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GESTÃO DO CUIDADO DA TUBERCULOSE: INTEGRANDO UM HOSPITAL DE ENSINO À ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE1 1 Artigo derivado da dissertação - Gestão do Cuidado da Tuberculose: integrando um Hospital de Ensino à Atenção Primária à Saúde, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem - Mestrado Profissional da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2014.

RESUMO

Pesquisa de cunho qualitativo, exploratório e intervencionista em hospital universitário do Paraná, com o objetivo de propor um modelo de Gestão do Cuidado da Tuberculose voltado à alta hospitalar, buscando cuidado integral ao portador dessa doença. Foram realizadas entrevistas com informantes-chave (17 sujeitos), tendo a Teoria da Intervenção Práxica de Enfermagem em Saúde Coletiva como referencial teórico-metodológico, com suas três dimensões interdependentes, utilizadas como categorias analíticas. Ficou evidenciado fragilidade nos protocolos voltados ao cuidado do doente internado, insuficiente integração entre níveis de atenção e necessidade de comunicação direta entre enfermeiros do hospital e da atenção primária. Diante desse resultado, foi proposto modelo de Gestão do Cuidado, traduzido em fluxo de atendimento com apoio matricial, consulta de enfermagem e contato telefônico entre enfermeiros. Acredita-se que a implantação desse modelo trará maior integração entre os níveis de atenção, melhora no processo de acompanhamento do doente com maior probabilidade de adesão ao tratamento.

DESCRITORES:
Tuberculose; Enfermagem; Saúde pública; Integralidade em saúde; Gestão em saúde

ABSTRACT

Qualitative, exploratory and interventionist case study at a teaching hospital of Paraná, with the objective of proposing a Tuberculosis Healthcare Management model focused on the hospital discharge, with a view to comprehensive care for patients with tuberculosis. Interviews were conducted with key informants (17 subjects), using the Theory of Nursing Praxis Intervention in Collective Health as the theoretical and methodological framework, with its three interdependent dimensions used as analytical categories. Weakness was revealed in the protocols for hospitalized patient care, insufficient integration between levels of care and the need for direct communication between the hospital and primary care nurses. In view of this result, a Healthcare Management Model, expressed as a flow of care with matrix support, nursing consultation and phone contact between nurses. The implementation of this model will lead to greater integration between the levels of care, permitting improvements in patient monitoring with greater probability of treatment compliance.

DESCRIPTORS:
Tuberculosis; Nursing; Public health; Integrality in health; Health management.

RESUMEN

Investigación cualitativa, exploratoria e intervencionista en un hospital universitario del Paraná, con el objetivo de proponer un modelo de Gestión del Cuidado de la Tuberculosis centrada en las altas de hospital, en busca de la atención integral de los pacientes con tuberculosis. Se realizaron entrevistas con informantes clave (17 sujetos) con la Teoría de Enfermería Praxis Intervención en Salud Colectiva como marco teórico y metodológico, con sus tres dimensiones interdependientes utilizados como categorías analíticas. Fue evidente una debilidad en los protocolos orientados a la atención del paciente hospitalizado, insuficiente integración entre niveles asistenciales y la necesidad de comunicación directa entre lo hospital y la atención primaria. Teniendo en cuenta este resultado propuso un modelo de gestión de la atención, traducido en flujo de la atención con el apoyo de la matriz, consulta de enfermería y contacto telefónico entre las enfermeras. Se cree que con la implementación de este modelo habrá mayor integración entre los niveles de atención, lo que permite una mejora en el proceso de seguimiento del enfermo con tuberculosis, haciéndolos más propensos a adherirse al tratamiento.

DESCRIPTORES:
Tuberculosis; Enfermeria; Salud pública; Integralidad en salud; Gestión en salud

INTRODUÇÃO

Nas últimas duas décadas a democratização do tratamento para tuberculose (TB) gerou significativa redução nos índices de mortalidade e incidência do agravo. No entanto, a mesma permanece como importante problema de saúde mundial. Em 2013, no mundo, mais de nove milhões de pessoas foram acometidas pela doença e um milhão e meio delas morreram em consequência do agravo.11. World Health Organization (WHO). Global tuberculosis report 2014. Geneva (SW): WHO; 2014.

