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AMBULATÓRIO DE SAÚDE MENTAL: FRAGILIDADES APONTADAS POR PROFISSIONAIS1 1 Artigo extraído da tese - Processo de avaliação de quarta geração em um ambulatório de saúde mental: perspectiva dos profissionais, apresentada, ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá (UEM), em 2013.

RESUMO

O objetivo do estudo foi identificar as fragilidades de um serviço ambulatorial de saúde mental na perspectiva dos profissionais. Estudo qualitativo, desenvolvido pelo método da Avaliação de Quarta Geração. Os dados foram coletados em fevereiro e março de 2013, com o uso da observação não participante, entrevista aberta individual e técnica grupal para a sessão de negociação. Os informantes foram 12 profissionais atuantes no ambulatório. Os resultados apontaram fragilidades na estrutura organizacional da rede de assistência em saúde mental, especialmente na forma de acesso, estrutura física e a presença de extensa fila por atendimento. Referente aos recursos humanos incluem-se: desconhecimento do funcionamento da rede de saúde mental e das atividades realizadas, rotatividade médica, deficiência na capacitação e educação permanente e desvalorização profissional. Faz-se necessário refletir sobre a real função dos ambulatórios dentro da rede de saúde mental e sua efetividade na prestação de cuidados.

DESCRITORES:
Avaliação em saúde; Serviços de saúde mental; Saúde mental; Enfermagem.

ABSTRACT

The aim of this study was to identify the weaknesses of the mental health ambulatory service from the professionals' perspective. This was a qualitative study, developed by the Fourth Generation Evaluation method. Data were collected during February and March 2013 with the use of non-participant observation, individual opened interviews and group technique for the negotiation session. The informants were 12 working professionals at the ambulatory. The results pointed out weaknesses in the organizational structure of the healthcare network in mental health, especially regarding accessibility, physical structure and the presence of extensive waiting list for care. Regarding human resources, issues included: ignorance of the operation of the mental health network and of the activities performed, medical turnover, deficiency in training and continuous education and professional devaluation. It is necessary to reflect on the real role of ambulatories within the mental health network and its effectiveness in providing care.

DESCRIPTORS:
Health evaluation; Mental health services; Mental health; Nursing.

RESUMEN

El objetivo del estudio fue identificar las debilidades de un servicio ambulatorio de salud mental en la perspectiva de los profesionales. Estudio cualitativo, de tipo estudio de caso, desarrollado por medio de la evaluación de Cuarta Generación. Los datos fueron recolectados en febrero y marzo de 2013 con el uso de la observación no participante, entrevista abierta individual, técnica grupal para la fase de negociación. Los informantes fueron 12 profesionales. Los resultados señalaron fragilidades en la estructura organizacional de la red de asistencia en Salud mental especialmente: forma de acceso, estructura física y la presencia de filas extensas. En los recursos humanos: desconocimiento del funcionamiento de la red de salud mental, de las actividades realizadas, rotatividad médica, deficiencia en la capacitación y educación permanente, desvalorización profesional. Las fragilidades identificadas señalan la necesidad de reflexión sobre la función de los ambulatorios y su eficacia en la prestación de cuidados.

DESCRIPTORES:
Evaluación en salud; Servicios de salud mental; Salud mental; Enfermería.

INTRODUÇÃO

No Brasil, a Reforma Psiquiátrica, marcada pela extinção progressiva dos manicômios e tendo como eixo orientador das ações dos profissionais a inclusão e a reabilitação social da pessoa em sofrimento psíquico, encontra-se em curso. De acordo com essa reforma, os estados e municípios devem implementar uma política de saúde mental equânime, inclusiva, extra-hospitalar e com base comunitária. Para tanto, faz-se necessária a organização de uma rede de atenção integral à saúde mental, de modo a suprir as necessidades de cuidado, favorecer a integração social e qualificar a existência dessas pessoas.11. Miranda FAN, Santos RCA, Azevedo DM, Leite RF, Costa TS. Fragmentos Históricos da Assistência psiquiátrica no Rio Grande do Norte, Brasil. Rev Gaúcha Enferm. 2010; 31(3):475-82.

Uma das primeiras regulamentações para a organização dos serviços de saúde mental dividiu o atendimento em dois grandes grupos: o hospitalar e o ambulatorial. O atendimento hospitalar compreendia a internação e a semi-internação, e o atendimento ambulatorial compreendia o ambulatório propriamente dito, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS).22. Brasil. Portaria n° 224/92: estabelece diretrizes e normas para o atendimento em saúde mental. Diário Oficial da União 1992; 2 set.

Os ambulatórios, pontos de atenção da rede de assistência em saúde mental, e no âmbito da reforma psiquiátrica, deveriam englobar os atendimentos realizados nas unidades básicas de saúde (UBS), centros de saúde e nos ambulatórios especializados inseridos ou não em policlínicas. As atividades desenvolvidas deveriam concentrar-se nos atendimentos individuais e em grupo, nas visitas domiciliares e nas atividades comunitárias, especialmente na área de referência.22. Brasil. Portaria n° 224/92: estabelece diretrizes e normas para o atendimento em saúde mental. Diário Oficial da União 1992; 2 set.

Entretanto, os ambulatórios de saúde mental permanecem reproduzindo, de certo modo, o modelo asilar, porque centravam suas atividades na especialidade e adotavam um modelo assistencial baseado no saber psiquiátrico. Dessa forma, mesmo inseridos em uma política assistencial fundamentada nos princípios da Reforma Psiquiátrica e do Sistema Único de Saúde (SUS), e de se constituírem em referência para inúmeras consultas em psiquiatria e psicologia, esses ambulatórios apresentam alguns problemas, entre os quais a pouca resolutividade e a baixa articulação com a rede de saúde mental, o que favorece o ciclo crise-internação-alta-crise-reinternação e a cronificação dos casos atendidos.33. Severo AK, Dimenstein M. Rede e intersetorialidade na atenção psicossocial: contextualizando papel do ambulatório de saúde mental. Psicol Cienc Prof. 2011; 31(3):640-55.

