O MÉTODO DA BRICOLAGE EM PESQUISAS EM SAÚDE E ENFERMAGEM - CONSTRUINDO O CAMINHO AO CAMINHAR

EL MÉTODO DEL BRICOLAGE EN INVESTIGACIONES EN SALUD Y ENFERMERÍA - CONSTRUYENDO EL CAMINO AL CAMINAR

RESUMO

Objetivo:

promover reflexão acerca da bricolage e sua aplicabilidade em pesquisas em saúde e enfermagem.

Método:

realizou-se um resgate teórico sobre a bricolage em diferentes bases literárias como livros impressos e meios virtuais com acesso a anais de evento, artigos, e-books, dissertações e teses.

Resultados:

a literatura disponível é majoritariamente inserida no campo das artes, e mesmo sendo escassa na área da saúde, propiciou compreensões iniciais sobre o tema e instigou reflexões sobre sua utilização na enfermagem. A tessitura escritural deste artigo envolveu informações advindas das leituras em junção à vivência das pesquisadoras sobre a bricolage, descrevendo desde seu surgimento no campo das belas artes até a utilização na construção do conhecimento científico. A reflexão central versa sobre a dispensabilidade de planos metodológicos predeterminados em pesquisas em saúde e enfermagem demostrando que o método da bricolage segue uma construção ao passo em que a pesquisa se concretiza, ou seja, não propõe um caminho preestabelecido.

Conclusão:

pesquisadores bricoleurs necessitam encontrar maneiras originais para estudar os diversos fenômenos envolvidos no setor saúde e na enfermagem. A bricolage proporciona ao pesquisador bricoleur a oportunidade de criar seu próprio método, surgindo como um ‘óculos’ a fomentar uma visão multilógica, contextualizada e complexa da realidade.

DESCRITORES:
Pesquisa; Pesquisa em enfermagem; Pesquisa metodológica em enfermagem; Pesquisa qualitativa; Metodologia; Enfermagem; Saúde; Integralidade em saúde

RESUMEN

Objetivo:

promover reflexión acerca del bricolage y su aplicabilidad en investigaciones en salud y enfermería.

Método:

se realizó un rescate teórico sobre el bricolage en diferentes bases literarias como libros impresos y medios virtuales con acceso a memorias de eventos, artículos, e-books, disertaciones y tesis.

Resultados:

la literatura disponible es mayoritariamente insertada en el campo de las artes, e incluso siendo escasa en el área de la salud, propició comprensiones iniciales sobre el tema e instigó reflexiones sobre su utilización en la enfermería. La tesitura escritural de este artículo involucró informaciones provenientes de las lecturas en unión a la vivencia de las investigadoras sobre el bricolaje, describiendo desde su surgimiento en el campo de las bellas artes hasta la utilización en la construcción del conocimiento científico. La reflexión central versa sobre la dispensabilidad de planes metodológicos predeterminados en investigaciones en salud y enfermería demostrando que el método del bricolaje sigue una construcción al paso en que la investigación se concreta, o sea, no propone un camino preestablecido.

Conclusión:

investigadores bricoleurs necesitan encontrar maneras originales para estudiar los diversos fenómenos involucrados en el sector salud y la enfermería. El bricolage proporciona al investigador bricoleur la oportunidad de crear su propio método, surgiendo como ‘lentes’ para fomentar una visión multi-lógica, contextualizada y compleja de la realidad.

DESCRIPTORES:
Búsqueda; Investigación en enfermería; Investigación metodológica en enfermería; Investigación cualitativa; Metodología; Enfermería; Salud; Integralidad en salud

ABSTRACT

Objective:

to promote reflection on bricolage and its application in health and nursing research.

Method:

to carry out a theoretical revision regarding bricolage in different literary bases like printed books and virtual means with access to event annals, articles, e-books, dissertations and theses.

Results:

the available literature is mostly found in the field of arts, while being scarce in the area of health, it provided initial understandings on the subject and instigated reflections on its use in nursing. The scriptural composition of this article involved information coming from the readings in conjunction with the experience of researchers on bricolage, describing its emergence in the field of fine arts to the use in the construction of scientific knowledge. The central reflection concerns the dispensability of predetermined methodological plans in health and nursing research, demonstrating that the bricolage method follows a construction while the research is carried out, that is to say, it does not propose a pre-established path.

Conclusion:

Bricoleur researchers need to find original ways to study the various phenomena involved in the health and nursing sectors. Bricolage provides the researcher with a method of his or her own, such as a research method, a multilateral solution, a contextualization and a complexity of reality.

