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REVELANDO O MUNDO DO TRATAMENTO ONCOLÓGICO POR MEIO DO BRINQUEDO TERAPÊUTICO DRAMÁTICO1 1 Artigo extraído da dissertação - Compreendendo o brincar da criança com câncer por meio do brinquedo terapêutico dramático, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2014.

RESUMO

Objetivou-se compreender o brincar da criança pré-escolar em tratamento oncológico por meio do brinquedo terapêutico dramático. Participaram de sessões de brinquedo terapêutico dramático cinco crianças com câncer, em idade pré-escolar, de janeiro a maio de2013. Procedeu-se a análise do material conforme o referencial da fenomenologia: análise da estrutura do fenômeno situado. Das sessões emergiram as categorias: Mergulhando no mundo da doença e do tratamento oncológico; e Relembrando o mundo sem a doença. O estudo apreendeu que o adoecer com câncer é um processo gerador de dor e sofrimento para a criança, levando-a sentir-se pequena e frágil frente aos desconfortos dos inúmeros procedimentos a que é submetida. O brinquedo terapêutico foi um recurso importante para revelar como a criança com câncer se sente durante o tratamento e mostrou sua dificuldade em interagir com o desconhecido, deixando complexo seu equilíbrio entre momentos de saúde e de doença.

Criança; Câncer; Jogos e brinquedos; Enfermagem pediátrica

ABSTRACT

This study aimed to understand the play of the preschool child undergoing oncological treatment through dramatic therapeutic play. A total of five preschool age children with cancer participated in the dramatic therapeutic play sessions, between January and May 2013. The material was analyzed using the framework of phenomenology: analysis of the structure of the phenomenon in place. The following categories emerged from the sessions: Immersing oneself in the world of the disease and the oncological treatment; and Remembering the world without the disease. The study learned that becoming ill with cancer is a process which generates pain and suffering for the child, leading her to feel small and fragile in the face of the discomforts of the numerous procedures to which she is subjected. Therapeutic play was an important resource for revealing how the child with cancer feels during the treatment, and showed the children's difficulty in interacting with the unknown, and how this difficulty makes the balance between the points of health and illness complex.

Child; Cancer; Plays and toys; Pediatric nursing

RESUMEN

Dirigido a comprender el juego de los niños en edad preescolar se someten a tratamiento para el cáncer a través del juego terapéutico dramático. Realizados sesiones de juegos terapéuticos dramáticos con cinco niños con cáncer, con edades preescolar, a partir de enero a mayo 2013. Procedieron a analizar el material de acuerdo con el marco de la fenomenología: análisis de la estructura del fenómeno. Análisis de las sesiones siguientes categorías surgieron: sumergirse en el mundo del tratamiento de la enfermedad y el cáncer y recordar al mundo sin la enfermedad. El estudio detenido que enfermarse de cáncer es un proceso que el dolor y el sufrimiento para el niño, lo que lleva a sentirse pequeño y frágil en comparación con las molestias de los numerosos procedimientos que se presentan. El juego terapéutico era un recurso importante para revelar cómo el niño con cáncer se siente durante el tratamiento y mostró la dificultad de interactuar con lo desconocido, dejando a su complejo equilibrio entre momentos de salud y enfermedad.

Niño; Cáncer; Juegos y juguetes; Enfermería pediátrica

INTRODUÇÃO

O câncer se destaca pela sua alta incidência, sendo a segunda causa de morte em crianças e adolescentes entre um e 19 anos.11. Ministério da Saúde (BR). Instituto Nacional de Câncer. Estimativa 2014: incidência de câncer no Brasil [Internet]. Rio de Janeiro (RJ): MS; 2014 [citado 2014 Mai. 26]. Disponível em: http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/sintese-de-resultados-coment
http://www.inca.gov.br/estimativa/2014/s...
A criança com câncer ingressa num mundo complexo, vislumbra um caminho para um tratamento incerto, doloroso, prolongado, que modifica seu cotidiano, bem como se distancia dos familiares, dos amigos e do lar, fragilizando os planos de futuro, não obstante, tornando a morte uma possibilidade real.22. Hildebrand A, Clawson M, Alderfer M, Marsac M. Coping with pediatric cancer: strategies employed by children and their parents to manage cancer-related stressors during treatment. J Pediatr Oncol Nurs. 2011; 28(6):344-54.

Apesar de o câncer não interromper, necessariamente, o processo de desenvolvimento infantil, algumas restrições físicas e psicossociais impostas pela doença e pelo tratamento podem retardá-lo. Assim, o cuidado à criança em tratamento oncológico deve proporcionar conforto físico, social, ambiental e psicoespiritual.33. Ângstrom-Brännström C, Norberg A. Children undergoing cancer treatment describe their experiences of comfort in interviews and drawings. J Pediatr Oncol Nurs. 2014; 31(3):135-46.