Em concomitância, a ausência de uma política assistencial que delimite o funcionamento dos ambulatórios, associada à falta de capacitação e atualização dos profissionais; à dificuldade em produzir ações de forma integrada com outros pontos da rede de assistência; de construir portas de saída e de circulação na rede; e de possibilitar às pessoas que sofrem de transtornos mentais novas formas de relação e de sociabilidade na comunidade, fazem com que o papel desses serviços no atual cenário da Reforma Psiquiátrica sejam questionados.33. Severo AK, Dimenstein M. Rede e intersetorialidade na atenção psicossocial: contextualizando papel do ambulatório de saúde mental. Psicol Cienc Prof. 2011; 31(3):640-55.

4. Junior JM, Nóbrega VKM, Miranda FAN. Extinção de um serviço psiquiátrico intermediário e as repercussões na atenção à saúde mental. Cienc Cuid Saude. 2011; 10(3):578-84.

5. Pereira MO, Souza JM, Costa AM, Vargas D, Oliveira MAF, Moura WN. Perfil dos usuários de serviços de saúde mental do município de Lorena - São Paulo. Acta Paul Enferm. 2012; 25(1):48-54.

6. Pereira MO, Oliveira MAF. Análise dos dispositivos de saúde mental em municípios do Vale do Paraíba. Rev Bras Enferm. 2011; 64(2):294-300.
-77. Luzio CA, L'abbate S. A atenção em saúde mental em municípios de pequeno e médio portes: ressonâncias da reforma psiquiátrica. Ciênc Saúde Coletiva. 2009; 14(1):105-16.

Diante desse contexto, conhecer a opinião dos profissionais atuantes no Ambulatório de Saúde Mental sobre o atendimento oferecido às pessoas com transtorno mental é fundamental para a compreensão do papel desses serviços na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Assim, a partir do exposto, delimitou-se como objetivo do estudo identificar as fragilidades do serviço ambulatorial de saúde mental na perspectiva de seus profissionais.

MÉTODO

Estudo de natureza qualitativa, em que se adotou como estratégia metodológica a Avaliação de Quarta Geração. Trata-se de uma proposta alternativa de avaliação, fundamentada no paradigma construtivista e que tem como principais características o fato de ser responsiva, flexível e de adotar a abordagem hermenêutico-dialética em sua condução.88. Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de Quarta Geração. Campinas (SP): Editora da Unicamp; 2011. Assim, é responsiva porque o avaliador é responsável pelo que emerge da avaliação. Além disso, envolve um processo interativo e negociado entre pesquisador e grupos de interesse, ou seja, pessoas que têm algum interesse no desempenho, no produto ou no impacto do objeto da avaliação, por estarem, de alguma maneira, envolvidas ou serem potencialmente afetadas pelo serviço e pelas eventuais consequências do processo avaliativo. Portanto, suas reivindicações, preocupações e questões (RPQ) relacionadas ao objeto em avaliação devem determinar as informações a serem levantadas.88. Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de Quarta Geração. Campinas (SP): Editora da Unicamp; 2011.

O estudo foi realizado no ambulatório de saúde mental de um município do noroeste do Paraná, conhecido como Centro Integrado de Saúde Mental (CISAM).

A rede de assistência em saúde mental desse município é composta por: um hospital psiquiátrico conveniado ao SUS, com 240 leitos e referência para três Regionais de Saúde (11ª, 13ª e 15ª Regionais de Saúde, totalizando 67 municípios): um CISAM (implantado em 1994), um Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas (CAPS-ad) (implantado em 2002); uma Emergência Psiquiátrica Pública (implantada em 2003); um CAPS II (implantado em 2004); um CAPS infantil (implantado em 2012); e três Residências Terapêuticas (duas masculinas e uma feminina, implantadas em 2006, 2009 e 2011).

No CISAM não é realizado atendimento por demanda espontânea. Os encaminhamentos podem ser provenientes da emergência psiquiátrica, das UBSs, hospital psiquiátrico, residência terapêutica e CAPS II. A assistência é programada e consiste em consultas e atendimentos individualizados, nas áreas de psicologia, psiquiatria, enfermagem, farmácia, terapia ocupacional e serviço social, e tem por objetivo dar continuidade ao tratamento hospitalar, realizar avaliações e controles periódicos, estabelecer diagnóstico e plano terapêutico. Neste serviço também são realizadas oficinas terapêuticas, grupos de salas de espera e grupos informativos, atendimento a tabagistas, orientação aos pais, psicoterapia individual e/ou de grupo para crianças, adolescentes e adultos, atendimento e orientação à família quanto à doença, ao tratamento e a sua participação em grupos de ajuda e, ainda, a dispensação de medicação psicotrópica.99. Prefeitura do Município de Maringá. Estado do Paraná. CISAM - Centro Integrado de Saúde Mental [Internet]. [cited 2012 Dec 29]. Availabe from: http://www.maringa.pr.gov.br/cisam/index.php
http://www.maringa.pr.gov.br/cisam/index...

O quadro de funcionários do CISAM é composto por três enfermeiras, sete psicólogas, uma assistente social, dois psiquiatras, um farmacêutico, dois auxiliares de farmácia e quatro de enfermagem e uma diretora, todos contratados por 40 horas semanais, via concurso público. Também atuam no serviço três residentes de psiquiatria, com carga semanal de 20 horas.