No Brasil, foram notificados setenta mil novos casos apenas em 2013, sendo a adesão ao tratamento um desafio e seu abandono o maior responsável pelos índices de mortalidade e reincidência.22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Programa Nacional de Controle da Tuberculose. Apresentação padrão 2014. Brasília (DF): MS; 2014.

3. Batalha E, Morosini L. Atenção aos esquecidos. Rev Radis [internet] 2013 Jan [cited 2013 mar 13]; 124(1):8-16. Available from: http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/sites/default/files/para_o_site_0.pdf
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-44. Ministério da Saúde (BR). Portal da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico - Tuberculose no Brasil [internet]. 2014 [cited 2014 set 20]; 44(2). Available from: http://www.vigilanciaemsaude.ba.gov.br/sites/default/files/Boletim-Tuberculose-2014.pdf
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É no ambiente hospitalar que se encontram os casos mais agravados da doença, fazendo desse cenário um agente essencial no diagnóstico, condução e tratamento do agravo.55. Duarte ASC, Braga ALS, Braga SNS. A tuberculose pulmonar em ambiente hospitalar: uma revisão sobre o papel do enfermeiro. Rev Pesq.: Cuid Fundam Online [internet]. 2012 [cited 2013 abr 20]; 4(1). Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/1437/pdf_483
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Entendendo que a maioria dos casos atendidos no hospital apenas iniciará o tratamento, uma aproximação com a Atenção Primária à Saúde (APS) torna-se inevitável.

Portanto, para atender aos indivíduos acometidos pela TB, faz-se necessária a apropriação imediata dos princípios da integralidade e universalidade, que se traduzem respectivamente na articulação das ações e serviços de saúde,66. Alves RS, Souza KMJ, Oliveira AAV, Palha PF, Nogueira JA, Sá LD. Tuberculosis treatment abandonment and comprehensive health care to patients in the family healthcare strategy. Texto Contexto Enferm [internet]. 2012 Jul-Set [cited 2013 abr 20]; 21(3):650-7. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-07072012000300021&lng=en&nrm=iso&tlng=en
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buscando mecanismos que facilitem esse processo para além das estruturas burocráticas.

Diante disso, como alternativa de organização da assistência, a gestão do cuidado se apresenta como possibilidade, pois este dispõe de tecnologias para atuar nas singularidades e necessidades dos indivíduos, permanentes ou momentâneas, tendo como alvo o reestabelecimento de seu bem-estar. A gestão do cuidado pode ser traduzida como a forma em que o processo de cuidar se apresenta nas organizações de saúde, com destaque para a interação entre os envolvidos no processo.7

Assim, esse estudo teve como objetivo propor um modelo de Gestão do Cuidado da Tuberculose voltado para a alta hospitalar, buscando o estabelecimento de vínculo, acolhimento e responsabilização na construção do cuidado integral ao portador de TB internado no hospital cenário do estudo, no intuito de promover maior adesão ao tratamento.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa de intervenção,8 de cunho qualitativo, na qual se utilizou da Teoria da Intervenção Práxica de Enfermagem em Saúde Coletiva (TIPESC) que se propõe a captar e intervir na realidade objetiva dos fenômenos.99. Egry EY. Saúde coletiva: construindo um novo método em enfermagem. São Paulo (SP): Ícone; 1996. Essa metodologia apresenta a análise da realidade objetiva em três dimensões interdependentes: estrutural (aparato jurídico-legal da sociedade, políticas públicas de saúde, educação, segurança, etc.), particular (perfis epidemiológicos de classe ou de reprodução social) e singular (formas de organização social, relações de trabalho, acesso a bens de consumo e vida comunitária), consideradas neste estudo como categorias analíticas. No desdobramento operacional da TIPESC, o estudo desenvolveu as seguintes fases: captação da realidade objetiva, interpretação da realidade objetiva e construção do projeto de intervenção na mesma.99. Egry EY. Saúde coletiva: construindo um novo método em enfermagem. São Paulo (SP): Ícone; 1996.

