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O DISCURSO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NA VOZ DAS MULHERES E DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE

RESUMO

Objetivo:

analisar os discursos de mulheres e profissionais de saúde sobre a assistência ao parto, considerando as situações vivenciadas e as interações construídas entre eles durante o trabalho de parto e parto.

Método:

trata-se de um estudo interpretativo, com abordagem qualitativa. Utilizou-se a Análise de Discurso como método de pesquisa. Os cenários de investigação foram sete maternidades, pertencentes à rede pública da Região Centro-Oeste de Minas Gerais. Foram realizadas entrevistas com 36 parturientes, dez enfermeiros obstetras e 14 médicos obstetras. Os dados coletados foram submetidos à análise de discurso.

Resultados:

os dados foram organizados em três categorias: 1) A violência obstétrica presenciada no discurso da enfermeira obstetra: que discute que mesmo reconhecendo a presença desta, falam da dificuldade de garantir os direitos das parturientes na cena do parto; 2) Hoje tudo é violência obstétrica: mostra a negação da existência desse fenômeno na relação profissional-paciente; 3) Aqui a gente não tem voz: há presença da violência obstétrica, porém há certo consentimento por parte das mulheres que, na presença do nascimento, esquecem a forma da assistência recebida.

Conclusão:

o tratamento hostil constitui um dos obstáculos à humanização da assistência ao parto, interferindo na escolha da via de parto, sendo necessário rever o conceito de violência obstétrica, considerando todas as suas especificidades e nuances.

DESCRITORES:
Tocologia; Saúde da mulher; Violência contra a mulher; Humanização do parto; Discurso; Pesquisa qualitativa; Enfermagem obstétrica; Nascimento.

ABSTRACT

Objective:

to analyze the discourses of women and health professionals regarding care during childbirth, considering the situations experienced and the interactions between them during labor and delivery.

Method:

this is an interpretative study with a qualitative approach. Discourse Analysis was used as the research method. The research scenarios were seven maternity hospitals, belonging to the public network of the Central-West region of Minas Gerais. Interviews were conducted with 36 laboring mothers, 10 midwives and 14 obstetricians. The collected data were submitted to discourse analysis.

Results:

the data were organized into three categories: 1) Witnessed obstetric violence described in the discourse of the midwife: which discusses that even acknowledging the presence of this, they talk of the difficulty of guaranteeing the rights of the mother in labor in the scenario of childbirth; 2) Today everything is obstetric violence: it shows the denial of the existence of this phenomenon in the professional-patient relationship; 3) Here we have no voice: obstetric violence is present, but there is a certain consent the part of women who, in the presence of the birth, forget the way they received assistance.

Conclusion:

hostile treatment is one of the obstacles of the humanization of childbirth care, interfering with the choice of delivery method, and it is necessary to review the concept of obstetric violence, considering all its specifics and nuances.

DESCRIPTORS:
Midwifrey; Women’s health; Violence against women; Humanizing delivery; Discourses; Qualitative research; Birth.

RESUMEN

Objetivo:

analizar los discursos de mujeres y profesionales de salud sobre la asistencia al parto, considerando las situaciones vividas y las interacciones construidas entre ellos durante el trabajo de parto y parto.

Método:

investigación cualitativa, del tipo interpretativo. Se utilizó del análisis del discurso como método de investigación. Los escenarios de investigación fueron siete maternidades, pertenecientes a la red pública de la región Centro-oeste de Minas Gerais. Fueron realizadas 36 entrevistas con mujeres parturientas, diez enfermeros obstetras y 14 médicos obstetras. Los datos fueron sometidos a análisis de discurso.

Resultados:

los datos fueran organizados en tres categorías: 1) la violencia obstétrica presenciada en el discurso de la enfermera obstetra: que discute que aunque reconozca la presencia de esta, habla de la dificultad de garantizar los derechos de las parturientas en la escena del parto; 2) Hoy todo es violencia obstétrica: muestra la negación de la existencia de este fenómeno en la relación profesional-paciente; 3) Aquí uno no tiene voz: hay presencia de la violencia obstétrica, sin embargo, hay cierto consentimiento por parte de las mujeres que, en la presencia del nacimiento, olvidan la forma de asistencia recibida.

Conclusión:

el tratamiento hostil constituye uno de los obstáculos a la humanidad de la asistencia al parto, interfiriendo en la elección de la vía del parto, siendo necesario rever el concepto de violencia obstétrica, considerando todas sus especificaciones.

DESCRIPTORES:
Tocologia; Salud de la mujer; Violencia contra la mujer; Parto humanizado; Habla; Investigación cualitativa; Enfermería obstétrica; Parto.

INTRODUÇÃO

A cena do parto, até o início do século passado, era essencialmente feminina. Assistência à mulher e ao recém-nascido era exercida pelas mãos experientes das parteiras, na privacidade do espaço domiciliar e na presença de pessoas conhecidas e de confiança da parturiente. Nos anos quarenta, a partir da Segunda Guerra Mundial, cresceu a tendência à institucionalização do parto e, no final do século, 90% dos partos passaram a ser realizados em hospitais.11 Rattner D. Humanização na atenção a nascimentos e partos: breve referencial teórico. Interface - Comunic, Saude, Educ [Internet]. 2009 [cited 2015 Jan 22];13(supl 1):595-602. Available from: http://www.scielo.br/pdf/icse/v13s1/a11v13s1.pdf
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A realização do parto no ambiente hospitalar, associada à disponibilidade tecnológica no cuidado à saúde, contribuiu para a organização da assistência como uma linha de produção, acentuando a medicalização do parto, cuja capacidade de escolha passa a ser de responsabilidade exclusiva do médico, a despeito do desejo das mulheres, que perdem a sua privacidade e autonomia.²