Um estudo utilizou jogos de computador para ajudar crianças com câncer a lidarem com o estresse da hospitalização e concluiu que as condições emocionais são essenciais na recuperação da saúde, tanto no tratamento, quanto na maneira como a doença foi consolidada no imaginário da criança.44. Li WH, Chung JO, Ho EK. The effectiveness of therapeutic play, using virtual reality computer games, in promoting the psychological well-being of children hospitalized with cancer. J Clin Nurs. 2011; 20(15-16):2135-43. Com enfoque numa assistência que promova a integridade emocional da criança com câncer, as ações de saúde devem também proporcionar crescimento e desenvolvimento saudáveis.44. Li WH, Chung JO, Ho EK. The effectiveness of therapeutic play, using virtual reality computer games, in promoting the psychological well-being of children hospitalized with cancer. J Clin Nurs. 2011; 20(15-16):2135-43.

Crianças de três a nove anos foram convidadas a expressar suas experiências sobre o câncer por meio de desenhos e revelaram que a doença determina momentos de desconforto relacionado ao tratamento, mas também momentos de conforto vinculados ao apoio dos familiares e da equipe de saúde, além das atividades de distração: brincar, jogar e ler.33. Ângstrom-Brännström C, Norberg A. Children undergoing cancer treatment describe their experiences of comfort in interviews and drawings. J Pediatr Oncol Nurs. 2014; 31(3):135-46.

O brincar é uma necessidade básica da criança e, é por meio deste, que ela adquire novos conhecimentos no/do mundo, descobre sua individualidade e aprende a distinguir a realidade da fantasia.55. Melo LL, Valle ERM. The toy library as a possibility to unveil the daily life of children with câncer under outpatient treatment. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):517-25. Na brincadeira, a criança transporta-se para um mundo de imaginação, sendo caracterizada como uma atividade espontânea, prazerosa e envolvente que proporciona recreação, estimulação, socialização, dramatização de papéis, de conflitos e catarse.66. Ribeiro CA, Borba RIH, Melo LL, Santos VLA. Utilizando o brinquedo terapêutico no cuidado à criança. In: Carvalho SD. O enfermeiro e o cuidar multidisciplinar na saúde da criança e do adolescente. São Paulo (SP): Atheneu; 2012. p.127-34.

O brinquedo terapêutico (BT) é uma brincadeira estruturada que possibilita à criança, aliviar a ansiedade gerada por situações atípicas para sua idade, colaborando para que ela descarregue tensões após vivenciá-las.77. Green CS. Understanding children's needs through therapeutic play. Nursing. 1974; 4(10):31-32. Seu objetivo é possibilitar à enfermeira uma melhor compreensão das necessidades da criança, auxiliar no preparo de procedimentos terapêuticos, bem como, permitir que a criança reorganize suas emoções após períodos difíceis da vida.66. Ribeiro CA, Borba RIH, Melo LL, Santos VLA. Utilizando o brinquedo terapêutico no cuidado à criança. In: Carvalho SD. O enfermeiro e o cuidar multidisciplinar na saúde da criança e do adolescente. São Paulo (SP): Atheneu; 2012. p.127-34.

Assim, o BT apresenta-se não apenas como uma forma de comunicação e acesso ao mundo infantil, mas também se mostra essencial, na medida em que ajuda a criança a enfrentar a realidade da doença, possibilitando que ela compreenda e recupere o autocontrole diante das adversidades, sendo indispensável em seu cotidiano.

Considerando as dificuldades impostas pela doença e pelo tratamento oncológico na infância, algumas inquietações nortearam a realização deste estudo, dentre elas: como se dá o brincar da criança com câncer? Quais são suas manifestações na brincadeira? Qual a influência do tratamento no seu cotidiano? Quais as repercussões da doença em seu desenvolvimento físico e psíquico?

Em face de tais questionamentos, esta pesquisa objetivou compreender o brincar da criança pré-escolar em tratamento oncológico por meio do brinquedo terapêutico dramático. Ressalta-se que a investigação desse tema é fundamental para compreender esse momento singular, respeitando as individualidades e necessidades da criança com câncer, além de contribuir para a reflexão do trabalho do enfermeiro, no que diz respeito ao planejamento das ações de cuidado.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, tendo como referencial metodológico a análise da estrutura do fenômeno situado, que se inspira na Fenomenologia enquanto escola filosófica. A escolha do referencial deu-se porque esta abordagem de pesquisa considera o ser em sua singularidade e busca compreender a experiência vivida pelo sujeito, valorizando as relações com o outro e com o mundo.88. Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos.São Paulo: Moraes; 2004.

O estudo foi realizado em uma casa de apoio à criança com câncer e hemopatias na cidade de Campinas-SP. A casa hospeda crianças e adolescentes com câncer, de 0 a 18 anos de idade, junto com seus acompanhantes, tendo capacidade para abrigar até 56 crianças e adolescentes com seus respectivos acompanhantes.

Os participantes foram cinco crianças com câncer em idade pré-escolar (três a seis anos), que estavam em tratamento oncológico, clínico e/ou cirúrgico e que residiam provisoriamente na casa de apoio. Para sua escolha, foram considerados os seguintes critérios: estar na idade pré-escolar, residir na casa de apoio durante o tratamento até o seu retorno ao domicílio e o desejo da criança em querer brincar.

As sessões de brinquedo terapêutico dramático (BTD) foram realizadas individualmente com cada criança, apenas na presença da pesquisadora principal, conforme determina a postura fenomenológica de acesso aos participantes88. Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos.São Paulo: Moraes; 2004. e ocorreram no período de janeiro a maio de 2013, sendo iniciadas com a questão norteadora: "Vamos brincar de uma criança que está com câncer?"

