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Causas de obesidade infantojuvenil: reflexões segundo a teoria de Hannah Arendt

Resumos

O objetivo do estudo foi refletir sobre as causas da obesidade para além do físico, genético e biológico, partindo do entendimento da condição humana e das relações econômicas e sociais associadas. Tomou-se por base os pressupostos da Condição Humana de Hannah Arendt e literatura pertinente. O ciclo gerado pela saciedade e falta, somado ao avanço tecnológico imposto pela sociedade moderna, traz consigo um estilo de vida consumista e sedentário, afetando o estado de saúde dos filhos, a educação nutricional e o acúmulo de gordura corporal nas pessoas. Percebe-se que as causas da obesidade ultrapassam o resultado direto da ingestão calórica maior do que o gasto energético, tornando-se necessário considerar o meio social e econômico em que o indivíduo está inserido. Os profissionais de saúde necessitam compreender a relação do ser com os fatores socioeconômicos, culturais e políticos que condicionam a presença de obesidade em crianças e adolescentes.

Obesidade; Crianças; Adolescentes


The objective of this study was to reflect on the causes of obesity beyond physical, genetic and biological factors. It is based on the understanding of the human condition and its associated economic and social relationships, derived from Hannah Arendt's Theory of The Human Condition and relevant literature. The satiety-need cycle and the technological advances of modern society cause consumerism, a sedentary lifestyle that affects children´s health and nutritional education, and an increase of body fat in people. The causes of obesity surpass the direct results of excessive caloric intake and indicate the need to consider the person's social and economic context. Health professionals need to understand the existing relationship of the self with the socioeconomic, cultural, and political factors that determine obesity in children and adolescents.

Obesity; Children; Adolescents


El objetivo de este estudio fue reflejar sobre las causas de la obesidad más allá de la condición física, genética y biológica, de acuerdo con los aportes de la condición humana y las relaciones económicas y sociales de la Condición Humana de Hannah Arendt y la literatura pertinente. El circulo de saciedad y necesidad, y los efectos de los avances tecnológicos en la sociedad moderna traen el consumismo, estilo de vida sedentaria que afecta la salud y la educación nutricional de los niños, y el aumento de la gordura corporal. Las causas de la obesidad exceden los resultados de la ingestión de calorías más de lo necesario, lo que indica la necesidad de considerar el ambiente socioeconómico de la persona. Profesionales de la salud necesitan comprender la relación entre los factores socioeconómicos, culturales e políticos que determinan la obesidad en niños y adolescentes.

Obesidad; Niños; Adolescentes


INTRODUÇÃO

O sobrepeso/obesidade é o agravo nutricional que mais preocupa neste início do século 21, tanto pelo incremento rápido e progressivo na sua prevalência quanto pelo fato de o fenômeno ocorrer em todas as fases da vida, desde crianças a idosos, como é possível perceber na alta prevalência de idosos com excesso de peso.1Kumpel DA, Sodré AC, Pomatti DM, Scortegagna HM, Filippi J, Portella MR, et al. Obesidade em idosos acompanhados pela estratégia de saúde da família. Texto Contexto Enferm. 2011 Set; 20(3):471-7. Destaca-se, sobremaneira, a situação em crianças e adolescentes, visto que os agravos nessa faixa etária perduram por toda a vida.2Mareno N. Parental perception of child weight: a concept analysis. J Adv Nurs. 2014 Jan; 70(1):34-45.

Dados nacionais dos anos de 2008 e 2009 revelaram que uma em cada três crianças de cinco a nove anos estava com sobrepeso ou obesidade. Entre os adolescentes, 21,7% do sexo masculino e 19,4% do sexo feminino apresentaram esse problema. Esses resultados reafirmaram o sobrepeso como o principal desvio nutricional nessa faixa etária.3Ministério do Planejamento (BR). Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2008-2009: despesas, rendimentos e condições de vida. Brasília (DF): IBGE; 2010.

