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THE SILENCES FRAMEWORK: METODOLOGIA PARA PESQUISAS DE TEMAS SENSÍVEIS E PERSPECTIVAS MARGINALIZADAS NA SAÚDE

THE SILENCES FRAMEWORK: METODOLOGÍA PARA INVESTIGACIONES DE TEMAS SENSIBLES Y PERSPECTIVAS MARGINALIZADAS EN LA SALUD

RESUMO

Objetivo:

descrever a utilização da metodologia The Silences Framework em uma pesquisa na área da saúde, envolvendo a temática da coinfecção tuberculose/HIV/aids.

Método:

a metodologia foi originalmente utilizada para estudar decisões e silêncios de homens negros do Caribe que viviam na Inglaterra, problematizando-se os temas ‘saúde sexual’ e ‘etnicidade’ e resultando em uma teoria para a pesquisa de questões sensíveis e de cuidados de saúde de populações marginalizadas. The Silences Framework define áreas de pesquisa e experiências que são pouco estudadas, compreendidas ou silenciadas.

Resultados:

os “silêncios” podem refletir aspectos não compartilhados sobre como crenças, valores e experiências de alguns grupos influenciam sua saúde. Esse referencial prevê a aplicação de quatro estágios complementares: trabalhando os silêncios, ouvindo os silêncios, dando voz aos silêncios e trabalhando com os silêncios. A análise ocorre de modo cíclico e pode ser repetida enquanto os silêncios não forem desvelados.

Conclusão:

este artigo apresenta a noção de “sons do silêncio”, mapeando um quadro teórico antiessencialista para sua utilização em pesquisas sensíveis na area da saúde e da enfermagem, podendo ser referência para outros investigadores em estudos envolvendo populações marginalizadas.

DESCRITORES:
Desigualdades em saúde; Métodos; Enfermagem; Coinfecção; Pesquisa; Tuberculose; Síndrome de Imunodeficiência Adquirida

RESUMEN

Objetivo:

describir la utilización de la metodología The Silences Framework en una investigación en el área de la salud, involucrando la temática de la co-infección Tuberculosis/VIH/SIDA.

Método:

la metodología fue originalmente utilizada para estudiar decisiones y silencios de hombres negros del Caribe que vivían en Inglaterra, problematizándose los temas ‘salud sexual’ y ‘etnicidad’ y resultando en una teoría para la investigación de cuestiones sensibles y de cuidados de la salud de las poblaciones marginadas. The Silences Framework define áreas de investigación y experiencias que son poco investigadas, comprendidas o silenciadas.

Resultados:

los “silencios” pueden reflejar aspectos no compartidos de cómo las creencias, valores y experiencias de algunos grupos influencian su salud. Este referencial prevé la aplicación de cuatro etapas complementarias: trabajando los silencios, oyendo los silencios, dando voz a los silencios y trabajando con los silencios. El análisis ocurre de modo cíclico y puede ser repetido mientras los silencios no se desvelan.

Conclusión:

este artículo presenta la noción de “sonidos del silencio”, mapeando un cuadro teórico anti-esencialista para su utilización en investigaciones sensibles en el área de la salud y de la enfermería, pudiendo ser referencia para otros investigadores en estudios involucrando poblaciones marginadas.

DESCRIPTORES:
Desigualdades en salud; Métodos; Enfermería; Co-infección; Búsqueda; Tuberculosis; Síndrome de Inmunodeficiencia Adquirida

ABSTRACT

Objective:

to describe the experience of applying of The Silences Framework to underpin health research investigating Tuberculosis/HIV/AIDS coinfection.

Method:

the Silences Framework originally developed following a study exploring the decisions and silences surrounding black Caribbean men living in England, discussing the themes ‘sexual health’ and ‘ethnicity’. Following this study, a conceptual theory for research on sensitive issues and health care of marginalized populations was developed called ‘Screaming Silences’, which forms the foundation of The Silences Framework. ‘Screaming Silences’ define research areas and experiences that are poorly studied, little understood or silenced.

Results:

the Silences Framework supports researchers in revealing “silences” in the subjects they study - as such, results may reflect how beliefs, values, and experiences of some groups influence their health. This framework provides the application of four complementary stages: working the silences, hearing silences, voicing silences and working with the silences. The analysis occurs cyclically and can be repeated as long as the silences inherent in a study are not revealed.

Conclusion:

this article presents The Silences Framework and the application of the notion of “sounds of silence”, mapping an antiessentialist theoretical framework for its use in sensitive research in health and nursing areas, being a reference for other researchers in studies involving marginalized populations.

DESCRIPTORS:
Inequalities in health; Methods; Nursing; Coinfection; Research; Tuberculosis; Acquired immunodeficiency syndrome

INTRODUÇÃO

No campo da saúde, pesquisas sobre temas sensíveis e sobre perspectivas marginalizadas requerem o desenvolvimento de metodologias que apreendam um universo de sentidos complexos e muitas vezes velados,11 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo (SP): Hucitec; 2013. conferindo importância significativa às escolhas metodológicas.

