o rizoma como numa fotografia e, a partir do registro feito, o reproduz infinitamente, sem considerar suas modificações, multiplicidades e heterogeneidades; sem permitir abertura a possíveis novas condições. O decalque traduz o mapa em imagem, organiza, estabiliza e neutraliza as multiplicidades, segundo eixos de significância e de subjetivação que são os seus. O decalque já não reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por conseguinte, o decalque pode ser perigoso, uma vez que reproduza do mapa ou do rizoma somente os impasses, os bloqueios ou os pontos de estruturação.1212. Cabral C, Borges D. Rizoma: uma introdução aos mil platôs de Deleuze e Guattari. Rev Critério [online]. 2005 [acesso 2012 Mai 21]; 1(4). Disponível em: http://www.academia.edu/482209/Rizoma_uma_introducao_aos_Mil_Platos_de_Deleuze_e_Guattari
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Em oposição ao conceito de rizoma, Deleuze e Guattari1313. Deleuze G, Guattari F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo (SP): editora 34; 2004. apresentam a definição de árvore, que tem como características a articulação e hierarquização de decalques. A árvore inspira uma imagem do pensamento que imita o múltiplo, a partir de uma unidade superior, de centro. Deste modo, os modelos arborescentes recebem informações de uma unidade superior e uma atribuição subjetiva de ligações preestabelecidas. Para eles, a árvore pode também incluir um rizoma, no entanto, mantendo uma estrutura verticalizada, concomitantemente, da qual brotam outras estruturas horizontais e multifacetadas. "Existem sempre estruturas de árvores e raízes no rizoma, mas das árvores também brotam os rizomas".12:8

Rizoma e árvore, então, podem representar o trabalho da enfermagem. À primeira vista, isso parece impossível e até ilógico, mas, a seguir, a devida analogia será apresentada, levando o leitor a refletir sobre o trabalho da enfermagem sob a ótica do pensamento rizomático, articulado às questões da subjetividade.

O TRABALHO DA ENFERMAGEM E A NÃO IMPLEMENTAÇÃO DO PROCESSO DE ENFERMAGEM

Numa tentativa de aproximação entre os conceitos anteriormente referidos, pode-se pensar o trabalho da enfermagem como uma estrutura arborífica e, ao mesmo tempo, rizomática. Isso se justifica porque a enfermagem utiliza-se de um corpo de conhecimentos verticalizados e estruturantes, menos flexíveis, que podem ser representados pela clínica e pela gestão ou gerenciamento em saúde, por exemplo. Estes saberes têm a sua devida importância e não podem ser substituídos, sendo, no máximo, aperfeiçoados para garantir uma maior qualidade no cuidado prestado. Por outro lado, a enfermagem como ciência precisa ser pensada sob uma perspectiva que não obedeça a um raciocínio linear ou unidirecional, suportando a ambivalência, a diversidade e até mesmo o caos, cujas características permitem novas compreensões sobre um mesmo objeto, fora de uma estrutura rígida e padronizada.

Deste modo, o que se pretendeu fazer nesse estudo foi pensar o trabalho da enfermagem sob esse prisma mais ampliado, em que as dificuldades que emergem da prática e prejudicam a implementação do PE são heterogêneas e conectadas, múltiplas e cartografadas, atendendo aos princípios do rizoma. Por outro lado, o PE em si, pode ser representado pela estrutura mais verticalizada, quando pensado sob a ótica da clínica, uma vez que, para o seu desenvolvimento na íntegra, são requisitados conhecimentos de anatomia, biologia, patologia e farmacologia, entre outros. A seguir, apresenta-se a figura 1, que busca apresentar ao leitor a estrutura do trabalho da enfermagem, sob a perspectiva teórica de Deleuze e Guattari.

Figura 1
O trabalho da enfermagem

O que se tenta representar através dessa figura é o trabalho da enfermagem, que é trespassado por um corpo de conhecimentos científicos, denominado processo de Enfermagem. O PE, como método científico que orienta o trabalho da enfermagem, reúne saberes baseados no modelo clínico, mais verticalizado e objetivo e, talvez, inflexível. Por isso, aqui ele é equiparado à estrutura arborescente descrita por Deleuze e Guattari.