As crianças e adolescentes estão subordinados às condições socioeconômicas e culturais das suas famílias, o que influencia a prática de atividade física, a quantidade e o tipo de alimentos disponíveis. Somado a isso, a atual geração de crianças e adolescentes tem livre acesso às tecnologias como computadores, videogames, celulares e tablets, sem limite do tempo de permanência em frente das telas. Esse acesso favorece ao maior tempo investido em atividades que exigem menor gasto energético.4Pearson N, Biddle SJH. Sedentary behavior and dietary intake in children, adolescents and adults: a systematic review. Am J Prev Med [online]. 2011 [acesso 2015 Mar 18]; 41(2):178-88. Disponível em: http://ac.els-cdn.com/S0749379711002996/1-s2.0-S0749379711002996-main.pdf?_tid=f4495d38-cdaf-11e4-aaa8-00000aab0f26&acdnat=1426711813_db8f54fc74a5fcdbb1cf30d2e114e592
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Derivam-se, assim, os fatores que predispõem toda a família ao excesso de peso, devido à contribuição do ambiente obesogênico.5Camargo APPM, Barros FAA, Antonio MARGM, Giglio JS. A não percepção da obesidade pode ser um obstáculo no papel das mães de cuidar de seus filhos. Ciênc Saúde Coletiva. 2013; 18(2):323-33.

Sabe-se que a obesidade pode ser conceituada como uma condição de etiologia multifatorial, resultante do desequilíbrio entre a ingestão calórica e o gasto energético, assim como pode ser determinada por fatores genéticos, fisiopatológicos, ambientais, comportamentais, sociais e culturais.6Hernandes F, Valentini MP. Obesidade: causas e consequências em crianças e adolescentes. Rev Facul Educ Física UNICAMP. 2010; 8(3):47-63.

Um dos fatores que pode influenciar o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis, como a obesidade, é o contexto social e econômico em que a pessoa está inserida. Isso porque os entornos físicos e padrões sociais dificultam a compra de alimentos e estilo de vida saudáveis, gerando comportamentos inadequados, como a má alimentação, a inatividade física e o excesso de peso.7Bezerra VM, Andrade ACS, César CC, Caiaffa WT. Comunidades quilombolas de Vitória da Conquista, Bahia, Brasil: hipertensão arterial e fatores associados. Cad Saúde Pública. 2013; 29(9):1889-902.

Pensar filosoficamente os fatores relacionados ao excesso de peso em crianças e adolescentes, dentre eles os socioeconômicos, auxilia na reflexão sobre a realidade dos crescentes números da obesidade e sobrepeso em todas as classes econômicas, na medida em que os seus significados mais profundos são entendidos.

Tal reflexão torna-se pertinente, haja vista que, apesar de os estudos epidemiológicos terem sua parcela de contribuição na construção de conhecimento e nortearem, muitas vezes, as ações de saúde pública, o mecanismo que aposta em relações lineares de causa e efeito, quando se baseia numa representatividade numérica e esvaziada de sentidos, não permite um aprofundamento nos significados que constituem as várias facetas de um objeto complexo. Nesse sentido, entende-se como fundamental a necessidade de construir uma compreensão filosófica do fenômeno complexo do sobrepeso/obesidade e os fatores socioeconômicos, com vistas a colaborar na elaboração de ações de controle.

Além disso, quando tratamos de obesidade, principalmente em crianças e adolescentes, há uma lacuna na construção do conhecimento filosófico que nos conduza ao entendimento dos aspectos causais, bem como suas consequências e ações para o controle da mesma.

Diante desse contexto, pretende-se, com este estudo, apresentar uma contribuição para a compreensão da obesidade em sua relação com a condição socioeconômica como fator causal da doença, na perspectiva filosófica de Hannah Arendt sobre a existência humana e o consumismo.

Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política alemã de origem judaica, aborda a condição humana e a sua temporalidade. A reflexão que a autora faz acerca da prática política do ser humano é evidenciada na tríade de atividade: trabalho, labor e ação. O primeiro elemento da tríade se exerce como suprimento das necessidades biológicas humanas (homo laborans), o segundo, como forma de transformar a natureza em objetos duráveis compartilhados pelos seres humanos (homo faber) e, por fim, a ação que é a forma de relacionamento entre os homens e a sua capacidade política.8 Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013.

Buscando defender-se da ação e ter domínio sobre si, o homem procura substituir a ação pela fabricação e, nessa perspectiva, surgem o capital e o acúmulo de riquezas. Essa dinâmica da existência humana gera uma ação cíclica entre o consumismo e a falta, e perpassa as necessidades metabólicas do homem, adentrando, na Modernidade, a era de trabalhos (labor e faber) excessivos na busca da saciedade.8 Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013.

Essas referências conceituais foram tomadas como ferramentas para a compreensão mais alargada das causas da obesidade, adquiridas ainda na infância e juventude. Desse modo, este estudo teve por objetivo refletir sobre as causas da obesidade para além do físico, genético e biológico, partindo do entendimento da condição humana e das relações econômicas e sociais a ela associadas.

Portanto, trata-se de um estudo reflexivo sobre a concepção teórica e filosófica da condição humana e suas relações econômicas e sociais elaboradas por Hannah Arendt, e os aspectos causais socioeconômicos da obesidade na infância e juventude. Para esta reflexão tomou-se por base os pressupostos da Condição Humana de Hannah Arendt e a literatura pertinente.

A conceituação do método de investigação utilizado representa uma possibilidade de flexibilizar definições usuais, geralmente estáticas, a fim de transpor as barreiras formais da disciplinarização moderna, articulando a teoria e sua fundamentação, com sua utilização.

CONCEPÇÃO TEÓRICA E FILOSÓFICA DO CONSUMO NA PERSPECTIVA DE HANNAH ARENDT

Desde as crenças mais antigas relativas à criação ou surgimento do homem, este se viu condenado a sobreviver e ter o seu mantimento a partir do suor do rosto. A cultura ocidental, por sua vez, instituiu um modelo de Homem e de vida para subsistência. Hanna Arendt nomeia esse processo de condição humana.

Diferente do conceito de natureza humana, a condição humana trata dos requisitos que tendem a suprir a existência do homem, que se diferenciam a partir do lugar e do momento histórico do qual faz parte. Nesse sentido, todos os seres são condicionados, até mesmo aqueles que condicionam o comportamento de outros, a se tornarem condicionados pelo próprio movimento de condicionar.9Critelli D. Consumo e obediência: a desarticulação da liberdade. Psicol USP. 2008; 19(4):477-85.

Quando um indivíduo nasce, mesmo sem desejar ou entender, traz consigo o novo, uma nova ordem, um indivíduo singular para uma comunidade humana, e instaura uma nova cadeia com o que se encontrava no mundo. Hanna Arendt conceitua isto como a condição humana da natalidade. O homem se relaciona com aquilo que está em vigor e passa a se adaptar ao estilo de vida dos que o cercam. Esse aspecto é denominado de igualdade. Contudo, o indivíduo é mais complexo que isso, possui outro aspecto a ser considerado, que é a distinção, ou seja, cada homem possui suas particularidades, e a discussão de suas diferenças é necessária para a convivência. Portanto, compreender a igualdade e a distinção entre os homens é a base para entender o homem em sua Pluralidade.9Critelli D. Consumo e obediência: a desarticulação da liberdade. Psicol USP. 2008; 19(4):477-85.

Desde Aristóteles, as atividades dos homens se dividem em dois grupos: as relativas à 'vida do espírito' ou à vida contemplativa (pensar, querer e julgar) e as atividades mundanas, ou relativas à 'vida ativa' (labor, trabalho e ação). Cada uma dessas atividades visa atender às finalidades que se originam da própria condição humana.

