Os valores fundadores da enfermagem moderna à luz de Dilthey e Scheler

Resumos

Objetivou-se identificar os valores da Enfermagem Moderna no escrito de Florence Nightingale, intitulado "Notas sobre a Enfermagem - o que é e o que não é", e justificá-los através de alguns pressupostos da axiologia de Max Scheler. Para tanto, valeu-se da hermenêutica de Wilhelm Dilthey como instrumental para desvelar o campo axiológico nightingaleano. A partir do movimento empreendido na busca da interpretação do texto, foi desvelado, à consciência dos pesquisadores, quatro valores fundantes da Enfermagem Moderna, a saber: solidariedade, valor da verdade, moralidade e utilidade. Esses formam uma amálgama e dão ao cuidado de enfermagem sentido e significado. Concluiu-se que esses valores fazem da enfermagem o que ela é, legitimando-a como prática social, justificando o agir profissional. Faz-se necessário àquele que se insere na carreira mover-se à apreensão dos valores que formam o campo axiológico, retificando ou ratificando a própria escala valorativa a fim de constituir o Ser-enfermeiro.

Cultura; Filosofia; Ética em enfermagem; Educação em enfermagem

This study aimed to identify the values of modern nursing in the writings of Florence Nightingale entitled Notes on Nursing: What it Is, and What it Is Not, and justify them through some of the assumptions of Max Scheler's axiology. For this, we used Wilhelm Dilthey's hermeneutics as an instrument to unveil the Nightingale axiological field. From the effort undertaken in the search for the interpretation of the text, four core values of modern nursing were revealed from the researchers' consciousness, namely: solidarity; the value of truth; morality; and utility. These values form an amalgam and give nursing care sense and meaning. We concluded that these values make nursing what it is, legitimizing it as a social practice, and justifying the professional act. Thus, it is necessary for whoever undertakes this career to move themselves to the apprehension of values that form the axiological field, correcting or confirming the value of a scale itself, in order to form what it is to be a nurse.

Culture; Philosophy; Ethics; Education, nursing

Este estudio tuvo como objetivo identificar los valores de la Enfermería Moderna en el documento de Florence Nightingale, titulado "Notas sobre Enfermería - lo que es y lo que no es", y justificarlos a través de algunos de los supuestos de la axiología de Max Scheler. Se utilizó la hermenéutica de Wilhelm Dilthey como instrumental para dar a conocer el campo axiológico de Nightingale. A partir del movimiento emprendido en la búsqueda de la interpretación del texto fue revelado a la conciencia de los investigadores cuatro valores fundamentales de la Enfermería Moderna, a saber: solidaridad, valor de la verdad, moralidad y utilidad. Estos valores forman una amalgama y dan al cuidado de enfermería sentido y significado. Se concluyó que estos valores hacen de la enfermería lo que es, legitimándola como práctica social, justificando el acto profesional. Es necesario que el que entra en la carrera se mueva a la aprehensión de los valores que forman el campo axiológico, rectificando o ratificando la propia escala de evaluación para constituir el Ser-enfermero.

Cultura; Filosofia; Ética en enfermería; Educación en enfermería

INTRODUÇÃO

No campo da prática social é que encontramos os valores proclamados pelas gerações, podendo ser aceitos e vividos por seus integrantes a partir de uma escolha livre e de uma hierarquização pessoal.¹

Cada ser humano pertence a uma época e, como ser social, insere-se na rede de relações que a compõem. Encontra-se imerso numa dada cultura, da qual se nutre espiritualmente, e a sua apreciação das coisas se conforma com regras e critérios, valores que não inventa, mas que descobre e que lhe conferem uma significação pessoal.²

A enfermagem está inserida na prática social e é nela que se nutre de um conjunto de valores que lhe conferem sentido e significado. Tais valores formam um axiograma (escala hierarquizada) da profissão, que é a autodeclaração valorativa pela qual a enfermagem se pauta para nortear e justificar as suas ações.³

A procura pela compreensão do campo axiológico que baliza a profissão de enfermagem é histórica, ou seja, funda-se na própria singularidade de Florence Nightingale, uma figura importantíssima na história da Enfermagem Moderna. Conhecer sua vida e o seu engajamento nos auxilia a interpretar o papel que exerceu para a edificação da enfermagem atual, guiando-nos pelas veredas do hoje.¹

Ademais, foi imersa no contexto histórico social de sua época que ela apreendeu os valores que julgou instituintes para a ciência e a arte da enfermagem e que transcendem o seu próprio tempo, permitindo-lhe ser reconhecida pela sua pessoa e sua forma de agir.

