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ATENDIMENTO MÓVEL DE URGÊNCIA NA CRISE PSÍQUICA E O PARADIGMA PSICOSSOCIAL1 1 Este artigo é parte da dissertação - Atenção pré-hospitalar ao sujeito em crise psíquica, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2011.

RESUMO

Objetivou-se conhecer a percepção e as intervenções de equipes de suporte básico do serviço de atendimento móvel de urgência na situação da crise psíquica. Estudo de abordagem qualitativa, descritiva, realizada em Santa Catarina, com quatro equipes de unidades de suporte básico do serviço de atendimento móvel de urgência. Os dados foram coletados de abril a junho de 2011, mediante entrevista semiestruturada. Utilizou-se para a organização e análise dos dados o Discurso do Sujeito Coletivo e para a discussão, o paradigma psicossocial. Dos resultados emergiram três discursos com as Ideias Centrais: crise como alteração de comportamento e instabilidade psicológica; manifestação com presença de alucinações e agressividade; intervenção que ocorre com contenção física, medicamentosa e encaminhamento. Concluiu-se que a concepção de crise pelos profissionais está atrelada ao positivismo da psiquiatria e a atenção pré-hospitalar segue medidas protocolares no atendimento à pessoa em crise psíquica, distantes dos princípios determinados pelo paradigma psicossocial.

Saúde mental; Crise; Psiquiatria; Urgência; Enfermagem

ABSTRACT

The objective was to know the perception and interventions of basic support teams of the mobile emergency medical service in a situation of psychic crisis. This was a qualitative and descriptive research study conducted in the state of Santa Catarina, with four professional teams of the Basic Support Units in Mobile and Emergency Service. The data were collected from April to June of 2011, through semi-structured interviews. Collective Subject Discourse was used to organize and analyze data and to discuss the Psychosocial Paradigm. From the results, three discourses emerged with the main ideas: crisis behavior disorder and psychological instability; hallucinations and aggressiveness; intervention with physical or pharmacological restraint and referral. It is concluded that the concept of crisis is linked by professionals to the positivism of psychiatry, and pre-hospital care follows protocol measures in attending the person in mental crisis, far from the principles determined by the psychosocial paradigm.

Mental health; Crisis; Psychiatry; Emergency; Nursing

RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo conocer la percepción y las intervenciones de equipos de apoyo básicos del centro de salud móvil de emergencia en el estado de crisis psíquica. Investigación cualitativa, descriptiva realizada en el estado de Santa Catarina con profesionales de cuatro equipos de Unidades de Soporte Básico del Servicio de Atención Móvil de Urgencias. Los datos fueron recolectados de abril a junio de 2011 mediante entrevista semiestructurada. Se utilizó el Discurso del Sujeto Colectivo para organizar y analizar los datos y para la discusión el Paradigma Psicosocial. De los resultados emergieron tres discursos con las ideas: crisis como alteración del comportamiento e inestabilidad psicológica; se manifiesta con alucinaciones y agresividad; la intervención surge con contención física, medicamentosa e interconsultas. Se concluye que la concepción de la crisis por los profesionales está ligada al positivismo de la psiquiatría y la atención pre-hospitalaria sigue medidas protocolares en el atendimiento a la persona en crisis psíquica, distante de los principios determinados por el paradigma psicosocial.

Salud mental; Crisis; Psiquiatría; Urgencias; Enfermería

INTRODUÇÃO

O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) no Brasil é um ponto de atenção que integra a Rede de Urgência e Emergência (RUE) e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Está instituído legalmente pela Portaria n. 2048/GM, de 05 de novembro de 2002,11. Brasil. Portaria n. 2048/GM, 05 de novembro de 2002: dispõe sobre o funcionamento dos serviços de urgência e emergência. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002.-22. Brasil. Portaria n. 1864/GM de 29 de setembro de 2003. Institui a Política Nacional de Atenção às Urgências, a ser implantada em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2003. e nas suas atribuições consta o cuidado nas urgências psiquiátricas.

A crise psíquica se situa no lócus das urgências e, segundo a resolução do Conselho Federal de Medicina,33. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM n. 1451/95 [online]. Diário Oficial da União, 17 março de 1995 [acesso 2014 Jun 06]. Seção I, p.3666. Disponível em Link: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1995/1451_1995.htm
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urgência é a ocorrência imprevista de agravo à saúde, com ou sem risco potencial de vida, na qual a pessoa necessita de assistência médica imediata. Estão incluídas nas urgências psiquiátricas as psicoses, tentativa de suicídio, depressões e síndromes cerebrais orgânicas.11. Brasil. Portaria n. 2048/GM, 05 de novembro de 2002: dispõe sobre o funcionamento dos serviços de urgência e emergência. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002.

Um estudo44. Martins MCV, Gois SVT, Barbosa LV, Correa CRG, Guedes SAG. Perfil dos atendimentos psiquiátricos realizados pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, Aracaju, janeiro/2010 a fevereiro/2011. Interfaces Científ Saúde Ambiente. 2012; 1:31-9. apontou que os principais sintomas apresentados nas urgências psiquiátricas são as agitações psicomotoras, cujas causas estão associadas ao abuso de substâncias psicoativas ou às condições clínicas que agravam o sofrimento psíquico.