Em contrapartida, o rizoma pode ser representado pela trama de linhas vista nessa figura, que forma um conjunto de aspectos que levam às dificuldades de implementação do PE, ou seja, uma rede de fatores que interferem no trabalho da enfermeira, a depender de estímulo externo ou mesmo da sua subjetividade e das subjetividades dos demais trabalhadores. Essa trama, quando vista mais detalhadamente, mostra os princípios do rizoma, como a heterogeneidade e interconexão, a multiplicidade e a cartografia.

Na figura, os elementos estão representados por símbolos heterogêneos, não definidos especificamente, mas que, talvez, digam respeito ao ambiente familiar e de trabalho da enfermeira; à cultura e organização institucional; à relação da enfermeira com as equipes multiprofissional e de enfermagem, bem como com as diferentes chefias, os pacientes, familiares e estudantes de graduação e de pós-graduação. Também, podem se referir à relação com os recursos materiais e com a possibilidade de desenvolvimento profissional da enfermeira; ao seu salário; às relações de poder e resistência; aos seus sentimentos, emoções, sensibilidade, desejos e (des)motivações, entre outros. Assim como o rizoma pode ser subterrâneo e não percebido à primeira vista, essas características também podem estar veladas no trabalho da enfermagem.

A heterogeneidade representada por essa gama de elementos de origem e natureza distintas é reforçada pela inexistência de uma ordem hierárquica ou de importância para a interferência positiva ou negativa no trabalho. Além disso, ultrapassa a ideia de que as dificuldades de implementação do PE sejam somente atribuídas ao (não) saber clínico, mas vão além do próprio ambiente e do saber que envolve o trabalho.

Deste modo, considera-se que não se trata unicamente de uma questão de enquadrar as etapas do PE no cotidiano das enfermeiras. É preciso pensar o próprio trabalho, sob a influência de uma multiplicidade e heterogeneidade de fatores e de caminhos percorridos, tendo a compreensão que eles podem agir isoladamente, não necessariamente dependendo um do outro ou mesmo continuarem interferindo no trabalho, ainda que haja a ruptura de um ou de alguns deles. Essa ótica proposta vai ao encontro do pensamento rizomático, que permite reconhecer, aceitar e promover múltiplos discursos dentro da enfermagem, desafiando o status quo, ao mesmo tempo em que promove alternativas e caminhos de transformação.1414. Holmes D, Gastaldo D. Rhizomatic thought in nursing: an alternative path for the development of the discipline. Nurs Philosophy. 2004 Nov; 5(3):258-67.

É relevante pensar que todos os elementos citados podem já constituir a subjetividade da enfermeira e demais profissionais da equipe de enfermagem no seu grupo institucional ou como categoria profissional ou, se não for isso, podem moldar novas subjetividades individuais daqueles que se iniciam na profissão. Portanto, se houver consciência da interferência de todos os elementos que estão presentes no trabalho da enfermeira e dos integrantes da equipe de enfermagem, pode-se pensar em estratégias teoricamente fundamentadas para superar os obstáculos à implementação do PE, atuando diretamente nos determinantes da denominada subjetividade capitalística, cujos efeitos podem estar sendo sentidos pela enfermagem como um todo. Mas será que as enfermeiras têm consciência disso?

Uma das alternativas para o enfrentamento dessa subjetividade imposta pelo capitalismo são os processos de singularização já mencionados, entre os quais se pode destacar a "revolução molecular". Ela diz respeito a um sistema de contestação da subjetividade capitalística, a partir do questionamento da vida cotidiana, das reações de recusa ao trabalho em sua forma atual (capitalística), a fim de criar mutações nas parcelas de subjetividade consciente e inconsciente dos indivíduos e grupos sociais. Portanto, a revolução molecular consiste em produzir as condições não só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio, tanto no campo material quanto no campo subjetivo.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