Dessa maneira, a profissão de enfermeira, historicamente, desenvolveu-se a partir de Florence Nightingale e do sistema de ensino por ela desenvolvido. Considerando que tal modelo foi implantado no Brasil, nos idos de 1923, através da criação da Escola de Enfermagem Anna Nery, hoje pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro, faz-se necessário conhecer a profissão herdada a partir da identificação dos valores que ela elencou como fundantes da Enfermagem Moderna, a fim de balizar a crítica da enfermagem brasileira atual.

Devido ao desgaste obtido pela palavra valor ao longo do tempo, é importante, a fim de dirimir qualquer dúvida, conceituá-lo. Neste estudo, assume-se o valor como aquilo que vale para o homem, sendo capaz de suprir uma carência e promover o crescimento e desenvolvimento como pessoa.⁴

A fim de subsidiar esta reflexão, utilizaram-se alguns pressupostos advindos da Teoria de Valor de Max Scheler para a busca da compreensão valorativa, pois se compartilha a visão de que os valores são apreendidos pelo sentimento, e não pela razão.⁵

A justificativa para a realização deste trabalho foi centrada no mover reflexivo empreendido pelos pesquisadores durante o exercício de suas ações no ensino e na assistência. Ali, na convivência com os enfermeiros, assistindo os pacientes, na relação pedagógica junto aos discentes, ensinando a arte e a ciência da enfermagem, questionou-se sobre os valores que faziam parte do campo axiológico que fundava a profissão herdada.

Feitas essas considerações, o presente artigo tem por objetivo identificar os valores da Enfermagem Moderna no escrito de Florence Nightingale, intitulado "Notas sobre a Enfermagem - o que é e o que não é", e justificá-los com base em alguns pressupostos da axiologia de Max Scheler.^{5 - 6}

MÉTODO

O estudo reflexivo, ancorado em alguns pressupostos da Teoria de Valor de Scheler, tem, na hermenêutica proposta por Wilhelm Dilthey, seu instrumental para a leitura compreensiva do texto "Notas da Enfermagem - o que é e o que não é". Buscou-se elucidar o significado da Enfermagem Moderna, a partir do desvelar do campo axiológico nightingaleano. A escolha desse escrito foi movida pelo fato de que foi o primeiro constructo disponível em língua portuguesa, tornando-se um marco histórico para a formação da consciência do Ser-enfermeiro e acessível a diversas gerações de enfermeiros no Brasil.^{1 , 7}

A hermenêutica diltheyniana, tendo sido inspirada na hermenêutica filológica de Schleiermacher, é considerada a primeira hermenêutica propriamente filosófica, pois elevou a hermenêutica do status de mera técnica interpretativa para um método compreensivo.

Dilthey desenvolveu seu pensamento no sentido de uma compreensão das expressões das vivências, mas apenas no que se limita à obtida a partir de trabalhos escritos e, ainda, diferenciou dois tipos de compreensão das expressões vivenciais. O primeiro seria a compreensão psicológica, que trabalharia com o esquema de analogia com as vivências do outro, na medida em que essa dita compreensão é a depreensão de um ser psíquico. O segundo, uma compreensão mais elevada ou hermenêutica, que, de um modo mais elaborado, tem sentido e significação como meta e distancia-se da compreensão psicológica, pois se realiza através de obras escritas, compreendendo-as como produtos espirituais de sujeitos autônomos viventes.⁷