Foram realizadas 26 sessões de BTD, gravadas em áudio digital e transcritas na íntegra, com duração média de quarenta e oito minutos cada sessão. O número de sessões realizadas com cada criança foi determinado pela sua presença na casa de apoio durante o tratamento até seu retorno ao domicílio, sendo esta uma limitação do estudo e, ainda, pelo seu desejo em brincar. As crianças e seus respectivos nomes fictícios, idades, sexo, diagnóstico e número de sessões de BTD estão descritas no quadro 1.

Quadro 1
- Crianças participantes do estudo. Campinas-SP, 2014

Para a realização das sessões foram oferecidos diversos brinquedos, tais como: família de bonecos, carros de corrida, jogos, utensílios domésticos, além de materiais hospitalares: seringa, agulha, frascos de coleta de sangue e urina, esparadrapo, sonda, gaze, garrote, equipo, frasco com soro fisiológico, dentre outros, conforme recomendação da literatura.66. Ribeiro CA, Borba RIH, Melo LL, Santos VLA. Utilizando o brinquedo terapêutico no cuidado à criança. In: Carvalho SD. O enfermeiro e o cuidar multidisciplinar na saúde da criança e do adolescente. São Paulo (SP): Atheneu; 2012. p.127-34.

Foi utilizado um diário de campo para anotar os aspectos que o gravador de áudio não é capaz de captar, como o brincar em silêncio. O número de participantes da pesquisa não foi estabelecido previamente, sendo encerradas as sessões quando o conteúdo das mesmas responderam às inquietações do pesquisador, de modo a desvelar o fenômeno em questão.99. Giorgi A. The descriptive phenomenological method in psychology. Pittsburgh (US): Duquesne University Press; 2009.

A análise das sessões de BTD foi realizada conforme o referencial teórico da análise da estrutura do fenômeno situado. Primeiramente, cada depoimento foi transcrito na íntegra e na sequência foram realizadas sucessivas leituras docorpus, em busca de compreender a experiência vivida pelo sujeito. A seguir, procedeu-se a análise ideográfica, com o intuito de apreender os trechos mais significativos de cada discurso, afim de identificar as unidades de significado, que representam as estruturas fundamentais do fenômeno.88. Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos.São Paulo: Moraes; 2004.

9. Giorgi A. The descriptive phenomenological method in psychology. Pittsburgh (US): Duquesne University Press; 2009.
-1010. Giorgi A. Difficulties encountered in the application of the phenomenological method in the social sciences. Aná Psicológica. 2006; 24(3):353-61.

Logo após, por meio de uma categorização prévia das unidades de significado, foi possível elaborar uma descrição consistente da estrutura do fenômeno situado, isto é, análise nomotética, sendo então agrupadas as unidades de significado que possuíam o mesmo sentido, ou convergiam para a construção das categorias temáticas deste estudo. A organização dos aspectos significativos do brincar das crianças com câncer compôs as categorias concretas que desvelaram o fenômeno em questão.

O projeto de pesquisa obteve parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, sob o protocolo n. 58949/2012 e atendeu as resoluções do Conselho Nacional de Saúde, que regulamentam a pesquisa com seres humanos. Os responsáveis pelas crianças foram esclarecidos sobre o objetivo da pesquisa, preservação do anonimato e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Todas as crianças participantes deram seu assentimento verbal.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Da compreensão do brincar das crianças pré-escolares em tratamento oncológico por meio do brinquedo terapêutico dramático emergiram as categorias: Mergulhando no mundo da doença e do tratamento oncológico; e Relembrando o mundo sem a doença.

Mergulhando no mundo da doença e do tratamento oncológico

A criança com câncer ingressa num mundo com inúmeros procedimentos invasivos e dolorosos, obrigando-a vivenciar momentos desconhecidos, de estresse e incertezas.1111. Fortier MA, Wahi A, Bruce C, Maurer EL, Stevenson R. Pain management at home in children with cancer: a daily diary study. Pediatr Blood Cancer. 2014; 61(6):1029-33. Entretanto, foi observado que mesmo pequenas e com limitado recurso de linguagem, as crianças conseguiram demonstrar, por meio das sessões de BTD, como percebem o cotidiano vivido.

A ideia de que crianças pré-escolares não compreendem diversos assuntos, dentre eles, as doenças que as acometem foi clarificada neste estudo, pois, a brincadeira revelou que, embora as crianças não compreendam o câncer do mesmo modo que os adultos, elas o fazem, relacionando-o com particularidades do tratamento oncológico: [...] Tia! Vamô fazê dodói bebê? Vamo fazê esse, vamô? Não dói aqui isso! (Estrela, 3 anos).

É possível apreender, a partir dos discursos, a percepção da criança sobre o câncer, sendo o mesmo compreendido como episódios que provocam dor e sofrimento. Observou-se ainda, por meio da situação imaginária dramatizada nas sessões de BTD, que o sentimento atual da criança está ligado simbolicamente à ansiedade, decorrente dos procedimentos invasivos, visto o conhecimento da criança sobre as etapas do processo terapêutico.

