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MULHER-GUERREIRA, MULHER-HOMEM: RECONHECIMENTO DO TRABALHO E SEUS SENTIDOS NA PERCEPÇÃO DE MULHERES RECICLADORAS

RESUMO

O objetivo do estudo foi revelar o reconhecimento do trabalho e seus sentidos na percepção de mulheres recicladoras de uma cooperativa de reciclagem. Estudo qualitativo, exploratório-descritivo, realizado com recicladoras em uma cooperativa de reciclagem de município da região central do Rio Grande do Sul, Brasil. Os dados foram produzidos por meio da observação participante, entrevista semiestruturada (realizada com sete mulheres) e grupos focais (com seis mulheres), entre julho e agosto de 2013, e analisados por meio da análise de conteúdo. Os resultados mostram que a dinâmica do reconhecimento é complexa e envolve situações de valorização e de preconceito. As trabalhadoras elaboram sentidos individuais e coletivos para o trabalho que desempenham, representados, principalmente, pela autoimagem da "mulher-guerreira" e "mulher-homem". Concluiu-se que reconhecimento e sentidos do trabalho se correlacionam no modo como as recicladoras vivenciam e compreendem seu trabalho.

DESCRITORES:
Saúde do trabalhador; Trabalho feminino; Catadores; Pesquisa qualitativa; Enfermagem.

ABSTRACT

The study aimed to reveal the recognition of the work and of its meanings in the perception of female recycling workers of a recycling cooperative. It is a qualitative, exploratory-descriptive study, undertaken with female recycling workers in a recycling cooperative in a municipality of the central region of the State of Rio Grande do Sul, Brazil. The data were produced through participant observation, semistructured interviews (held with seven women) and focus groups (with six women), between July and August 2013; the data were analyzed using content analysis. The results show that the dynamic of the recognition is complex and involves situations of valorization and of prejudice. The female workers elaborate individual and collective meanings for the work which they undertake, represented, principally, by the self image of "Woman-warrior" and "Woman-man". It is concluded that recognition and meanings of the work correlate with how the female recycling workers experience and understand their work.

DESCRIPTORS:
Occupational health. Women; working. Solid waste segregators. Qualitative research. Nursing.

RESUMEN

El objetivo del estudio fue revelar el reconocimiento del trabajo y sus sentidos en la percepción de mujeres recicladoras de una cooperativa de reciclaje. Estudio cualitativo, exploratorio, descriptivo, realizado con recicladoras de una cooperativa de una ciudad de la región central del Rio Grande do Sul, Brasil. Los datos fueron recolectados por medio de observación participante, entrevista semiestructurada (realizada con siete mujeres) y grupos focales (con seis mujeres), entre julio y agosto de 2013, y analizados por medio de análisis de contenido. Los resultados muestran que la dinámica del reconocimiento es complexa y envuelve situaciones de valorización y de preconcepto. Las trabajadoras elaboran sentidos individuales y colectivos para el trabajo que desempeñan, representado, principalmente, por la auto-imagen de "mujer-guerrera" y "mujer-hombre". Se concluye que reconocimiento y sentidos del trabajo se correlacionan en el modo como las recicladoras vivencian y comprenden su trabajo.

DESCRIPTORES:
Salud laboral; Trabajo de mujeres; Segregadores de residuos sólidos; Investigación cualitativa; Enfermería.

INTRODUÇÃO

Com o advento da sociedade urbana e contemporânea, da indústria de produção e consumo e com o desenvolvimento do progresso tecnológico e econômico, um fenômeno vivenciado pelas grandes cidades é o aumento da produção e descarte de resíduos sólidos. Essa nova realidade possibilitou discussões sobre o papel do reciclador, trabalhador cercado de imaginários sociais estigmatizados, uma vez que, por estar envolvido com o produto o qual a sociedade descartou, tem sua imagem associada ao próprio descarte.11. Pereira JCS, Godoi CK, Coelho ALAL. Qualidade de vida dos catadores de materiais recicláveis: um estudo etnográfico. Gestão Sociedade. 2012; 6(14):159-77.

A problemática referente ao papel do reciclador leva em consideração seu lugar social, enquanto trabalhador da cadeia produtiva. Nesse aspecto, faz-se necessária a discussão acerca da saúde e bem-estar desse sujeito, em especial, do reconhecimento do seu trabalho e os sentidos atribuídos por estes sujeitos. O reconhecimento e os sentidos do trabalho são conceitos oriundos da psicodinâmica do trabalho, abordagem científica desenvolvida na França por Christophe Dejours, psiquiatra, psicanalista. Suas bases conceituais estão fundamentadas em raízes epistemológicas da hermenêutica, e se originam do diálogo entre a psicanálise, filosofia, sociologia e ergonomia.22. Merlo ARC, Mendes AMB. Perspectivas do uso da psicodinâmica do trabalho no Brasil: teoria, pesquisa e ação. Cad Psicol Soc Trab. 2009; 12(2):141-56.