No que se refere ao trabalho da enfermagem, verificou-se, por exemplo, a recorrente reclamação de falta de tempo para a implementação do PE, tanto em âmbito nacional quanto internacional. Essa questão pode ser melhor discutida, sob a ótica dos processos de singularização, em que as enfermeiras (em ação de grupo, numa mesma unidade de internação ou instituição) podem questionar a atual rotina de trabalho e sua organização e proceder à negação daquilo que, muitas vezes, possa ou deva ser realizado por outros integrantes da equipe de enfermagem/saúde, não desperdiçando seu tempo com atividades que são de competência legal e moral de outros (trabalho de secretaria, telefonista, etc.). Isso poderia contribuir para que o trabalho específico da enfermagem fosse priorizado e, assim, instituída uma nova rotina que incluísse a implementação do PE numa dinâmica por turnos. Será que isso costuma ser feito? Pode-se dizer que a enfermagem produz processos de singularização?

Portanto, no momento em que as enfermeiras pensarem o seu trabalho e verificarem qual é a lógica que o alimenta (agir sob a perspectiva de produção quantitativa, agir coagido por colegas de mesma classe/categoria profissional ou de outras, pressão da chefia ou dos moldes institucionais, pelos planos e ritmos de trabalho impostos), será possível transformá-lo. Tomando-se consciência disso, talvez, as enfermeiras consigam se desadaptar da lógica a que foram adaptadas, seja por vontade própria, por conveniência, obrigação ou até por uma questão de sobrevivência no ambiente de trabalho (da unidade ou da instituição).

A atitude dos trabalhadores da enfermagem, diante de uma mesma organização, pode vir no sentido da criatividade, da expressão de sua singularidade, ao invés de sujeição à subjetividade moldada institucionalmente; ou seja, a mera reprodução de decalques. É fato que existe uma organização prescrita, que independe do trabalhador, mas que pode ser por ele modificada em sua interação no processo de trabalho; e existe, ainda, uma outra organização que é prescrita pelo próprio trabalhador, no momento em que ele pensa seu trabalho. Neste cenário, suas ações e pensamentos dão vida à organização real.1515. Azambuja EP, Pires DEP, Cezar-Vaz MR, Marziale MH. É possível produzir saúde no trabalho da enfermagem? Texto Contexto Enferm. 2010 Out-Dez; 19(4):658-66.

No momento em que o trabalhador pensa/projeta seu trabalho, sua ação para o sujeito do cuidado, está, de certa forma, planejando, sistematizando, construindo e avaliando o cuidado, ou seja, está organizando o seu trabalho. É, no espaço entre a organização prescrita do trabalho e a ação concretamente realizada, que a subjetividade do trabalhador mostra-se com mais força, apesar de ser, quase sempre, de forma ainda invisível, insipiente. É o espaço em que ele pode se colocar inteiro, sujeito participante, sujeito determinante, sujeito criativo, com autonomia no seu fazer.1515. Azambuja EP, Pires DEP, Cezar-Vaz MR, Marziale MH. É possível produzir saúde no trabalho da enfermagem? Texto Contexto Enferm. 2010 Out-Dez; 19(4):658-66. Mas, em relação a isso, questiona-se: o trabalhador da enfermagem tem liberdade para viver seus processos? Ele tem a devida autonomia para ser o mediador do próprio trabalho?

Considera-se que, se o trabalhador da enfermagem pensar-se como agente participante e determinante do próprio trabalho terá autonomia de modelar o seu fazer, com a responsabilidade de desenvolver sempre o melhor, ou seja, um cuidado qualificado, ao mesmo tempo em que não precisa depender necessariamente de um referencial institucional ou do emprego de uma rotina predeterminada. A enfermeira, assim, construindo uma linha de fuga, quer dizer, inventando um caminho para desenvolver o seu trabalho diferentemente da linha de produção capitalista e organizada pela instituição ou sistema de saúde, pode e deve ter autonomia para buscar conhecimentos que a ajudem a melhor pensar e realizar o seu trabalho, de modo a criar alternativas viáveis para um cuidado mais efetivo dos pacientes sob sua responsabilidade.