O presente artigo pretende contribuir com pesquisas em saúde e enfermagem que tenham estas características, enfocando a metodologia denominada The Silences Framework, proposta na Inglaterra e ainda pouco conhecida no Brasil, indicando-se o potencial do seu quadro conceitual para o desenvolvimento de estudos na área. As contribuições têm origem na utilização da metodologia na pesquisa associada a preocupações politicamente sensíveis e problemáticas relacionadas à necessidade de se pensar porque a aids e a tuberculose (TB) ainda acometem tantas pessoas no Brasil. O uso da metodologia The Silences Framework possibilitou a utilização de novos caminhos metodológicos, contribuindo na delimitação do problema de pesquisa, de obtenção de dados, de análise e de validação dos resultados.

Sobre a problemática da coinfecção, em 2012, em todo o mundo, ocorreram 1,4 milhões de novos casos de TB entre os infectados pelo HIV, levando a uma taxa de mortalidade de 456.000 indivíduos.22 World Health Organization. Global tuberculosis report 2012. Geneva (CH): WHO report; 2012. Nesse mesmo ano, no Brasil, a taxa de coinfecção por TB e HIV foi de 9,9% e a taxa de letalidade de 6%, sendo três vezes maior do que as taxas de mortalidade por outras doenças.33 Ministério da Saúde (BR). Secretaria-Executiva Recomendações para o manejo da coinfecção TB-HIV em serviços de atenção especializada a pessoas vivendo com HIV/AIDS. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2013.

O Rio Grande do Sul é o estado brasileiro que apresenta o maior percentual de coinfecção TB/HIV/aids, sendo que 20,3% dos casos de TB acometem pessoas vivendo com HIV/aids. Este percentual é quase duas vezes superior à média nacional que é de 10,4%.44 Ministério da Saúde (BR). Boletim epidemiológico: Especial TB. Perspectivas brasileiras para o fim da TB como problema de saúde pública. Secretaria de Vigilância à Saúde. 2016; 47(13):1-15. Porto Alegre é a capital brasileira com maior incidência e mortalidade por TB e HIV/aids isoladamente, sendo que o percentual de coinfecção chega a 28,0% dos casos de TB, o que lhe confere destaque no país como cenário emblemático para o combate à coinfecção TB/HIV/aids.44 Ministério da Saúde (BR). Boletim epidemiológico: Especial TB. Perspectivas brasileiras para o fim da TB como problema de saúde pública. Secretaria de Vigilância à Saúde. 2016; 47(13):1-15.

É consenso entre os membros da comunidade científica, organismos internacionais e lideranças da luta contra a aids e a TB que o enfrentamento das duas doenças como problema de saúde pública deva ocorrer a partir do combate aos estigmas e da promoção dos direitos humanos, favorecendo a redução de vulnerabilidades em populações marginalizadas.55 World Health Organization. Global tuberculosis report. Geneva (CH): WHO report 2016.

Historicamente, TB e HIV/aids são processos de adoecimento marcados por estigma e preconceito. Desde o seu surgimento, a aids vem despertando discursos relacionados ao comportamento dos indivíduos infectados, os quais, muitas vezes, são acusados de negligentes ou irresponsáveis.66 Pupo RL, Ayres JRCM. Contribuições e Limites do Uso da Abordagem Centrada na Pessoa para a Fundamentação Teórica do Aconselhamento em DST/Aids. Temas Psicol. 2013; 21(3):1089-106. Indivíduos com TB têm, da mesma forma, enfrentado situações de rechaço e preconceito, principalmente em função do risco de transmissão pelo convívio social. A pesquisa envolvendo a problemática da coinfecção TB/HIV/aids é mais do que uma abordagem de doenças, tratando também de um fenômeno social. O estudo da coinfecção como um tema sensível, busca expandir nossa compreensão da TB/HIV/aids para além de sua abordagem biomédica, considerando elementos culturais que a tornam uma experiência pessoal e social. Desse modo, explora os significados, percepções, atitudes, crenças e experiências dos sujeitos, frequentemente lidando com a revelação de informações pessoais, experiências sexuais e comportamentais que já vêm carregadas de sentido e que são peculiares a cada sujeito.77 Oliveira DL. The use of focus groups to investigate sensitive topics: an example taken from research on adolescent girls' perceptions about sexual risks. Ciênc Saúde Coletiva. 2011; 16(7):3093-102.

Em meio a avanços e retrocessos, tem-se a percepção de que as políticas públicas brasileiras em saúde lidam com a TB e o HIV/aids desconsiderando esses aspectos, na permanente tensão entre a “ampliação da oferta de exames e medicamentos e o reforço das situações de estigma e discriminação às populações vulneráveis”.88 Seffner F, Parker R. Desperdício da experiência e precarização da vida: momento político contemporâneo da resposta brasileira à aids. Interface (Botucatu). 2016; 20(57):293-304.:296 O enfoque das políticas de saúde na adesão ao uso de fármacos e de tratamentos mais eficientes, acaba, muitas vezes, desconsiderando aspectos sociais, culturais e econômicos que condicionam o (in)sucesso dos tratamentos para HIV/aids, TB e coinfecção pelas duas doenças.

A pesquisa desenvolvida no Brasil com a metodologia The Silences Framework esteve associada com uma série de preocupações politicamente sensíveis, relacionadas às questões de gênero, escolaridade, raça/cor, território e comportamento sexual, que podem ajudar a pensar porquê a coinfecção TB/HIV/aids ainda acomete tantos sujeitos. Esse artigo objetiva descrever a utilização da metodologia citada em uma pesquisa na área da saúde, envolvendo a temática da coinfecção TB/HIV/aids.