Sublinha-se que a psicodinâmica do trabalho propõe pensar a articulação do trabalho e o equilíbrio psíquico do trabalhador, fundamental para que este seja capaz de se manter saudável em seu ambiente laboral. Portanto, a psicodinâmica possibilita a construção e a reconstrução das relações entre o trabalhador e a realidade sólida com o trabalho.33. Santos Júnior AV, Lima VS, Facas EP, Mendes AMB. Trabalho prescrito, real e estratégias de mediação do sofrimento de jornalistas de um órgão público. Sistemas & Gestão. 2012; 6: 562-82.

O reconhecimento do trabalho pode ser definido como a articulação entre visibilidade, apreciação e julgamento de utilidade sobre o trabalhador e o produto de suas atividades, a partir das quais ele mesmo se sente reconhecido pelos colegas e pela sociedade.44. Dejours C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouria na análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo (SP): Editora Atlas; 1994. Tal reconhecimento se dá sobre o trabalho em si, não sobre o sujeito, o que torna a atividade uma passagem para o reconhecimento do trabalhador.55. Athayde V, Hennington EA. A saúde mental dos profissionais de um Centro de atenção Psicossocial. Physis (Rio J.). 2012; 22(3):983-1001. Ainda, é possível obtê-lo por mediação do olhar dos outros no jogo das relações de trabalho.

Já os sentidos do trabalho permitem que o sujeito construa sua identidade pessoal e profissional podendo, portanto, identificar-se com a tarefa realizada. São particulares para cada trabalhador, pois são criados a partir de vivências singulares. Para a manutenção de sua saúde, o trabalho necessita fazer sentido para ele, para seu grupo de colegas e para a sociedade na qual estão inseridos.66. Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5ª ed. São Paulo (SP): Cortez - Oboré; 1992. Portanto, assim como o reconhecimento, o sentido do trabalho é central no que tange à saúde e ao bem-estar do reciclador.

A temática da saúde do reciclador sob a perspectiva da psicodinâmica do trabalho permanece pouco explorada na pesquisa em enfermagem. Revisão narrativa realizada no ano de 2013, nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE), a partir da pergunta de pesquisa "O que tem sido produzido acerca da saúde do reciclador?", evidenciou a carência de pesquisas que abordassem aspectos subjetivos do trabalho para esses sujeitos, tais como prazer, sofrimento, invisibilidade, sentidos do trabalho, percepções e sentimentos.

Além disso, constataram-se poucos estudos direcionados ao trabalho feminino em reciclagem, fato que não converge com evidências da presença marcante da mulher nesse cenário.77. Sander FP, Silva DAK, Baldin, N. A valorização do ser humano e de sua criatividade mediante atividade artesanal com embalagens plásticas: o caso das catadoras de União Vitória/PR. G&DR. 2011 Set-Dez; 7(3):134-57.-88. Riqueti CE, Couto GA. Hábitos de consumo entre catadores de materiais recicláveis: uma abordagem metodológica. Olhar de Professor. 2010; 13 (2):267-77. Por fim, destaca-se a incipiente presença da enfermagem na produção do conhecimento acerca da saúde dos recicladores, presença que se faz necessária, tendo em vistas que a enfermagem possui compromisso ético com a saúde e qualidade de vida da coletividade, tendo como princípio a promoção do ser humano em sua integralidade, atendo aos preceitos da ética e da bioética.99. Conselho Federal de Enfermagem. Resolução n. 311/2007. Aprova a Reformulação do Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem- CEPE. Conselho Federal de Enfermagem, 08 Fev 2007.

Sob esta perspectiva, o objetivo deste estudo foi o de revelar o reconhecimento do trabalho e seus sentidos na percepção de mulheres recicladoras de uma cooperativa de reciclagem.

MÉTODO

O presente estudo constituiu-se de uma investigação qualitativa, do tipo exploratório-descritivo, desenvolvida em uma cooperativa de seleção de materiais recicláveis, localizada em um município da região central do Rio Grande do Sul, Brasil. Essa cooperativa a qual é responsável pela coleta seletiva no município, e realiza a arrecadação, separação e venda dos recicláveis, ou sua distribuição para cooperativas menores. Localiza-se no perímetro urbano do município referido. A cooperativa contava, no momento da produção dos dados, com um contingente seis homens e nove mulheres na atividade de reciclagem, sendo que estas compuseram as participantes do estudo.

A seleção das trabalhadoras para a pesquisa deu-se por meio dos seguintes critérios de inclusão: ser mulher trabalhadora em atividades de seleção de materiais recicláveis vinculada à cooperativa; atuar há, pelo menos, seis meses na atividade em questão, em virtude de que se desejou evitar trabalhadoras que possuíssem pouco tempo de contato com o trabalho. E quanto ao critério de exclusão, estabeleceu-se: trabalhadoras que estivessem afastadas do trabalho no período da coleta de dados por qualquer motivo.