De acordo com Arendt, três são as atividades fundamentalmente humanas advindas desde o nascimento: o trabalho, a obra e a ação, sendo que o trabalho empenha-se em satisfazer as exigências da condição humana da atividade biológica, a obra consiste na atividade que visa atender à condição humana de construir sobre o mundo natural um hábitat, ou seja, um mundo artificial, de componentes, duradouro, e a ação ocorre entre homens, sem mediação das coisas ou matérias.8Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013.

Destaca-se, ainda, que a atividade da ação ocorre entre homens, sem mediação das coisas ou matérias. Esta visa atender à condição humana da Pluralidade, em que os homens são capazes de viver em conjunto, e à condição própria a essa, que é a Singularidade, o fato de cada homem ser um indivíduo exclusivo. A ação visa permitir ao homem viver em conjunto, entre seus semelhantes, e diz respeito aos 'negócios' humanos, onde sua comunicação é mediada pela pluralidade de opiniões políticas.8Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013.

Esta filósofa fragmenta a vida ativa em duas esferas: de domínio público e privado. O trabalho (labor) e a produção (work) no domínio se enquadram na esfera privada, enquanto que a ação está exclusivamente no plano da esfera pública (política). O privado é o reino da necessidade. O público é o reino da liberdade.8Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013.

"Tanto os homens de ação quanto os pensadores sempre foram tentados procurar um substituto para a ação".8:275 Essa mudança busca proteção contra os acidentes da ação, em que o homem seja senhor dos seus atos. Nesse contexto, insere-se a substituição da ação pela fabricação, a qual busca atingir um meio supostamente superior que, na Modernidade, está representada pela produtividade em busca do progresso da sociedade.

A substituição da ação pelo processo fabril conduz ao consumismo e ao acúmulo de riquezas, que estão enquadrados no Labor. Quando a riqueza deixa de ser um meio para garantir a preservação da vida humana e a satisfação das necessidades vitais (individual e da espécie), esta torna-se um fim em si mesma. A partir daí, tem-se o nascimento do que chamamos de Capital, um processo que busca exclusivamente, e cada vez mais, a produção de riqueza. Um processo cíclico sem fim.8Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013.

O homo faber, fabricante do mundo, substitui seus ideais pela satisfação da abundância. Esta satisfação, articulada com o meio, vem a gerar uma produção inesgotável da riqueza, o chamado 'esquema da produção-consumo', que só garante o crescimento da riqueza para o próprio produtor ou detentor do capital e dos meios de produção.8Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013. Nesse esquema, o consumo, e não a riqueza, é o que se mostra como finalidade para o consumidor, cada dia adquirir ou possuir mais.

É importante, neste ponto, compreender o conceito de sociedade de massas, que diz respeito a um contexto em que os desejos e interesses de vida dos indivíduos são produzidos em grande escala para a produção e consumo impostos pela sociedade moderna, no qual o indivíduo se mostra apático às questões públicas.1010 Duarte AM. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. Trans/Form/Ação. 2001; 24(1): 249-72. Para a filósofa, esse fenômeno deu origem a um tipo de ser degenerado, podendo alcançar o ápice de "mutação pervertida",8:153 quando somente obedece a estímulos.

Como características dessa sociedade de massas podem-se citar a massificação e o controle. A primeira se refere à configuração de um mesmo modo de existir a ser seguido por todos, em que se propaga a odiosidade às diferenças e o incentivo ao comportamento como obediência. A segunda trata-se do controle do consumo, o controle dos modos de ser, dos processos gerais da existência.1010 Duarte AM. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. Trans/Form/Ação. 2001; 24(1): 249-72. No início do século 21, esse controle pode ser exercido pelos recursos formadores de opinião, como a mídia, a burocracia e a escola, que são ferramentas básicas e indispensáveis à modelagem da estrutura social e dos modos de ser e de vir a ser.