O cenário do estudo foi um hospital universitário da cidade de Curitiba, Paraná (PR), de nível terciário, com média anual de quarenta casos atendidos de TB.

A pesquisa foi aprovada pelo parecer nº 375.036 de 27/08/2013, e os critérios relativos à pesquisa com seres humanos, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional nº 466/2012, foram atendidos.

A captação da realidade objetiva se deu por meio de entrevistas não estruturadas, realizadas com informantes-chave, estrategicamente escolhidos para revelar o contexto do grupo pesquisado, e que pela sua posição, ação ou responsabilidades, possuíam um bom conhecimento do problema estudado.1010. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12ª ed. São Paulo (SP): Hucitec; 2010. Assim, a coleta de dados aconteceu entre 1º de março e 5 de maio de 2014.

Foram incluídos na pesquisa os informantes-chave, que se adequavam à intenção do estudo de percorrer o itinerário da alta hospitalar dos usuários acometidos por TB, com informações dos seguintes atores envolvidos no processo: usuários, enfermeiros do hospital (que acompanham a alta hospitalar) e enfermeiros da atenção primária (que recepcionam os usuários advindos do hospital pós-alta).

Na categoria dos usuários, selecionaram-se aqueles que estiveram internados com TB no hospital em estudo e tiveram alta com acompanhamento em unidade básica de saúde (UBS) de Curitiba-PR, entre julho de 2013 e janeiro de 2014, estimados em número de 10 (um terço da média de registros semestrais nos últimos anos). Foram alcançados cinco, excluindo-se os óbitos, os nãos encontrados por problemas cadastrais e não concordantes em participar. Foram excluídos menores de dezoito anos e não residentes em Curitiba-PR.

Na categoria dos enfermeiros do hospital, elegeram-se como informantes-chave o enfermeiro do Serviço de Epidemiologia, responsável pelo acompanhamento dos usuários com esse agravo e os dois enfermeiros lotados na unidade de internação de Infectologia, pois é a unidade que recebe a maioria dos casos. Em relação aos enfermeiros da APS, optou-se por um enfermeiro de cada Distrito Sanitário (regional de saúde) de Curitiba-PR, sendo em número de nove, optando pelo enfermeiro da unidade básica que tivesse o maior número de casos de TB do seu distrito.

Os participantes da pesquisa tiveram sua identificação codificada, possibilitando apenas o reconhecimento da categoria as quais pertenciam; usuários e/ou enfermeiros, sendo que estes últimos se dividiam em oriundos da APS ou do hospital. Dessa forma o código U corresponde ao usuário, o código EH a enfermeiro hospitalar e EAP a enfermeiro da atenção primária.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para interpretar a realidade objetiva utilizando-se da TIPESC, compreendeu-se que a fala dos enfermeiros elucidaria a dimensão particular, e que o discurso dos usuários representaria a dimensão singular. Para a categoria dimensão estrutural foi observado o Município de Curitiba-PR, com suas características e gestão para a saúde, bem como a organização municipal para o atendimento à TB.

Dimensão estrutural

Curitiba é a capital e a maior cidade do Estado do Paraná, tendo em 2013 uma população estimada de 1.848.943 habitantes, 100% urbanizada.1111. Secretaria Municipal da Saúde de Curitiba. Relatório de gestão - 2º Quadrimestre/2014 [internet]. Curitiba (PR): SMS; [cited 2014 out 05]. Available from: http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/images/SMS_Relat%C3%B3rio%20de%20Gest%C3%A3ol_2%C2%BAQuad14_vers%C3%A3o%20final.pdf
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Entende-se que as pessoas que vivem em grandes centros urbanos, em situações vulneráveis de renda, habitação e alimentação, muitas vezes com famílias numerosas têm maior probabilidade de se infectar, adoecer e morrer de TB.1212. Paula R, Lefevre F, Lefevre AMC, Galesi, VMN, Schoeps. Why do tuberculosis patients look for urgency and emergency unities for diagnosis: a study on social representation. Rev Bras Epidemiol. 2014 Jul-Set; 17(3):600-14.