MÉTODO

A metodologia foi aplicada seguindo quatro estágios. No primeiro foi realizada uma ampla revisão de literatura em bases de dados nacionais e internacionais, com o cruzamento de diferentes descritores, buscando grupos que são pesquisados e possíveis silenciamentos na agenda dos pesquisadores.

Esse foi o ponto de partida para a elaboração do projeto “Atravessamentos de gênero nas trajetórias assistenciais de homens e mulheres coinfectados por Tuberculose e HIV/aids”, desenvolvida em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, entre 2014 e 2017. Esse projeto deu origem a dois subprojetos: “Estudo epidemiológico sobre coinfecção TB/HIV/aids e fatores de risco para internação e mortalidade em Porto Alegre, Rio Grande do Sul”; e “Influência do gênero e de outros marcadores nas trajetórias assistenciais de homens e mulheres coinfectados por tuberculose HIV/aids em Porto Alegre, RS”. O primeiro subprojeto originou uma tese de doutorado99 Rossetto M. Estudo epidemiologico sobre coinfecção TB/HIV/aids e fatores de risco para a internação e mortalidade em Porto Alegre [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Enfermagem; 2016 que aplicou o segundo estágio da metodologia, utilizando uma abordagem quantitativa.

Nesse segundo estágio, foram unificados dados provenientes de três bases nacionais: Sistema Nacional de Agravos de Notificação (SINAN) aids e TB, Sistema de Internações Hospitalares (SIH) e Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), buscando explorar quais eram os grupos silenciados por meio do perfil e das gerências distritais onde se localizavam os casos, os óbitos e as internações hospitalares. Por meio dos resultados do primeiro e segundo estágios, localizaram-se os grupos silenciados e também aqueles enfocados em outras pesquisas, elegendo-se sujeitos e cenários que poderiam produzir novas compreensões sobre as trajetórias de adoecimento de sujeitos coinfectados por TB e HIV/aids.

O segundo subprojeto aplicou uma abordagem qualitativa, entrevistando homens e mulheres coinfectados e em tratamento para as doenças em centros de referência, considerando-se as características relacionadas ao perfil e as gerências com maior frequência de casos. No último estágio desenvolveu-se a análise integrada dos dados, indicativa não só dos silenciamentos presentes na área pesquisada, mas, também, de outras conclusões pertinentes.

A perspectiva crítica alimentou o processo criativo da escrita, a partir do pressuposto de que, considerando a multiplicidade de condições em que vivem as mulheres, há, de um lado, o problema das diferenças e desigualdades entre as mulheres e, de outro, as diferenças e desigualdades entre essas e os homens.1010 Serrant-Green L. The sound of 'silence': a framework for researching sensitive issues or marginalised perspectives in health. J Res Nurs. 2010; 16(4):347-60. Buscou-se, na teoria crítica, referencial teórico-metodológico que orienta a metodologia The Silences Framework, embasamento para a escolha das estratégias metodológicas e dos conceitos e teorias que sustentaram a análise. O argumento desenvolvido na análise foi o de que gênero, classe e raça são elementos do cotidiano que se inter-relacionam e se potencializam, produzindo as desigualdades que marcam a situação de saúde dos homens e mulheres coinfectados que participaram do estudo.99 Rossetto M. Estudo epidemiologico sobre coinfecção TB/HIV/aids e fatores de risco para a internação e mortalidade em Porto Alegre [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Enfermagem; 2016

A TEORIA QUE SUSTENTA ‘THE SILENCES FRAMEWORK’

A metodologia foi desenvolvida pela pesquisadora inglesa Laura Serrant e foi originalmente utilizada para estudar decisões e silêncios de homens negros do Caribe que viviam na Inglaterra com relação à saúde sexual, considerando a importância das diferenças de gênero e de etnia neste contexto. A pesquisa resultou em uma teoria para orientar pesquisas sobre temas sensíveis e cuidados em saúde de populações marginalizadas.1010 Serrant-Green L. The sound of 'silence': a framework for researching sensitive issues or marginalised perspectives in health. J Res Nurs. 2010; 16(4):347-60.

Em perspectiva semelhante, a adoção dessa metodologia na pesquisa desenvolvida no Brasil tem relação com a intenção de estudar homens e mulheres, brancos e não brancos, residentes em diferentes territórios, que desenvolveram a coinfecção pela TB/HIV/aids. O uso dessa metodologia visa a superação da visão de que as pessoas devem adotar comportamentos em relação ao uso de métodos de proteção ou de ingestão de medicamentos, pontuando a existência de outras influências sociais, culturais e econômicas.

A metodologia é sustentada por referenciais antiessencialistas, os quais se contrapõem à ideia de que no mundo tudo se constitui em termos de “essências”. Por essência se entende tudo aquilo que se refere à esfera do ser, é a realidade última de algo, sem o qual essa coisa deixaria de ser o que é.1111 Pinafi T. Do Paradigma essencialista para o pós-estruturalismo: uma reflexão epistemológica sobre sexualidade. Temas Psicol. 2015; 23(3):693-700.