Estudo europeu aponta que as urgências psiquiátricas ocupam o índice de 3,7% na relação total dos atendimentos realizados.55. Pacheco A, Burusco S, Senosiáin MV. Prevalence of processes and pathologies dealt with by the pre-hospital emergency medical services in Spain. An Sist Sanit Navar. 2010; 33 (Suppl 1):37-46. No Brasil, estudos apontam índices de 2,4%,66. Silva NC, Nogueira LT. Avaliação de indicadores operacionais obtidos por um Serviço de Atendimento Móvel de Urgência. Cogitare Enferm. 2012; 17(3):471-7. 2,98%,7 7. Marques GQ, Lima MADS, Ciconet RM. Conditions treated in the Mobile Medical Emergency Services in Porto Alegre - RS. Acta Paul Enferm. 2012; 24(2):185-91.5,2%,88. Santos ACT, Nascimento YCML, Lucena TS, Rodrigues PMS, Brêda MZ, Santos FG. Serviço de Atendimento Móvel de Urgência às urgências e emergências psiquiátricas. Rev enferm UFPE [on line]. 2014 Jun [acesso 2014 Set 28]; 8(6):1586-96. Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/5946/pdf_5254
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e 8,9%99. Jardim KFSB. O serviço ambulatorial móvel de urgência (SAMU) no contexto da reforma psiquiátrica: em análise a experiência de Aracaju/SE [dissertação]. Aracaju: Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008. de cuidado às urgências psiquiátricas no conjunto das síndromes da atenção pré-hospitalar.

No âmbito técnico legal,11. Brasil. Portaria n. 2048/GM, 05 de novembro de 2002: dispõe sobre o funcionamento dos serviços de urgência e emergência. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2002.-22. Brasil. Portaria n. 1864/GM de 29 de setembro de 2003. Institui a Política Nacional de Atenção às Urgências, a ser implantada em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2003. o SAMU deve realizar os atendimentos de urgências psiquiátricas com o propósito de acompanhar os usuários em crise a um ponto da rede de urgência e emergência. Esse procedimento se dá através das unidades de suporte básico (USB) com equipes compostas por condutores e auxiliares de enfermagem que realizam medidas de suporte não invasivas, correspondentes à abordagem inicial da pessoa, como cuidados básicos de ventilação e circulação, imobilização e transporte aos serviços de emergência. Outro dispositivo de transporte e apoio é a unidade de suporte avançado (USA) que possui equipes constituídas por condutores, enfermeiros e médicos, que executam procedimentos invasivos de suporte ventilatório e circulatório e realizam transporte de pacientes entre hospitais.77. Marques GQ, Lima MADS, Ciconet RM. Conditions treated in the Mobile Medical Emergency Services in Porto Alegre - RS. Acta Paul Enferm. 2012; 24(2):185-91. Porém, quando solicitado o serviço para atendimento à pessoa em crise psíquica esse é feito pelo suporte básico.

Contudo, as diretrizes para o funcionamento do SAMU não especificam os conteúdos das capacitações profissionais. Isso abre espaço para que se perpetue o saber da psiquiatria positivista, bem como as práticas de contenção física e química e o transporte para o internamento como as únicas possibilidades de intervenção nas crises psíquicas.1010. Bonfada D, Guimarães J. Serviço de atendimento móvel de urgência e as urgências psiquiátricas. Psicol Estud. 2012 Abr-Jun; 17(2):227-236.

Assim, o que se evidencia é uma grande necessidade da crise ser compreendida como uma manifestação individual, que se desenvolve no espaço coletivo com todas as incoerências e antagonismos decorrentes da sua construção histórica e social. Além disso, o cuidado prestado nessas situações precisa manter os laços sociais, ambientais e afetivos dos sujeitos, evitando medidas violentas, repressoras ou excludentes, capazes de comprometer as relações dos pacientes em crise.1010. Bonfada D, Guimarães J. Serviço de atendimento móvel de urgência e as urgências psiquiátricas. Psicol Estud. 2012 Abr-Jun; 17(2):227-236.

Com a Política Nacional de Saúde Mental, aprovada em 2001, teve início no país o processo de mudança na atenção à saúde mental, e esta passou a ser orientada pelo Paradigma Psicossocial, o qual prioriza os serviços comunitários e territorializados. Essa nova forma de cuidado em saúde mental, baseada na atenção psicossocial, requer reflexão e a criação de concepções e práticas de cuidado inovadoras.1111. Almeida AB, Nascimento ERP, Rodrigues J, Schweitzer G. Intervenção nas situações de crise psíquica: dificuldades e sugestões de uma equipe de atenção pré-hospitalar. Rev Bras Enferm. 2014 Set-Out; 67(5):708-14.

Destaca-se que o paradigma psicossocial pressupõe que o profissional se aproxime do contexto de vida da pessoa, da avaliação clínica e do seu estado mental, para favorecer a manifestação do sofrimento. É fundamental perceber a pessoa em crise como um ser singular, complexo e envolto por uma rede familiar e social.1111. Almeida AB, Nascimento ERP, Rodrigues J, Schweitzer G. Intervenção nas situações de crise psíquica: dificuldades e sugestões de uma equipe de atenção pré-hospitalar. Rev Bras Enferm. 2014 Set-Out; 67(5):708-14.