Importante ressaltar que, de acordo com a Reforma Psiquiátrica em curso, o CISAM deixará de atender na modalidade de ambulatório e se transformará em CAPS III, com funcionamento nas 24 horas do dia, incluindo feriados e finais de semana para retaguarda clínica em saúde mental. Contudo, ainda não existe previsão para a efetivação dessa mudança.99. Prefeitura do Município de Maringá. Estado do Paraná. CISAM - Centro Integrado de Saúde Mental [Internet]. [cited 2012 Dec 29]. Availabe from: http://www.maringa.pr.gov.br/cisam/index.php
http://www.maringa.pr.gov.br/cisam/index...

Os dados foram coletados nos meses de março e abril de 2013, por meio de observação sobre o funcionamento do serviço e entrevistas semiestruturadas com os integrantes do grupo de interesse, ou seja, os profissionais ali atuantes. Ao todo foram realizadas 80 horas de observação (oito horas por dia durante duas semanas) e entrevistados 12 profissionais.

Todas as atividades desenvolvidas no CISAM constituíram objeto de observação e foram registradas em anotações de campo de forma descritiva. Essas observações possibilitaram identificar características do funcionamento do serviço, facilitando a compreensão das reivindicações, preocupações e questões do grupo de interesse e a escolha do profissional para iniciar o circulo hermenêutico-dialético.

O círculo hermenêutico-dialético é o percurso utilizado para garantir o caráter construtivista e participativo deste tipo de avaliação. É hermenêutico porque tem caráter interpretativo, e dialético porque implica comparação e contraste de diferentes pontos de vista, objetivando alto nível de síntese.88. Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de Quarta Geração. Campinas (SP): Editora da Unicamp; 2011. O objetivo é alcançar o consenso, quando possível; e, quando não, expor e esclarecer as diferentes percepções. Para tanto, além das entrevistas com pessoas indicadas pelos próprios respondentes, a fase de negociação é imprescindível.

Para iniciar o círculo hermenêutico-dialético foi realizada uma entrevista aberta com o primeiro respondente (R1), optando-se pela coordenadora do serviço. Os demais respondentes foram indicados pelos próprios entrevistados. A finalização do círculo ocorreu quando as indicações dos profissionais começaram a se repetir, sendo encerrado com 12 profissionais dos 23 atuantes no serviço.

As questões norteadoras apresentadas inicialmente a todos os entrevistados foram: Fale sobre o atendimento no serviço; O que você aprecia e o que não aprecia no atendimento aos pacientes neste serviço; Na sua opinião, o que pode contribuir para o melhor funcionamento do serviço? Novas perguntas foram sendo incorporadas, conforme o referencial metodológico utilizado, em um processo concomitante de análise e coleta de dados. Assim, R1 foi convidada a apresentar suas impressões pessoais em relação as três questões norteadoras e a analise de sua entrevista permitiu a identificação de alguns aspectos centrais e a formulação da primeira construção (C1) sobre o objeto em avaliação.

As mesmas questões iniciais foram apresentadas a R2, somadas à construção formulada pela entrevista de R1. Como resultado, a entrevista de R2 produziu informações relacionadas não apenas a suas impressões pessoais quanto às questões iniciais, mas também às opiniões sobre a construção de R1.

A análise da segunda entrevista produziu a segunda construção (C2) e esta se mostrou uma construção mais completa e abrangente e, assim, ocorreu até se chegar ao último entrevistado. A partir do segundo entrevistado todos os outros foram convidados a responder as questões iniciais e a opinar a respeito das construções que foram sendo implementadas, partindo-se da análise das entrevistas anteriores de cada participante do estudo.

Finalizado o círculo foi realizada a negociação. Nesta etapa, as informações coletadas ao longo de todas as entrevistas foram organizadas, sintetizadas e apresentadas, de modo que todos os participantes pudessem ter acesso à totalidade do material e, em grupo, decidissem o que poderia ou não permanecer como resultado do estudo. Para tanto, foi previamente agendada uma reunião em horário acordado com a coordenadora do serviço, e todos os participantes do círculo foram convidados a participar, ocasião em que foi apresentado o resultado provisório da análise das entrevistas. As discussões realizadas durante essa reunião também foram registradas e utilizadas como dado da pesquisa.

Os dados foram analisados mediante o Método Comparativo Constante, que permite analisá-los em concomitância à sua coleta. Esse método prevê duas etapas: a identificação das unidades de informação e a categorização. As unidades de informação são sentenças ou parágrafos obtidos no material empírico, registrados de modo compreensível a qualquer leitor que não somente o pesquisador.88. Guba EG, Lincoln YS. Avaliação de Quarta Geração. Campinas (SP): Editora da Unicamp; 2011.

Realizada a identificação das unidades de informação, as de mesmo conteúdo foram unificadas em categorias provisórias, buscando-se estabelecer uma consistência interna para, posteriormente, a partir da negociação, construir as categorias definitivas.8 Assim, ao término da negociação, as questões surgidas foram reagrupadas, proporcionando a identificação de dois grandes núcleos temáticos: Fragilidades organizacionais da rede; e Fragilidades relacionadas aos recursos humanos da rede de saúde mental.

O desenvolvimento do estudo seguiu os trâmites determinados pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, e seu projeto foi aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CAAE 10277812.6.0000.0104). Para manter o anonimato, os trabalhadores foram identificados com a letra "P" de participante, seguida de um número sequencial correspondente à ordem de realização das entrevistas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os dados foram agrupados em duas categorias e demonstram as fragilidades referentes à forma de organização do atendimento no ambulatório e demais serviços e as dificuldades dos profissionais em prestar assistência na área de saúde mental.