O MS recomenda que 70% dos casos sejam detectados, 100% sejam tratados corretamente e 85% curados. Além disso, o abandono do tratamento não pode ultrapassar 5%, índice considerado aceitável pelo Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT).22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Programa Nacional de Controle da Tuberculose. Apresentação padrão 2014. Brasília (DF): MS; 2014. Estima-se que no ano de 2013, a Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba identificou 99,7% dos casos existentes e, apesar da taxa de cura estar acima da meta de 85%, há bastante tempo, o percentual de abandono ainda é um problema. Nesse ano, a taxa de abandono foi de 6,2%, reforçando a necessidade de ampliar e desenvolver mecanismos que tragam impactos positivos sobre as políticas públicas já determinadas, tais como tratamento diretamente observado (TDO) que, mesmo demonstrando impacto positivo nos resultados, já se faz insuficiente.1313. Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba. Relatório anual de gestão - 2013 [internet]. Curitiba (PR): SMS; [cited 2014 mai 05]. Available from: http://www.saude.curitiba.pr.gov.br/images/RAG%20da%20SMS_SARGSUS_2013_Final.pdf
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Diante disso, percebe-se que dentro do que se propôs a realizar, o município de Curitiba-PR cumpriu o seu papel, no entanto, o agravo ainda não foi controlado. Isso nos levou a reconhecer que a dimensão estrutural do agravo TB necessita de estratégias de enfrentamento que atuem na interface entre a política existente e a realidade objetiva do abandono de tratamento.

Dimensão particular

Enquanto dimensão particular dessa etapa do estudo, os enfermeiros entrevistados trouxeram suas vivências e conhecimento sobre o processo de alta hospitalar e recepção de usuários com TB pelas UBSs, elucidando inúmeras questões primordiais para o desenvolvimento do modelo de Gestão do Cuidado que foi desenvolvido.

Dos enfermeiros que atuam na assistência ao usuário no ambiente hospitalar, pôde-se observar que estes se percebem coadjuvantes na relação com o usuário em seu processo de alta, cabendo-lhes a função de enfatizadores das orientações médicas, como explicitado nos discursos dos enfermeiros a seguir:

[...] o médico dá a alta, [...] e eu, enquanto enfermeira, reforço a orientação que o médico deu sobre a importância do tratamento (EH1).

A gente repete as orientações do médico, porque às vezes o paciente tem dificuldade de compreensão (EH2).

É com pesar que se observe esse fato. Não apenas porque o espaço profissional do enfermeiro se reduz, mas principalmente porque os usuários dependem das informações advindas de enfermeiros. As razões para isso podem incluir o fato de que os enfermeiros se mostram mais claros, gastam mais tempo em suas explanações e são mais acessíveis.1414. Berendsen AJ, Jong GM, Jong BM, Dekker JH, Schuling J. Transition of care: experiences and preferences of patients across the primary/secondary interface - a qualitative study. BMC Health Serv Res [internet]. 2009 [cited 2014 mar 13]; 62(9): [7 telas]. Available from: http://www.biomedcentral.com/1472-6963/9/62
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Portanto, abandonar a subsidiariedade na relação com os usuários se faz imperioso para os enfermeiros, a fim de promover o resultado almejado com as informações prestadas, ou seja a compreensão, assimilação e apreensão do assunto tratado.

Conjuntamente, nota-se que os enfermeiros se focalizam em curtas instruções que o usuário deveria receber e, mesmo sobre essas orientações, percebe-se uma dissonância nos conceitos dos enfermeiros e falta de padrão nos procedimentos, como fica explícito nas falas abaixo:

[...] como o paciente está indo de alta ele não é mais bacilífero, então a orientação é que ele não precisa ficar isolado nem usar máscara (EH2).