O antiessencialismo questiona teorias essencialistas e sua convicção na determinação do ser, fundamentada na defesa do paradigma biológico como sendo o determinante da essência do sujeito.1111 Pinafi T. Do Paradigma essencialista para o pós-estruturalismo: uma reflexão epistemológica sobre sexualidade. Temas Psicol. 2015; 23(3):693-700. Neste sentido, o antiessencialismo contraria a existência de binarismos, constituídos em termos da superioridade do primeiro em relação ao segundo, por exemplo, homem/mulher, heterossexual/homossexual, etc. Um dos argumentos da corrente essencialista é que sexo e sexualidade repousam sob uma base conceitual biológica, enquanto que, na perspectiva antiessencialista, nem o sexo biológico e nem a sexualidade estão conceitualmente livres de influências sociais e culturais.1212 Foucault M. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2008. Apesar de terem base biológica, o gênero e a identidade sexual não passam de interpretações sociais.1313 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Realidade. 1990; 16(2):186-98.

A superação da visão essencialista do mundo permite questionar a existência de sujeitos que estão invisibilizados e sem voz na sociedade, apostando-se que nem sempre as coisas são como parecem ser. Essa visão essencialista do mundo se reflete no modo como as pessoas que vivem com HIV/aids e TB são vistas e tratadas no Brasil, pois, majoritariamente, essas pessoas estão cercadas por situações de privação de liberdade, morando na rua, empregos informais, prática sexual insegura, com baixa escolaridade e ocupando áreas onde as situações de violência estão mais acentuadas. Esse quadro, muitas vezes, torna os sujeitos invisibilizados, com silêncios pouco explorados e com a manutenção de estratégias de cuidado centradas, apenas, na prescrição de cuidados considerados eficazes para a recuperação da saúde, prescrevendo-se comportamentos essenciais ao sujeito, sem considerar outros aspectos que determinam seu adoecimento.

APLICANDO A METODOLOGIA ‘THE SILENCES FRAMEWORK’ EM UMA PESQUISA SOBRE COINFECÇÃO NO BRASIL

A metodologia The Silences Framework é proposta para o desenvolvimento de pesquisas sobre temas pouco estudados, pouco compreendidas ou silenciados, refletindo os aspectos não ditos ou não compartilhados relativos aos modos como crenças, valores e experiências de alguns grupos afetam suas chances de vida e saúde.99 Rossetto M. Estudo epidemiologico sobre coinfecção TB/HIV/aids e fatores de risco para a internação e mortalidade em Porto Alegre [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Enfermagem; 2016 Ao apontar lacunas no campo da pesquisa, os aspectos não ditos de determinadas realidades podem contribuir para a identificação de discursos marginizados na saúde.1212 Foucault M. A arqueologia do saber. 7 ed. Rio de Janeiro (RJ): Forense Universitária; 2008.-1313 Scott JW. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Realidade. 1990; 16(2):186-98.

A metodologia está dividida em quatro estágios principais,1010 Serrant-Green L. The sound of 'silence': a framework for researching sensitive issues or marginalised perspectives in health. J Res Nurs. 2010; 16(4):347-60. organizados conforme a figura 1.

Figura 1
Quadro teórico da metodologia The Silences Framework (traduzido e adaptado pelas autoras).1010 Serrant-Green L. The sound of 'silence': a framework for researching sensitive issues or marginalised perspectives in health. J Res Nurs. 2010; 16(4):347-60.

A seguir estão descritas as quatro etapas da metodologia, conforme sua utilização em uma pesquisa sobre coinfecção no Brasil.

Estágio 1 - Trabalhando nos ‘silêncios’ (Working in ‘silences’)

Esta primeira etapa consiste na exploração contextualizada da literatura. Esta deve ser situada no sujeito ou objeto da pesquisa e pode incluir a exploração do cenário cultural, clínico, psicossocial ou moral em que a pesquisa será conduzida. Ao fazê-lo, define-se o projeto de pesquisa, proposto dentro de um determinado período de tempo e em uma sociedade específica. Na conclusão desta etapa, o pesquisador deve procurar responder “por que pesquisar este tema neste momento particular?” com base na exposição de “o que não sabemos?” ou “quais histórias ainda estão para ser contadas?”.

Na pesquisa de que trata este estudo, esta primeira etapa buscou na revisão da literatura identificar os grupos de pessoas acometidas pela coinfecção HIV/aids e TB que são silenciados. Essa busca foi realizada em bases de dados nacionais e internacionais, gerando a delimitação do tema de pesquisa. Uma análise preliminar mostrou que os estudos na área da coinfecção eram majoritariamente quantitativos e se dedicavam a buscar a identificação de fatores de risco para a coinfecção e a multirresistência aos fármacos, com maior probabilidade de adoecimento entre os homens, brancos, com idades entre 29 e 40 anos, com baixa escolaridade. Nesse sentido, os homens coinfectados eram os sujeitos predominantemente incluídos nas pesquisas. Assim, identificou-se que dentre os grupos de pessoas coinfectadas, havia uma maior probabilidade de se ter vozes silenciadas ou questões pouco exploradas entre mulheres, embora a coinfecção afete mais os homens.1414 Maffacciolli R, Hahn GV, Rossetto M, Almeida CPB, Manica ST, et al. Using the notion of vulnerability in the production of knowledge about tuberculosis: integrative review. Rev Gaúcha Enferm. 2015; 36(esp):247-53.