Fragilidades organizacionais da rede de saúde mental

Entre as fragilidades organizacionais foram citadas a forma de acesso ao serviço ambulatorial, que é baseado nos encaminhamentos das UBSs. Essa forma de atendimento não tem dado conta da demanda, o que gera uma longa fila de espera, pois existe apenas um ambulatório no município que disponibiliza atendimento psiquiátrico: de início o paciente vem encaminhado pela UBS, onde ele passa por uma fila de espera no posto, dai quando surge a vaga a gente liga para os postos e eles marcam a consulta [...] a fila de espera demora mais de três meses [...] (P3).

Uma das opções que o paciente tem para agilizar o processo e adiantar sua consulta é aguardar uma sobra de vaga no ambulatório.

[...] tem pacientes esperando meses [...] daí bem no dia, ele esquece de vir, esta vaga vai ficar em aberto [...] o médico esta aí para atender, e esse paciente que faltou vai ser colocado lá para trás de novo. [...] Então, tem aqueles que vêm e ficam esperando, sabendo que vai esperar e que vai correr o risco de voltar para casa sem a consulta [...] (P4).

No município em estudo, a UBS é uma das portas de entrada mais procurada pelos usuários para atendimento em saúde mental. Dependendo da abordagem nesse nível de assistência, o paciente pode receber um encaminhamento para o ambulatório ou já ter seu problema resolvido. Assim, o atendimento com psiquiatra depende dos critérios de cada profissional que atende na UBS e de sua experiência em saúde mental, interferindo diretamente no tamanho da fila de espera.

Os achados sobre essa problemática confirmam os de um estudo realizado em Santa Maria-RS, com coordenadores de serviços de saúde, constatando que os serviços substitutivos (CAPS e ambulatório municipal) encontram-se estrangulados em decorrência de um número elevado de encaminhamentos. Dessa forma, as evidências ratificam que a assistência à saúde, nas especialidades de média e alta complexidade e apoio diagnóstico, é, em geral, local de estrangulamento do sistema de saúde.1010. Paes LG, Schimith MD, Barbosa TM, Righi LB. Rede de atenção em saúde mental na perspectiva dos coordenadores de serviços de saúde. Trab Educ Saúde. 2013; 11(2):395-409.

Devido à alta procura pelos serviços especializados em saúde mental, e a consequente fila de espera, essa demanda acaba retornando à UBS que se constitui em único meio de acesso disponível. Assim, forma-se a demanda reprimida que retorna em busca de atendimento. Essa é uma dificuldade enfrentada pelos profissionais, mas principalmente pelos usuários, que, não tendo sua necessidade atendida, transitam pelo sistema. Assim, há uma sobrecarga dos serviços em decorrência da ausência de resolutividade que, por sua vez, potencializa o sofrimento dos usuários e familiares.1010. Paes LG, Schimith MD, Barbosa TM, Righi LB. Rede de atenção em saúde mental na perspectiva dos coordenadores de serviços de saúde. Trab Educ Saúde. 2013; 11(2):395-409.

Em 2010, foram publicadas as diretrizes para a estruturação das Redes de Atenção à Saúde, como estratégia para superar a fragmentação da atenção e da gestão nas regiões de saúde. Nelas, estão contidas algumas ferramentas que permitem integrar verticalmente os pontos de atenção e conformar as RAS. Uma dessas ferramentas é a Linha de Cuidado (LC), que se constitui em uma forma de articulação de recursos e das práticas de produção de saúde, visando a coordenação ao longo do contínuo assistencial, por meio da pactuação e da conectividade de papéis e de tarefas dos diferentes pontos de atenção.1111. Brasil. Diretrizes para Organização das Redes de Atenção à Saúde do SUS. Grupo Técnico da Comissão Intergestores Tripartite. Versão/dezembro 2010 [cited 2013 Nov 15]. Availabe from: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/2b_221210.pdf
http://portal.saude.gov.br/portal/arquiv...

A implantação da linha de cuidado deve partir das unidades básicas que têm a responsabilidade de realizar a coordenação do cuidado e o ordenamento da rede, enfocando vários aspectos: garantia dos recursos materiais e humanos, integração e corresponsabilização das unidades de saúde, interação entre equipes, processos de educação permanente, gestão de compromissos pactuados, entre outros.1111. Brasil. Diretrizes para Organização das Redes de Atenção à Saúde do SUS. Grupo Técnico da Comissão Intergestores Tripartite. Versão/dezembro 2010 [cited 2013 Nov 15]. Availabe from: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/2b_221210.pdf
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O isolamento dos serviços de saúde mental foi citado pelos profissionais também como fragilidade, seja pela ausência de comunicação com os demais dispositivos da rede, seja porque seus profissionais participam em menor quantidade dos cursos oferecidos pela Secretaria de Saúde ou simplesmente por que têm preconceito em trabalhar neste tipo de serviço. Eu e a outra colega do CAPS, é como se a gente vivesse num serviço isolado do resto da rede [...] ficamos isoladas! A mesma queixa tem a menina do CAPS infantil e as duas do hospital municipal (P4).

Foi assim, eu era do Programa Saúde da Família. Aí me mandaram para o CAPS. Eu não gosto, cheguei lá, parecia um gatinho acuado, porque eu tinha medo de paciente psiquiátrico (P8).

É bem isolado, mesmo, do resto da rede, tanto que, quando eu estava na rede, eu não tinha a menor ideia de como funcionava o ambulatório, muito menos como funcionava o CAPS e, às vezes, a gente chegava até a não encaminhar, porque achava que ia demorar muito (P11).