Nesse sentido, os estudos sobre o tema apontam que a consolidação de uma intervenção em crise mais articulada com a reforma psiquiátrica brasileira requer a implementação de medidas como a capacitação profissional.1010. Bonfada D, Guimarães J. Serviço de atendimento móvel de urgência e as urgências psiquiátricas. Psicol Estud. 2012 Abr-Jun; 17(2):227-236.

Desse modo, este estudo teve como questionamento: como os profissionais de um serviço de suporte básico de vida percebem a crise psíquica e intervêm no momento da crise? Assim, essa investigação objetivou conhecer a percepção e as intervenções de equipes de suporte básico do serviço de atendimento móvel de urgência na situação da crise psíquica.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório, descritivo, realizado com os profissionais de quatro equipes da USB do SAMU de um município de Santa Catarina. Estabeleceu-se como critério de inclusão: profissionais com experiência no atendimento à pessoa em crise em saúde mental e no exercício profissional no período de coleta de dados. Atenderam a estes critérios 14 profissionais, sendo que destes, sete eram técnicos de enfermagem e sete socorristas que atuam como condutores e na assistência.

A coleta de dados foi realizada no período de abril a junho de 2011, após autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (Parecer n. 1060/11) e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os dados foram coletados por meio de entrevista semiestruturada, gravadas e posteriormente transcritas. Para preservar o anonimato, adotou-se para a identificação dos participantes a inicial P (Profissionais), seguida do número correspondente à sequência da realização das entrevistas.

Aos participantes foi perguntado como percebiam a crise psíquica e o atendimento dado pelo SAMU à pessoa em crise psíquica. Para o processo de organização e análise dos dados, aplicou-se a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC)1212. Lefévre F, Lefévre AMC. Pesquisa de representação social: um enfoque quali-quantitativo: a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. 2ª ed. Brasília (DF): Liber Livro; 2012. que corresponde a um discurso síntese, elaborado com partes dos discursos individuais de sentido semelhante, utilizando-se a primeira pessoa do singular. Adotaram-se três figuras metodológicas do DSC: Expressão Chave (ECH), Ideia Central (IC) e o DSC. As ECHs são trechos do discurso individual, destacados pelo pesquisador, e retratam a essência do conteúdo do discurso. As ICs são nomes ou expressões linguísticas que descrevem e nomeiam, da maneira mais sintética e precisa possível, o(s) sentido(s) presente no conjunto homogêneo de ECHs, que constituem o DSC.12 12. Lefévre F, Lefévre AMC. Pesquisa de representação social: um enfoque quali-quantitativo: a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo. 2ª ed. Brasília (DF): Liber Livro; 2012.

Para a construção dos DSCs, seguiram-se os passos: leitura atenta de cada entrevista; agrupamento dos depoimentos relacionados a cada pergunta; destaques das ICs de cada depoimento; agrupamento das ICs de sentidos semelhantes ou complementares; identificação das ECHs dos depoimentos individuais; e, agrupamento das ECHs de acordo com a ICs que as definiam. Esses agrupamentos de ECHs com a mesma IC constituíram os DSCs.

Os discursos foram analisados à luz do paradigma psicossocial que consiste na busca da atenção à saúde através do diálogo entre as diferentes disciplinas e percepções de mundo. É um modo de produção de saúde focado no sujeito em sofrimento, que considera a dimensão sociopolítica do sofrimento e a complexidade de fatores de sua singularidade, tal como a implicação do sujeito do sofrimento diante do tratamento e sua inserção na Instituição.1313. Pereira EC, Costa-Rosa A. Problematizando a reforma psiquiátrica na atualidade: a saúde mental como campo da práxis. Saude Soc. 2012; 21(4):1035-43.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dos depoimentos dos participantes emergiram três DSCs, os quais tiveram como temas: entendimento de crise psíquica; características de situações de crise psíquica; intervenções à pessoa em crise psíquica. Cada tema está relacionado a uma IC. Para esta apresentação, optou-se em não mostrar as ECHs dos discursos individuais, uma vez que estão inseridas no DSC, representados por DSC1, DSC2, DSC3 para diferenciá-los.

O DSC 1 representa o discurso de 10 participantes, o DSC 2 corresponde ao discurso de 13 participantes e o DSC 3, o de 14 participantes.

O primeiro discurso se refere ao entendimento de crise psíquica, caracterizada como uma doença que altera o comportamento dos sujeitos de forma que impossibilita o convívio social.

Tema 1 - Entendimento de crise psíquica

IC 1 - Alteração de comportamento, instabilidade psicológica, doença mental

DSC 1 - Os distúrbios psiquiátricos alteram o equilíbrio da pessoa causando alterações de discernimento e comportamento. É tudo que foge do padrão normal tendo uma instabilidade psicológica ou neurológica, devido a não ter uma mente adequada e um raciocínio lógico. É uma doença que não é bem-vista por todos e, às vezes, exclui as pessoas do meio social. É causada por um desequilíbrio da própria pessoa devido, às vezes, por uma dependência química, agitação do dia a dia ou uma depressão que se torna uma obsessão. Entendo que todos têm a saúde mental prejudicada devido ao trabalho, à situação financeira, a situações familiares, interferindo na vida social. A doença mental - apesar de se entender ser somente do paciente psiquiátrico, acredito que envolve a população em geral, como depressão, dificuldades emocionais. É tudo aquilo que envolve a parte psíquica e social da população.