15 O'Connell R, Chishinga N, Kinyanda E, Patel V, Ayles H, Weiss HA, Seedat S et al. Prevalence and correlates of alcohol dependence disorder among TB and HIV infected patients in Zambia. PLoS One; 2013; 8(9):e74406.
-1616 Teixeira LB, Pilecco FB, Vigo A, Knauth DR. Sexual and reproductive health of women living with HIV in Southern Brazil. Cad Saúde Pública. 2013; 29(3):609-20.

A revisão da literatura também mostrou que havia poucos estudos qualitativos sobre os condicionantes da adesão ao tratamento do HIV/aids, os quais têm impacto significativo no desenvolvimento da TB e da coinfecção. A adesão tem sido um dos principais desafios no enfrentamento da TB e, quando esta é associada ao HIV, a manutenção do tratamento é ainda mais difícil. Nesse sentido, há necessidade de desenvolver estratégias de educação psicossocial, considerando a multidimensionalidade da adesão ao tratamento, para a diminuição das taxas de abandono e da cadeia de transmissão da tuberculose1717 Chirinos NEC, Meirelles BHS, Bousfield ABS. Relationship between the social representations of health professionals and people with tuberculosis and treatment abandonment. Texto Contexto Enferm [Internet] 2017 [cited 2017 Aug 30]; 26(1):e5650015. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v26n1/pt_0104-0707-tce-26-01-5650015.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v26n1/pt_01...
melhorando a forma de comunicação entre os profissionais e usuários não aderentes.1818 Oliveira RA, Lefevre F. Communication on disclosure of tuberculosis diagnosis and adherence to treatment: social representations of professionals and patients. Texto Contexto Enferm [Internet] 2017 [cited 2017 Aug 30]; 26(2):2e06790015. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072017000200332&script=sci_arttext
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...
Além disto, poucas pesquisas abordavam a relação entre os diferentes fatores de risco culturais e sociais que podem levar ao desenvolvimento do adoecimento por TB e HIV/aids. Descobrir os ‘silêncios’ no âmbito das pesquisas sobre a coinfecção TB/HIV/aids forneceu um caminho, por meio do qual as “probabilidades de risco” pudessem ser vistas nos contextos políticos, sociais e pessoais que afetam as decisões de saúde das pessoas coinfectadas, superando a visão de um sujeito genérico e considerando singularidades.

Estágio 2 - Ouvindo os ‘silêncios’ (Hearing ‘silences’)

Os “silêncios” foram definidos a partir da identificação de áreas de pesquisa ou experiências pouco investigadas, compreendidas, subvalorizadas ou silenciadas no contexto da coinfecção TB/HIV/aids. Concluído o Estágio 1, iniciou-se um processo de análise dos silêncios encontrados, para melhor delimitação do objeto a ser pesquisado. Como indica a metodologia, este exercício de refinamento leva em conta três aspectos interligados: quem é o pesquisador e quais seus interesses de pesquisa, qual é o tema da pesquisa e quais serão seus participantes.

Identidade do pesquisador

A identidade do pesquisador influencia significativamente na delimitação dos silêncios a serem ouvidos na pesquisa. Influenciam, especialmente, a relação dele com o tema e os motivos que o levaram a estudar estes silêncios. No caso específico da pesquisa em tela, os interesses foram originados na identidade das autoras enquanto mulheres, enfermeiras e pesquisadoras das relações de gênero na sociedade. Considerando que já existem consistentes evidências científicas da relação entre gênero e HIV/aids entre mulheres,1616 Teixeira LB, Pilecco FB, Vigo A, Knauth DR. Sexual and reproductive health of women living with HIV in Southern Brazil. Cad Saúde Pública. 2013; 29(3):609-20. as pesquisadoras tiveram interesse em saber se tal relação também estava presente nas trajetórias dos sujeitos que adoeciam pela TB e pelo HIV/aids, conhecimento ainda incipiente na literatura.

Tema de pesquisa

O pesquisador deve identificar os aspectos específicos do contexto social estudado que tornam o tema “sensível”, analisando a natureza do sujeito em si ou do momento específico que essa sociedade vive. Ao iniciar o estudo, eram os seguintes os pontos sensíveis do fenômeno da coinfecção TB/HIV/aids identificados em Porto Alegre-RS: saúde sexual, gênero, raça, escolaridade e território. Esse município era, à época do estudo, a cidade brasileira líder em incidência e mortalidade por TB, HIV/aids e coinfecção pelas duas doenças, com altas taxas de abandono de tratamento e crescente número de casos de HIV/aids entre mulheres e de transmissão vertical do vírus.44 Ministério da Saúde (BR). Boletim epidemiológico: Especial TB. Perspectivas brasileiras para o fim da TB como problema de saúde pública. Secretaria de Vigilância à Saúde. 2016; 47(13):1-15.