Essa segunda compreensão desempenhou um papel central para o desvelar do campo axiológico nigthingaleano, pois as vivências não podem ser compreendidas no todo, mas apenas como parte de uma totalidade, a saber, a vida. E, justamente pelo fato de a vida e a vivência não poderem ser apreendidas num plano objetivo da realidade, faz-se necessário todo um esforço no sentido da interpretação que passe pelos âmbitos subjetivos da vivência, para que se alcance sua compreensão.⁷

Essa objetivação da singularidade é obtida a partir da projeção de estados internos no âmbito externo, isto é, na prática social. De modo algum, essa singularidade se dá separada, pois o sujeito histórico está intrinsecamente inserido em sua época e estabelece relações com os outros.⁷

Para aplicação da hermenêutica diltheyniana, como técnica que permitiu desvelar os valores da Enfermagem Moderna, foram elaborados dois momentos. No primeiro, buscou-se recompor a trama histórico-social que fundou a Enfermagem Moderna, intentando compreender os elementos constituintes que, de forma objetiva, pudessem exercer influência sobre a vivência de Florence Nightingale.

No processo para a análise textual, é indispensável que o intérprete tenha a sua pré-compreensão, isto é, tenha informações a respeito da trama histórico-social que fundou o cenário do autor, já que, sem tal conhecimento prévio, não se poderá começar o jogo da circularidade. O método hermenêutico caracteriza-se por um ir e vir entre o todo e as suas partes, pois considera que assim se conseguirá chegar a uma compreensão do texto.⁷

Nesse sentido, o intérprete deverá colocar-se na posição do autor, e isso tanto do lado objetivo quanto do subjetivo. Ora, o lado objetivo dá-se pelo conhecimento da linguagem empregada pelo autor e, subjetivamente, trata-se de obter o conhecimento de sua vida interior e exterior. Segue daí que ambas as coisas só podem adquirir-se completamente através da própria interpretação.⁷

Por isso, o escrito textual e a história do autor funcionam como a totalidade, a partir da qual seu pensamento deve ser compreendido como algo particular e vice-versa. Disso resulta que a interpretação do texto não pode ser feita de uma única vez, ou seja, a cada nova leitura se compreende um pouco mais, já que os conhecimentos necessários para uma perfeita compreensão vão sendo incorporados. No segundo momento, após exaustiva leitura do texto, objetivou-se a identificação dos valores da enfermagem elencados por Florence Nightingale e que foram desvelados à consciência dos pesquisadores. Em seguida, estabeleceu-se a justificação desses valores a partir de alguns pressupostos da axiologia Scheleriana.

DESENVOLVIMENTO

A trama histórico-social que fundou a Enfermagem Moderna

O surgimento da Enfermagem Moderna teve como ponto de partida a ascensão da burguesia, notadamente, a partir do contexto em que se inseriu a sociedade inglesa do final do século XIX. Ali, com o incremento da atividade econômica advindo da industrialização, ocorreu, em seu transcurso, a necessidade da regulação do trabalho, aliado à redução da pobreza. Dessa maneira, criaram-se as condições necessárias para que houvesse o aparecimento de reivindicações por melhores formas de vida por parte de alguns segmentos da população.⁸

Assim, iniciou-se o movimento por reformulação dos instrumentos jurídicos de assistência à população e, dentro deste, destacou-se a reformulação da Lei dos Pobres, cuja ênfase era a distinção conceitual entre pobreza e pauperismo. A pobreza era percebida como sendo benéfica, pois o encaminhamento para sua resolução residia na inserção da pessoa em alguma atividade de trabalho; o pauperismo necessitava ser combatido, já que acarretava transtorno à ordem social, tendo em vista a recusa, por parte da pessoa, em ingressar em alguma atividade de trabalho.⁸

Dessa maneira, somente os miseráveis recebiam a proteção social do Estado e, em troca, perdiam os seus direitos políticos. Essa atitude reconciliava a proteção demandada pela sociedade e consolidava o ideário da moderna assistência à classe trabalhadora.⁸