A resposta dada a uma situação depende do modo como a mesma é concebida. A concepção de crise pelos profissionais da equipe do SAMU, presente no DSC 1, revela uma naturalização conceitual ligada ao positivismo da psiquiatria, ou seja, mesmo com diferentes tendências na psiquiatria como a psicodinâmica, fenomenológica, epidemiológica, a tendência predominante é do modelo das ciências naturais, o positivismo, que fundamenta a medicina de evidências. Há uma explicação linear de crise relativa à doença, quando se trata de um fenômeno contextual e singular. Assim, a percepção de crise psíquica influencia na observação que o profissional do SAMU tem na cena, uma vez que ele é um sujeito que constrói o fenômeno e, ao fazer parte da cena, sua subjetividade também participa.

O ponto de partida de análise é refletir a analogia da crise com o duplo da doença mental. Isto significa que o duplo da doença mental se refere ao que não é inerente de estar doente, mas as formas institucionais de lidar com o objeto doença, e não mais com a pessoa, sobre o qual se constroem pré-conceitos científicos. A noção de duplo da doença mental de Basaglia é determinada pelo conjunto de representações difusas na sociedade (estigma, segregação, representações culturais do transtorno), e dos saberes científicos (psiquiatria, psicanálise, psicologia, entre outras) bem como de suas práticas, e a institucionalização é uma delas.1414. Amarante PDC. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. 5ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Fiocruz; 2010.

O duplo da crise significa que o discurso situado no imaginário profissional se ancora na concepção naturalizada da instituição e isto afasta a possibilidade de o profissional se aproximar da pessoa em crise, pois a associação que faz da crise é de ameaça, incompreensão, perigo, agressividade entre outras. Enfrentar este duplo revela a desconstrução da coisificação humana e deve ser o primeiro ato terapêutico para que a singularidade surja nas construções conceituais de crise.1414. Amarante PDC. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. 5ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Fiocruz; 2010.

Partir do conceito do duplo da crise significa questionar saberes historicamente institucionalizados e institucionalizantes. É necessário colocar a crise entre parênteses para se ocupar da pessoa. Esta demarcação epistemológica husserliana1414. Amarante PDC. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. 5ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Fiocruz; 2010. refere que o fenômeno pode ser construído pelo observador, baseado em constructos da ciência. Ressignificar a concepção de crise diz respeito a questionar os fundamentos epistemológicos e ontológicos em torno da construção do saber-fazer frente a ela. Essa premissa evoca uma disposição para atingir uma dimensão humana, atravessada pela fronteira entre a ideologia e a ciência.

Colocar entre parênteses significa negar a aceitação da elaboração teórica exclusiva da psiquiatria tradicional em dar conta da crise e da experiência do sofrimento; significa incluir o contexto da pessoa para além de sintomas que atribui rótulo,1414. Amarante PDC. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. 5ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora Fiocruz; 2010. ou seja, ao avaliar ir além da classificação dos sintomas e da atribuição mecânica de um diagnóstico, como a reduzir em um rótulo toda a complexidade da vida e da singularidade da pessoa. Significa a recusa de aceitar a positividade do saber psiquiátrico como exclusivo na explicação da crise. A crise entre parênteses manifesta a ruptura epistêmica na observação do que não é próprio da condição de estar em crise.

As concepções de crise são construções sociais, produzidas ao longo do tempo e reproduzidas no momento atual. Uma de suas características comuns continua sendo seu aspecto negativo aos olhos de trabalhadores e da população em geral.1515. Ferigato SH, Campos RTO, Ballarin MLGS. Atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Rev Psicol UNESP. 2007; 6(1):31-44.

Assim, a concepção de crise não é apenas uma construção teórica e paradigmática, mas uma reconstrução da vida daquele que a manifesta. Todavia, não há consenso entre as principais correntes teóricas que influenciam os saberes profissionais sobre a crise. O positivismo se refere à mesma como agudização da sintomatologia psiquiátrica. Esse é o modelo que predomina na história nas versões mais convencionais da psiquiatria e que tende a reduzir a crise a uma agudização da doença ou transtorno e seus sintomas, de forma separada do contexto social, cultural, familiar, comunitário e existencial.

A teoria da crise pode ser definida como uma desestabilização do equilíbrio do homem em relação ao seu corpo e ao meio ambiente.1515. Ferigato SH, Campos RTO, Ballarin MLGS. Atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Rev Psicol UNESP. 2007; 6(1):31-44. A crise é decorrente de um obstáculo para o alcance de objetivos importantes de vida por um período de tempo e pode se tornar insuportável para uma pessoa.1616. Caplan G. Princípios de psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: Zahar editores; 1980. Surge um período de desorganização no qual esforços foram realizados para a solução do problema. Na essência, o indivíduo é visto como vivendo no estado de equilíbrio emocional, com o objetivo sempre de retornar ou manter este estado. Assim, ou o indivíduo resolve o problema ou se adapta à situação. A crise seria circunstância para equilíbrio ou distúrbio emocional, portanto, pode conduzir à doença.1616. Caplan G. Princípios de psiquiatria preventiva. Rio de Janeiro: Zahar editores; 1980.