Na pesquisa em tela, o segundo estágio foi realizado por meio de abordagem quantitativa, de modo a obter-se o perfil comparativo de casos de coinfecção TB e HIV/AIDS entre indivíduos do sexo masculino e do sexo feminino. Também foram identificadas as gerências distritais da cidade com maior prevalência de casos por sexo e por raça/cor.

Para a formulação do banco de dados foi realizada a vinculação de: casos de TB e aids dos anos de 2009 a 2013, notificados no SINAN; óbitos ocorridos de 2009 a 2013 registrados no SIM e internações hospitalares de 2009 a 2013, registradas no SIH. Porto Alegre-RS foi dividida em oito gerências distritais, seguindo o Plano Municipal de Saúde. As análises estatísticas e a descrição das taxas médias de prevalência ocorreram com o auxílio do programa Statistical Package for the Social Science (SPSS) (versão 19).

A análise dos dados sugeriu que existem diferenças entre os sexos na distribuição dos casos entre as gerências distritais, nas questões de raça/cor, idade e na situação de encerramento dos casos de coinfecção por TB e HIV/aids no SINAN. Todas essas variáveis demonstraram resultados estatisticamente significativos na comparação entre os sexos.

A análise também apresentou diferenças na prevalência de casos de coinfecção entre as gerências distritais e locais de moradia dos indivíduos deste estudo. Somente a gerência A apresentou prevalência de coinfecção maior nas mulheres. A gerência B teve a maior prevalência tanto no sexo masculino como no total de casos de coinfecção de Porto Alegre-RS. E a gerência C teve maior proporção de população não branca. Tendo em vista esses achados, buscou-se compreender melhor a dinâmica de coinfecção nas três gerências (A, B e C), a partir do cálculo de taxas médias de prevalência pela população geral, por sexo e por raça/cor.

Participantes e os sujeitos da pesquisa

Os sujeitos da pesquisa são todas as pessoas que participam da pesquisa, sendo e diretamente afetados pelas questões pesquisadas. A partir da análise realizada os sujeitos escolhidos foram: homens residentes na gerência B, mulheres residentes na gerência A, não brancos moradores da gerência C e brancos residentes na gerência B.

Com a análise, foi possível a identificação dos locais de Porto Alegre-RS com maior prevalência de coinfecção TB/HIV/aids e a análise do perfil dos casos, o que mostrou diferenças entre homens e mulheres. Este achado resultou na mudança do objeto de pesquisa, o qual passou a abranger o estudo de homens e mulheres coinfectados. Como a caracterização dos indivíduos por sexo apresentava diferenças, possivelmente os atravessamentos nas trajetórias assistenciais de homens e mulheres também eram diferentes.

Em resumo, essa fase incorporou mais que uma identificação descritiva dos “silêncios” existentes. Por meio de uma análise crítica dos resultados da abordagem quantitativa da pesquisa questionou-se: “por que esses silêncios existem?” e “que aspectos culturais, clínicos, psicossociais ou morais os condicionam?”.

Estágio 3 - Dando voz aos ‘silêncios’ (Voicing ‘silences’)

Este estágio engloba a fase de coleta de dados ativos da pesquisa. A natureza exata dos participantes dependerá do estudo, podendo incluir usuários de serviços, grupos comunitários, indivíduos e profissionais como sujeitos de pesquisa. Alguns estudos também podem incluir as perspectivas das pessoas pertencentes às redes sociais dos sujeitos da pesquisa, recolhendo evidências indiretas daqueles que não são diretamente afetados por uma questão, mas cujos resultados clínicos, políticos ou culturais e papéis influenciam a experiência dos participantes.

A etapa foi desenvolvida numa perspectiva qualitativa, realizando-se entrevistas semiestruturadas que buscaram aprofundar a compreensão das trajetórias assistenciais de homens e mulheres. Neste processo, foram analisadas as influências do gênero e de outros marcadores na constituição das trajetórias percorridas na rede de serviços de saúde em busca de cuidado. Entender a trajetória assistencial pode ser fundamental no caso dos indivíduos coinfectados, pois a TB (coinfecção) poderia ser evitada pela adesão ao tratamento do HIV.

Foram realizadas 22 entrevistas em salas privativas, nos Centros de Referência para o Tratamento para TB (CRTBs) das gerências distritais A, B e C de Porto Alegre-RS. Os CRTBs eram os locais onde os usuários realizavam os seus tratamentos. A seleção dos participantes foi feita por meio da leitura do prontuário visando a identificação da coinfecção TB/HIV/aids, do sexo e da raça/cor dos indivíduos. As entrevistas foram gravadas e transcritas para posterior análise. A entrevista teve duração média de 30 minutos e os dados foram validados de modo individual com cada um dos entrevistados, como prevê o método, no final de cada entrevista. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e do Hospital Sanatório Partenon.

O terceiro estágio do método corresponde ao início da análise dos dados, a qual é prevista para acontecer em quatro fases e de modo cíclico. A figura 2 ilustra este processo.

Figura 2
O caráter cíclico das fases da metodologia The Silences Framework (Traduzido e adaptado pelas autoras)1010 Serrant-Green L. The sound of 'silence': a framework for researching sensitive issues or marginalised perspectives in health. J Res Nurs. 2010; 16(4):347-60.