Este fenômeno também é observado em outros países, como na Espanha, onde um em cada quatro partos (24,9%) realiza-se por meio de cesariana.33 Padilla J. Las Cesáreas em España: um problema em feminino plural. El Diario [Internet]. 2014 Mar 14; Zona Crítica [cited 2015 Jan 25]. Available from: http://www.eldiario.es/zonacritica/cesareas-Espana-problema-feminino-plural_6_238736174.html Em um estudo italiano, na Provincia Reggio Emilia, observou-se que as mulheres que tiveram seus partos acompanhados em centros privados, foram submetidas a um número maior de medicalização na condução do parto, o que não implicou em melhores resultados perinatais.44 Bonvicini L, Candela S, Evangelista A, Bertani D, Casoli M, Lusvardi A, et al. Public and private pregnancy care in Reggio Emilia Province: na observational study on appropriateness of care and delivery outcomes. BMC Pregnancy and Childbirth [Internet]. 2014 Feb [cited 2015 Nov 12]; 14(72):1-12. Available from: http://www.biomedcentral.com/1471-2393/14/72
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Uma pesquisa em maternidades sul-africanas revelou que a assistência desumana e exploradora é mais prevalente em maternidades públicas, de países em desenvolvimento.55 Kruger L M, Schoombee C. The other side of caring: abuse in a South African maternity ward. Journal of Reproductive and Infant Psychology. 2010 Feb; 28(1):84-101.

No Brasil, vive-se hoje, o que se pode denominar de paradoxo perinatal: ao mesmo tempo em que há melhoras significativas na ampliação do acesso das mulheres aos serviços de saúde e à disponibilização de tecnologias para diagnóstico, há uma intensa medicalização do parto e do nascimento, com a manutenção de taxas elevadas de morbimortalidade materna e perinatal. Isto sinaliza uma baixa qualidade da atenção ao pré-natal e ao parto. A taxa de 53,7% de cesarianas no Brasil é um dos exemplos mais enfáticos desta realidade.6

Reduzir o número de cesáreas e de outras intervenções desnecessárias na assistência ao parto é uma tarefa complexa e que está além do espectro da saúde. Envolve questões de igualdade de gênero, de acesso à renda e à educação.

Ao inserir nesse contexto, a partir da década de noventa, intensificam-se vários movimentos contrários à medicalização da gravidez, liderados por mulheres e ativistas. Cresceu o número de blogs e Organizações Não Governamentais em defesa do parto normal e das casas de parto. O Ministério da Saúde intensificou as ações, na tentativa de rediscutir este modelo de assistência e garantir o acesso às práticas de saúde, baseadas em evidências científicas e no reconhecimento da autonomia das gestantes, em todo o processo gravídico/puerperal.77 Leão MRC, Riesco MLG, Schneck CA Ângelo M. Reflexões sobre o excesso de cesarianas no Brasil e a autonomia das mulheres. Ciênc saúde coletiva [Internet]. 2013 Aug [cited 2015 Dec14]; 18(8):2395-400. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csc/v18n8/24.pdf
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Entretanto, apesar de todo esse movimento, observa-se que muitos obstáculos dificultam os avanços na assistência ao parto, como: a manutenção da medicalização do parto, o uso abusivo de tecnologias, o financiamento insuficiente, a deficiente regulação do sistema, a fragmentação das ações e dos serviços de saúde, a permanência de taxas elevadas de morbimortalidades materna e perinatal e a indiferença à presença de tratamentos hostis contra as mulheres, em hospitais públicos e privados de todo o país.88 Victoro CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Saúde de mães e crianças no Brasil: progressos e desafios. Lancet [Internet] 2011 May [cited 2015 Dec 11]:32-46. Available from: http://dms.ufpel.edu.br/ares/bitstream/handle/123456789/279/15%20Sa%C3%BAde%20de%20m%C3%A3es%20e%20crian%C3%A7as%20no%20Brasil%20progressos%20e%20desafios.pdf?sequence=1
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De acordo com a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado”, uma em cada quatro mulheres sofre alguma forma de violência durante o parto. As situações de violência mais comumente descritas são gritos, procedimentos dolorosos sem consentimento das gestantes, falta de analgesia e até negligência.99 Serviço Social do Comércio, Fundação Perseu Abrano. Pesquisa de opinião pública: mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado [Internet]. São Paulo: Sesc/FPA; 2010 [cited 2016 June 11]. Available from: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/pesquisaintegra_0.pdf
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Paralelamente, cresceu o número de denúncias feitas ao Ministério Público Federal, que optou por instaurar um inquérito civil público para apurar os casos de desrespeito e violência no momento do parto.