Uma das possibilidades para superar a desarticulação da rede e tentar diminuir o preconceito que envolve esses serviços é a construção de uma rede de saúde mental extra-hospitalar forte, consistente, corresponsável pelo desenvolvimento de ações de saúde em conjunto com a comunidade, capaz de ampliar o potencial das práticas acolhedoras "no momento da crise/surto" nos serviços extra-hospitalares; de promover capacitações, apoio e supervisão por meio do apoio matricial e investir na formação dos trabalhadores da saúde tanto acadêmica quanto de educação permanente.1212. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad Saúde Pública. 2009; 25(9):2033-42. Essa articulação horizontalizada viabiliza a assistência aos usuários de maneira mais integrada, contribuindo para a (des)construção da segregação e do confinamento das pessoas com transtornos mentais.1313. Quindere PHD, Jorge MSB. (Des)construção do modelo assistencial em saúde mental na composição das práticas e dos serviços. Saude soc. 2010; 19(3):569-83.

O número elevado de atendimentos (em média 3.000 atendimentos por mês, envolvendo a dispensação de medicação, consulta psicológica e psiquiátrica), também foi referido pelos entrevistados, tendo sido mencionado que o fato de existir apenas o ambulatório para atender toda a demanda do município na área de saúde mental compromete a qualidade dos atendimentos.

O ambulatório não é diferente de outros setores, a demanda é superior à capacidade do serviço ofertado, gerando alguns gargalos no fluxo do atendimento. Muito já foi feito, contudo mais ainda pode e deve ser feito (P10).

Eu acho que o volume é uma falha muito séria [...] você não pode fazer um atendimento relâmpago, porque o paciente é muito complexo (P4).

A demanda excessiva existe porque as pessoas que procuram por atendimento almejam uma solução imediata para uma condição crônica que já deveria ter sido detectada e até mesmo, tratada ainda na atenção primária de saúde. No entanto, nota-se que esse nível de assistência tem se apresentado como uma porta de entrada muito incipiente, ou seja, marcada por baixa resolutividade, especialmente em saúde mental.

Por essa razão, o usuário que procura atendimento na atenção primária, geralmente é encaminhado para atendimento em outros pontos da rede (CAPS e ambulatório), como se esse nível de assistência não pudesse responsabilizar-se por transtornos relativos à saúde mental, desconsiderando a pessoa que existe por trás da doença.11

Assim, apesar da marcante demanda de atendimentos em saúde mental na atenção primária, considerando-se que a Estratégia Saúde da Família (ESF) é o primeiro contato que as pessoas com transtorno mental têm disponível, suas equipes expressam dificuldades na identificação e acompanhamento dessas pessoas na comunidade.1212. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad Saúde Pública. 2009; 25(9):2033-42.

Ademais, os indicadores disponíveis nos sistemas de informação municipal, regional e nacional dão conta somente de informações sobre internações em hospitais psiquiátricos ou de internações por transtorno mental em hospitais gerais e de atendimento em CAPS, ou seja, não existe indicador que dê visibilidade à demanda ou aos atendimentos realizados na atenção primária.1212. Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad Saúde Pública. 2009; 25(9):2033-42. Nesse sentido, a existência de um indicador neste nível de atenção poderia contribuir para a detecção e acompanhamento dos usuários em seu próprio território.

A estrutura física do serviço também foi lembrada pelos entrevistados como um grande empecilho para atender com qualidade e conforto os pacientes, além de ser um entrave para o desenvolvimento de ações preconizadas pelo Ministério da Saúde, entre as quais grupos educativos, salas de espera, atendimentos para familiares e outras atividades que necessitam de disponibilidade de espaço físico.

Eu gostaria tanto de desenvolver atividades audiovisuais, para os pacientes, eu tenho material, mas não tenho recursos, por exemplo, eu quero passar uma palestra, aí não dá porque o espaço aqui, eu vou falar ali, atrapalha a recepção (P4).

A ausência de área externa e espaço interno do ambulatório em questão, visando desenvolver atividades grupais, também aparece em outro estudo que relata situação semelhante em um CAPS, antigo ambulatório que funcionava em um edifício grande, com muitos consultórios para atendimentos individuais e poucas salas adequadas para atividades desenvolvidas em grupo.1414. Nascimento AF, Galvanese ATC. Avaliação da estrutura dos centros de atenção psicossocial do município de São Paulo, SP. Rev Saúde Pública. 2009; 43(Supl1):8-15.

Um aspecto importante, envolvendo a estrutura física, relaciona-se à dispensação de medicamentos psicotrópicos, pois eles são dispensados apenas no CISAM e no CAPSad, de modo que é muito grande a demanda de pacientes e familiares que comparecem ao serviço somente para essa atividade.

Assim, o fato de a farmácia estar localizada próxima à recepção dificulta o trânsito dos pacientes e familiares que ficam aglomerados na sala de espera aguardando tanto a dispensação de medicação quanto as consultas médicas, psicológicas, e também atendimentos de enfermagem e com a assistente social.

A farmácia perto da recepção tumultua muito, porque eu acho que não deveria juntar as duas coisas, acho que deveria ser separado, atendimento psiquiátrico, psicológico e farmácia em outro lugar, porque muitas vezes o pessoal vem ali e não sabe que está tendo atendimento, e conversa alto e não está nem aí (P3).

Um grande e enorme equívoco foi aproveitar a farmácia do ambulatório para atender a demanda das UBS, Hospital Municipal, Hospital Psiquiátrico, asilos, albergues, lares, Casa lar, dentre outras inúmeras instituições (P10).

A atenção aos pacientes em ambulatório deve incluir o atendimento individual (consulta, psicoterapia, dentre outros); atendimento grupal (grupo operativo, terapêutico, atividades socioterápicas, grupos de orientação, atividades de sala de espera, atividades educativas em saúde); visitas domiciliares por profissional de nível médio ou superior e atividades comunitárias, especialmente na área de referência do serviço de saúde.22. Brasil. Portaria n° 224/92: estabelece diretrizes e normas para o atendimento em saúde mental. Diário Oficial da União 1992; 2 set.