O processo analítico ocorre de maneira cíclica sendo que, na fase 1, tem-se a análise das informações coletadas pelo pesquisador, tomando-se como referência a questão da pesquisa e os objetivos, buscando-se contextualização na literatura.

Na fase 2, a coleta de dados pode ratificar, refutar ou contestar os resultados do estudo, encaminhando à escolha dos grupos pouco explorados e que devem seguir na coleta dos dados, proporcionando, assim, informações valiosas sobre o impacto, a importância e os resultados da pesquisa. É o momento de confrontar o que foi dito na literatura (Estágio 1), na análise do cenário e dos sujeitos (Estágio 2) e as informações advindas da escuta dos silêncios (Estágio 3). Os métodos, processos e estratégias usados para incorporar os estágios em um estudo dependerá do desenho global do estudo e devem ser planejados com antecedência. Aqui tem-se um rascunho dos resultados, comparando tudo que foi produzido nos três estágios.

No projeto Atravessamentos de Gênero nas Trajetórias Assistenciais de Homens e Mulheres Coinfectados por TB e HIV/aids, foi o momento de olhar para o que já tinha sido produzido, tendo como primeiro rascunho dos resultados a hipótese de que o gênero influência de diferentes modos a forma de infecção em homens e mulheres pelo vírus HIV, sendo pela ausência do uso do preservativo ou pela incapacidade de ver o risco de contaminação em relações com seus parceiros. O desenvolvimento da coinfecção TB/HIV/aids mostra que, nas suas trajetórias assistenciais, homens e mulheres enfrentam entraves para obter o diagnóstico e para aderirem ao tratamento, os quais são condicionados às dificuldades dos serviços de saúde e dos profissionais que os atendem. Existem fatores que se relacionam, compondo um quadro de vulnerabilidade: baixa escolaridade, problemas de emprego e renda, falta de moradia e alimentos, violação dos direitos humanos de pessoas que vivem em situação de rua ou privadas de liberdade, entre outras situações. Os resultados mostraram que o gênero pode influenciar o adoecimento e as trajetórias assistenciais, estando associado a outros marcadores e compondo um quadro de vulnerabilidade programática, individual e social, com violação de direitos humanos.99 Rossetto M. Estudo epidemiologico sobre coinfecção TB/HIV/aids e fatores de risco para a internação e mortalidade em Porto Alegre [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Enfermagem; 2016,1919 Paiva V, Ayres R, Buchalla CM. Vulnerabilidade e Direitos Humanos: prevenção e promoção da saúde: da doença a cidadania. Curitiba (PR): Juruá; 2012.-2020 Maffacciolli R, Oliveira DLLC, Brand EM. Vulnerabilidade e direitos humanos na compreensão de trajetórias de internação por tuberculose. Saúde Soc. 2017; 26(1):286-99.

Na fase 3, tem-se a inclusão de ‘vozes silenciadas’, sendo ouvidos os indivíduos, as redes sociais ou grupos culturais dos participantes, que possam ter impacto na questão de pesquisa. Um aspecto adicional da exploração dos resultados pode incluir reflexão por parte destes grupos (familiares, profissionais e movimentos sociais que atuam na defesa dos direitos dos grupos coinfectados) quanto aos “silêncios” que eles consideram ainda existir ou permanecer inalterados como um resultado do estudo.

No estudo, a inclusão de vozes se deu por meio da participação no I Fórum Gaúcho Desafios para o Enfrentamento da Coinfecção TB/HIV/aids, realizado no Hospital Sanatório Partenon de Porto Alegre-RS. No evento, profissionais, usuários, gestores e organizações sociais participaram de discussões a respeito dos limites e potencialidades das ações desenvolvidas no Estado, destacando a necessidade de tratar a coinfecção TB/HIV/aids por meio de ações intersetoriais e com a ampliação de políticas públicas que garantam moradia, renda, alimentação, acesso a benefícios sociais, exercício da sexualidade e enfrentamento de problemas relativos ao abuso de álcool e drogas.

Na fase 4 da análise, o pesquisador reflete criticamente sobre os resultados das fases anteriores de análise e as apresenta como resultados finais do estudo. A ação de continuamente revisitar e rever os resultados da pesquisa em desenvolvimento, integrando usuário e perspectivas públicas, é um dos componentes essenciais desta metodologia.

Nessa etapa da pesquisa Atravessamentos de Gênero nas Trajetórias Assistenciais de Homens e Mulheres Coinfectados por TB e HIV/aids foi possível concluir que o gênero influencia as trajetórias assistenciais de homens e mulheres, mas que sua influência está associada a outros marcadores como a raça/cor, a renda, o território, a escolaridade e a idade dos sujeitos que são acometidos. As falas dos sujeitos demonstraram que esses marcadores compõem suas trajetórias de vida e de assistência, compondo quadros de vulnerabilidade social, individual e programática.99 Rossetto M. Estudo epidemiologico sobre coinfecção TB/HIV/aids e fatores de risco para a internação e mortalidade em Porto Alegre [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Escola de Enfermagem; 2016,2020 Maffacciolli R, Oliveira DLLC, Brand EM. Vulnerabilidade e direitos humanos na compreensão de trajetórias de internação por tuberculose. Saúde Soc. 2017; 26(1):286-99.