No campo da saúde, intensificaram-se as discussões sobre as intervenções desnecessárias na assistência ao parto, o que acaba por emergir o conceito de violência obstétrica, entendido como qualquer ato ou intervenção desnecessária dirigida à parturiente ou ao neonato, praticada sem o consentimento da mulher e/ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física ou psicológica, indo contra os seus sentimentos, desejos e opções.1010 Silva MG, Marcelino MC, Rodrigues LSP, Toro RC, Shimo AKK. Violência obstétrica na visão de enfermeiras obstetras. Rev Rene [Internet]. 2014 July/Aug [cited 2015 Jun 25];15(4):820-8. Available from: http://www.periodicos.ufc.br/index.php/rene/article/view/1121/1079
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Ao refletir sobre esta realidade na atenção à mulher durante o parto e, ao considerar que, de um lado, existem as normas e as hierarquias, nem sempre percebidas como ofensivas e violentas e, de outro, há as experiências do sujeito, fundadas em suas relações cotidianas que, muitas vezes, contradizem a normatização que lhe é imposta, questiona-se: como o discurso sobre parto e nascimento tem sido estabelecido nas relações dos profissionais de saúde e mulheres/parturientes?

Ao considerar que o fenômeno da violência obstétrica é produto de uma situação complexa e de ambientes que fomentam o discurso agressivo e hostil, e colocando em lados opostos as mulheres e os profissionais de saúde, este trabalho tem como objetivo: analisar os discursos de mulheres e profissionais de saúde sobre a assistência ao parto, considerando as situações vivenciadas e interações construídas entre eles durante o trabalho de parto e o parto.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo interpretativa, cujo método utilizado foi a Análise do Discurso, segundo a perspectiva de Foucault, uma vez que a questão fundamental consiste em analisar o discurso construído na relação entre o profissional de saúde e a mulher na assistência ao parto.

Ao buscar a diversidade, escolheu-se como cenários de investigação da pesquisa sete maternidades públicas dos municípios da macrorregião Centro-Oeste de Minas Gerais. A escolha foi proposital, considerando o fato de que pesquisas desta amplitude, habitualmente, são desenvolvidas nos grandes centros e que pouco se sabe sobre a assistência ao parto em instituições hospitalares de pequeno porte.

Os critérios de inclusão estabelecidos para definir os participantes da pesquisa foram, em relação aos profissionais: estarem inseridos no quadro de funcionários da maternidade pública e prestarem assistência direta à mulher em trabalho de parto e o parto; ser enfermeiro ou médico obstetra. Para as mulheres: ter sido parturiente em uma das maternidades-cenários deste estudo; ter tido parto normal ou cesárea, com permanência de, no mínimo, seis horas; estar no puerpério e ter idade entre 15 e 45 anos.

Por se tratar de um estudo qualitativo, não foi intenção preocupar-se com a quantificação dos participantes, mas com a sua representatividade. Porém, estabeleceu-se, a priori, que pelo menos um profissional enfermeiro e um médico de cada cenário seria convidado a participar, como também uma parturiente. Entretanto, para finalização da coleta de dados considerou-se a saturação dos dados, mediante uma pré-análise que mostrou congruências entre os discursos obtidos para os questionamentos apresentados. Assim, os participantes deste estudo foram 36 mulheres e 24 profissionais de saúde, sendo dez enfermeiros obstetras e 14 médicos obstetras.

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas, com um roteiro semiestruturado para os profissionais e um para as mulheres, com os seguintes questionamentos: relate como foi para você o nascimento do seu filho; descreva como vê a relação entre você e o profissional de saúde que lhe prestou cuidados no parto; conte um acontecimento que te marcou no seu atendimento; o que significa ser médico ou enfermeiro obstetra? você pode contar uma situação vivenciada na sala de parto que envolva você e a usuária?

As entrevistas foram gravadas em aparelho digital e transcritas na íntegra, para análise e interpretação dos discursos. Além disso, utilizou-se observação de situações ocorridas durante o trabalho de parto e o parto, procurando dar ênfase ao diálogo estabelecido entre os profissionais de saúde mulheres, que foram registradas em um diário de campo. A coleta de dados ocorreu entre os meses de setembro de 2014 a março de 2015.

A análise de discurso1111 Foucault, M. A arqueologia do saber [Internet]. 7th ed. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2005 [cited 2015 Dec 13]. Available from: http://www.uesb.br/eventos/pensarcomveyne/arquivos/FOUCAULT.pdf
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-1212 Gregolin MR. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos e duelos. 3ª. ed. São Carlos: Claraluz; 2007. compreendeu um movimento de três etapas: 1ª) Organização, transcrição e disposição dos discursos na íntegra; 2ª) Leitura vertical, que compreende a leitura exaustiva de cada discurso individual para apreensão das ideias centrais; 3ª) Leituras horizontais, para determinar as ideias ou significados que se assemelham ou não com a organização dos dados convergentes em temas comuns, determinando as categorias e subcategorias

Nessa abordagem metodológica, a análise dos enunciados deve ir além da exegese textual, incluindo as condições socais e institucionais da sua produção. O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que o moldam e o restringem, sendo uma prática de representação e significação do mundo.1111 Foucault, M. A arqueologia do saber [Internet]. 7th ed. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2005 [cited 2015 Dec 13]. Available from: http://www.uesb.br/eventos/pensarcomveyne/arquivos/FOUCAULT.pdf
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Num enfoque discursivo, Foucault revelou a ligação entre o discurso, o desejo e o poder, e enfatizou que nessa imbricada relação, nem tudo pode ser dito, depende das circunstâncias e de quem diz. Há aqueles que podem e aqueles que não podem falar.1212 Gregolin MR. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos e duelos. 3ª. ed. São Carlos: Claraluz; 2007.

Para garantia de anonimato, os participantes foram identificados de forma alfanumérica, de acordo com a primeira letra da categoria a que pertencem, como exemplo: M para as mulheres. E, a fim de discriminar os profissionais de saúde, optou-se por utilizar a abreviatura convencional, ou seja, Med para médicos e Enf para enfermeiros. Sendo todos seguidos do número, conforme aproximação para as entrevistas.