A crise se expressa como uma "força relativamente pequena, agindo por período relativamente curto, pode fazer pender todo o equilíbrio para um lado ou para o outro - para o lado da saúde mental ou para o da perturbação mental. Durante esse curto período em que o equilíbrio de forças é instável, uma ligeira ajuda poderá significar a diferença entre um bom e um mau desfecho".16:312

Salienta-se que as situações de crise promovem um momento de metamorfose, de saída de um lugar conhecido para outro a ser reconstruído, por seu caráter também inédito.1515. Ferigato SH, Campos RTO, Ballarin MLGS. Atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Rev Psicol UNESP. 2007; 6(1):31-44. As decisões que se fazem necessárias por vezes mexem com as imposições sociais estabelecidas, ocasionando um caos nos padrões normatizadores. Essa percepção pode ser observada na fala É tudo que foge do padrão normal tendo uma instabilidade psicológica ou neurológica, devido a não ter uma mente adequada e um raciocínio lógico, ou seja, inadequado para viver em sociedade. E, ainda, a afirmação: A pessoa fica diferente do estado normal, foge do controle do raciocínio lógico, tornando-se desorientada, não falando coisa com coisa, um discurso composto pelo conceito de padronização das normas, ou seja, o fugir do padrão determina que o sujeito se coloque numa posição de anormalidade. Determinar a diferença entre o normal e o anormal perpassa pelo momento vivido e o conceito moral que se estabeleceu, sendo o anormal o incorreto e, com isso, estigmatizado.

A anormalidade representa a quebra da sociabilidade, que deve ser resgatada pela restauração dos níveis de normalidade.1717. Silva ATM, Souza JS, Silva CC, Nóbrega MML, Oliveira Filha M, Barros S, et al. Education of nurses in the perspective of the psychiatric reform. Rev Bras Enferm. 2004 Nov-Dez; 57(6):675-8. Isso se mostra no processo de constituição do estigma da loucura, que historicamente foi pautado nos princípios do risco e tendo por consequência a exclusão. Com a determinação da loucura como doença, faz-se necessário o tratamento, baseado na retirada total da sintomatologia. A crise passa a ser caracterizada como uma exacerbação dos sintomas da doença loucura e, a partir desta lógica, deve ser suprimida imediatamente. Esse processo de estigmatização que recaiu sobre o fenômeno da loucura contou com a conivência e, até mesmo, com o apoio de profissionais de saúde.1818. Waidman MAP, Costa B, Paiano M. Community Health Agents' perceptions and practice in mental health. Rev Esc Enferm USP [online]. 2012 Oct [acess 2012 Feb 27]; 46(5):1170-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v46n5/en_19.pdf
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Conforme o DSC 1, os distúrbios psiquiátricos alteram o equilíbrio da pessoa causando alterações de discernimento e comportamento, mostra que a loucura perpassa por uma ligação direta com a periculosidade e um imaginário social de exclusão que, conforme o relato, é uma doença que não é bem-vista por todos e, às vezes, exclui as pessoas do meio social. Assim, pode-se verificar que a constituição do fenômeno da loucura carrega consigo uma característica depreciativa e incapacitante e, por isso, as ações em saúde se constituem através de intervenções de controle e são basicamente corretivas.

Para desconstrução do modelo psiquiátrico, pautado exclusivamente na doença, por mais de dois séculos, é necessário uma intensa discussão entre todos os atores, gestores, trabalhadores e sociedade em geral a fim de construir um novo olhar à saúde mental, diferente da patologia. Um olhar que priorize o sujeito como ser complexo e ativo em todo processo, constituído de desejos e singularidade, e que rompa com o modelo padronizado de entender a loucura.

É importante salientar que uma mudança paradigmática se constitui por um processo contínuo e árduo, pois obriga a desconstrução de um olhar instituído por séculos pela sociedade. Sendo assim, é necessário um repensar na assistência a partir da constituição de um espaço de encontro capaz de produzir transformações significativas através da escuta e intervenção ao sujeito em toda sua complexidade. Tem como princípio fundamental a ampliação do olhar no processo de cuidado com a participação ativa dos sujeitos envolvidos, ou seja, uma clínica ampliada, baseada na construção de responsabilidade singular e de vínculo estável entre equipe de saúde e o sujeito em sofrimento.1919. Campos GWS, Amaral MA. A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teórico-operacionais para a reforma do hospital. Ciênc Saúde Coletiva. 2007 Jul-Ago; 12(4):849-59.

No segundo discurso, encontram-se as características das situações de crise psíquica percebida como exacerbação sintomatológica identificada por desorientação e agressividade.