[...] dependendo do caso ele vai para casa usando máscara ou não (EH1).

Em se tratando de tuberculose, o papel do enfermeiro se torna crucial no controle do agravo,55. Duarte ASC, Braga ALS, Braga SNS. A tuberculose pulmonar em ambiente hospitalar: uma revisão sobre o papel do enfermeiro. Rev Pesq.: Cuid Fundam Online [internet]. 2012 [cited 2013 abr 20]; 4(1). Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/1437/pdf_483
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principalmente no nível operacional, na assistência direta, pois é esse profissional que possui diretamente a oportunidade de identificar determinantes para avaliar situações e administrar melhor situações econômicas e singulares dos indivíduos para a eficácia do tratamento.1515. Oblitas FYM, Loncharich N, Slazar ME, David HML, Silva I, Velásquez D. Nursing's role in tuberculosis control: a discussion from the perspective of equity. Rev Latino-Am Enferm. 2010 Jan-Fev; 18(1):130-8. Para tanto, o conhecimento e o preparo para essa assistência, bem como a adoção de normas técnicas, protocolos, simples, objetivos e claros são essenciais ao sucesso do tratamento.1616. Melo FAF. Changes in the tuberculosis profile in Brazil: a new reality? J Bras Pneumol. 2010 Jul-Ago; 36(4):397-8.

Na APS, os enfermeiros demonstram conhecer o fluxo de atendimento ao comentar sobre a comunicação entre o hospital e a Secretaria Municipal de Saúde. No entanto, fica claro que o enfermeiro da UBS atende o usuário que procura diretamente a unidade, antes mesmo de qualquer sinalização formal sobre a existência desse caso.

[...] o próprio usuário vem aqui, normalmente, com uma carta de encaminhamento para fazer a continuidade do tratamento (EAP3).

[...] geralmente eles já vêm com uma carta de encaminhamento aqui para a unidade de saúde dizendo que já iniciaram o tratamento [no hospital] (EAP4).

Ao receber alta hospitalar, os usuários com TB não têm suas chegadas às UBSs devidamente monitorizadas, o que pode resultar na não continuidade do tratamento por parte desses usuários. Há que se proceder correto encaminhamento de usuários previamente internados para as UBSs.1717. Perrechi MCT, Ribeiro SA. Tuberculosis treatment: integration between hospitals and public health care clinics in the city of São Paulo, Brazil. J Bras Pneumol. 2009 Nov; 35(11):1100-6.

Também se percebe que as maiores fontes de informação sobre os casos que os enfermeiros das UBSs recebem são os documentos que os próprios usuários trazem consigo e, pelo que se pode considerar, essa documentação deveria ser suficiente para o enfermeiro que recebe o usuário vindo do hospital pudesse conhecer toda a situação de saúde que este se encontra. No entanto, os enfermeiros da APS relatam inúmeras considerações sobre a qualidade das informações que lhes são apresentadas:

[...] o usuário traz toda a documentação do hospital [...] mas quando ele tem uma condição sociocultural ruim acaba perdendo, não sabe onde guardou, tornando difícil a recepção dele porque não tem a informação clara (EAP2).

[...] precisa melhorar a comunicação, tanto verbal quanto escrita [...] porque muitos usuários nem sempre sabem fornecer as informações necessárias (EAP3).

A transição do cuidado entre o hospital e a atenção primária, padece de uma grande lacuna de informação após a alta hospitalar, prejudicando a continuidade da atenção.1414. Berendsen AJ, Jong GM, Jong BM, Dekker JH, Schuling J. Transition of care: experiences and preferences of patients across the primary/secondary interface - a qualitative study. BMC Health Serv Res [internet]. 2009 [cited 2014 mar 13]; 62(9): [7 telas]. Available from: http://www.biomedcentral.com/1472-6963/9/62
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Portanto, um sistema de comunicação personalizado no acompanhamento desse agravo se torna essencial.1818. Assis EG, Beraldo AA, Monroe AA, Scatena LM, Gonzáles RIC, Palha PF, et al. The coordination of care for tuberculosis control. Rev Esc Enferm USP. 2012 Fev; 46(1):111-8.