Foram utilizados três técnicas para a produção de dados: a observação participante; a entrevista semiestruturada; e a técnica do grupo focal (GF).

A observação participante compreende o contato direto do pesquisador com os sujeitos no seu contexto cultural, possibilitando a compreensão dos fatos e da interação entre os sujeitos no interior do seu contexto.1010. Correia MCB. A observação participante enquanto técnica de investigação. Pensar Enferm. 2009; 13(2):30-6. Nessa fase, após aceite da cooperativa, foi observado durante cinco dias (totalizando uma média de 25 horas de observação) o cotidiano de trabalho no galpão de reciclagem e buscou-se uma interação e diálogo com as trabalhadoras. Foi utilizado um roteiro de observação e diário de campo. Já para a entrevista semiestruturada, sete trabalhadoras responderam aos critérios de inclusão, e foram, portanto, incluídas nesta etapa. As entrevistas ocorreram no mês de julho de 2013, na sede da cooperativa. As mulheres foram identificadas no material pela letra T, que inicia a palavra "trabalhadora", seguida pelo numeral correspondente à ordem das entrevistas (T1, T2, T3... T7).

Quanto ao GF, tem por objetivo obter dados qualitativos por meio de uma interação grupal entre os sujeitos, mediado por um moderador, cujo foco seja um tema comum a todos.1111. Ressel LB, Beck CLC, Gualda DMR, Hoffmann IC, Silva RM, Sehnem GD. O uso do grupo focal em pesquisa qualitativa. Texto Contexto Enferm. 2008; 17(4):779-86. Foram realizadas três sessões de GFs, sendo que na primeira e na segunda participaram cinco mulheres e na terceira, seis. Todas as mulheres que participaram dos GFs haviam participado, previamente, das entrevistas. Em cada sessão, foram propostas questões norteadoras, que conduziram o debate. Esse papel foi desempenhado pelo moderador, responsável por estimular o diálogo e conduzi-lo ao foco do estudo. Além deste, participaram três assistentes de pesquisa, responsáveis por realizar anotações que identificassem as falas das trabalhadoras pelos nomes, que registrassem manifestações não verbais e que sintetizassem o conteúdo dos debates. Essa síntese era lida ao final das sessões, podendo as trabalhadoras corroborá-la ou alterá-la.

A identificação das trabalhadoras nos registros dos GFs deu-se por meio de pseudônimos que foram escolhidos por cada mulher e anotados com canetas coloridas em crachás. Essa etapa ocorreu no mês de agosto de 2013, na sede da cooperativa.

As entrevistas semiestruturadas e os GFs foram gravados com auxílio de gravadores digitais e dispositivos de mp3, com consentimento de todas as mulheres. Posteriormente, foram transcritos na íntegra, com auxílio do programa Microsoft Word Starter 2010(r), visando maior fidedignidade na análise dos dados.

Para análise do material, foi utilizada a técnica da análise temática de conteúdo, desenvolvida em três etapas: pré-análise; exploração do material; e análise dos dados e interpretação.1212. Bardin, L. Análise de conteúdo. 8ª ed. Portugal (PT): Geográfica Editora; 2011. Na pré-análise, o material transcrito foi organizado à luz dos objetivos e lido exaustivamente. Após, foram realizados agrupamentos por meio de duas técnicas: o quadro sinóptico, o qual relacionava cada fala ao seu extrato, impressões da pesquisadora e ao objetivo ao qual se relacionava. A segunda técnica, o recorte por cores, consistiu em atribuir às falas palavras-chaves, sendo que a cada uma atribuiu-se uma cor. Os extratos das falas foram pintados de acordo com suas palavras-chaves, recortados e, posteriormente, agrupados pelas cores. Os grupos de falas foram colados em um caderno em agrupamentos maiores, cada qual representando um dos objetivos do estudo. Ambas as técnicas objetivaram validar-se, e os agrupamentos obtidos em ambas convergiram.

Na segunda fase, exploração do material, os dados são decompostos e codificados em unidades de registro (URs) - palavra, ou conjunto de palavras, que sintetize a ideia de um depoimento - e, desta maneira, obtém-se uma visão das características dos resultados.1212. Bardin, L. Análise de conteúdo. 8ª ed. Portugal (PT): Geográfica Editora; 2011. Assim, em cada extrato da fala foi destacada sua UR. Após, as URs foram agrupadas conforme sua afinidade semântica. O processo foi realizado duplamente, ou seja, no quadro sinóptico e no caderno por cores, e ambos os processos culminaram nos mesmos agrupamentos, validando-se.

Por fim, no tratamento dos dados e interpretação, o pesquisador, em posse de resultados substanciais, realiza suas inferências e interpretações.1212. Bardin, L. Análise de conteúdo. 8ª ed. Portugal (PT): Geográfica Editora; 2011. Nesse momento, o diário de campo da observação participante foi relido com profundidade. Foram removidos trechos do diário de campo e anexados, em formato de notas, ao longo do caderno por cores, de acordo com a complementariedade das informações das notas do diário com os trechos do caderno por cores. Assim, as informações do diário de campo foram incorporadas ao caderno, de maneira que os dados fossem sintetizados e confrontados nesta terceira fase da análise.