Na última etapa da análise fez-se a interpretação dos resultados, estabelecendo a discussão dos resultados encontrados com a literatura existente e a experiência e o conhecimento das pesquisadoras, configurando um movimento dialético e procurando revelar as determinações e as especificidades que expressam-se na realidade.

O trabalho de campo teve início após aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais - parecer número 791.265 CAAE: 3252471420000.5149, e sua construção foi feita atendendo as exigências das resoluções 196/96 e pela Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que regulamenta as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos.

RESULTADOS

As perspectivas dos participantes sobre a violência no parto, revelada nos discursos de diferentes formas, encontram-se organizadas em três categorias descritas a seguir.

A violência obstétrica presenciada no discurso da enfermeira obstetra

Os discursos das enfermeiras obstetras sinalizam para uma violência presenciada, ao compartilharem suas experiências. As dificuldades enfrentadas para garantir os direitos das parturientes, o receio do enfrentamento com os colegas de trabalho e o tratamento agressivo e pouco tolerante que permeia o cuidado durante o trabalho de parto e o parto fazem-se presentes.

Alguns momentos na sala de parto são difíceis pra enfermagem. Porque a gente estando deste lado e a paciente do outro é complicado. Ela está sentindo dor, frágil, cansada, pedindo ajuda. Eu já presenciei fatos negativos, o que me deixa triste é quando a paciente tá no período expulsivo, e o médico e a própria enfermagem grita pra ela fazer força, diz que não é hora de ficar parada, que o neném tem que nascer, faz a manobra de Kristeller, e a gente tem que acatar o que o médico tá pedindo (Enf 1)

Eu tenho presenciado situações negativas, principalmente pela parte médica, o médico mandar calar a boca, falar se elas gritarem vai sair, largar elas, não vai prestar assistência, ou fazer algum tipo de medicação, para a paciente ficar um pouco mais dopada e não ter condição de estar gritando e não ficar tão histérica, então ainda existe estas situações(Enf 3).

Esses achados demonstram serem ainda muito evidentes os limites estabelecidos pela hierarquia médico/enfermeiro na instituição hospitalar, restringindo e controlando o seu espaço na assistência ao parto.

Alguns profissionais se irritam com a paciente, sem entender o outro lado, de fraqueza, medo, e acaba que você escuta agressões verbais, que no momento ali, não pode fazer nada. Como você vai chamar a atenção do médico na frente da paciente, sendo que ele está na frente de qualquer coisa, ele está ali para fazer o parto. Isto é ruim, porque a gente está presente e qualquer coisa que acontecer, querendo ou não você está envolvida na insatisfação da paciente e tudo mais. É esta violência verbal que acontece quando a paciente está agitada, cansada e não consegue fazer força (Enf 9).

Para quem está presente na sala de parto, escutar palavras ofensivas pode doer e persistir mais que as agressões físicas, por sua dimensão invisível, que se projeta no campo moral e psíquico, e por envolver todos numa conspiração do silêncio, o que implica em não dizer o que se pensa, o que acha justo, em respeito ao outro.

Uma coisa chocante pra mim foi uma primigesta em TP, que não colaborava e ela se revirava em cima da mesa e a médica perdeu a paciência e começou a falar coisas que magoou a equipe, que ela não era toureira, que ela não sabia jogar laço, pelo fato da paciente estar exaltada. Devido aquela situação, eu achei por bem, pegar a paciente e voltar para o pré-parto onde conseguiu dar a luz e a criança nasceu bem! Assim uma coisa que fica na memória, uma médica falar este tipo de palavras com a paciente, deixa a gente magoado. (Enf 10).

Sinaliza-se, também, que assim como o parto pode ser traumático para a mulher, pode ser também para a equipe.

No final ela desesperou, queria analgesia e o anestesista resistente. Estava gritando e o médico começou a fazer pressão no fundo do útero dela, e ela não queria, sabia o que era Kristeller, episio. Ela gritava: ‘Eu não quero esta mão ai’, se posicionava, e o médico gritou com ela, várias vezes. E o marido junto, um casal jovem, que tinham programado um parto maravilhoso, e tiveram um parque de horrores ali nasala de parto e todo mundo começou meio que perder a paciência com ela (Enf 8).

Um parto desumano não é traumatizante só para a mulher, mas para a equipe toda que esta ali e pro neném, porque olha a situação que este neném nasceu, como ele foi tirado dali. Até hoje, quando eu lembro, me dá muita raiva (Enf 4).

A gente não esquece nem do bem e nem do mal. Eu acho que o negativo fica muito mais. Tem que ter cuidado, porque pra nós é uma rotina, mas para as mulheres é único. A gente vê a intervenção desnecessária, não sei se é o horário de trabalho, que não tem tempo de estar ali do lado. E já presenciei a própria imposição, grito é até o toque diferenciado, imposto: ‘abre esta perna, fica ai, não levanta’ (Enf 7).

Há ainda uma violência metaforicamente maquiada, encontrada no cotidiano de trabalho na maternidade.

Quando a gente fala na violência obstétrica, ela existe em todas as instituições, por todos os profissionais, todos os dias, algumas mais explícitas, outras mais maquiadas, a maioria não é denunciada, porque a paciente ou os profissionais não entendem como uma violência, e fica entre os profissionais da instituição, mas é com falas, com atitudes com condutas, tudo isso é propício pra violência (Enf 8).