O tratamento oncológico gera inúmeros sentimentos na criança, sobretudo, pela realização dos procedimentos dolorosos e pelas mudanças em seu cotidiano, como o distanciamento dos familiares, dos amigos e do lar. Não obstante, esses sentimentos provocam medo pelo futuro incerto e obscuro, normalmente permeado por angústia, que podem implicar em prejuízos ao bem-estar da criança.22. Hildebrand A, Clawson M, Alderfer M, Marsac M. Coping with pediatric cancer: strategies employed by children and their parents to manage cancer-related stressors during treatment. J Pediatr Oncol Nurs. 2011; 28(6):344-54.,1212. Souza MLXF, Reichert APS, Sá LD, Assolini FEP, Collet N. Stepping into a new world: the meaning of sicken for the child with cancer. Texto Contexto Enferm [online]. 2014 [acesso 2015 Jul 04]; 23(2):391-9. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072014000200391&script=sci_arttext
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...

Após entrarem no mundo do tratamento oncológico, as crianças passam a compreender o câncer como uma doença que demanda cuidados e procedimentos específicos, reconhecem a trajetória angustiante que atravessam e, como consequência, vivenciam a dor, o incômodo e o sofrimento advindos dessa terapêutica.33. Ângstrom-Brännström C, Norberg A. Children undergoing cancer treatment describe their experiences of comfort in interviews and drawings. J Pediatr Oncol Nurs. 2014; 31(3):135-46.,55. Melo LL, Valle ERM. The toy library as a possibility to unveil the daily life of children with câncer under outpatient treatment. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):517-25.

[Conversando com a pesquisadora] Ó meu machucado, tia! Peguei veia e estourou, aí fez líquor e injeção no bumbum (Sol, 4 anos).

[Segura a seringa e agulha] Ontem eu tomei uma dessa, uma assim lá no hospital. Aí eu chorei, é eu chorei. É, lá no hospital. Tomei gúia [agulha] no braço e tomei otra, tomei(Fada, 3 anos).

[Pega uma sonda nasogástrica] Esse daqui é de enfiar no nariz. Eu já enfiei isso daqui, é difícil de respirar (Pequeno, 6 anos).

Identifica-se nos discursos que a vivência dos procedimentos não é uma situação fácil para a criança, ao contrário, promove uma série de sensações negativas, que podem desencadear comportamentos de insegurança e vulnerabilidade, inclusive frente ao profissional de saúde, já que a criança o percebe, como desencadeador de dor e sofrimento.

Deixa aqui, tia, viu. Ponto [pronto] Num pode mexe esse, tá bom?! Eu sou o médico, tá bom?! Eu sou o médico de fazê dodói. O médico faz dodói (Estrela, 3 anos).

Olha, tia, foi a ferneira [enfermeira] que fez! Tá dodói aqui. Furo a gúia [agulha]. A ferneira[enfermeira] (Fada, 3 anos).

Em meio ao universo do adoecer, que se faz presente no cotidiano da criança com câncer, a todo instante ela percorre um caminho em busca de adaptação e compreensão deste momento. Um estudo realizado com crianças e adolescentes chinesas com câncer, hospitalizadas, entre nove e 16 anos, com o intuito de examinar as estratégias de enfrentamento utilizadas, observou que há diferenças que envolvem a cultura, pois as estratégias utilizadas estão relacionadas à emoção com vistas ao autocontrole, ao contrário das crianças ocidentais que utilizam estratégias com foco nos problemas.1313. Willian Li HC, Chung OKJ, Ho KYE, Chiu SY, Lopez V. Coping strategies used by children hospitalized with cancer: an exploratory study. Psychooncology. 2011; 20(9):969-76.

Dessa forma, as crianças deste estudo tentam superar o estresse e a ansiedade gerados pelo tratamento, dramatizando situações vivenciadas no seu dia a dia, verbalizando algumas frases utilizadas rotineiramente pelos profissionais de saúde. Em outro estudo, crianças que participaram de sessões de BT, também repetiam frases empregadas pelo profissional e pediam a colaboração da boneca para o sucesso do procedimento.1414. Medeiros G, Matsumoto S, Ribeiro CA, Borba RIH. Brinquedo terapêutico no preparo da criança para punção venosa em pronto socorro. Acta Paul Enferm. 2009; 22(spe):909-15.

[Dramatizando a punção venosa na boneca] Fecha a mão. Faz assim, ó. Fica quieta, não se mexe, pega agulha e pega de novo, daí você não vai embora! Vai ter que segurar você. [...] Você mexe uai, o que eu posso fazê. Todo mundo tá aqui segurando você pra não mexer. A perna, o braço e a cara. Não estourou, não mexe, relaxe. Relaxe, não mexe! Agora você não puxa. Vou por um remedinho na veia. Ó, não mexe, não mexe! (Sol, 4 anos).

Deste modo, identifica-se no discurso acima, que a maneira como a criança percebe o cuidado prestado pela equipe de saúde, aliada à sua incapacidade em lidar com situações novas e conflitantes, fazem com que a experiência seja apreendida de forma triste e dolorosa.44. Li WH, Chung JO, Ho EK. The effectiveness of therapeutic play, using virtual reality computer games, in promoting the psychological well-being of children hospitalized with cancer. J Clin Nurs. 2011; 20(15-16):2135-43.