Destarte, os aspectos ressaltados durante a sessão de negociação com os profissionais estão relacionados principalmente à estrutura organizacional do ambulatório que deve ser melhorada, por exemplo, a dificuldade dos usuários de acesso ao serviço, a deficiência na estrutura física e a fragmentação dos serviços de saúde mental.

Neste sentido, o que se observa é que, de maneira geral, a organização entre os serviços de saúde mental seguem uma concepção de cuidado fragmentado. Para cada estágio em que se encontra o usuário há um serviço, e cada um lida com um objeto próprio. Há, portanto, uma política que não prevê articulações efetivas e nem estabelecimento de parcerias.1515. Dobies DV, Fioroni LN. A assistência em saúde mental no município de São Carlos/SP: considerações sobre a história e a atualidade. Interface, Comunic Saúde Educ. 2010; 14(33):285-99.

Fragilidades relacionadas aos recursos humanos da rede de saúde mental

O desconhecimento do funcionamento dos dispositivos que compõem a rede de saúde mental por parte dos profissionais do ambulatório e por outros profissionais que compõem a rede de saúde do município foi citado como um aspecto preocupante para a continuidade do tratamento do paciente com transtorno mental.

Acho que na unidade, eles não procuram se informar como funciona o ambulatório [...] encaminham assim sem saber [...] às vezes o paciente vem aqui porque eles falam 'ah, psiquiatria, vai lá que eles resolvem' (P3).

Observou-se, também, que alguns profissionais do ambulatório desconhecem as atividades que são desenvolvidas dentro do próprio serviço, por exemplo, o funcionamento dos grupos de artesanato e os outros projetos existentes.

[...] Não sei como funciona esse tipo de sistema [...] não posso te falar porque não sei como funciona (P2).

Eu conheço esses projetos, assim, quando a gente vai a algum evento, alguma coisa eles estão lá montando o trabalho deles [...] mas não conheço o local, nem a atividade, esses dias liguei lá, porque estava fazendo a entrevista de um paciente e percebi que ele precisava de um atendimento (P5).

Essa falta de divulgação com certeza é um ponto negativo porque teriam pacientes que poderiam se beneficiar disso. Eu não faço a menor ideia como funciona e como encaminhar, já ouvi falar alguma coisa, mas não sei muito (P11).

A deficiência na comunicação entre os profissionais do ambulatório foi destacada em alguns depoimentos, tendo sido ressaltada a falta de comunicação interna e a ausência da reunião geral no serviço, o que poderia favorecer a comunicação e a troca de informações.

Sinto falta de me comunicar mais com a psicologia [...] não conheço ainda os psicólogos, nem por nome, não fomos apresentados [profissional começou a atender no ambulatório no fim do ano de 2012] (P11).

Uma coisa que o serviço público teria que mudar é essa situação de que precisa atender, precisa atender [...] então parar o serviço uma manhã, juntar todo mundo, ai passar os informativos [...] É ouvir todo mundo (P9).

A falta de interação com outros profissionais de fato é uma realidade, o serviço como um todo não fala a mesma língua, isto é, o usuário recebe orientações conflitantes por algumas vezes, principalmente dos profissionais das UBS, Hospital Municipal (P10).

A falta de comunicação entre os trabalhadores da rede de saúde mental pôde ser observada em estudo realizado em São Carlos-SP, em que os autores constataram que os profissionais pouco se conhecem, e alguns desconhecem, inclusive, os serviços para onde encaminham os usuários. Essa desarticulação produz prejuízos, entre os quais a demora para que o usuário egresso do CAPS continue o seu tratamento na atenção primária e a desconfiguração do próprio CAPS, o qual mantém usuários com transtorno leve, moderado ou que já não têm indicação para cuidado intensivo por não conseguirem sua continuidade em outros dispositivos.1515. Dobies DV, Fioroni LN. A assistência em saúde mental no município de São Carlos/SP: considerações sobre a história e a atualidade. Interface, Comunic Saúde Educ. 2010; 14(33):285-99.

Em estudo avaliativo com familiares, realizado em Porto Alegre-RS, foi demonstrado que as famílias gostariam que os CAPSs fossem mais divulgados junto à sociedade, para terem maior visibilidade e inserção na vida comunitária. Além disso, elas reconhecem que essa modalidade de serviço substitutivo é uma inovação presente em todo o país, que visa desinstitucionalizar os sujeitos que anteriormente eram mantidos em instituições hospitalares. Esse movimento de aproximação e inclusão do CAPS na comunidade é fundamental para proporcionar aos usuários a sua reinserção social, por meio de atividades desportivas, de artesanato, de cultura, de lazer, dentre outras.1616. Camatta MW, Nasi C, Adamoli NA, Kantorski LP, Schneider JF. Avaliação de um centro de atenção psicossocial: o olhar da família. Ciênc Saúde Coletiva. 2011; 16(11):4405-14.

A falta de reuniões no serviço, também relatada pelos entrevistados, é uma importante lacuna no que se refere à comunicação, constituindo-se em influente fator para a (des)organização do serviço. Em estudo realizado em 21 CAPSs da cidade de São Paulo-SP, as atividades organizativas (reuniões de equipe, de matriciamento, do conselho gestor e a participação em fóruns de saúde mental, por exemplo) não faziam parte da grade de atividades da maioria dos serviços, levando a crer que elas não eram reconhecidas como trabalho ou que não recebiam a importância necessária.17

Cabe salientar que durante a negociação houve consenso entre os profissionais do ambulatório sobre a importância de se retomar as reuniões gerais para organizar melhor o serviço e discutir as formas de tratamento dos pacientes por toda a equipe. Ainda, de acordo com os participantes, os próprios profissionais do ambulatório desconhecem as atividades que são realizadas pelos outros trabalhadores no serviço e em outros pontos da rede de assistência. Deste modo, para corrigir esta falha, além das reuniões gerais da equipe, é imprescindível haver aprimoramento na comunicação interna do serviço e também com os diferentes pontos de atenção à pessoa em sofrimento psíquico. Também se faz necessário maior divulgação sobre o funcionamento ambulatorial, a fim evitar encaminhamentos incorretos ou desnecessários.