O surgimento de Florence Nightingale foi marcado por este contexto. Filha de pais ingleses, pertencente à alta burguesia, nasceu em Florença. De forte personalidade, era zelosa, determinada e possuidora de uma vasta cultura geral, superior à das mulheres de sua época, além de apresentar uma aguçada sensibilidade social. Foi-lhe delegada por uma comissão governamental a tarefa de relatar as condições dos albergues. No relatório, Florence destacou a importância de uma classificação das pessoas ali assistidas. Em 1867, ocorreu a revisão da Lei dos Pobres, e a comissão governamental acatou as suas sugestões.⁸

O primeiro esforço em busca da organização da enfermagem ocorreu em 1860 com a criação da Escola Nightingale, junto ao Hospital St.Thomas, em Londres, na Inglaterra. Com sua organização e a adoção de determinados princípios, construía-se o paradigma nightingaleano, fundamentado em três orientações, a saber: 1) a escola seria dirigida por enfermeiras; 2) implantação da modalidade de ensino teórico e prático; 3) seleção das candidatas sob o ponto de vista físico, moral e intelectual.⁸

Florence, intencionalmente, propôs que o ensino da enfermagem se processasse no interior do hospital, mas ressaltava que ela não deveria ser subordinada ao médico, tendo, assim, sua hierarquia própria.³

O modelo nightingaleano possuía algumas influências que foram incorporadas por Florence para a organização da nova Escola, notadamente, a partir do modelo militar, com destaque na disciplina e nos princípios cristãos.³

Florence buscou um rompimento com a prática de enfermagem exercida em sua época. Esta se encontrava fortemente influenciada pelo conhecimento mítico. Contrapondo-se a esse modelo, Florence buscou promover a aproximação entre a enfermagem e a ciência. Para tanto, incorporou os requisitos exigidos pela nova racionalidade científica e pela epidemiologia como instrumento para a fundamentação da educação da enfermeira.³

Acredita-se na possibilidade de visualizar nas ações desenvolvidas por Florence sua intenção de promover as transformações na enfermagem, a partir de três áreas, a saber: no campo da divisão do trabalho, no campo assistencial e no campo do ensino.

No campo da divisão do trabalho, no modelo proposto por Florence, evidenciou-se a dicotomia que nascia na enfermagem entre o trabalho intelectual e o manual, identificado na figura da lady-nurse e da nurse. A primeira tinha sob sua responsabilidade a condução do processo de organização, supervisão, liderança e instrução. Detinha uma condição socioeconômica e cultural privilegiada na sociedade inglesa. Já a nursetinha sobre si a incumbência da execução do trabalho manual e possuía nível social mais baixo.⁹

Avalia-se que, ao estabelecer a divisão do trabalho, a partir da distinção entre as classes sociais, Florence criou uma nova e respeitável ocupação para as damas da sociedade, oriundas da burguesia. Dessa forma, inseria, na enfermagem, pessoas que poderiam conferir à carreira respeitabilidade por pertencerem a estratos médios e altos da sociedade britânica.

No campo da prática assistencial, Florence descreveu a modalidade de assistir a pessoa centrada no atendimento à natureza humana, afirmando que a enfermeira deveria desenvolver a habilidade rigorosa da observação. Com base nesse método, ela iria estabelecer a forma de intervenção. Constata-se que, após empregar o método da observação, Florence passou a avaliar as características do ambiente e seu impacto sobre a relação saúde-doença.¹⁰

Ela ressaltava que o ambiente necessitava ser visto de forma abrangente, a fim de favorecer a recuperação do enfermo; que deveria ter boas condições para o atendimento, no que tange à aeração, iluminação, limpeza e aquecimento. A utilização por parte de Florence de seu método empírico permitiu-lhe lançar as bases para a construção daquilo que, contemporaneamente, veio a ser identificado como sendo a teoria ambiental na enfermagem.¹¹

No campo do ensino, Florence promoveu a introdução de candidatas à enfermagem possuidoras de uma "boa índole". Esta ação proporcionou uma melhoria do nível do cuidado, reforçando a construção da figura da enfermeira como guardiã da moral. A medida veio ao encontro dos anseios proclamados na era vitoriana, em que a mulher tinha como atribuição o desempenho de quatro virtudes, a saber: a piedade, a pureza, a submissão e a domesticidade. Construiu-se, dessa forma, a identificação do gênero feminino como representante do modelo nascente.⁸