Embora muitos procedimentos invasivos e dolorosos não possam ser evitados, eles podem ser atenuados, com a utilização de um vocabulário mais simples e com o uso de intervenções lúdicas1515. Cooper V, Nelson R. The impact of play and recreation on reported pain levels in children with cancer. Ther Recreation J. 2015; 49(1):84-86./educativas,1616. Wu LM, Chiou SS, Sheen JM, Lin PC, Liao YM, Chen HM, et al. Evaluating the acceptability and efficacy of a psycho-educational intervention for coping and symptom management by children with cancer: a randomized controlled study. 2014; 70(7):1653-62. que permitam a compreensão da criança, encorajando-a a expressar sentimentos, dúvidas e medos.

A utilização do brinquedo como instrumento de orientação para procedimentos terapêuticos permite que a criança sinta-se mais segura e à vontade, propiciando entendimento da situação e consequentemente maior tranquilidade. Além disso, o brinquedo ajuda a esclarecer conceitos errôneos e fantasias que fazem parte do imaginário infantil.66. Ribeiro CA, Borba RIH, Melo LL, Santos VLA. Utilizando o brinquedo terapêutico no cuidado à criança. In: Carvalho SD. O enfermeiro e o cuidar multidisciplinar na saúde da criança e do adolescente. São Paulo (SP): Atheneu; 2012. p.127-34.,1717. Maia EBS, Ribeiro CA, Borba RIH. Compreendendo a sensibilização do enfermeiro para o uso do brinquedo terapêutico na prática assistencial à criança. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(4):839-46.

No tratamento oncológico, a punção venosa para a coleta de exames ou administração de quimioterápicos é um dos procedimentos mais realizados, gerando grande medo e estresse para a criança.1818. Artilheiro APS, Almeida FA, Chacon JMF. Uso do brinquedo terapêutico no preparo de crianças pré-escolares para quimioterapia ambulatorial. Acta Paul Enferm. 2011; 24(5):611-6. No início das sessões de BTD, percebe-se que as crianças demonstraram além do medo, uma rejeição pelo objeto "agulha".

[Dramatizando a punção venosa na boneca] Remédio. Segura aí. Tem que pegá a agulha. Tia, tem que procurá a agulha. Pega pro meu favor? Bota a agulha aqui. Bota, bota. Eu não vou colocá. Eu tenho medo de agulha. Coloca aqui, coloca (Fada, 3 anos).

[Explorando a caixa de brinquedos] Tem mais coisa de injeção não tem? E tem essa agulha aqui de carteto [cateter]. Ó, eu não brinco com isso não aí, cruz credo, eu tenho medo! (Sol, 4 anos).

Sentir medo é comum e torna o cotidiano mais incerto e ameaçador, porém, aos poucos esse medo e receio pelo objeto agulha foi sendo dissipado, cedendo espaço para a habilidade no manuseio deste material e a necessidade de usá-lo durante as dramatizações.

Um estudo realizado com crianças entre seis e 12 anos utilizou filipetas com imagens atraentes durante a coleta de sangue, o que resultou em diminuição dos níveis de dor e de ansiedade.1919. Inal S, Kelleci M. Distracting children during blood draw: looking through distraction cards in effective in pain relief of children during blood draw. Int J Nurs Pract. 2012; 18(2):210-9.Já com crianças pré-escolares foi utilizado distração por meio de umlaptop durante a venopunção e a intervenção também reduziu a resposta à dor.2020. Yoo H, Kim S, Hur HK, Kim HS. The effects of an animation disctraction intervention on pain response of preschool children during venipuncture. Appl Nurs Res. 2011; 24(2):94-100.

Paulatinamente, as crianças foram revelando o conhecimento dos materiais e procedimentos relacionados ao tratamento oncológico, mostrando que agora este é o mundo que elas habitam. Dessa forma, percebe-se que as crianças passaram a demonstrar maior destreza ao utilizar os objetos hospitalares durante as dramatizações de determinados procedimentos.

A criança submetida a procedimentos invasivos tende a enfrentar melhor o período de tratamento quando já conhece os materiais e equipamentos utilizados na sua terapêutica, bem como, quando manipulam o mesmo.55. Melo LL, Valle ERM. The toy library as a possibility to unveil the daily life of children with câncer under outpatient treatment. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):517-25.

[Conversando com a pesquisadora] Eu!...eu ponhei o carteto[cateter], eu não tenho veia mais. Estorô tudo! (Sol, 4 anos).

[Dramatizando prescrever e instalar quimioterapia na boneca] Cuidado. Olha! Remédio. Você vai tomar quimio. Quimio de 6 horas. [...]Sabia que tem que por mais quimio, é muita quimio. É tanta quimio. Vou deixar você descansar, tia, aí depois eu pego a tua veia. Deixa eu escreve tia, no seu caderno. Pronto, bastante quimio(Sol, 4 anos).

O tratamento acarreta forte impacto na vida da criança que experiencia o câncer infantil. Os desdobramentos das situações de estresse vivenciados pelas crianças trazem a dificuldade dela em compreender a necessidade da terapêutica, contudo, o poder simbólico do brinquedo possibilita dominar as situações que lhe são ameaçadoras, fazendo-as "donas da situação" ao manipularem os objetos hospitalares e relatarem as etapas da tratamento.