Por meio disso, foi possível organizar os agrupamentos em categorias e subcategorias temáticas. Nesse artigo, serão apresentadas duas categorias do conjunto dos resultados obtidos: Do preconceito ao reconhecimento do trabalho: a busca pelo respeito; e A "mulher-guerreira, mulher-homem": construção dos sentidos do trabalho.

Esta pesquisa esteve em conformidade com a Resolução n. 466/12 do Conselho Nacional de Saúde.1313. Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Resolução n 466 de 12 de dezembro de 2012: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): MS; 2012. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria sob número do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 16195113.9.0000.5346.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em relação às características sociodemográficas e laborais, a idade média referida pelas mulheres foi 42 anos. A idade mínima referida foi 30 anos e a máxima, 53. Todas eram alfabetizadas. Das sete mulheres, cinco eram casadas ou possuíam companheiro, seis referiram possuir filhos, com uma média de três filhos cada uma. O tempo médio de trabalho das mulheres na reciclagem foi de 8,8 anos, sendo que a mais antiga na profissão possuía 19 anos de experiência, e a mais nova, 3,5 anos de experiência. Quando questionadas acerca dos motivos de ingresso no trabalho com reciclagem, os relatos predominantes foram, respectivamente: o desemprego e a dificuldade em inserir-se no mercado de trabalho formal; o trabalho cooperativado como possibilidade de melhorar a renda; a curiosidade e identificação com as tarefas; e influência de familiares que já exerciam a atividade.

Do preconceito ao reconhecimento do trabalho: a busca pelo respeito

As trabalhadoras referiram questões relacionadas ao modo como se sentem vistas pela sociedade, pela família e pelas pessoas com quem convivem no dia a dia. Nesses relatos, estiveram presentes elementos relacionados tanto ao preconceito acerca do seu trabalho, quanto à valorização e luta por prestígio social.

Foram marcantes os relatos das trabalhadoras referentes ao preconceito vivenciado em algumas situações. O uso pejorativo da palavra "lixeiro" e a associação da imagem do reciclador com a figura do homem alcoolizado e não confiável foram enfatizados pelas recicladoras.

O pessoal não tem respeito com a gente. Chama a gente de lixeiros. Tem nojo da gente. [...] Fica falando umas coisas da gente, desrespeito com o nosso trabalho (Patrícia).

[...] As pessoas têm preconceito, as pessoas de vila, vizinhos da gente (T5).

As pessoas veem os recicladores na rua, e porque têm uns bêbados, uns sujos, alguns, não são todos! Acham que a gente anda assim. E não é assim, não! (Manoela).

E acham às vezes que é ladrão, só porque está trabalhando [na reciclagem], pensam 'Ah, aquele ali rouba', sabe? As pessoas pensam isso da gente (Patrícia).

Durante as observações participantes, não foram presenciadas situações de discriminação. Porém, muitas vezes, era mencionada pelas recicladoras a necessidade de deixar a frente da cooperativa "limpa de resíduos", uma vez que, segundo elas, a vizinhança incomodava-se com a presença do material reciclável. Pesquisa evidenciou que profissionais recicladores sentem o preconceito no olhar dos outros, e sofrem comparações com os elementos pejorativos "lixeiro, mendigo, urubu, ladrão".1414. Maciel RH, Matos TGR, Borsoi ICF, Mendes ABC, Siebra PT, Mota CA. Precariedade do trabalho e da vida de catadores de recicláveis em Fortaleza, CE. Arq Bras Psicol. 2011; 63 (Esp):71-82. Esse dado vem ao encontro dos resultados encontrados e sugere que as situações de não reconhecimento do seu trabalho são recorrentes entre esses trabalhadores.

O entendimento de que há uma censura originária da sociedade é construído pelo reciclador a partir da associação deste com a figura do ladrão, do mendigo, do malandro, e esses estereótipos marcam o relacionamento do trabalhador com os outros membros da sociedade.1515. Miura PO, Sawaia BB. Tornar-se catador: sofrimento ético-político e potência de ação. Psicol Soc. 2013; 25 (2):331-41. Portanto, a desqualificação e a associação de suas tarefas a elementos pejorativos podem levar a sentimentos de sofrimento ou mesmo adoecimento psíquico.

Salienta-se que isto possui um papel fundamental na constituição da identidade do trabalhador, sendo um elo entre o sujeito e a realidade.55. Athayde V, Hennington EA. A saúde mental dos profissionais de um Centro de atenção Psicossocial. Physis (Rio J.). 2012; 22(3):983-1001. A identidade é uma vivência subjetiva, que se apoia na realidade e no reconhecimento dos outros para dar sentido ao trabalho. Ainda, para que o trabalhador se mantenha saudável na dinâmica de prazer e sofrimento no trabalho é importante que ele sinta a valorização de sua contribuição.1616. Bendassolli PF. Reconhecimento no trabalho: perspectivas e questões contemporâneas. Psicol Etud. 2012; 17(1):37-46.