Mais especificamente em relação ao PE, quer-se dizer que as enfermeiras não precisam esperar que os gestores do hospital ou mesmo do sistema de saúde determinem e imponham a execução e registro deste método para começarem a melhor desenvolvê-lo. As enfermeiras podem criar seus próprios modos de referência, suas cartografias, assim como podem inventar sua práxis, de modo a fazer brechas no sistema de subjetividade dominante, não reproduzindo um aspecto que, talvez, pertença à cultura da instituição.

Portanto, elas mesmas podem criar seus caminhos para constituir uma rotina que seja viável à implementação do PE, desde que tenham o desejo de fazê-lo. "O traço comum entre os diferentes processos de singularização é um devir diferencial que recusa a subjetivação capitalística. Isso se sente por um calor nas relações, por determinada maneira de desejar, por uma afirmação positiva da criatividade, por uma vontade de amar, por uma vontade de simplesmente viver ou sobreviver, pela multiplicidade dessas vontades. É preciso abrir espaços para que isso aconteça. O desejo só poder ser vivido em vetores de singularidade".10:56

Assim, verifica-se que o desejo é outro processo de singularização importante, capaz de promover microprocessos revolucionários. Ele permeia o campo social em práticas imediatas e em projetos ambiciosos e pode ser definido como uma infinidade de vontades, desde a vontade de viver, de criar, de amar, até mesmo a de inventar uma outra sociedade e outras percepções de mundo e noções de valores. Portanto, "o desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de construção de algo".10:261 Será que existe o desejo de fazer diferente? Ou o desejo, como refere Guattari, já foi castrado por outros e não é mais manifestado pelo trabalhador da enfermagem?

Como o desejo é produção de algo, Guattari e Deleuze usam a expressão "máquina desejante" como metáfora para se referir a ele, considerando o contexto capitalístico a que toda a sua obra se relaciona. Seguindo-se essa perspectiva, o desejo tem diferentes possibilidades de montagem, não sendo resumido aos esquemas da psicanálise, tampouco podendo ser equiparado a um instinto animal, a uma pulsão orgânica ou força bruta. O desejo não é uma energia indiferenciada nem uma função de desordem. Portanto, ele não pode ser considerado como algo nebuloso, desorganizado e que precisa ser castrado ou disciplinado. O desejo mostra-se conectado com elementos diferentes que estão em seu entorno, os quais podem ir da família ao cosmos.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011.

Entretanto, pensar o desejo também requer um pouco de ponderação, tendo em vista que ele não é uma força que, por si mesma, vá construir todo um universo coordenado. Como toda máquina, o desejo também pode se paralisar e bloquear, correndo o risco de se autodestruir. A concepção de desejo no campo social tende a questionar a ideia de que o desejo e a subjetividade estariam centrados nos indivíduos e resultariam da interação de fatos individuais no plano coletivo. Guattari parte mais da ideia de um processo ou sistema coletivo de construção do desejo e da subjetividade que, em algumas circunstâncias ou em alguns contextos sociais, podem se individualizar. No caso do PE, de que forma o desejo de realizá-lo pode se transformar em atitudes viáveis de implementá-lo?

Todos os movimentos de singularidade, que potencializam as maneiras de existir de modo autêntico, chocam-se contra "o muro da subjetividade capitalística", sendo preciso construir uma outra lógica "- diferente da lógica habitual - para poder fazer coexistir esse muro com a imagem de um alvo que uma força seria capaz de perfurar".10:172 Isso deve ser feito, mesmo sabendo o quanto esse muro pode ser terrível e como sua demolição implica encontrar meios difíceis e organizados e, ao mesmo tempo, continuar a desenvolver territórios onde as pessoas se sintam bem. Em caso de não se preservar essas duas dimensões, corre-se o risco de deixar o poder para o Estado, que irá controlar tudo e a todos, nos levando a uma situação de impotência.1010. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: Cartografias do desejo. 11ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 2011. "Propomo-nos fazer algo e, se funciona, tudo bem; se não funciona, também tudo bem, pois podemos eventualmente fazê-lo de um outro jeito, uma outra vez. Em compensação, é muito importante que exista essa estrutura de parâmetros, onde se possa acompanhar as problemáticas tais como elas aparecem, onde se possa expressar essas espécies de investimento coletivo de desejo, onde se possa avaliar juntos a consistência desses diferentes projetos".10:147 Portanto, corrobora-se com Deleuze e Guattari, quando afirmam que um diálogo entre minorias pode ter um alcance maior do que um simples acordo entre grupos oprimidos. Esse diálogo pode levar a uma atitude positiva, mais ofensiva, que vai consistir num questionamento da própria finalidade das sociedades atuais.