As vivências relacionadas aos procedimentos hospitalares emergiram em todas as sessões de BTD, remetendo a compreensão da criança frente ao momento atual em que vive, sendo, alguns desses procedimentos muito bem detalhados pelas crianças durante as dramatizações.

[Amarra o garrote no braço da boneca e com o dedo indicador dramatiza procurar uma veia para a punção venosa] Vai ter que pegar outra veia, essa daí estourou. Vem cá tia fica aqui ó. Deixa eu ver se acho aqui. Achei uma veia aqui. Deixa eu ver se não vai estourar(Sol, 4 anos).

[Explicando os procedimentos que serão realizados] Você vai ter pontinha tá [hemograma]. Vai ter pontinha, vai ter líquor, pontinha, veia e passar na consulta. [...] Aí vai ter otro liquor. Aí você vai fazer, liquor, pontinha, veia, passar na consulta e, daí, você vai embora. Aí você tem que tomar esse soro rapidinho, pra você ir embora. Cê vai fazê essas coisa tudinho pra você ir embora (Sol, 4 anos).

Ao repetir no brinquedo todas as situações geradoras de estresse, elas passam a ter domínio sobre os objetos externos a seu alcance e compensam as pressões que sofrem no dia a dia do tratamento.22. Hildebrand A, Clawson M, Alderfer M, Marsac M. Coping with pediatric cancer: strategies employed by children and their parents to manage cancer-related stressors during treatment. J Pediatr Oncol Nurs. 2011; 28(6):344-54. Não obstante, algumas vezes, essas repetições também sugeriam o relaxamento da criança, sendo que após as dramatizações, elas expunham um olhar leve e tranquilo, inclusive sorrindo ao concluir a brincadeira.33. Ângstrom-Brännström C, Norberg A. Children undergoing cancer treatment describe their experiences of comfort in interviews and drawings. J Pediatr Oncol Nurs. 2014; 31(3):135-46.

[Pega uma faca de brinquedo e dramatiza fazer uma tala para fixar o acesso venoso no braço da boneca] Isso, achei. Tala! Tala. É tala. É perde veia. Ponto [pronto]. É isso, isso! (Estrela, 3 anos).

[Dramatiza cortar a barriga da boneca com o serrote de brinquedo]Será que dá pra fazer cirurgia com serrote na menina? Estou fazendo cirurgia na menina (Pequeno, 6 anos).

Pequeno, ao dramatizar a cirurgia na boneca, aguardava por uma cirurgia abdominal para retirada de tumor. Em conversa com sua mãe, nos dias que antecederam o procedimento cirúrgico, ele estava apreensivo e angustiado, inclusive, não aceitando brincar com seus brinquedos pessoais. Porém, após a sessão de BTD, a mãe informou que o filho permaneceu mais calmo e tranquilo, voltando a brincar com seus brinquedos e, em especial, naquela noite, dormiu sem a ajuda de um medicamento indutor do sono.

Foi evidente a capacidade que o brinquedo tem de possibilitar à criança refletir sobre as situações vivenciadas e, mais que isso, dramatizar momentos significativos para ela. Quanto mais a criança repete um evento significativo para ela, o alívio de suas tensões é alcançado e, consequentemente, sua ansiedade é reduzida. Isto é a catarse.77. Green CS. Understanding children's needs through therapeutic play. Nursing. 1974; 4(10):31-32.

Progressivamente, as crianças foram criando situações imaginárias relacionadas ao ambiente de tratamento, como observamos nas brincadeiras abaixo.

[Dramatizando instalar soro na boneca] Ó tia, deixa aqui, ela tá tomando soro. Ela tá dodói. Tá dodói! (Estrela, 3 anos).

[Dramatizando instalar medicamento na boneca] Onibiótico[antibiótico]. Tá doente (Luz, 4 anos).

[Dramatizando a coleta de sangue na boneca] Tira sangue da boneca. Porque ela tá fazendo xame [exame]. Ó, vai tomá remédio. Ela tomou. É remédio. Ela tá doente. Tá com dor de garganta. (Fada, 3 anos)

[Explicando os procedimentos para a boneca] Agora ocê vai tomá soro! Vai, esse é remedinho. Esse remédio é pra dor. [pausa]Esse é pra dor, tá, pra sarar. Não mexe, tá. Hoje, a veinha tá boa (Sol, 4 anos).

Observa-se que as crianças usam dessas incessantes dramatizações para se adaptarem às limitações impostas pela doença, a fim de se fortalecerem para enfrentar e dominar esta nova realidade, o que contribui para que elas compreendam a situação e readquiram o autocontrole. Dessa forma, o BT possibilita o alívio da ansiedade e estresse gerados pela situação de doença, oferecendo a oportunidade de a criança entender sua real situação.1717. Maia EBS, Ribeiro CA, Borba RIH. Compreendendo a sensibilização do enfermeiro para o uso do brinquedo terapêutico na prática assistencial à criança. Rev Esc Enferm USP. 2011; 45(4):839-46.-1818. Artilheiro APS, Almeida FA, Chacon JMF. Uso do brinquedo terapêutico no preparo de crianças pré-escolares para quimioterapia ambulatorial. Acta Paul Enferm. 2011; 24(5):611-6.