Foram evidenciadas, em outros momentos, situações opostas, de reconhecimento e respeito. As recicladoras referiram que, embora sejam recorrentes os episódios de falta de reconhecimento, existe por parte de alguns segmentos da sociedade, e por parte da família, a valorização e o respeito pelo seu trabalho, como evidenciam os relatos:

até a minha cunhada, que está com 11 anos. Esses dias a minha sogra disse assim: 'A [menina] disse que quer ir trabalhar contigo, porque no dia em que ela foi lá, ela gostou do que tu estavas fazendo' (Julinha).

[...] porque se nós estamos entrando nas casas das pessoas, se a gente é bem recebida, é porque elas nos veem de uma maneira diferente. Tem gente que respeita a gente (Mônica).

A dinâmica do reconhecimento reflete a importância do outro e dos coletivos de trabalho, no que tange ao julgamento acerca de quem o sujeito é e do valor do que ele faz.1616. Bendassolli PF. Reconhecimento no trabalho: perspectivas e questões contemporâneas. Psicol Etud. 2012; 17(1):37-46. Portanto, construir-se enquanto trabalhador envolve, antes de tudo, reunir e incorporar as construções pré-existentes em torno de si mesmo e de suas tarefas, deparando-se com estereótipos negativos e positivos que permeiam e influenciam seu estar no mundo.

Ainda, foi dada ênfase, pelas trabalhadoras, à luta pela construção de sua imagem e a mobilização contra o preconceito, como mostram os segmentos: [...] por mais que a gente lide com material que chamam de lixo, não nos chamem de lixeiros. Isso nos denigre. Reciclador! Fica tão bonito, tão charmoso, a gente cresce nisso, a nossa autoestima (Manuela).

[...] Não é porque eu trabalho no material, no meio do lixo, como dizem, que eu tenho que viver igual a um lixo, não mesmo! (T6).

[...] Eu jamais vou admitir que alguém me chame de lixeira, jamais! Porque eu não sou isso, eu tenho respeito pelo meu trabalho (Mônica).

Os relatos das recicladoras transparecem uma mobilização subjetiva e coletiva no sentido de questionar o preconceito, o não reconhecimento e os estereótipos construídos em torno de si. Esse dado aponta para uma construção coletiva entre os participantes dessa pesquisa no sentido de autovalorizar o trabalho realizado, o que destoa de resultados encontrados por pesquisa que evidenciou entre os recicladores pesquisados sentimentos de vergonha e desalento em decorrência do não reconhecimento do seu trabalho.1414. Maciel RH, Matos TGR, Borsoi ICF, Mendes ABC, Siebra PT, Mota CA. Precariedade do trabalho e da vida de catadores de recicláveis em Fortaleza, CE. Arq Bras Psicol. 2011; 63 (Esp):71-82.

A autovalorização do trabalho foi ressaltada pelas trabalhadoras em muitos momentos. As mulheres demonstram a importância de que o trabalhador sinta orgulho de ser catador e visualize esse mesmo orgulho em sua família. Assim, o reconhecimento do trabalho é reivindicado, porém, as recicladoras ressaltam a relevância do próprio sujeito reconhecer-se e orgulhar-se de sua profissão, bem como os familiares que se beneficiam dos ganhos do trabalho com reciclagem.

[...] Se tu tens o apoio da tua família, se eles têm orgulho do que tu fazes, tu ficas de cabeça erguida, tu não precisas estar com vergonha. [...] A gente mantém a casa, mantém o filho na escola, anda na rua como uma pessoa qualquer, um trabalhador normal. Isso aqui é o nosso trabalho. [...] Não tem por que a gente ter vergonha, porque a gente mantém eles daqui, e como que tu vais ter vergonha de onde tu te manténs? Tem que ter orgulho. [...] E nós estamos aqui, orgulhosos, fazendo o nosso trabalho (Mônica).

Na ausência do reconhecimento do trabalho, a tendência do trabalhador é desmobilizar-se e, nestes casos, desencadeiam-se graves consequências para sua saúde psíquica.44. Dejours C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouria na análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo (SP): Editora Atlas; 1994. Além disso, o reconhecimento está articulado aos sentidos do sofrimento, ou seja, a partir do momento em que o trabalhador sente-se reconhecido, suas frustrações e angústias passam a ser ressignificadas e o sofrimento, a ser encarado pelo sujeito sob uma nova perspectiva.1717. Dejours C. A banalização da injustiça social. 7ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora FGV; 2006.-1818. Traesel ES, Merlo ARC. A psicodinâmica do reconhecimento no trabalho de enfermagem. Psico. 2009; 40(1):102-9. Portanto, a partir do momento em que as recicladoras destacam a importância do orgulho em torno do seu trabalho para a construção do reconhecimento, estão atuando no sentido de ressignificar o sofrimento diário e construir uma relação saudável com seu trabalho.