A rotatividade dos profissionais, especialmente a dos médicos, foi citada como um fator desestabilizador para o serviço, devido à dificuldade em estabelecer vínculos.

[...] leva o paciente a não ter ligação nenhuma com o médico, muitas vezes atendo o paciente e ele fala 'o senhor vai ficar quanto tempo aqui? porque quando aparece um médico ele fica seis meses e sai daqui' (P2).

Eu acho que a rotatividade mais prejudicial é dos médicos, que não ficam muito tempo aqui. Por ser pelo Sistema Único de Saúde, eles acham que o salário é baixo, que tem muito aborrecimento, é um lugar que não é muito apropriado (P3).

A dificuldade em manter o profissional médico parece fazer parte do próprio sistema de saúde.1818. Campos CVA, Malik AM. Satisfação no trabalho e rotatividade dos médicos do Programa de Saúde da Família. Rev Adm Pública. 2008; 42(2):347-68. Em São Paulo-SP, por exemplo, em entrevistas realizadas com médicos da ESF, os autores constataram que os principais fatores que levavam à rotatividade envolviam a forma de contratação, perfil do médico e as condições de trabalho. Também foram encontradas correlações entre rotatividade e capacitação para o trabalho, distância das unidades de saúde e disponibilidade de materiais para a realização do trabalho.18 Sobre a rotatividade médica nas equipes da ESF, os participantes concluíram que esse problema constitui-se em uma falha do próprio sistema de saúde, e para ser resolvido precisa ser discutido junto à Secretaria de Saúde do Município.

Destarte, a rotatividade de pessoal acarreta dificuldade no estabelecimento de vínculo, considerando-se que a interação estabelecida entre usuário e a equipe de saúde é apontado como ponto positivo na construção da rede de atenção em saúde mental.10

Ainda em relação à rotatividade, cabe salientar que, nos serviços de saúde mental, ela não se limita aos psiquiatras. No município de São Carlos-SP, por exemplo, em um período de seis meses, várias mudanças ocorreram: saída da psicóloga e da coordenadora do Centro, contratação de nova psicóloga, saída do coordenador de saúde mental.1515. Dobies DV, Fioroni LN. A assistência em saúde mental no município de São Carlos/SP: considerações sobre a história e a atualidade. Interface, Comunic Saúde Educ. 2010; 14(33):285-99.

Na reunião de negociação do presente estudo, os participantes concordaram que é importante que os gestores reavaliem a política de contratação, de modo a incentivar o trabalhador a fazer carreira no serviço público, e acreditam que, dessa forma, é possível diminuir a rotatividade tão nociva ao paciente.

A ausência de capacitação dos profissionais e de educação permanente foi ressaltada pela maioria dos entrevistados que, além de solicitarem treinamentos e capacitações sobre saúde mental para o próprio serviço ambulatorial, também questionaram a ausência desses cursos e capacitações para as equipes das UBSs.

Eu acho que falta muita orientação, a gente cai de pára quedas, a gente que lê um pouco mais acaba tendo um pouquinho de conhecimento, mas se não correr atrás não vem até a gente (P6).

Mas quem tem que ter um treinamento não são os nossos funcionários que já sabem muito que bem, quem tem que ter esse treinamento é o PSF (P7).

Agora aquele profissional que nunca teve experiência e às vezes nem quer ter, ele tende a rejeitar, exatamente esse o termo, rejeita o paciente, [...]. O que você vai fazer com isso? Treinamento (P12).

A dificuldade de ofertar atividades que capacitem o profissional pode estar relacionada à falta de iniciativas dentro da perspectiva do SUS e à deficiência no preparo dos futuros profissionais nas instituições de nível superior.1919. Munari DB, Melo TS, Pagotto V, Rocha BS, Soares CB, Medeiros M. saúde mental no contexto da atenção básica: potencialidades, limitações, desafios do Programa Saúde da Família. Rev. Eletr Enf [Internet]. 2008 [cited 2013 Nov 15]; 10(3):784-95. Available from: http://www.fen.ufg.br/revista/v10/n3/v10n3a24.htm
http://www.fen.ufg.br/revista/v10/n3/v10...

O déficit de profissionais especializados é o ponto crítico dessa rede, o que gera falta de vagas para os usuários nos serviços de saúde e, em consequência, a lista de espera, a qual implica demora no atendimento e constitui um dos principais problemas para a prática da integralidade.1010. Paes LG, Schimith MD, Barbosa TM, Righi LB. Rede de atenção em saúde mental na perspectiva dos coordenadores de serviços de saúde. Trab Educ Saúde. 2013; 11(2):395-409.

Ao analisar a aplicação dos termos da Portaria n° 224, de 1992,22. Brasil. Portaria n° 224/92: estabelece diretrizes e normas para o atendimento em saúde mental. Diário Oficial da União 1992; 2 set. constata-se que vários profissionais passaram a participar do atendimento em saúde mental (psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais), mas o referido documento não pontua como esses técnicos foram capacitados para o desempenho de suas funções junto às pessoas com transtorno mental.