Durante o curso na Escola Nightingale, as estudantes viviam em regime de internato, submetidas a uma disciplina rigorosa, com a finalidade de desenvolver os traços de caráter considerados desejáveis, tais como: sobriedade, honestidade, lealdade, pontualidade, serenidade, espírito de organização, elegância e correção. Essas enfermeiras, à medida que iam sendo formadas, estavam prontas para o desempenho do oficio assistencial e da atividade de docente.⁹

A identificação dos valores da Enfermagem Moderna

Nas linhas que se seguem, apresentam-se os quatro valores que surgiram à consciência dos pesquisadores, durante o processo de análise hermenêutica diltheyniana, a saber: solidariedade, valor da verdade, moralidade e utilidade.

Eles foram identificados como pertencentes ao campo axiológico que funda a profissão. Foram dispostos, neste artigo, a partir de sua aparição ao longo do texto. O primeiro foi a solidariedade, encontrada na afirmação de Florence ao dizer que: "Mães de família! As que assim falam por acaso sabem que, nesta civilizada Inglaterra, uma dentre cada sete crianças morre antes de completar um ano de idade? Que, em Londres, duas em cada cinco morrem antes dos cinco anos de vida? [...] Ou será que todo esse sofrimento e a morte prematura são necessários?".^6:163

Sua compreensão a respeito do valor da vida humana e sua relação com o contexto social assumem um papel motivador em seu pensamento. Sua atitude revela a busca empreendida para a transformação da realidade em que se insere, a partir da ação lúcida e consciente da enfermeira. Revela que a consciência sobre a cidadania faz parte da ação da enfermagem.

O segundo foi o valor da verdade. Sua instauração na prática social é o conhecimento científico. Foi localizado no pensamento de Florence ao dizer que: "[...] a enfermeira deve compreender dessa maneira toda a mudança de fisionomia de seu paciente. Deve-se estudá-la, até que se sinta segura de que ninguém mais o compreende tão bem quanto ela própria[...]".^6:163

Assim, o conhecimento obtido através da observação rigorosa constitui-se na gênese do espírito científico. Não mais o conhecimento mítico deveria ser o norteador das ações de enfermagem, mas aquele advindo da observação sistematizada. Agora, a enfermagem estava se aproximando dos requisitos da moderna racionalidade científica.

O terceiro foi a moralidade, encontrada nas seguintes assertivas de Florence ao dizer que: "[...] às senhoras que se autodenominam enfermeiras e que não aprenderam o abecê da educação de uma enfermeira. O 'a'[...] deve ser o conhecimento do que significa ser um ser humano doente [...] e reconhecê-lo não como sendo um animal [...] o que significa sentir vocação para alguma coisa? Não será executar seu trabalho a fim de satisfazer seu próprio elevado conceito do que é o certo, o melhor [...] se ele não der assistência a seus pacientes, nenhuma preleção será capaz de fazê-lo".^6:163

O enfermeiro tem a responsabilidade de assistir o cliente não apenas pelo reconhecimento de sua vida biológica, mas por ser pessoa. Seu agir é passível de avaliação a partir do direcionamento para a prática do bem, entendido como balizador de sua atitude profissional.

O quarto foi a utilidade. Florence a expressou ao afirmar que: "[...] o dever da enfermeira inclui a verificação do pulso, observar a dieta, o sono [...]".^6:166 Infere-se que Florence, ao utilizar a palavra "inclui", deixa implicar que a ação da enfermeira não se encerra somente na provisão desse valor, mas dele se utiliza para realizar a arte de cuidar.