Os discursos salientam que a sala de parto apresenta-se como um espaço onde ações irracionais e automatizadas podem ocorrer, na medida em que o processo de parto e nascimento torna-se habitual e corriqueiro para quem está ali diariamente.

Eu tenho a maior dificuldade de colocar os acompanhantes na sala de parto, parece até que você está fazendo um favor, e depois se a gente insiste, a violência se volta contra mim (Enf 3).

Na sala de parto é raro deixarem entrar acompanhante. É só quando o hospital está mais vazio, aí deixa, dependendo do comportamento do acompanhante. Agora, pra ser sincera acontece mais quando o parto é particular, aí os obstetras permitem mais que os acompanhantes entrem (Enf 4).

Vou falar do meu local de trabalho. A partir do momento que eu não consigo permitir que o marido acompanhe o TP eu estou indo contra uma lei federal, que é clara e tem um propósito, ela fala que a paciente tem que ter um acompanhante de livre escolha no TP e parto, se eu não permito isso, estou cometendo uma violência. Se eu quero abreviar o parto pra ir descansar e começo a fazer um monte de intervenção, isto é violência obstétrica. (Enf 8).

Como um procedimento corriqueiro, o parto deixa de ser entendido como um processo que pode exigir inúmeras adaptações, permeado por subjetividades distintas, tanto da mulher como dos profissionais que a assistem, interferindo, inclusive, na garantia do direito de livre escolha de quem será o acompanhante na sala de parto.

Hoje tudo é violência obstétrica

Ao falar sobre a sua profissão, o médico expressa um desgosto com a expressão “violência obstétrica”, compreendida no seu discurso como um termo depreciativo, exacerbado pela mídia e que negligencia a autonomia do obstetra e classifica todas as práticas médicas como hostilidade contra a mulher e não como um benefício em prol da saúde da parturiente e do recém-nascido, o que influencia de maneira negativa no cotidiano de trabalho nas maternidades e na relação médico/parturiente.

Hoje, qualquer coisa que você faz com a paciente, pode ser encarado como violência obstétrica. Se você faz parto normal, é violência, se faz cesárea, é violência. Eu acho que não é por este lado. Tem que entender que é um contexto, a gente não quer que ninguém sinta dor ou sofra. É muito maior do que se fala na mídia, do que um caso. Eu acho que obstetrícia é cumplicidade, a gente tá aqui para fazer o melhor, chegar a uma solução boa pra todo mundo. A paciente quer que você faça o atendimento sem examinar como é que isto pode ser justo. Eu não concordo com esta obstetrícia (Med 6).

A relação médico/usuária comumente é permeada por um discurso dissimétrico entre um suposto-saber médico com um presumível não saber da paciente. O médico acredita possuir um saber científico suficiente para conduzir o trabalho de parto e lidar com as adversidades e complicações que possam surgir neste momento.

Hoje, quem manda é a paciente, você não tem reconhecimento. A maior dificuldade minha é com o acompanhante, porque ele hoje sabe mais do que o médico, pesquisa na internet. Então ele chega e determina o que deve e o que não deve ser feito e isso me traz muito desgosto, ter que trabalhar com este tipo de paciente (Med 1).

A mulher não vem preparada para o que vai enfrentar. A maioria vem com uma carência de informação e acaba tendo um desencontro entre o que a gente propõe e o que a mulher espera. A obstetrícia é a segunda classe médica com mais processo, e isso cria uma posição de defesa do médico perante a paciente, e acaba atrapalhando a relação médico/paciente (Med 5).

É um pessoal difícil de trabalhar, porque não faz um pré-natal direito, e chega exigindo. Algumas relações são difíceis. São mulheres que não querem escutar o que a gente fala, não ajudam no parto e são despreparadas. Tem gestante que não deixa fazer o toque, começa a brigar na hora do parto, deita no chão, não faz o que precisa, morde, unha as enfermeiras que estão ajudando (Med 7).

Ao se ver questionado pelo acompanhante, o médico sente-se confrontado e indignado, porque tem seu saber como uma verdade absoluta, ao qual os corpos das pacientes são docilmente submetidos para que possam ser controlados, transformados e aperfeiçoados.

Eu tenho tido desilusões por eu querer fazer uma coisa e as mulheres preferirem outras. Tem uma cidade que eu trabalhei que eu adquiri a fama de carrasco, que não faz cesárea e deixa a mulher sofrer até esgotar (Med 8).

Você é ameaçado muitas vezes pela paciente e pelo acompanhante. Tem pacientes que agridem não só verbalmente. Tem uma situação em que a avó do bebê empurrou a médica. A função do acompanhante não é a de curiosidade, é um tal de meter o dedo na conversa dos outros. Eu não sou amigo. Sou um médico extremamente sério, não gosto de brincadeira em nenhum momento (Med 6).

A construção da relação entre o médico e a mulher é conflituosa e agravada por uma carência de informação sobre a fisiologia do parto, pela falta de reciprocidade, responsabilidade e afetividade na interação entre os atores envolvidos no processo, o que se reflete em desencontro entre o desejo da mulher e o que é proposto pelo médico.  

Aqui a gente não tem voz

Embora o discurso médico discorra sobre uma presumível autonomia das mulheres no momento do parto, chegando a afirmar que “hoje quem manda é a parturiente, a narrativa das mulheres se contrapõe a este discurso. As parturientes, ao vivenciarem uma situação de violência na sala de parto, emudecem-se diante de uma atitude hostil ou autoritária dos profissionais de saúde.