Fica explícito que o cotidiano da criança se modifica e, com o passar do tempo, as ações passam a ser compreendidas de forma mais natural e espontânea, como se tal situação já fizesse parte do seu dia a dia. Dessa forma, o tempo e a familiaridade com a situação de adoecimento, de certo modo, permitem à criança um domínio maior dos acontecimentos, promovendo a formação de recursos para um enfrentamento mais ativo.

[Explicando os procedimentos à boneca] Vou ter que por soro. Porque ocê vai tê que ficá internada. A tua febre baxô[baixou]! [...] Fesa [defesa]tá baxa [baixa], você não come, só mama. Defesa. A defesa tá um pouquinho baixo. Agora tem que por um remédio (Sol, 4 anos).

[Explicando para a pesquisadora o procedimento que deverá se submeter]Amanhã eu vou tomá soro. No hospital. Vai furá aqui, ó(Fada, 3 anos).

Além do novo modo de brincar que a doença e o tratamento oncológico trazem, as crianças deste estudo manifestaram sua concepção sobre o hospital, reconhecendo-o como um ambiente de tratamento, com a realização de procedimentos invasivos e dolorosos. O hospital, para as crianças, é visto como um ambiente diferente de seu meio natural, responsável pelo rompimento de sua convivência diária e das relações físicas e emocionais com a família e os amigos.55. Melo LL, Valle ERM. The toy library as a possibility to unveil the daily life of children with câncer under outpatient treatment. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):517-25.

Foi lá no hospital. [...] É aquele, aquele grandão que pega veia toda hora! Então aquele (Sol, 4 anos).

[Dramatizando instalar soro na boneca] Tomando soro! No hospital é assim, né tia? (Pequeno, 6 anos).

As crianças sentem-se familiarizadas com o hospital e com os procedimentos terapêuticos ali realizados, entretanto é neste ambiente que ocorrem inúmeras situações estressantes, podendo acarretar prejuízos ao seu desenvolvimento global. Contudo, a situação pode ser amenizada quando a criança percebe o apoio e a presença de um adulto que demonstre aceitação e que a encoraje a exteriorizar seus sentimentos e, ainda, quando é incentivada a continuar suas atividades lúdicas.1818. Artilheiro APS, Almeida FA, Chacon JMF. Uso do brinquedo terapêutico no preparo de crianças pré-escolares para quimioterapia ambulatorial. Acta Paul Enferm. 2011; 24(5):611-6.,2121. Silva LF, Cabral IE. Cancer repercussions on play in children: implications for nursing care.Texto Contexto Enferm [online]. 2014 [acesso 2015 Jul 04]; 23(4):935-43. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072014000400935
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Os resultados deste estudo, permitiram vislumbrar as particularidades do tratamento oncológico e como este se faz presente no brincar da criança, pois em todas as sessões de BTD, elas representaram intensamente os procedimentos vivenciados no seu cotidiano. Contudo, não apenas o mundo da doença e do tratamento foi representando na brincadeira, mas também o mundo sem a doença.

Relembrando o mundo sem a doença

Neste estudo, observou-se que foram poucos os momentos onde as crianças desejaram brincar de situações domésticas, pois as situações relacionadas à doença e ao tratamento foram representadas incessantemente em todas as sessões, evidenciando o impacto que o câncer infantil determina no comportamento da criança.

O tratamento oncológico impõe à criança o abandono do ambiente familiar, incluindo a maioria dos hábitos de vida diários, rotinas e rituais, objetos pessoais e brincadeiras. A doença acarreta a perda de liberdade da criança, seu dia a dia é interrompido e os prazeres da infância passam a ser substituídos por uma nova realidade.22. Hildebrand A, Clawson M, Alderfer M, Marsac M. Coping with pediatric cancer: strategies employed by children and their parents to manage cancer-related stressors during treatment. J Pediatr Oncol Nurs. 2011; 28(6):344-54.,55. Melo LL, Valle ERM. The toy library as a possibility to unveil the daily life of children with câncer under outpatient treatment. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):517-25.,1212. Souza MLXF, Reichert APS, Sá LD, Assolini FEP, Collet N. Stepping into a new world: the meaning of sicken for the child with cancer. Texto Contexto Enferm [online]. 2014 [acesso 2015 Jul 04]; 23(2):391-9. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072014000200391&script=sci_arttext
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Embora poucos, houve momentos em que a criança demonstrou disposição para reviver situações do cotidiano familiar, o que evidencia que o adoecimento, embora impactante, não é capaz de neutralizar a história da criança anterior ao diagnóstico de câncer.

[Convidando a pesquisadora para brincar] Eu tô assistindo desenho. Vamo assistir desenho? Você é meu irmão [risos]. Eu tô assistindo com meu irmão. Eu sou um bebê. [...] É o meu bebê. Tá mimino [está dormindo]. Tá tetinha[quietinha], eu vô fazê papá, fazê papá. Tchau, tchau(Estrela, 3 anos).

[Brincando com o ferro de passar roupa] Vou coisá o vestido agora. [...] Isso daqui queima a mão! Pega aqui que tá quente (Fada, 3 anos).