O pesquisador pode repetir o ciclo de análise quantas vezes forem necessárias, seguindo sua reflexão sobre a integridade dos dados. Quando nenhuma nova informação pertinente para a questão de pesquisa é revelada, finaliza-se o estágio 3 e inicia-se o estágio 4.1010 Serrant-Green L. The sound of 'silence': a framework for researching sensitive issues or marginalised perspectives in health. J Res Nurs. 2010; 16(4):347-60.

Estágio 4 - Trabalhando com ‘silêncios’ (Working with ‘silences’)

Esta fase incorpora os aspectos finais e a elaboração da conclusão do estudo, além de incluir uma reflexão detalhada sobre a contribuição teórica e os ganhos pragmáticos dos resultados do estudo. A questão-chave a ser respondida pelo pesquisador é: “o que mudou com os resultados deste estudo?”.

As trajetórias assistenciais de homens e mulheres são influenciadas por diferentes marcadores que compõem um quadro de vulnerabilidades sociais, individuais e programáticas que tem seu ponto de partida em situações de violação de direitos básicos como acesso à educação, moradia, renda, transporte público, saneamento básico e serviços de saúde. O pressuposto de que os sujeitos coinfectados primeiro diagnosticam o HIV e que, por serem negligentes com seu cuidado, acabam desenvolvendo a coinfecção com outras patologias nem sempre é verdadeiro. Os sujeitos são diagnosticados com patologias que revelam sua condição de soropositividade em ambiente hospitalar. Ainda, muitas mulheres recebem a confirmação de infecção pelo HIV durante a gestação ou em exames ginecológicos de rotina. Isso revela que existe a necessidade de mudar o enfoque das ações apenas para o uso de terapias medicamentosas, considerando-se que existem fatores relacionados às condições de vida das pessoas que interferem nas suas trajetórias de adoecimento e de cuidado. Além disto, há que se considerar que é necessário rever a participação do Estado na garantia dos direitos de acesso à saúde, educação, renda e cidadania, a qual se revela bastante precária neste cenário.

As considerações finais podem revelar as limitações para outros estudos ou qualquer outra generalização da pesquisa concluída. Assim, ao aceitar que “silêncios” são parte inerente de todas as sociedades, o enquadramento também reconhece que, na conclusão, alguns “silêncios” são alterados, expostos ou mesmo recém-criados como resultado da pesquisa.

Na pesquisa que ilustra a presente abordagem, alguns desafios tiveram que ser enfrentados como, por exemplo, a dificuldade de entrar em serviços de saúde devido ao contexto social das gerências elencadas como cenários da pesquisa, sendo por vezes, necessário retornar outro dia. Outra dificuldade foi a inclusão de novos participantes no estudo, pois as questões éticas, previstas inicialmente, exigiam de antemão a descrição do número e de quem seriam os sujeitos pesquisados. A questão foi resolvida com uma ementa no projeto de pesquisa.

CONCLUSÃO

O desenvolvimento da coinfecção TB/HIV/aids é fortemente influenciado pelas condições sociais, culturais e econômicas em que vivem as pessoas. À medida que procuramos expandir nossa compreensão sobre a ampla gama de fatores que afetam sua vida e sua saúde, as possibilidades de investigação tendem a ser dirigidas, cada vez mais, a explorar questões sensíveis vividas por comunidades vulneráveis.

Processos analíticos que pretendem estudar o fenômeno saúde são complexos. Tal complexidade relaciona-se com o entendimento de que saúde extrapola o limite da ausência de doenças e do pressuposto de que ‘saúde’ está intimamente relacionada às múltiplas relações estabelecidas entre pessoas e ambiente, num determinado espaço geográfico e num determinado tempo histórico. A busca por ampliar nossa compreensão sobre questões relacionadas à saúde demanda a utilização de abordagens diversas, de modo a dar conta da necessidade de apreender as diferentes experiências sobre o que é ter saúde e de entender porque as pessoas adoecem.

A metodologia The Silences Framework contribui neste sentido, na medida em que utiliza diferentes procedimentos de pesquisa ao mesmo tempo: revisão de literatura, localização dos grupos mais silenciados (abordagem quantitativa), escuta das pessoas que possuem questões a serem desveladas (abordagem qualitativa) e identificação das principais contribuições do estudo para o campo pesquisado. A análise de dados integra todas as fases da pesquisa e possibilita a inclusão de novos participantes (pessoas, grupos ou organizações) que tenham relações com os sujeitos da pesquisa e que possam contribuir para desvelar os silêncios.

O desenvolvimento desse estudo ocorreu com base em pressupostos que reconhecem e procuram dar voz às experiências, assuntos e questões que muitas vezes estão ocultos, desvalorizados ou “silenciados”. A enfermagem pode se favorecer da aplicação desse referencial, ampliando seus objetos de pesquisa, diferenciando-se pela coleta e análise de dados integrada, investigando temas sensíveis e populações historicamente marginalizadas.

AGRADECIMENTOS

À CAPES pelo financiamento da bolsa do Programa de Doutorado Sanduiche no Exterior na University of Wolverhampton, UK, processo nº BEN 9231/14-5, que permitiu o aprendizado da metodologia proposta pela Prof.ª Dr.ª Laura Serrant e a realização dessa pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Aceito
    22 Ago 2017
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