Eu não gostei. Na hora que o médico falou que ia chamar o conselho tutelar, eu fiquei com medo deles levar meu bebezinho, me senti ameaçada, só que eu fiquei quieta, porque eu tava errada, não fiz pré-natal! Isso me deixou nervosa. Ele me chamou de irresponsável. Mas é normal, a gente dá trabalho demais na hora de ganhar neném, é muita dor, você não sabe que posição ficar, eles não deixam qualquer posição (M20).

Não gostei do jeito que o doutor falou comigo, fiquei super sem graça. Eu acho que naquele momento de dor, não tinha necessidade de falar daquele jeito. Ele podia ter mais educação, porque na hora da dor você desespera, fala bobagem. Parece que eu era um lixo ali, que ele tava me tocando obrigado. E além dele ter me xingado lá no quarto, depois ele foi lá na sala de parto falar tudo que ele já tinha falado: se adiantou eu ter dado chilique, que as minhas lágrimas eram falsas, choro falso, sabe (M5).

O discurso sinaliza para uma violência consentida, mesmo que inicialmente haja constrangimento com o tratamento agressivo recebido. Atribui-se a atitude agressiva do profissional de saúde ao ritmo de trabalho extenuante na assistência ao parto e ao comportamento fora de controle que ela teve, diante da dor durante o trabalho o parto.

É muito tenso, eu não esperava que fosse assim, imaginava que ia receber orientação da equipe. Eu passei dificuldade. Para algumas mulheres é mais fácil, mas eu tive dificuldades de por em prática. Eu acho que pode ter sido de mim mesma, ficar tensa, nervosa, querendo chorar, desistir, foi isso (M3).

Porque não tem momento bom nenhum, é muita dor, foi tudo dentro do normal mesmo, mas o parto não é uma experiência prazerosa, é muito difícil, e a cesariana não é indicada, ai a gente vai de parto normal mesmo, mas é muito difícil (M19).

Os toque pra ver a dilatação, é preciso, mas é horrível! acho que é uma das piores coisas que tem (M14).

Apesar da negligência dos direitos ou situações de violência reconhecidas, o discurso das mulheres sinaliza para as dificuldades de se fazerem ouvir num momento de dor e de vulnerabilidade, no qual se veem imersas durante o parto. Declaram-se sem voz e sem vez, diante das normas e regras que lhe são impostas pela instituição hospitalar, sendo necessário alguém para falar por elas, neste instante.

O máximo que eles permitiram foi a sala de pré-parto, depois que foi para a sala de parto eles já barraram a minha mãe, que tava comigo. Porque é uma segurança a mais porque você tá naquela dor, no sofrimento. E o problema é esse: se a gente tá sentindo dor, é o nosso acompanhante que tem que se impor, bater o pé e firmar, porque é um direito nosso! E a gente não tem voz aqui! (M31).

O TP foi tranquilo, eu fiquei em casa até o último momento. Mas quando eu cheguei no hospital, tudo desandou, a enfermeira fazendo pergunta, o doutor querendo fazer o toque. E assim o tempo todo: você não pode isso, não pode aquilo, e ignorando meu plano de parto, não fazendo questão nenhuma de pegar. O doutor começou a brigar comigo porque eu tinha colocado uma bolsa de água quente para amenizar a contração, e a falar que a gente fica arrumando estas pessoas pra ficar na casa da gente, que não sabe nada, que a doula colocou o meu bebê em risco, e foi assim, o bebê nascendo e eles fazendo aquele terror (M35).

No instante em que a equipe se depara com mulheres bem orientadas, que elaboraram o plano de parto e que recusam intervenções, agem com hostilidade frente ao desejo da mulher e passa a rotular esta mulher e a extorquir os seus direitos.

Eu já estava com 10 cm e eles preocupados em fazer boletim de ocorrência. Eles falavam assim: ‘aquela menina que veio com a Doula, que quer tudo natural, que trouxe o plano de parto, sabe meio que rotulando, além da falta de respeito com tudo, do médico falar: ‘ menina, aqui quem manda sou eu’, de não se preocupar com o plano de parto pra ver o que eu queria, em falar que tava tudo errado, que eu tava colocando meu filho em sofrimento (M35).

Mesmo reconhecendo que ocorreram situações negativas, ou mesmo de violência, as mulheres dizem que isso não ofusca em nada o brilho de poder dar à luz. A satisfação de estar com o bebê, são e salvo no colo, é tão gratificante, que parece apagar tudo de negativo que aconteceu no período que antecedeu o momento do parto.

Apesar de ter acontecido situações de desagrado, de violência mesmo, isso não ofuscou em nada, não tirou nem um pouco o brilho do momento da experiência, mas porque eu também não deixei, eu não permiti que a situação fosse adiante (M36).

No pré-natal o médico falou uma coisa que eu fiquei com medo. Ele falou assim: ‘quando você for ganhar seu bebê, se for meu plantão, eu não vou fazer o seu parto’, mas graças a Deus aconteceu tudo o contrário, ele fez meu parto e fez bem.Passou e eu to com meu molequinho são e salvo (M23).

Depois de algum tempo, após ter elaborado o que ocorreu durante o processo de parto e nascimento, as mulheres percebem a situação vivenciada com mais clareza e discernimento, Chegam a afirmar, no seu discurso, que não iriam permitir que a situação negativa persistisse e que reagiriam diante de uma situação de desrespeito.

DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo permitiram refletir sobre a assistência ao parto na perspectiva das mulheres e dos profissionais de saúde. Os temas que surgiram sinalizaram para uma violência presenciada e silenciada, na narrativa dos enfermeiros. Perspectiva que se assemelha à das mulheres, ao discursarem sobre uma violência consentida, a qual procuram justificar, com diferentes argumentos. E contrapõe-se ao discurso médico, que negligencia a violência obstétrica por acreditar que esta forma de violência não acontece na mesma dimensão nem tem a repercussão que é representada pela mídia, pelos blogs e por outras organizações.

O fenômeno da violência obstétrica emergiu de forma mais enfática com os programas de humanização do parto e do nascimento, cujas estratégias utilizadas na época já representavam uma maneira sutil de abordar este tipo de violência. Na atualidade, o termo violência obstétrica é considerado forte e tem causado indignação na classe obstétrica, por acreditar que o termo direciona uma certa hostilidade contra esta categoria profissional, e que pode contribuir para desfazer todas as conquistas e avanços técnicos, incorporados pela assistência médica, em virtude de uma hipotética autonomia da mulher na parturição.1313 Melo VH. Obstetrícia: especialidade em extinção. Jornal do CRM-MG [Internet]. 2014 July/Sept [cited 2015 Dec 21];52:10. Available from: http://www.flip3d.com.br/web/pub/crmmg/index.jsp?ipg=152129
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Mesmo a Organização Mundial de Saúde (OMS) prefere utilizar o termo tratamento hostil, agressivo ou desrespeitoso, ao se referir à violência obstétrica, sendo ainda necessário definir as suas diferentes facetas para elucidar melhor esse conceito.1414 Souza JPD. As diferentes faces da violência obstétrica. Resc [Internet]. 2015 Mar [cited 2016 Jan 28]; 2(3):e84. Available from: https://saudenacomunidade.wordpress.com/2015/03/03/resc2015-e84/
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Mas o que esta investigação evidenciou é que, embora metaforicamente maquiadas, condutas autoritárias e o uso de palavras depreciativas, assim como ameaças e repreensões contra as parturientes são comuns no cotidiano de assistência nas maternidades. Os profissionais de saúde tendem a confundir o exercício da autoridade com um contexto difícil de trabalho.1515 Aguiar JM, D’Oliveira AFP, Schraiber LB. Violência institucional, autoridade médica e poder nas maternidades sob a ótica dos profissionais de saúde. Cad saúde pública [Internet]. 2013 Nov [cited 2015 Oct 26]; 29(11):2287-96. Available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v29n11/15.pdf
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A dificuldade de ter um anestesista disponível, por exemplo, pode levar o profissional de saúde a desconsiderar a dor referida pela mulher, não oferecendo métodos de alívio, por considerá-la inerente ao parto.

Destaca-se que a conformidade com a negligência do cuidado e mesmo o silêncio diante de situações de desrespeito pode ser entendido como uma violência simbólica: um abuso de poder, baseado no consentimento que se estabelece e se impõe mediante o uso de símbolos de autoridade verbal, discriminação e práticas de assujeitamento, utilizadas por instituições e profissionais como estratégias de poder.1616 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2010.

No viés discursivo o silêncio também significa; ele não é a ausência de palavras.17.Dizer e silenciar andam juntos. Ao se calar diante da violência presenciada no parto, o enfermeiro demonstra ter receio de sustentar um discurso no qual acredita.

Para Foucault, instituições como as escolas e os hospitais tornaram-se lugares privilegiados para se difundir as medidas higiênicas e disciplinares de forma normativa e constituir corpos dóceis e submissos. Ao definir a genealogia do poder, o corpo tornou-se alvo de poder - o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe - Moldado, o corpo se torna tão útil quanto assujeitado. Essa técnica de disciplinar e controlar os corpos compreende uma modalidade de poder e de dominação.1818 Foucault M. O nascimento da clínica. 6th ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2008.

Assim, o corpo torna-se alvo do poder nas instituições de saúde. Descobriu-se que, por meio de intervenções, é possível acelerar o trabalho de parto, por meio de técnicas invasivas como o toque vaginal. O corpo pode ser medido, investigado em cada detalhe, e submetido a várias formas de manipulação, para se tornar ao mesmo tempo tão útil, tão dócil, quanto assujeitado.1919 César MRA. Pensar a educação depois de Foucault. Cult [Internet]. 2010 Mar [cited 2015 Fev 12]; 134. Available from: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/pensar-a-educacao-depois-de-foucault/
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Ao descrever o seu trabalho como médica obstetra numa situação de parto, uma das participantes utiliza-se da “metáfora parteira/toureira”. Ao se remeter à figura de uma toureira, no seu discurso, a profissional de saúde compara a cena do parto vivenciada ao espetáculo de uma tourada. Esta figura analógica leva-se a pensar a cena do parto como um espetáculo de horror, como uma cena grotesca, com medo e provocação, visto que, numa tourada, os touros são provocados pelo toureiro, para que eles invistam contra, até serem abatidos ou derrubados.