Dessarte, fica claro que a problemática da dimensão particular permeia o conhecimento e preparo dos enfermeiros do hospital no manejo dos casos de TB, bem como a apropriação de seu papel enquanto ator fundamental na relação com o usuário. Do lado da APS, evidencia-se a necessidade da comunicação e da qualidade da informação advinda do hospital.

Dimensão singular

Os usuários que tiveram um período de internamento no hospital, cenário do estudo, descreveram suas experiências de internamento e alta hospitalar e o que se verificou foi que as condições de alta hospitalar (singulares e institucionais) foram distintas entre si, como se pode verificar nos discursos abaixo:

[...] quando saí do hospital eu já estava melhor (U2).

[...] no dia em que saí, fiquei meio perdido, estava muito deprimido (U4).

[...] queriam me dar alta, mas eu estava péssimo, ainda não andava nem me alimentava (U1).

Os relatos evidenciam que as condições dos usuários no momento da alta hospitalar foram as mais diversas, desde aquele que se sentia bem e seguro para ir para casa, até o que entendia não ter a menor condição de ter alta hospitalar, reforçando o entendimento de que são inúmeras as situações que fazem com que esse agravo se torne mais complexo. Portanto, é salutar a existência de profissionais capacitados em reconhecer situações que necessitem de intervenção para conduzir a assistência de maneira adequada.1616. Melo FAF. Changes in the tuberculosis profile in Brazil: a new reality? J Bras Pneumol. 2010 Jul-Ago; 36(4):397-8.

No entanto, o que se percebe aqui é que o enfermeiro pouco tem contato com os usuários no momento da alta hospitalar. Nenhum dos entrevistados relata ter recebido informações e orientações sobre sua condição e continuidade do tratamento por parte dos enfermeiros:

[...] o médico me disse que eu precisaria voltar para retirar o resultado de um exame, mas não lembro ter conversado com enfermeiras [...] (U2).

[...] as enfermeiras só vieram me arrumar, e ainda com má vontade, porque eu ainda usava fraldas [...] (U1).

Nessas falas fica evidente a figura do médico como elemento central da alta hospitalar, sendo este a referência dos usuários como fonte de informação, deixando o enfermeiro como coadjuvante de seu trabalho e executores de cuidados, como o preparo físico para ir para casa, problema também evidenciado na dimensão particular, conforme apresentado anteriormente.

Percebe-se, dessa forma, uma lacuna nas atividades dos enfermeiros do setor de internação estudado, que influencia diretamente na continuidade e no sucesso do tratamento dos casos de TB que por ali passam, pois reflete na relação futura entre APS e usuário.

Diante disso, a compreensão do entrelaçamento entre estrutura, particularidade e singularidade (realidade objetiva), oportunizou um processo de intervenção que possibilitou aos enfermeiros ajustar suas condutas e assumir seu papel na assistência aos doentes internados com TB, mesmo porque o planejamento da alta hospitalar é um aspecto complexo da assistência e faz parte do processo de enfermagem.1919. Suzuki VF, Carmona EV, Lima MHM. Planning the hospital discharge of patients with diabetes: the construction of a proposal. Rev Esc Enferm USP. 2011 Abr; 45(2):527-32.

Intervenção

A gestão do cuidado da tuberculose pode reconhecer e enfrentar as intercorrências no tratamento, diminuindo as probabilidades de abandono e complicações, além de aproximar o usuário da construção de processos protetores.

Assim, propôs-se o modelo de Gestão do Cuidado, que se traduz em um fluxo de atendimento que agrega a consulta de enfermagem na alta hospitalar e a comunicação direta do caso pelo enfermeiro hospitalar ao enfermeiro da APS, responsável pela continuidade do caso. Esse modelo tem por finalidade fortalecer a organização dos serviços de saúde para um melhor atendimento e cuidado ao indivíduo adoecido por TB.