Enquadrando-se no processo de massificação e mostrando-se controlado pelos aparelhos ideológicos, o consumo se manifesta como tendência de comportamento na sociedade. Trata-se de um modo de ser comum em busca da satisfação, vivendo o mito da saciedade como felicidade.

Analisando de forma isolada, pode-se afirmar que a saciedade é passageira, visto ser essa a implicação de um processo em vigor do qual faz parte o 'consumir algo'. Este desejo equivale a atender os desejos, apetites, necessidades, objetivos. Sendo o corpo o alvo principal desse processo, almeja-se satisfazer sua sede, fome, desejo sexual, frio, calor, reconhecimento, companhia, entre outros. Este é um processo infindável, que tem como característica principal as especificidades da vida biológica. Para Arendt, a atividade humana que visa atender as necessidades vitais é o Labor. O Labor providencia a saciedade da vida biológica, prioritariamente.8Arendt H. A condição humana. 11a ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2013.

Como parte do movimento biológico da saciedade está a consignação de um círculo vicioso alternando a saciedade e a falta. Disto se aproveita o esquema social de produção-consumo, causando mais falta para provocar mais consumo. Propaga-se assim a relação falta-saciedade-falta em todas as áreas da vida, e não somente a biológica.1010 Duarte AM. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. Trans/Form/Ação. 2001; 24(1): 249-72.

Como exemplo podemos citar os gregos, que buscavam, em suas emblemáticas sagas, a contraposição do processo de falta-saciedade-falta existente hoje. Enquanto que os gregos buscavam conquistar a imortalidade, fama e glória, o agir da sociedade atual está empenhado em saciar as necessidades vitais, sejam elas naturais ou não. Assim, cede-se à manutenção da saciedade e do abastecimento das convicções plenas e deseja-se cada vez mais estar saciado, mesmo que, de alguma forma, se venha a ser tragado pela falta. Envolve-se a cada dia mais profundamente no ciclo vicioso da falta, produção, consumo, saciedade, falta.9Critelli D. Consumo e obediência: a desarticulação da liberdade. Psicol USP. 2008; 19(4):477-85.

Nessa perspectiva, os indivíduos com obesidade buscam uma nutrição maior do que as necessidades corporais; cedem à vontade de saciar-se e, ao o fazerem, sentem a falta de sentirem-se insaciados. A essa condição dá-se o nome de compulsão alimentar, frequente em pessoas com obesidade. Essa compulsão ocorre quando uma pessoa come uma quantidade de alimento muito maior, em menos tempo do que ela normalmente comeria, sentindo uma perda do controle.1111 Treasure J, Claudino AM, Zucker N. Lancet. 2010 Feb 13; 375(9714):583-93.

CONTRIBUIÇÃO DA TEORIA DE HANNAH ARENDT PARA A COMPREENSÃO DOS ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS RELACIONADOS À OBESIDADE INFANTOJUVENIL

Os aspectos socioeconômicos da obesidade tornaram-se destaque nas pesquisas realizadas nos últimos anos, apontando o crescimento da obesidade tanto em famílias de classe baixa, como média e alta. Esse fator causal evidencia-se ainda mais nitidamente nas crianças e adolescentes, visto que os mesmos dependem dos pais para alimentar-se. A família tem um encargo no desempenho alimentar desta faixa etária, uma vez que os pais são os primeiros educadores nutricionais.

Podem-se aplicar os conceitos de condição humana e da vida activa abordados por Hannah Arendt no contexto da obesidade infantojuvenil. Assim, desde o nascimento, surge um ser com o novo, singular, que se relaciona com o meio - condição humana da natalidade. Ao chegar o novo em uma família em que o ambiente é obesogênico, a criança e o adolescente, sofrendo o condicionamento da família, serão inseridos nesse contexto e tendem a adquirir as mesmas práticas. Aquém da pluralidade de cada indivíduo, o condicionamento familiar influencia de forma direta nas escolhas alimentares e nos hábitos de vida da criança e do adolescente, gerando o desenvolvimento gradual do excesso de peso nessa faixa etária.