Inserida no contexto das maternidades, a violência se manifesta por meio das normas e rotinas de trabalho, ou no comportamento irônico e impessoal do profissional de saúde. Essa sutileza no agir obscurece a percepção dos sujeitos que a vivenciam, e passa a incomodar a razão e o sentimento das pessoas envolvidas, fazendo-se presente em toda modalidade de organização das instituições.2020 Barazal NR. Sobre violência e ser humano. Convenit Internacional (USP) [Internet]. 2014 May/Aug [cited 2015 Nov 11];15:77-86. Available from: http://hottopos.com/convenit15/77-86NeusaRB.pdf
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Outro incômodo, consequente da violência presenciada na sala de parto, é a inconsistência entre as ações e as convicções do profissional de saúde, que pode ser identificada como sofrimento moral, um sentimento doloroso que comumente se origina de uma conduta ética que não pode ser cumprida, contrariando as perspectivas do profissional e interferindo na constituição que o sujeito tem de si mesmo e na sua experiência moral de vida.2121 Barlem ELD, Lunardi VL, Lunardi GL, Tomaschewski-Barlem JG, Silveira RS, Dalmolin GL. Sofrimento moral em trabalhadores de enfermagem. Rev Latino-am. Enferm [Internet]. 2013 Jan/Feb [cited 2015 Oct 24]; 21(spe):79-87. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v21nspe/pt_11.pdf
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A realidade narrada no discurso dos participantes caracteriza o parto como um problema a ser solucionado e a relação construída entre as mulheres e os profissionais de saúde é considerada assimétrica e hierárquica, e essas relações de poder não acontecem de forma isolada, mas em sequência ou em constelações, o que é condizente com a literatura que define o modelo de atenção ao parto como um evento médico e tecnológico, segundo o qual a mulher é tratada como paciente e os partos são, em sua maioria, hospitalares, e o médico é o responsável pela sua execução. E medir desigualdades de trocas diferentes não é fácil, e nem previsível.2222 Patah LEM, Malik AM. Modelos de assistência ao parto e taxa de cesárea em diferentes países. Rev saúde pública [Internet]. 2011 Feb [cited 2016 Jan 28];45(1):185-94. http://www.scielosp.org/pdf/rsp/v45n1/1759.pdf
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-2323 Gomes ML, Moura MAV, Souza IEO. Obstetrical practice by nurses in institutional childbirth: a possibility for emancipatory knowledge. Text context enferm [Internet]. 2013 Jul-Sept [cited 2015 Jan 12]; 22(3):763-71. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v22n3/v22n3a24.pdf
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Enfim, ao considerar a amplitude e complexidade da violência obstétrica no Brasil, faz-se necessário a adoção de medidas de prevenção quaternária,2424 Tesser CD, Knobel R, Andrezzo HFA, Diniz FA. Obstetric violence and quaternary prevention: what it is and what to do. Rev Bras Med Fam Comunidade [Internet]. 2015 June [cited 2015 Nov 21];10(35):1-12. Available from: https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/viewFile/1013/716
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como ações individuais e coletivas de proteção contra o excesso de intervenções médicas, instrumentalização de outros profissionais na assistência ao parto de risco habitual, tais como os profissionais da Estratégia de Saúde da Família e os enfermeiros obstetras contribuindo para a elaboração do plano de parto e a promoção da autonomia e empoderamento das parturientes.

Outra estratégia de enfrentamento de situações de conflito, como a violência obstétrica, é a atuação do enfermeiro na advocacia do paciente. Embora seja uma prática ainda incipiente no Brasil, esta ação emerge como uma obrigação moral do enfermeiro, em advogar em defesa do paciente2525 Tomaschewski-Barlem JG, Lunardi VL, Barlem ELD, Ramos AM, Silveira RS, Vargas MAO. Como enfermeiros vêm exercendo a advocacia do paciente no contexto hospitalar? - uma perspectiva Foucaultiana. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2016 Mar [cited 2016 Jun 15]; 25(1):e2560014. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v25n1/0104-0707-tce-25-01-2560014.pdf
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- atitude profissional que pode ajudar as mulheres na tomada de decisões, garantir a qualidade do cuidado e estreitar o elo entre a paciente e o ambiente de saúde.

O estudo pode apresentar como limite o fato de ter sido desenvolvido em municípios de pequeno porte de um dos estados brasileiros e revela, possivelmente, uma realidade cultural específica. Porém, acredita-se que essa seja uma realidade encontrada em outras maternidades, de outros municípios e estados brasileiros e que, também, poderiam ser cenários de estudos como este.

CONCLUSÃO

Ao tecer considerações sobre os resultados encontrados neste estudo, pode-se dizer que a violência se faz presente no cotidiano da sala de parto. Os discursos expressam-se no silêncio dos enfermeiros, ao presenciarem um tratamento hostil; no consentimento das mulheres, que procuram justificar a agressividade e as dificuldades vivenciadas como parte inerente ao processo de parto e nascimento e na invisibilidade aos olhos do profissional de saúde, que acredita que a violência é apenas um caso isolado, e que não tem grandes proporções, como é difundido pela mídia.

Espera-se, assim, que este trabalho contribua para dar visibilidade ao problema da violência obstétrica presente na assistência ao parto, possibilite a discussão da política pública de atenção à mulher e a reflexão dos profissionais de saúde envolvidos no cuidado ao parto e na melhoria da qualidade da assistência materno-infantil. Entende-se que essa mudança virá quando se conseguir mudar a lógica de entendimento do parto, quando ele parar de ser visto somente como um evento médico e hospitalar e puder ser entendido como um evento humano, porque, só a partir deste reconhecimento, haverá a possibilidade de se fazer ouvir a voz das mulheres, resgatando a autonomia e a capacidade de deliberar sobre questões relacionadas ao seu processo de parto e nascimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2015
  • Aceito
    19 Set 2016
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