Tema 2 - Características de situações de crise psíquica

IC 2 - Presença de alucinações, mania de perseguição, desorientação, agressividade

DSC 2 - A crise em saúde psíquica se caracteriza por uma pessoa alterada, com a presença de alucinações, mania de perseguição, psicótico, sob uso de drogas. Geralmente pacientes psiquiátricos entram em crise quando deixam de tomar suas medicações, mas as pessoas que não possuem diagnóstico também entram em crise por consequência de estresse, ocasionando um transtorno para a família. A pessoa fica diferente do estado normal, foge do controle do raciocínio lógico, tornando-se desorientada, não falando coisa com coisa, às vezes, é agressiva, muitas vezes ansiosa e chorosa. É um estado avançado da doença do tipo transtorno bipolar e esquizofrenia.

Refletindo sobre este discurso, questiona-se: "é possível transcrever em termos de sintomas e em termos de doença o que motivou a demanda dos usuários? Transcrever a demanda como doença, fazer existir os motivos da demanda como sintomas da doença, são funções da prova psiquiátrica e do poder de intervenção".20:348

É nessa perspectiva que se encontra o olhar dos profissionais no DSC 2 para a questão da crise, sendo esta determinada pela exacerbação de sintomas da doença psiquiátrica. Outro ponto importante é a ideia de anormalidade e perda de controle que ocasionam uma impossibilidade de convívio com outras pessoas, fortalecendo o imaginário social de incapacidade e exclusão da pessoa em crise. A sociedade estabelece critérios organizacionais para o convívio social e quando esses critérios são rompidos se faz necessário estabelecer medidas de controle na busca da recuperação do padrão. É nesse campo que se tem a oportunidade de uma aprendizagem coletiva, onde os profissionais do SAMU em conjunto com os demais profissionais da rede intersetorial encontram no território a possibilidade de construir uma resposta à crise baseada em uma relação singular. Estas relações próprias do contexto sociocultural são denominadas de relações artesanais no lidar com a crise.2121. Nicácio F, Campos GWS. A complexidade da atenção às situações de crise: contribuições da desinstitucionalizaçao para a invenção de práticas inovadora em saúde mental. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2004 Mai-Ago; 15(2):71-81.

Destarte, a transformação do entendimento de crise requer mudança paradigmática na compreensão do que seja a loucura na sociedade e, principalmente, nas práticas assistenciais, na disponibilidade da equipe técnica para o acolhimento e escuta do sujeito em situação de crise, proporcionando um ambiente favorável para a constituição de vínculo.

A afirmação é um estado avançado da doença do tipo transtorno bipolar e esquizofrenia, presente no DSC 2, denota que a visão estabelecida pelos profissionais está pautada nos conceitos patológicos e sobretudo sintomatológicos, relacionados diretamente aos princípios da ciência biomédica. A partir da mudança paradigmática de entender o fenômeno da loucura com base na atenção psicossocial é fundamental resgatar o contexto da singularidade e da subjetividade dos sujeitos, pois assim também é possível evitar o agravamento da crise, bem como, problematizá-la como um processo que gera amadurecimento, crescimento e autoconhecimento.2222. Jardim K, Dimenstein M. Risco e crise: pensando os pilares da urgência psiquiátrica. Psicol Rev. 2007 Jun; 13(1):169-90. É o momento também de se estabelecer uma articulação entre os diversos atores envolvidos e instituições da rede de saúde mental, necessária para a continuação ao processo de cuidado. No entanto, percebe-se a dificuldade dos profissionais de saúde em incorporar no seu cotidiano de trabalho esses novos entendimentos e práticas inovadoras na assistência em situações de crise. Isso, em especial, no que se refere à percepção das potencialidades possíveis de serem trabalhadas, devido à sua singularidade, mas também à falta de conhecimento e criatividade na construção de ações coletivas e desestigmatizantes.

Quando se fala em crise, não há referência apenas a uma experiência individual e nem a um privilégio de pessoas em sofrimento psíquico, mas sim, em um contexto complexo e global de situações que interferem no cotidiano do sujeito e sua relação com o mundo.1515. Ferigato SH, Campos RTO, Ballarin MLGS. Atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Rev Psicol UNESP. 2007; 6(1):31-44. Na saúde mental esse termo geralmente é utilizado para designar um momento individual específico, no qual efervescem questões, afetos, gestos e comportamentos variáveis e singulares, que afetam em graus variáveis a vida cotidiana da própria pessoa e daqueles de seu convívio e que costumam ser determinantes das demandas e intervenções nos serviços.2323. Costa MS. Construções em torno da crise. Saberes e práticas na atenção em saúde mental e produção de subjetividades. Arq Bras Psicol [online]. 2007 Jun [acesso 2010 Jun 20]; 59(1):94-108. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S1809-52672007000100010&script=sci_arttext
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid...

No DSC 3 estão presentes as intervenções em crise psíquica pautadas por ações controladoras e repressoras, em discordância com o paradigma psicossocial.