O homem é um ser condicionado, uma vez que tudo com que entra em contato se torna uma condição de sua existência. Assim, o condicionamento, apontado pela filósofa, passa a exercer o seu papel ativo na família, quando os maus hábitos alimentares e de estilo de vida (entendendo como estilo de vida a prática de atividade física, horas em frente à televisão, videogame, entre outras) adentram essa realidade e perduram, até tornarem-se a nova condição humana do ser.

As evoluções tecnológicas e científicas também condicionam o ser humano. Como exemplo, pode-se citar a introdução da informática e da tecnologia, em que a humanidade sofre uma espécie de mutação e passa a viver na dependência desta nova tecnologia, que evolui diariamente. Assim, dependentes desse novo modo de viver, a cultura dos mínimos esforços foi disseminada na sociedade, e traz consigo um novo estilo de vida: sedentário. Todos os comandos são enviados por controles remotos; os eletrônicos são programados para produzir e responder de forma rápida e instantânea, como o micro-ondas; as atividades de lazer das crianças e adolescentes se resumem a videogame e televisão; assim, o gasto energético é reduzido ao mínimo, favorecendo o aumento de peso. Por esse motivo, crianças e adolescentes têm mudado os níveis de atividade física de moderados ou intensos para baixo gasto energético nas suas atividades de lazer.1212 Sichieri R, Souza RA. Estratégias para prevenção da obesidade em crianças e adolescentes. Cad Saúde Pública. 2008; 24(Sup 2):209-34.

Paralelamente, existe a falta da participação da família na educação nutricional dos filhos. O trabalho (labor) e a obra (work), uma condição imposta pelo próprio homem para sua espécie, e resultado de um processo cultural, perpassam o domínio sobre as reais necessidades biológicas e preservação da vida, e passam a assumir a produtividade, a ordem principal da Modernidade. Neste ponto está a incessante busca pela produção de riquezas, que desloca os pais dos seus papéis de condutores das práticas nutricionais adequadas dos filhos e os coloca em excessivas jornadas de trabalho.

O aumento da carga horária de trabalho dos pais e a ampliação da produção e consumo de alimentos congelados (industrializados) são fatores importantes na transição dos hábitos alimentares das crianças.1212 Sichieri R, Souza RA. Estratégias para prevenção da obesidade em crianças e adolescentes. Cad Saúde Pública. 2008; 24(Sup 2):209-34. Já no contexto educacional, a comercialização das escolas e de seus produtos, bem como a exposição de crianças a imagens de propagandas comerciais, fortalecem a sociedade de consumo na medida em que a formação da cidadania é desvirtuada para a produção de consumidores acríticos.1313 Norris T. Hannah Arendt & Jean Baudirillard: pedagogy in the consumer society. Studn Philos Educ [online]. 2006 [acesso 2015 Mar 18]; 25(6):457-77. Disponível em: http://link.springer.com/article/10.1007/s11217-006-0014-z
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O consumo imposto pela sociedade moderna e produzido pelo esquema social de produção-consumo dispõe de alimentos de preparo rápido e de baixo custo, conduzindo os indivíduos da sociedade imediatista a reduzir o gasto de tempo em preparos de alimentos nutritivos e a aumentar o consumo de enlatados, alimentos industrializados e fast-food. Parafraseando Hannah, "o tempo excedente do animal laborans jamais é empregado em algo que não seja o consumo, e quanto maior é o tempo que ele dispõe, mais ávidos e ardentes são os seus apetites".8:5