O que se observa é que a implantação das políticas de especialização e capacitação em saúde mental vem sendo efetivada, em geral, por meio de parcerias que nem sempre têm funcionado conforme o esperado, não resultando em maior integração entre a atenção psicossocial e a ESF. Essa quase sempre precária articulação provoca consideráveis atrasos na implantação das políticas de saúde mental e cria dissociação na ação dos dois serviços.2020. Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. A capacitação e a gestão de equipes do PSF para a atenção psicossocial: um estudo de caso. Cienc Cuid Saude. 2008; 7(3):376-84.

Portanto, crê-se que se as dificuldades existentes na relação com portadores de sofrimento psíquico fossem diminuídas, e a aproximação/pactuação com várias parcerias fossem articuladas, restariam somente problemas de responsabilidade individual dos pacientes, pois a maior parte dos problemas atribuídos aos pacientes resulta das limitações ESF inserida na rede de atenção à saúde no município.2121. Amarante AL, Lepre AS, Gomes JLD, Pereira AV, Dutra VFD. As estratégias dos enfermeiros para o cuidado em saúde mental no programa saúde da família. Texto Contexto Enferm. 2011; 20(1):85-93.

A educação permanente em serviço deveria ser estimulada pelo SUS, isto porque a formação dos profissionais de saúde configura-se como um desafio, considerando-se que a maioria dos coordenadores de serviços continua sendo formada distante do debate e da construção de políticas de saúde.1010. Paes LG, Schimith MD, Barbosa TM, Righi LB. Rede de atenção em saúde mental na perspectiva dos coordenadores de serviços de saúde. Trab Educ Saúde. 2013; 11(2):395-409. Aproximar a aprendizagem dos espaços de trabalho é uma necessidade sentida pelos próprios profissionais no dia a dia. Assim, seria essencial o relacionamento entre os serviços, intensificando a articulação com a atenção primária, a atenção hospitalar e os serviços substitutivos, como alternativa ao estrangulamento em que esses serviços se encontram, além de permitir continuidade da assistência ao usuário.1010. Paes LG, Schimith MD, Barbosa TM, Righi LB. Rede de atenção em saúde mental na perspectiva dos coordenadores de serviços de saúde. Trab Educ Saúde. 2013; 11(2):395-409.

Os entrevistados também ressaltaram o descontentamento profissional na área de saúde mental.

Existe uma demanda muito grande na área, não tem profissional interessado por diversos fatores: por recursos seja ele físico, seja ele estrutural, seja ele um incentivo para pessoa trabalhar em serviço público [...] não se consegue contratar, e não consegue manter o profissional (P2).

Passou lá no concurso você vai trabalhar lá no CAPS infantil, 'ai meu Deus, eu não gosto de atender criança!' 'Ah, mas é lá o teu lugar' (P9).

Quando prestei um concurso, me foi exigido o título de especialista agora eu ganho o mesmo de qualquer um que não tem título de especialista, isso só serve para rebaixar (P12).

Os profissionais sugeriram a valorização do profissional por duas formas: a primeira, por meio de uma mudança na forma de contratação, valorizando a afinidade do profissional com a área; e, a segunda, por meio da efetivação do plano de carreira como forma de incentivo ao trabalho. Para o estímulo à implantação de ações de saúde mental deve-se priorizar a contratação de profissionais especialistas na área.2222. Onocko-Campos RT, Gama CA, Ferrer AL, Santos DVD, Stefanello S, Trapé TL, Porto K. Saúde mental na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em uma grande cidade brasileira. Ciênc Saúde Coletiva. 2011; 16(12):4643-52.

Portanto, não apenas em saúde mental, mas em outras áreas, há a necessidade de rever a forma de contratação dos profissionais; melhorar a remuneração e valorização do trabalhador com a implantação do Plano de Cargos, Carreira e Salários; e investir na organização dos serviços, na infraestrutura, na educação permanente e atualização dos profissionais, visando a melhoria da qualidade dos serviços prestados ao usuário e a satisfação do trabalhador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da sessão de negociação com os profissionais foi possível identificar importantes pontos de fragilidade relacionados à estrutura organizacional do ambulatório, ilustradas pela dificuldade de acesso pelos usuários, deficiência na estrutura física e fragmentação dos serviços de saúde mental. Além disso, fragilidades relacionadas aos recursos humanos também foram citadas como, por exemplo, o desconhecimento dos profissionais do ambulatório e dos demais sobre as atividades realizadas pelo serviço.

Outros pontos destacados estavam relacionados à falta de capacitações em saúde mental, à forma de contratação dos profissionais, à ausência de um plano de carreira e à rotatividade dos profissionais, principalmente dos médicos, no âmbito da atenção básica, o que tem dificultado um trabalho conjunto entre os diferentes pontos de atenção em saúde mental no município.

Em virtude do exposto, embora os ambulatórios especializados não façam parte da rede de atenção, de acordo com o preconizado pela Portaria que institui a Rede Psicossocial no âmbito do SUS, no cenário atual do município em estudo, ele ainda constitui um serviço importante dentro desta rede de assistência, por ser referência para todos os atendimentos de psiquiatria no município. Porém, devido as inúmeras fragilidades apontadas pelos próprios profissionais que nele atuam, sua função precisa ser repensada. Salienta-se que, de acordo com os profissionais, além das dificuldades do serviço ambulatorial, existem fragilidades em toda a rede de saúde mental, principalmente na integração entre os diferentes níveis de serviços.

Ressaltamos que este estudo teve como limitação o fato de ser realizado com uma população restrita em um serviço específico, sendo necessário outros estudos que analisem o funcionamento e a efetividade dos ambulatórios, de modo a tornar possível a construção de uma rede articulada e integrada de assistência e que esta seja acessível a todos, que dela necessitam.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2014
  • Aceito
    11 Fev 2015
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