Os resultados trazem evidências de que a dinâmica do reconhecimento do trabalho das recicladoras é complexa, na medida em que envolve situações antagônicas de desprestígio/preconceito e valorização/reconhecimento. Ainda, evidenciam que as mesmas buscam por meio dos significados atribuídos especialmente por familiares fortalecer a construção social do seu trabalho. Considera-se que esse dado está interligado à constituição da identidade, explicitada na subcategoria a seguir.

A "mulher-guerreira, mulher-homem": construção dos sentidos do trabalho

As mulheres reconhecem o valor do seu trabalho e o papel central que o mesmo desempenha na independência financeira e no sustento da família. O valor do trabalho é reconhecido na medida em que elas percebem que possuir a própria renda e poder promover bem-estar para a família é uma fonte de orgulho e satisfação.

[...] A nossa família depende do nosso serviço, em casa tem alguém esperando. As nossas contas, a comida, o dia a dia, queira ou não queira é daqui que sai o nosso pão. E se a gente está lutando por ele, a gente quer o melhor (Manoela).

[...] Tu eras dependente para tudo! Tem coisa mais chata que tu pedires para o marido, que tu estás sem um absorvente, tem coisa mais chata que tu dizeres para ele que tu precisas dos teus comprimidos? Não tem. Isso aqui nos dá liberdade (Mônica).

Eu dependia muito dos meus pais. E era difícil, mas depois eu já consegui trabalhar, ter minhas coisas, não depender de homem, de marido nenhum (Patrícia).

A importância do papel que o trabalho desempenha na vida do homem está relacionada à possibilidade de garantir a subsistência.1919. Oliveira AS. Sobre o sentido do trabalho: entre Frankl e Dejours. [trabalho de conclusão de curso]. Campina Grande (PB): Universidade Estadual da Paraíba; 2013. Percebe-se que as selecionadoras valorizam o retorno financeiro dado pelo trabalho e atribuem a ele a independência feminina e a manutenção do sustento da família. No entanto, pode-se observar que o valor atribuído ao trabalho ultrapassa os limites do ganho salarial, relacionando-se também com os ganhos subjetivos que, para elas, envolve a reciclagem.

A gente acha muitos perfumes, muitas joias, muitas coisas que nos embelezam, nos deixam bonita, a gente gosta! Não é porque a gente trabalha no meio do... como dizem, 'do lixo', mas não é lixo, é material reciclável... A gente gosta de se sentir, botar um bom perfume, quando vem, a gente coloca... Mesmo que seja bem forte, mas a gente gosta. Vem roupa boa, a gente se divide (Manoela).

O trabalho das recicladoras supre um conjunto amplo de necessidades, não apenas salariais, mas traz prazeres e satisfações diários. O valor do trabalho, para as mulheres, relaciona-se aos sentidos que o mesmo tem para cada trabalhadora, sentidos que são construídos individual e coletivamente.

Esse dado foi identificado também em ocasião da observação participante. Na chegada do material proveniente da coleta seletiva, muitos objetos em francas condições de uso eram separados do restante e distribuídos entre as recicladoras, tais como roupas, utensílios domésticos e mesmo aparelhos eletrônicos em funcionamento. Algumas recicladoras comentavam que, ao longo dos anos trabalhando na cooperativa, haviam otimizado o conforto no domicílio por meio da aquisição de objetos provenientes da coleta seletiva.

O trabalho é considerado o meio pelo qual o homem transforma o seu ambiente e a si mesmo, representando um instrumento de construção social e individual do trabalhador.2020. Beck CLC, Prestes FC, Tavares JP, Silva RM, Prochonow AG, Nonnemacher CQ. Identidade profissional de enfermeiros de serviços de saúde municipal. Cogitare Enferm. 2009 Mar-Mai; 14(1):114-9. Para que o homem possa edificar-se social e subjetivamente enquanto trabalhador, ele elabora sentidos para o trabalho que desempenha, os quais representam mecanismos de realização profissional e neutralização do sofrimento.2121. Dejours C. A avaliação do trabalho submetida à prova do real. São Paulo (SP): Blucher; 2008.

O sentido do trabalho é compreendido como articulação de dois componentes: o conteúdo significativo em relação ao sujeito e o conteúdo significativo em relação ao objeto. O primeiro diz respeito ao conteúdo simbólico e à significação relacionados a uma determinada profissão e à posição social implícita vinculada à mesma. Já o segundo diz respeito aos conteúdos simbólicos e materiais construídos em torno do objeto de trabalho,66. Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5ª ed. São Paulo (SP): Cortez - Oboré; 1992. no caso deste estudo: a reciclagem. Destaca-se que os sentidos construídos pelas recicladoras sobre si mesmas, sujeitos trabalhadores, evidenciam-se na fala: eu falando em nós sermos supermulheres... O serviço que nós fizemos, que é difícil, nós valemos por dez homens [...] (Nina).