Tema 3 - As intervenções em crise psíquica

IC 3 - Contenção física, medicamentosa e encaminhamento

DSC 3 - É necessário no primeiro momento avaliar a cena e verificar se tem algum risco para a equipe, caso não haja se faz a aproximação e o diálogo com o paciente e familiar para avaliar os sinais e sintomas e repassar para a regulação. Quando as pessoas estão nesse tipo de surto, elas confundem muito a realidade. Às vezes, é necessário entrar no mundo delas para conseguir buscar uma solução para o caso. Tem surto que já está tão agudo e apresentando risco, com uma arma branca ou uma arma de fogo, que é necessário o auxílio da polícia. Quando ele está muito agitado, informo aos familiares a necessidade de imobilizá-lo e medicá-lo conforme indicação do médico regulador, para que se possa levá-lo para o hospital, mas sempre amarrado. Quando não está agitado, basta o diálogo, o medicamento e remover a pessoa. O que ajuda muito é o entrosamento dos profissionais e a articulação rápida com a regulação e a polícia militar. O apoio à família e o encaminhamento rápido ao IPQ [Instituto de Psiquiatria] também são importantes. Outra coisa importante é saber a forma de pegar neles para não machucar e isso a gente deveria ter um preparo melhor e até mesmo um protocolo.

No DSC 3 estão presentes os discursos relativos às intervenções em crise. Salienta-se a preocupação da equipe quanto a sua segurança, frente à pessoa em crise, a partir do risco que a cena se coloca para o profissional. Verifica-se que essa preocupação faz parte do trabalho profissional, mas ela não deve reforçar o imaginário social da crise como patógena da loucura, relacionada à agressividade. Este discurso remete a necessidade de reflexão sobre a atuação do profissional de saúde em relação ao cuidado é necessário no primeiro momento avaliar a cena e verificar se tem algum risco para a equipe, caso não haja se faz a aproximação e o diálogo com o paciente e familiar para avaliar os sinais e sintomas. Pode-se inferir que a crise é o próprio risco apontado na cena. Para o estudo o "conceito do risco em saúde mental se coloca a partir do momento que a crise é o prenúncio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doença mental (instalada ou futura)".22:178 A crise como risco constitui a união "da urgência à psiquiatria, dando origem à urgência psiquiátrica".22:183

A crise e a urgência "estão em lados opostos da vida. A crise contempla aspectos psicossociais, a urgência é determinada pela visão psiquiátrica".24:183 A crise se transforma em urgência a partir "do momento que afeta diretamente a rotina da família (ou do responsável) e que se decide denominar o acontecimento enquanto tal".22:178 A crise manifestada pela pessoa é a máxima simplificação de uma relação em que ela própria reduz a sua complexa existência de sofrimento a um sintoma ou comportamento estranho à sua maneira de estar no mundo. A equipe profissional ampara sua observação no sintoma de modo que a resposta é baseada nesse modelo de simplificação.2525. Dell'acqua G, Mezzina R. Resposta à crise: estratégia e intencionalidade da intervenção no serviço psiquiátrico territorial. In: Amarante P, organizador. Arquivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau; 2005. p.161-194.

Via de regra, a prática profissional na atenção à pessoa em crise reproduz a herança do hospital psiquiátrico, quando é investida uma atuação apenas no sintoma. Faz necessária a desnaturalização da atuação em crise, um questionamento do que é, como se configura, quem a define, como ela se manifesta e como deve ser amparada.

No atendimento à pessoa em crise, é importante fazer uma leitura da cena baseada na forma como a situação da pessoa se apresenta, estabelecer contatos que considerem a participação da pessoa em crise nessa relação dialógica. Destaca-se que a aproximação, a disposição da equipe para entrar em relação com a pessoa deve reconhecer a necessidade desta. É relevante mediar as relações, lidando simultaneamente com os conflitos. As relações devem promover encontros com respostas singulares. É necessária a desinstitucionalização dos trabalhadores do SAMU, o que significa dizer que as práticas devem ser concretas na interação com as pessoas calcadas no território vivo delas.2121. Nicácio F, Campos GWS. A complexidade da atenção às situações de crise: contribuições da desinstitucionalizaçao para a invenção de práticas inovadora em saúde mental. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2004 Mai-Ago; 15(2):71-81.

Corroborando nesta área, um estudo2626. Allison M, Kairi K, Keili K, Beverley G, Diego DL. Treatment priority for suicide ideation and behaviours at an Australian emergency department. World J Psychiatry [online]. 2013 Jun [acess 2015 Jun 08]; 3(2):34-40. Available from: www.wjgnet.com/2220-3206/pdf/v3/i2/34.pdf
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verificou a ordem de prioridade para o atendimento das pessoas em crise, nos serviços de emergência da Austrália, apontando a priorização dada pelos reguladores para os casos de lesões que causam dor e potencialmente podem levar a outras complicações de saúde, desconsiderando a dor mental ou emocional.

Entende-se que a atenção à situação de crise em saúde mental ainda carece de formação específica da equipe, sensibilizando-a para a subjetividade do sujeito. Assim, o atendimento da pessoa em crise deve ser pautado na flexibilidade da equipe para entrar em relação a partir da escuta, da palavra, em que a pessoa é valorizada mesmo que o discurso para quem escuta não faça sentido. Os recursos do território, espaço da produção da vida e demarcação subjetiva da pessoa são considerados, desde que contribuam no alívio do sofrimento, no estabelecimento de cuidado solidário e cooperativo. Destaca-se que a equipe deve conhecer como o território está composto para ter mais vínculos na atenção à saúde. A gestão que operacionaliza as equipes do SAMU poderia seguir a lógica dos agentes comunitários de saúde que pertencem ao território vivido, conhecem e possuem vínculo com as pessoas. Na medida do possível, seria oportuno os trabalhadores do SAMU atuarem nas regiões de saúde nas quais possuem vínculos territoriais.