É importante destacar que os valores da profissão cooperam para o desenvolvimento e crescimento de todos os sujeitos envolvidos no processo do cuidar em enfermagem, alcançando os profissionais e os alunos. Pois, para Max Scheler, são os valores que possibilitam ao homem torná-lo melhor como pessoa.⁵

Os valores elencados por Florence, e identificados pelos pesquisadores no escrito "Notas da Enfermagem - o que é e o que não é", são instituintes da Enfermagem Moderna. Constituem-se em uma amálgama e assumem um sentido de dever-ser por parte do enfermeiro assistencial, por parte dos docentes-pesquisadores e dos discentes, revelando o caminho axiológico peculiar à enfermagem.

Acredita-se que os valores por ela proclamados não são restritos à sua época. Transcendem ao espaço temporal. Cabe àqueles que participam da carreira da enfermagem, isto é, profissionais da assistência, educadores e discentes manifestarem, cada qual a seu tempo e juízo, esses valores, pois eles constituem a sua própria identidade profissional.

Os valores da Enfermagem Moderna a partir da perspectiva scheleriana

Tendo identificado, no escrito de Florence Nightingale sob análise, quatro valores fundantes, a saber: solidariedade, valor da verdade, moralidade e utilidade, faz-se necessário justificá-los a partir de alguns elementos constitutivos da teoria scheleriana.

A fenomenologia de Max Scheler, tendo sua inspiração em Husserl, é, antes de tudo, uma filosofia dos valores. Sua pretensão é construir uma ética em base de dados objetivos e rigorosos, de onde surja uma axiologia de fundamentos absolutos, opondo-se ao racionalismo axiológico. Os valores são revelados através da intuição emocional. Agindo assim, está rejeitando a distinção entre o conhecimento sensitivo e o racional, elevando o emocional ao nível do racional, admitindo um mundo de experiências, cujos objetos são inacessíveis ao entendimento, e que só o emocional coloca o homem autenticamente diante desse mundo, característica esta que sustenta a axiologia scheleriana.⁵

Solidariedade

É o que favorece a vida humana inserida na sociedade. Analisando a sociedade a partir da relação eu-tu, Scheler constrói a tese de que somente na compreensão do ser humano como pessoa é que se poderá desenvolver a sociedade ideal.⁵

Para ele, a análise da realidade social tem como fundamento a noção fenomenológica da intencionalidade e a concepção da pessoa como centro de atos intencionais. É a partir desse elemento que procura entender e captar a essência do que constitui as diversas modalidades básicas de agrupamentos humanos, a saber: a massa, a comunidade vital, a sociedade e a sociedade ideal.⁵

A massa se caracteriza pela ausência total de qualquer sentido ou intencionalidade, sendo elemento instável no relacionamento entre os indivíduos. Viver inserido nela é estar fadado a perceber o outro como objeto e manter-se em estado de alienação. Na comunidade vital, típica dos grupos tribais, não existe a distinção entre o meu e o teu, pois a vivência é idêntica para todos. Enquanto na massa não existe qualquer forma de solidariedade, na comunidade vital existe apenas a que denomina de solidariedade de substituição, em que um indivíduo é substituído por outro. Portanto, não se trata da verdadeira solidariedade, pois não existe o reconhecimento da singularidade pessoal do outro.⁵

Na sociedade, a associação é consciente e voluntária, a compreensão e o relacionamento mútuo entre os membros ocorrem através da inferência analógica, que consiste em atribuir ao outro uma realidade individual que não é vivida, simplesmente deduzida. Disso resulta uma separação total entre os indivíduos, sem uma verdadeira corresponsabilidade originária e essencial. O que existe é uma autorresponsabilidade individual sem a verdadeira comunicação entre os membros, uma vez que seu relacionamento não atinge o nível pessoal.⁵

Contrapondo-se aos agrupamentos sociais analisados, Scheler propõe um novo, o qual denomina de sociedade ideal. Ela é o ponto desejado de crescimento e desenvolvimento do ser humano no valor social. Nela, a pessoa é autorresponsável e corresponsável pelo outro e instaura a solidariedade como dever-ser.⁵

Por conseguinte, o valor social, a partir da solidariedade na assistência e no ensino, é fundamental para a construção do Ser-enfermeiro, pois, na práxis da enfermagem, quer seja assistencial ou no ensino, os diversos atores estarão assumindo o compromisso frente ao mundo, à vida e à pessoa. Buscarão reconhecer o seu posto no cosmos e seu respectivo papel em transformar a realidade opressora de saúde que aflige a população brasileira.^{3 , 12}