PARA FINALIZAR...

Em síntese, conforme aponta o referencial filosófico utilizado, a subjetividade é interna e externamente construída, estando relacionada a uma heterogeneidade de fatores que são socio-historicamente determinados. Alguns comportamentos ou atitudes que se revelam na prática do trabalhador de enfermagem podem, muitas vezes, estar relacionados a tudo o que ele aprendeu em sua vida, desde a infância e também durante os anos de formação e atuação profissional. Deste modo, é difícil modificar hábitos que já estão incutidos inconscientemente nestes trabalhadores, pelo menos, sem que haja uma problematização que desperte a sua consciência para isso; ou seja, que provoque a sua reflexão sobre por que faz de determinado modo, o que o levou a agir daquela maneira e o que espera do seu trabalho.

Estimular o trabalhador a exercer a práxis pode, então, contribuir para a transformação da sua prática, ajudando-o a compreender o que determina ou influencia as suas ações. Entretanto, isso também não quer dizer que é um modo de solucionar todas as objeções que se apresentam no trabalho. É apenas um caminho entre tantos outros possíveis. É apenas a construção de uma linha de fuga que permita inventar outras formas de pensar e fazer o trabalho, modificando pequena parcela da subjetividade coletiva, o que pode ser conseguido pelo incentivo ao protagonismo do trabalhador na realização da práxis.

A proposição de estudos que promovam discussões e reflexões em grupo sobre o trabalho da enfermagem pode ser uma estratégia para a construção coletiva do desejo de transformação da prática, levando em conta a aliança entre diferentes sujeitos individuais (que podem ser as enfermeiras, os técnicos/auxiliares de enfermagem, estudantes de graduação e pós-graduação), o que vai ao encontro da concepção de singularização usada por Guattari e Deleuze.

Essa singularização não ocorre, na maioria das vezes, no nível individual. É um processo que age no coletivo e com ele se desenvolve, assim como o capitalismo, que não é o que é porque somente um indivíduo adota as suas concepções. Ele é o que é, justamente porque tem um alcance coletivo, que influencia as relações de vida e trabalho em escala planetária.

Muitas vezes, tentativas de singularização são difíceis, problemáticas e acabam sendo abortadas. Mas, apesar da precariedade e dos fracassos dessas tentativas, apesar da dispersão, da angústia, da loucura e da miséria, elas se encontram em ruptura com a produção da subjetividade capitalística. Elas desencadeiam processos de reapropriação do pensar e do fazer, conduzindo à transformação dos sujeitos e suas práticas, podendo interferir na produção de outras teorias, sensibilidade, motivação e compreensão do e para o trabalho.

Estar sensível para a dimensão da subjetividade no trabalho da enfermagem, então, pode ajudar na tentativa de entender os indivíduos, seus conflitos, seus vínculos consigo mesmos e com o trabalho, bem como a produção e a inserção de cada um na equipe de enfermagem/saúde e no mundo. Além disso, a problematização da subjetividade e da sua influência no processo de trabalho pode contribuir para a análise dos motivos pelos quais as diferentes fases do PE não são implantadas e porque ele não é implementado pelas enfermeiras, nos mais variados contextos onde ocorre o trabalho da enfermagem, já que delas depende a manifestação do desejo de transformação da realidade. Assim, uma visão rizomática acerca do próprio trabalho pode fazer com que a enfermagem compreenda o que constrói e constitui a sua subjetividade, abrindo a possibilidade de mantê-la capitalística ou não.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2013
  • Aceito
    29 Nov 2013
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