Pode-se verificar na expressão contemplada no DSC 3 a priorização de intervenções controladoras: quando ele está muito agitado, informo aos familiares a necessidade de imobilizá-lo e medicá-lo conforme indicação do médico regulador, para que possamos levá-lo para o hospital, e sempre amarrado.

A contenção pode ser necessária, por vezes com aplicação de força física. Alerta-se a discrepância entre a contenção que cuida da contenção que pune. Essa diferença conceitual é fundamental para a reflexão do cuidado posterior ao momento da contenção. Na perspectiva do profissional da saúde é desejável que este compreenda que a manifestação de sentimentos como raiva, pavor e medo são esperados quando se vivencia uma situação de crise. Recomenda-se respeitar o "outro como um sujeito momentaneamente indefeso e que precisa de ajuda para recuperar a sua integridade. Semelhante atitude pode evitar o afastamento e produzir aproximações".27:8-99. Jardim KFSB. O serviço ambulatorial móvel de urgência (SAMU) no contexto da reforma psiquiátrica: em análise a experiência de Aracaju/SE [dissertação]. Aracaju: Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008.

Salienta-se que, em todo atendimento à crise, deve ser dito o nome de quem presta o cuidado e guiado não apenas pelo nome da pessoa, mas principalmente pelo nome que ela gosta de ser chamada, isto promove a interação. Os familiares podem ser parceiros do cuidado, pois convivem com a pessoa e podem indicar estratégias no manejo das situações limites com a pessoa. O estudo baseado na experiência santista de lidar com as crises salienta que a decodificação dos sentidos das experiências contribui na compreensão das situações de crise, sempre de forma contextualizada, porquanto é esta que as fazem emergirem e que possibilitam a relação do profissional e a pessoa em crise. Isto implica a ruptura de conceber e agir no preâmbulo da doença e encontrar a pessoa na crise.2121. Nicácio F, Campos GWS. A complexidade da atenção às situações de crise: contribuições da desinstitucionalizaçao para a invenção de práticas inovadora em saúde mental. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2004 Mai-Ago; 15(2):71-81.

O acolhimento dialogado é uma estratégia potente a ser utilizada pelo SAMU. Por este conceito se entende um componente da conversa no momento do atendimento que busca identificar, negociar e atender a necessidade que poder vir a ser satisfeita no encontro entre a pessoa em crise e a equipe profissional. Nessa estratégia, tem-se a possibilidade de desconstruir a associação de urgência psiquiátrica à agressão e desespero. Outra possibilidade seria a ética/cuidado que consiste na atenção urgente à pessoa em crise. Atenção que encontra a história, os valores simbólicos, os amigos, o significado dos gestos da pessoa em crise.2222. Jardim K, Dimenstein M. Risco e crise: pensando os pilares da urgência psiquiátrica. Psicol Rev. 2007 Jun; 13(1):169-90. Além das formas de atendimento à pessoa em crise, é pré-requisito obrigatório a existência de um serviço de urgência 24 horas, articulado com a rede de serviços e estruturado no território.2424. Häfner H, Rössler W, Haas S. Psychiatric emergency care and crisis intervention: concepts, experiences and results. Psychiatr Prax. 1986 Nov; 13(6):203-12. Todas estas discussões devem ser pautadas por estratégias de educação permanente, construídas e pactuadas entre os atores envolvidos no processo.2828. Tavares CMM. A educação permanente da equipe de enfermagem para o cuidado nos serviços de saúde mental. Texto Contexto Enferm. 2006; 15(2):287-95.

CONCLUSÃO

Evidenciou-se neste estudo que, apesar da mudança nas políticas públicas no Brasil referente à saúde mental e da implantação de um novo paradigma norteador para pensar o fenômeno da loucura, os profissionais de saúde permanecem com a concepção patologizante e estigmatizante como base para suas práticas assistenciais, própria das teorias clássicas que perduraram por séculos na história da psiquiatria. Isso requer a discussão acerca do fenômeno da "loucura" e suas formas de tratamento/intervenções mais próximas do paradigma psicossocial durante a formação profissional e nas instituições de saúde.

A ideia do serviço de atendimento pré-hospitalar como de intervenção rápida e pontual dificulta a apropriação das equipes para uma ação ampliada. As intervenções estão direcionadas a estratégias preestabelecidas, sistematizadas, protocoladas, que dificultam intervenções subjetivas. Com isso, reafirmam a crise como simples exacerbação sintomatológica e principalmente caracterizada pelo risco, que precisa ser controlada e retirada a todo custo.

Para que ocorra uma mudança real na prática assistencial, faz-se necessário superar o modelo tradicional da psiquiatria, rediscutir o conceito da loucura na sociedade e repensar as práticas assistenciais, a partir do paradigma psicossocial e os princípios do SUS.

Sugere-se a elaboração de novas investigações vinculadas à pessoa em crise psíquica, na perspectiva do paradigma psicossocial em diferentes contextos de cuidado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2014
  • Aceito
    17 Ago 2015
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