O conteúdo da fala mostra que as mulheres construíram uma simbologia para si enquanto trabalhadoras: a de supermulher. Essa simbologia está relacionada ao esforço físico e às superações diárias em um trabalho braçal, o que faz com que elas sintam que "valem por dez homens". Essa concepção faz parte da construção do sentido do trabalho. Em relação aos sentidos em relação ao objeto, correspondentes ao conteúdo simbólico, evidenciam-se no seguinte relato:

antigamente eu achava que isso era lixo. Agora eu aprendi que não é lixo. Imagina aonde que ia tudo isso aí. Para mim não importava isso, depois que eu entrei, que eu vi, eu me importo muito, até de atirar um papel no chão (Patrícia).

[...] por mais que digam que é lixo, não é lixo! É um material que foi descartado. É uma embalagem, volta de novo. Vocês vão utilizar de novo (Manoela).

A reciclagem tem, para as mulheres, o sentido de preservação da natureza, de sustentabilidade. Elas concebem que o objeto do seu trabalho representa um material que, graças à sua atuação e ao seu trabalho, continuará seu ciclo e voltará para o consumo da sociedade.

O sentido do trabalho diz respeito ao seu valor subjacente e à coerência que o mesmo tem para o trabalhador.2222. Morin EM, Aubé C. Psicologia e Gestão. São Paulo (SP): Atlas; 2009. Portanto, por meio da construção de símbolos que representem o valor e a coerência do papel que desempenham, as recicladoras constroem os sentidos do seu trabalho na cooperativa e, por meio disso, o significam e o transformam em elemento de prazer e de saúde.

O trabalho representa uma fonte de prazer e realização, na medida em que expressa o que de mais humano existe o homem: sua capacidade de imprimir e manifestar sua subjetividade, elemento crucial para o equilíbrio e desenvolvimento humano.2323. Dejours C. Uma nova visão do sofrimento humano nas organizações. In: Torres OLS, organizador. O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. 3ª ed. São Paulo (SP): Atlas; 1996. Nesse sentido, as recicladoras têm em seu trabalho um elemento de prazer e de saúde, uma vez que, ao imprimirem sua subjetividade às tarefas e construírem sentidos para elas, as transformam em instrumentos de realização.

Eu gosto do que eu faço. [...] Eu me considero bem importante para a natureza, para a vida dos meus filhos e para os meus netos (T5).

[...] Tu tens o crescimento profissional, tu tens o crescimento pessoal, tu consegues crescer como pessoa. Tu consegues passar para as outras pessoas a importância do que tu estás fazendo, eu acho isso uma grande coisa.(Mônica).

Eu me sinto realizada de conseguir fazer o que eu faço. O que eu faço ali é serviço para homem. Então eu me sinto realizada de conseguir fazer aquilo ali (Julinha).

Realizada. Porque a gente tenta fazer o máximo. Se sente realizada porque extrapola. Tu chegas a um ponto que os teus braços pedem ajuda e tu estás indo. Que nem chegar no dia da prova e tu tirardes um dez (Nina).

A busca pelo prazer perpassa a via da ressignificação do sofrimento, na medida em que o indivíduo busca meios de obter a estabilidade do aparelho psíquico e a conciliação com sua subjetividade.25 As falas demonstram que as recicladoras utilizam os próprios agentes do sofrimento - o desgaste físico, a exaustão do corpo - e os transformam em elementos de orgulho e satisfação. Isso exemplifica a ressignificação do sofrimento. E mostra como elas conseguem contornar as adversidades do seu trabalho e edificar, individual e coletivamente, sentidos para as tarefas que desempenham e uma autoimagem enquanto trabalhadoras.

Sobre a construção da autoimagem, concebe-se que se trata de um movimento coletivo, no qual as recicladoras formularam, em conjunto, um símbolo acerca de si envolvendo o feminino, a força e o empoderamento. Esse símbolo foi expresso por meio, principalmente, das ideias da "mulher-guerreira" e "mulher-homem". Alguns trechos ilustram o uso dessa imagem pelas mulheres:

é que a mulher virou um pouco homem [...], a mulher guerreira, a que trabalha, porque ela tem uma casa para manter, ela tem os filhos, geralmente estão se separando, já é o segundo casamento, o terceiro, o quarto, o quinto... Mas a mulher sabe que a responsabilidade não é dividida com o marido (Manuela).

[...] só nós, guerreiras mesmo para abraçar isso. É isso que eu falo para as gurias. [...] E nós somos guerreiras! (Nina).