Valor da verdade

A verdade pode ser considerada valor, não pelo seu conteúdo, mas por corresponder ao anseio humano de conhecer o real, pois o homem não se satisfaz com o erro e com a mentira. Ele quer e anseia saber a verdade. Sua incompletude não se resolve com o engano. Apenas a verdade tem a possibilidade de complementá-lo.⁴

A proposição scheleriana afirma que a verdade instaurada é o conhecimento científico, logo, a ciência é um fenômeno resultante da construção racional do homem. A razão aprimora-se ao passar do senso comum para o científico, a partir do esforço na organização do conhecimento.⁵

Historicamente, na enfermagem, o movimento de reconhecimento do saber científico como norteador da prática assistencial remonta à década de 50, no século passado, quando procurou delinear-se buscando uma fundamentação para as técnicas empregadas, aproximando-se em suas bases das ciências naturais e do saber médico. Ademais, a ciência da enfermagem irá valer-se dos conhecimentos das áreas das ciências da saúde e humanas, a fim de constituir o corpo de saberes que respaldarão a sua ação.³

Moralidade

É o bem que se apresenta exigindo uma intenção de amor. Realiza-se, na prática social, através das boas obras. Como valor, projeta-se no mundo, como um dever ser. Exprime-se sob a forma de um imperativo categórico, isto é, impõe-se ao que se depara trazer para o campo de ação sua respectiva influência e, com isso, retificar o seu agir. Logo, torna-se possível transformar a realidade, a partir do crescimento espiritual resultante da presença do bem no interior de cada um.^{5 - 4 , 13}

O ser humano sente a necessidade do bem e, naturalmente, tende para ele, como valor. Sob esse aspecto, o bem se apresenta como fim. A razão, a partir da reflexão, vai estabelecendo uma consciência moral, que se expressa pelos juízos de valor que se apresentam à vontade, levando a buscar o bem como seu objetivo.^{4 , 14}

Para a Enfermagem Moderna, este valor coopera para a construção do Ser-enfermeiro, dando-lhe a possibilidade de conferir à sua atitude uma significação centrada na prática do bem. Logo, o assistir a vida ganha uma dimensão que transcende ao biológico, pois o respeito, a dignidade, a honestidade e a integridade moral passam a ter uma exigência na atitude do Ser-enfermeiro.^{3 , 14}

Ao mesmo tempo, na perspectiva scheleriana, é pelo amor que adentramos a realidade da pessoa. Por intermédio de outros meios, como os racionais e científicos, podemos conhecer o caráter, o temperamento, entretanto, nunca a pessoa do outro. Assim, por esses métodos, identificamos somente dados, sinais e particularidades e se ignora a que indivíduo pertence. Nesse sentido, é preciso reconhecer o paciente, não apenas constituído por dados lógicos, mas também por sua subjetividade. Por isso, para a enfermagem, as premissas do pensamento de Scheler podem contribuir em sua pragmática, fortalecendo-a filosoficamente e subsidiando o exercício de uma ética baseada em princípios, em que o amor passa a ser fundante para o estabelecimento do cuidado.^{13 - 14}

Utilidade

É o que favorece a vida, não a vida em geral, mas a vida humana. A vida do homem não é independente da humanidade. O homem é espírito, ao mesmo tempo em que é vida.⁵ Para o animal, o valor da utilidade equivale ao valor vital, para o homem, não. Embora, nas primeiras etapas do desenvolvimento da vida na criança, o natural se sobreponha ao artificial, no adulto e especialmente no aculturado, o artificial prevalece sobre o natural.⁴

O útil pode ser considerado como um valor espiritual por não estar orientado apenas para a conservação da vida, mas para o desenvolvimento espiritual do indivíduo. Mostra a afirmação de uma organização da vida pelo espírito, e não a submissão do espírito à vida.⁵