Dessa forma, o fluxo de atendimento ao indivíduo que interna no hospital estudado teria o seu início com o diagnóstico e notificação do caso e só se encerraria com a garantia da continuidade pela APS após a alta hospitalar (Figura 1).

Figura 1
Modelo proposto de gestão do cuidado da tuberculose no hospital universitário, Curitiba-PR

Como se pode visualizar, esse modelo pretende atuar na superação da lacuna existente entre o hospital e a APS, na qual os enfermeiros do hospital passariam a ser responsáveis por contatar o enfermeiro da UBS, transmitir todas as informações do caso e agendar a primeira consulta do usuário na UBS, tornando o processo de continuidade do tratamento mais efetivo.

A consulta de enfermagem se constitui como pilar desse modelo, na medida em que é por meio dela que os enfermeiros irão estreitar a relação com o usuário. O potencial da consulta de enfermagem como estratégia para um cuidado efetivo oferece inúmeras vantagens, pois viabiliza o trabalho do enfermeiro no atendimento aos usuários, auxiliando na identificação de problemas, necessidades e fragilidades, o que possibilita a tomada de decisões, planejamento e conduta no processo de alta hospitalar.2020. Oliveira SKP, Queiroz APO, Matos DPM, Moura AF, Lima FET. Temas abordados na consulta de enfermagem: revisão integrativa da literatura. Rev Bras Enferm. 2012 Jan-Fev; 65(1):155-61.

Esse modelo de gestão do cuidado também sugere o compartilhamento de responsabilidades entre as unidades de internação e o Serviço de Epidemiologia Hospitalar. Nesse sentido, o enfermeiro do Serviço de Epidemiologia Hospitalar atuaria como apoio matricial para os enfermeiros das unidades de internação que regem casos de TB em seus setores, garantindo a retaguarda, de maneira personalizada e interativa.2121. Cunha GT, Campos GWS. Apoio matricial e atenção primária em saúde. Saúde Soc. 2011 Out-Dez; 20(4):961-70.

Substancialmente, institui-se o contato telefônico entre o enfermeiro do hospital e o enfermeiro da UBS, com o intuito de garantir que este tenha conhecimento da existência do caso e acesso a todas as informações que julgue necessárias para a condução do acompanhamento. Nesse contato também seria possível o agendamento da primeira consulta do usuário na UBS.

Assim, com essa estratégia, a continuidade do tratamento na APS seria facilitada e os anseios dos enfermeiros desse nível da atenção reduzidos, visto que a falta de informação e a surpresa da chegada do usuário seriam fatores excluídos do processo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que existam estratégias para o controle da tuberculose, os indicadores de abandono desse agravo encontram-se estacionados há vários anos e apesar da importante redução dos casos na última década, os índices de abandono ainda não chegaram ao aceitável. Com isso se percebe que os atuais programas de saúde não são suficientes e métodos automatizados, rígidos e impessoais não têm alcançado êxito.

Por esse motivo, considerou-se a gestão do cuidado da TB centrada na alta hospitalar como alternativa ao acompanhamento padrão, pois possibilita a integração efetiva com a APS, garantindo assim, acesso e continuidade do tratamento.

A partir do alcance do objetivo proposto, pôde-se perceber a maneira pela qual a gestão do cuidado pode contribuir para o vislumbre de um cuidado mais próximo da integralidade ao portador de TB, que necessita de internação hospitalar durante seu tratamento. A articulação entre os níveis da assistência à saúde pode possibilitar ininterrupção do tratamento e, com isso, promover a redução do abandono e adesão à terapêutica.

O êxito da proposta poderá trazer ganhos incalculáveis, visto que qualquer redução nos índices e taxas de um agravo, como este, traz consigo a percepção de efetiva reversão de modelos assistenciais não resolutivos, bem como a possibilidade de uma população mais saudável e em pleno exercício de sua cidadania.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2015
  • Aceito
    08 Dez 2015
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