A "mulher-guerreira" para as trabalhadoras representa a mulher que trabalha e que é responsável pelo comando e sustento da família. Ela enfrenta todas as dificuldades, mas não perece pela rigidez e exigência do trabalho, nem pelas tarefas existentes na casa. Já a "mulher-homem" traz a aproximação do masculino ao feminino. O masculino representa a força, o comando, a resistência; as mulheres apropriam-se da representação social do masculino para simbolizarem o conjunto de suas qualidades que consideram próximas ao viril.

Existe no universo do trabalho um conjunto de características atribuídas ao viril. Geralmente, essas características estão relacionadas à força, à autoridade, ao mando e ao poder. O viril é um símbolo que fundamenta o entendimento de que cada sexo enquadra-se em um lugar social pré-definido.1717. Dejours C. A banalização da injustiça social. 7ª ed. Rio de Janeiro (RJ): Editora FGV; 2006. Porém, percebe-se que as mulheres recicladoras elaboraram outro significado coletivo para esta representação. Ao invés de compreenderem o viril no outro, no homem, elas se empoderaram desse símbolo e de suas qualidades, construindo uma autoimagem de mulher forte e resistente.

Pode-se pensar, portanto, que a construção da representação da "mulher-guerreira" e da "mulher-homem" cumpre o papel de criar uma defesa das trabalhadoras contra o sofrimento. Compreender-se como uma mulher forte, sólida, viril e resistente ajuda as selecionadoras a enfrentar os desafios, as dificuldades, a exaustão, a dor, o sofrimento e o adoecimento que as acometem diariamente. Portanto, muito além de constituir uma estratégia defensiva no trabalho, a representação da "mulher-guerreira" e da "mulher-homem" é um instrumento de saúde, pois as mesmas edificam, a partir dele, o conteúdo significativo em relação a si mesmas como um dos elementos da construção do sentido do trabalho.66. Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5ª ed. São Paulo (SP): Cortez - Oboré; 1992.

Portanto, compreende-se que o modo como as recicladoras vivenciam suas tarefas é influenciado pelo valor e sentidos que as mesmas atribuem ao trabalho desempenhado. Os sentidos do trabalho atuam como neutralizadores do sofrimento. A ele contrapõem-se estratégias que impedem que o trabalho seja penoso a ponto de não ser mais possível dar conta do cotidiano laboral.

Além dessa tarefa de neutralizar o sofrimento, os sentidos do trabalho são capazes de transformar as atividades laborais em veículos de prazer, satisfação e saúde. Graças a esse articulado processo de significação das atividades e da construção de uma imagem enquanto trabalhadora, as mulheres encontram coerência e importância nas tarefas que desempenham sendo capazes, portanto, de transformar o sofrimento em prazer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mulher recicladora, no exercício de seu trabalho, enfrenta situações de preconceito e desvalorização, que resultam no não reconhecimento do seu papel social. Por outro lado, ela reconhece que existem momentos em que há retorno da família e da sociedade, os quais possibilitam vivências de prazer e realização.

O sofrimento advindo das dificuldades encontradas diariamente pela recicladora é enfrentado por meio dos sentidos que ela constrói, individual e coletivamente, em torno do trabalho que realiza. Frente aos resultados obtidos neste estudo, evidenciou-se que as mulheres mobilizam-se e constroem sentidos para o trabalho que extrapolam a superficialidade do ganho material, de maneira que a atividade de reciclagem ganha outra conotação, subjetiva e singular, de independência, superação, resistência e possibilidade de melhoria na qualidade de vida.

Em relação às limitações deste estudo, considera-se que o fato de dar voz às recicladoras cooperativadas exclui, de certa maneira, um conjunto amplo de recicladores que exercem suas atividades nas vias públicas e nos aterros sanitários. É necessário que a pesquisa acerca das vivências de prazer, sofrimento, reconhecimento e sentidos do trabalho para os recicladores alcance esses profissionais nas diferentes situações de vida e trabalho, nos variados cenários de labor, no sentido de apontar semelhanças, diferenças e possibilidades de intervenção.

Esta pesquisa buscou articular o conhecimento do campo da enfermagem à saúde da mulher recicladora, de forma a oferecer subsídios para atuação do profissional enfermeiro, particularmente levando-se em consideração a importância de avançar na direção de um cuidado que ultrapasse o mero desenvolvimento de ações focalizadas na resolução de agravos agudos. Considera-se que o cuidado de enfermagem à saúde dos trabalhadores (e dentre eles, o reciclador) deve levar em consideração sua subjetividade, seu modo de se relacionar com o trabalho e com a sociedade, suas experiências de vida e suas vivências singulares, articulando ações de educação, promoção de saúde, pesquisa e extensão, no sentido de dar-lhes voz, visibilidade e promover saúde e prazer no exercício do seu trabalho.

Destaca-se o papel do enfermeiro na construção do conhecimento em saúde do trabalhador e, em especial, de trabalhadores pouco lembrados no campo científico, como o reciclador. O movimento da enfermagem em direção a esses sujeitos é fundamental para a consolidação da integralidade e da universalidade do cuidado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2014
  • Aceito
    31 Ago 2015
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