A crítica scheleriana à sociedade capitalista moderna é que esta, a partir da influência burguesa, tem empreendido esforço em desenvolver junto às pessoas uma escala hierárquica de valores, cujo valor útil tem sido colocado no topo. Ele realiza sua condenação a esta inversão dos valores do ethos burguês, inversão que consiste em colocar, no topo da hierarquia axiológica, precisamente, os valores sensíveis e materiais, que deveriam ocupar o nível mais baixo. Basta reordenar devidamente essa hierarquia, atribuindo aos valores do espírito a primazia que lhes compete por direito, para eliminar qualquer sentido negativo do progresso tecnológico e da civilização moderna industrial.⁵

Assim, a técnica e a indústria devem ser recolocadas no seu justo lugar, pois é um suporte importante e até indispensável para o desenvolvimento do espírito e da cultura. Nesse sentido, a civilização moderna produzida pelo capitalismo encontra, em seu pensamento, a sua justificativa e um sentido absolutamente positivo. O que ele critica e condena é a inversão de valores do ethos burguês, não o que este produziu concretamente em termos de progresso tecnológico e industrial.⁵

Para a pragmática da enfermagem, o valor útil reveste-se de importância, haja vista as variáveis que advêm de sua base, a saber: a técnica, a organização, a liderança e a racionalização do tempo ou de material, que trazem sobre o trabalho realizado junto ao cliente e à comunidade fortes implicações.³

Entretanto, valemo-nos do pressuposto scheleriano, que diz que a vida esconde em si os valores próprios, que nunca se deixa reduzir aos valores de uso, quiçá aos valores técnicos. Assim, a vida mais forte não será aquela que se coloca em atividade com a máxima adequação, pois a vida mais forte é aquela que, com um mínimo de mecanismo, cresce e progride.⁵

Posto isso, afirma-se que o valor não se restringe ao atendimento de uma faceta que o compõe. É no valor da utilidade que as dimensões do ser-aí-no-mundo apresentam significados para o ser humano. Dessa forma, ouvir, tocar, falar, estar-ao-lado e as expressões corporais são formas de aparição do valor útil. É através deste valor que o cuidado de enfermagem favorece a integralidade da pessoa-humana.

CONCLUSÃO

À guisa da conclusão, pode-se afirmar que a Enfermagem Moderna possui um campo axiológico que lhe é peculiar. Os valores que formam esse campo foram identificados no escrito de Florence Nightingale, e são: a solidariedade, o valor da verdade, a moralidade, e a utilidade. Esses valores fazem da enfermagem, tal qual nós a herdamos e conhecemos, o que ela é, legitimam-na como prática social e justificam o agir profissional.

Ao desvelar o campo axiológico da profissão, é-nos permitido refletir sobre o cuidado de enfermagem que se dispensa ao paciente, intentando compreender seu êxito e contradição. Nesse processo, é-nos permitido identificá-lo como fulcro da ação profissional, reconhecendo-o como ato de amor e solidariedade, fundamentado no conhecimento técnico científico. Logo, por meio do cuidado alicerçado nos valores da profissão, une-se a objetividade científica e a subjetividade. Tal enlace assume um sentido de dever ser para o enfermeiro, pois irá permitir que ele reconheça o paciente como pessoa.

Assim, faz-se necessário àquele que nessa carreira se insere mover-se à apreensão dos valores que formam seu campo axiológico. Não se trata de uma simples transferência, mas de uma ressignificação pessoal, isto é, através do mover reflexivo, o postulante à profissão de enfermagem e aqueles que nela já estão devem pôr a própria escala axiológica sob crítica e confrontá-la com os valores da Enfermagem Moderna, propugnados por Florence Nightingale, e, assim, retificar ou ratificar as próprias escalas valorativas em anuência ao campo axiológico que funda a profissão. Esse encaminhamento é essencial, pois a sua não realização produzirá no sujeito o enfraquecimento da construção do Ser-enfermeiro.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  25 Ago 2015
• Data do Fascículo
  July-Sep 2015

Histórico

• Recebido
  23 Abr 2015
• Aceito
  16 Jul 2015