Brincar é o trabalho da criança, um ato sério que desenvolve a autonomia, fazendo-a explorar o mundo, transpor barreiras, conhecer, aprender, compreender regras e é uma maneira/forma de se comunicar.55. Melo LL, Valle ERM. The toy library as a possibility to unveil the daily life of children with câncer under outpatient treatment. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(2):517-25. Ao brincar, a criança simula outro mundo, só dela, distanciando-se do mundo dos adultos. Um mundo onde ela pode exercer sua soberania: pode ser rei, pai, professor, caçador. Essa perspectiva considera, por assim dizer, a sua personalidade, dando-lhe uma característica marcante e, ao mesmo tempo, oferecendo-lhe novos poderes.66. Ribeiro CA, Borba RIH, Melo LL, Santos VLA. Utilizando o brinquedo terapêutico no cuidado à criança. In: Carvalho SD. O enfermeiro e o cuidar multidisciplinar na saúde da criança e do adolescente. São Paulo (SP): Atheneu; 2012. p.127-34.

Enquanto brinca, ela lida com o desconhecido, com os impulsos agressivos, organiza as relações sociais e emocionais e tem a oportunidade de experimentar diversos objetos, explorá-los, descobri-los, compreendê-los. O brinquedo, além da satisfação dos desejos, atua como elemento de domínio sobre a realidade frustrante.2222. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1975.

[Dramatizando brincar de cozinhar] Um bolo! Agora vamos procurá a tampa do óleo! Tia, vamos bater o bolo? Você quer que eu bato? Bati! Eu vou batê de novo. Você tá com fome? Qué mais? Qué tudo o meu bolo? Come esse bolo! Que mais? (Fada, 3 anos)

Eu vou fazer uma sopa de legumes. Olha melancia, só isso. Banana, não está cabendo. Deixa eu tirar o morango. Aí sim. Pronto, está pronto. Pronto, eu vou fazer um sorvete, eu vou por morango e abacaxi(Pequeno, 6 anos).

Observou-se nos discursos que, quando brinca, a criança aprende, consolida pensamentos, transforma seu tempo e espaço, adaptando-se às modificações da vida real, podendo, ainda, incorporar novos conhecimentos, habilidades e atitudes. Nos momentos de brincadeira, a criança pode pensar livremente, ousar, imaginar, exercitar os aspectos cognitivo, social, afetivo, estreitar laços e fortalecer vínculos.2222. Winnicott DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1975.

A brincadeira mostrou-se como um instrumento de controle do estresse, oferecendo à criança a oportunidade de fazer escolhas. Brincando, a criança enferma consegue suportar a difícil realidade de conviver com a doença e o tratamento, readquirindo a autoconfiança e crescendo diante das situações que lhe causam estresse.22. Hildebrand A, Clawson M, Alderfer M, Marsac M. Coping with pediatric cancer: strategies employed by children and their parents to manage cancer-related stressors during treatment. J Pediatr Oncol Nurs. 2011; 28(6):344-54.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos resultados deste estudo, foi possível apreender que as crianças em idade pré-escolar sentem-se muito assustadas e inseguras, perante intervenções dolorosas realizadas durante o tratamento oncológico. As relações psicológicas e sociais tornam-se bastante abaladas e, por vezes, podem interferir no desenvolvimento global das crianças.

As sucessivas dramatizações de situações terapêuticas, inclusive com o domínio dos objetos hospitalares, revelaram a dificuldade das crianças em encontrar equilíbrio entre vivenciar momentos do cotidiano anterior à doença e momentos exclusivos do tratamento, entre a normalização e a ansiedade, entre a saúde e a doença.

O brinquedo terapêutico mostrou-se como uma estratégia com potencial para a promoção da assistência às crianças em tratamento oncológico. Na brincadeira, as crianças cresceram, liberando-se do domínio sob o qual elas eram submissas e pequenas.

Com o decorrer das sessões, as crianças passaram a interagir com a pesquisadora de forma diferente, demonstrando um relacionamento mais estreito, afetivo e de amizade. Esse vínculo mais próximo possibilitou que as repercussões da doença e do tratamento oncológico fossem reveladas por meio da brincadeira, assim, como permitiram compreender que o tratamento representa, para as crianças, uma experiência repleta de dor e sofrimento.

A promoção de formas de comunicação e relacionamento adequados à infância durante o cuidado pode auxiliar as crianças a enfrentarem os sofrimentos advindos do tratamento oncológico. Nesse caso, para as crianças participantes deste estudo, destaca-se a utilização do brinquedo terapêutico, fazendo-se cumprir sua função recreativa, catártica, socializadora, estimuladora, terapêutica e de aprendizado.

Este estudo traz implicações para a prática de enfermagem, no sentido de fomentar a inclusão do brinquedo terapêutico como intervenção de enfermagem no cotidiano do cuidado à criança com câncer, de modo a considerar as necessidades intrínsecas à infância que se soma ao impacto causado pelo câncer, bem como na importância do ensino do brinquedo terapêutico nos cursos de graduação em enfermagem.

A relevância deste estudo sustenta-se no fato de ter possibilitado compreender o brincar da criança pré-escolar em tratamento oncológico, com base em suas vivências e ações no mundo, conhecendo seus sentimentos e suas possibilidades de vir-a-ser, ou seja, o brinquedo terapêutico deu voz às crianças com câncer.

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    Artigo extraído da dissertação - Compreendendo o brincar da criança com câncer por meio do brinquedo terapêutico dramático, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2014
  • Aceito
    31 Ago 2015
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