Nesse contexto, a mídia promove a ideia da massificação, na qual todos precisam se adequar aos padrões de consumo e obedecê-los. Aqueles que não se enquadrarem nesse processo são marginalizados da sociedade. A influência do mercado de publicidade e propaganda também está presente na vida das crianças, que são consideradas como consumidores pelas empresas do ramo. Grande parte dos comerciais de televisão, nos programas assistidos por crianças, é de alimentos de baixo valor nutricional. Assim, as indústrias alimentícias exercem seu controle do modo de se alimentar. Como exemplo estão as empresas de fast-food, que induzem a população mais jovem (crianças e adolescentes) a consumir os seus produtos e ser exaltada como privilegiada por fazer parte deste grupo, reduzindo os preços e oferecendo brindes para lanches infantis.

As indústrias alimentícias colocam à disposição vários alimentos com densidade energética aumentada e que promovem saciedade. São alimentos aceitáveis e de baixo custo, o que os torna acessíveis às classes de alta e baixa renda.12 12 Sichieri R, Souza RA. Estratégias para prevenção da obesidade em crianças e adolescentes. Cad Saúde Pública. 2008; 24(Sup 2):209-34. Para a faixa etária aqui abordada, torna-se indispensável ser integrante do público consumidor dessas empresas, não se importando com as consequências danosas à saúde.

As cantinas escolares também estão inseridas neste contexto de empresas que exercem controle sobre a sociedade. Crianças e adolescentes em idades pré-escolar e escolar tendem a não desejar lanches caseiros no ambiente escolar, por receberem influência do consumismo, presente na sociedade e, consequentemente, nas escolas, e passam a gastar na única empresa que oferece alimentos nas instituições educacionais: as cantinas. Estas, por sua vez, disponibilizam frituras, refrigerantes, guloseimas, massas, entre outros alimentos que conduzem ao acúmulo de gordura corporal,1414 Guedes DP, Neto JTM, Almeida MJ, Silva ATRM. Impacto de fatores sociodemográficos e comportamentais na prevalência de sobrepeso e obesidade de escolares. Rev Bras Cineantropom Desempenho Hum. 2010; 12(4):221-31. sem a preocupação com a disponibilização de lanches saudáveis; os consumidores são controlados pela oferta.

Em busca da saciedade como mito da felicidade caminham os seres humanos. Mas o que realmente é necessário à vida? Satisfazer as necessidades biológicas, como a fome, ou extrapolá-la a fim de experimentar os apetites mais sofisticados do consumismo, concentrando-se nas superfluidades da vida?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da reflexão feita foi possível perceber que as causas associadas à obesidade ultrapassam as questões físicas, genéticas e biológicas. Compreendeu-se que há relação do ser com os fatores socioeconômicos, conforme expõe Arendt no pensamento filosófico da condição humana, que podem condicionar a presença de obesidade em crianças e adolescentes. Isso porque o ambiente familiar é fator determinante na quantidade e tipo de alimentos consumidos, saudáveis ou não saudáveis, no poder de compra e na prática regular de atividade física. Fatores estes que, em conjunto, oferecem maior risco para obesidade.

Faz-se necessário que os profissionais de saúde rompam com o pensamento cartesiano de que a obesidade é resultado direto da ingestão calórica maior do que o gasto, sem contudo considerar o meio social e econômico em que o indivíduo está inserido, bem como sua condição humana e práticas políticas.

O cotidiano, a cultura e o social desprezam a ação dos fatores socioeconômicos e reforçam a absorção do consumismo (labor) e o afastamento de si mesmo e dos outros, favorecendo o desenvolvimento da obesidade.

O rompimento do labor pela ação pode libertar os indivíduos do consumo e do círculo vicioso da saciedade. Fato que faria novas opiniões surgirem, exceder a obediência buscando inovar através do ato de se expressar à nossa humanidade, rompendo com as condutas sociais que levam os pais aos mesmos erros causais da obesidade infantojuvenil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2015
  • Data do Fascículo
    July-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2014
  • Aceito
    29 Jun 2015
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