DESCRIPTORS:
Research; Nursing research; Methodological research in nursing; Qualitative research; Methodology; Nursing; Health; Integrality in health

INTRODUÇÃO

Este artigo de reflexão teórica representa a continuidade de um investimento intelectual das autoras na compreensão da bricolage^* enquanto alternativa teórico-metodológica para pesquisas em enfermagem e saúde.

Ler, compreender e desenvolver trabalhos científicos nessa perspectiva teórica compreende, ainda na atualidade, um desafio em termos metodológicos de pesquisa. Refletindo sobre o caminho que nos têm levado à continuidade em tal desafio, que se iniciou, no ano de 2012, com o desenvolvimento de uma dissertação de mestrado na área de enfermagem, há a recordação sobre o primeiro contato teórico com a bricolage presente em um livro referente ao planejamento em pesquisa qualitativa,¹ que relata especificamente sobre a utilização da bricolage na ausência de planos. Esse material tornar-se-ia a porta de entrada para outros textos de diferentes áreas, literatura na qual imergimos.

A busca por literaturas, que ampliassem a compreensão da temática, não obteve muito êxito em bases científicas indexadas. O termo bricolage/bricolagem não consta como um Descritor nas Ciências da Saúde (DeCS) e nem na plataforma do Medical Subjetc Headings (MeSH). Suas menções nos meios de divulgação virtuais e impressos estão em grande parte atrelados à confecção de artesanatos, o que dificultou a busca sobre a temática. Os primeiros achados mais esclarecedores, além do livro supracitado, foram provenientes de buscas aleatórias na internet que nos trouxeram publicações em anais de eventos na área de administração e artes visuais, e um artigo na área educacional. Essas primeiras leituras nos indicaram novas referências bibliográficas e, assim, parte do acervo literário sobre bricolage se perpetuou como uma pesquisa em formato bola de neve, no qual referências bibliográficas indicaram outras, movimento este que possibilitou novos achados na internet e a encomenda de livros sobre a temática.

A imissão no consumo desse material nos aproximou do conceito de bricolage tal como vem sendo empregado no campo das artes, arquitetura, administração, construção civil, educação, saúde, psicologia, e também no campo da pesquisa científica, ponto de interesse deste artigo. As primeiras informações sobre a bricolage enfatizou a essência do aleatório, a imprevisibilidade e as situações de jogo ocorridas ao acaso. Em termos metodológicos de pesquisa, exemplificou os imprevistos confrontados por pesquisadores no transcorrer de seus trabalhos e ignorados, na maioria das vezes, pela monológica predominante do saber científico.

A fonte principal que insere a bricolage no contexto da pesquisa social foi citada por Lévi-Strauss² em seu Livro, O Pensamento Selvagem, no qual refere-se à bricolage como um tipo de conhecimento primitivo ou ciência primeira, aquela guiada pela intuição e experimentação, munida de curiosidade sem limite pelas coisas pertencentes ao mundo.

Em seguida, o termo ganha novas conotações metodológicas de pesquisa com Kincheloe e Barry,³ que o ajusta dentro de uma perspectiva paradigmática complexa e multirreferencial, na qual tudo está conectado e tecido junto, atribuindo a interdisciplinaridade como centro dessa nova concepção; ampliando os contextos na formulação de pesquisas, estimulando o uso de ferramentas diversificadas; e proporcionando, ao pesquisador, a oportunidade de criar seu próprio método.

Ressaltamos a importância que esse aspecto de criação metodológica pode agregar em valor e qualidade para o avanço das pesquisas em saúde e enfermagem. Numa nova era em que vivemos um movimento de transição paradigmática, reconhecemos que a saúde e a enfermagem têm recebido novas conotações sociais embebidas de subjetividade e influência cultural, política, econômica, religiosa, etc. Cabe a nós, pesquisadores em constante ascensão, percebermos as limitações que nos estão impostas pelos métodos convencionais de pesquisa e passarmos a combinar, reformular e, até mesmo, criar novas formas de produzir conhecimento em saúde e enfermagem, sempre conscientes das influências do meio, com foco mais aberto, reconhecendo as relações de poder inseridas no contexto da pesquisa.

É justamente sobre esse aspecto amplo e multilógico da bricolage que intuímos abordar neste artigo, com o objetivo de esclarecer questões teóricas sobre a temática, a fim de promover reflexões sobre sua potencial utilização em pesquisas em saúde e enfermagem. A bricolage é enaltecida pela característica de liberdade proporcionada ao pesquisador, aceitando sua conexão com o objeto estudado e a oportunidade de tornar-se um bricoleur, construindo o caminho metodológico ao caminhar.

Dessa forma, este artigo se desdobra resgatando o conceito bricolage desde suas primeiras influências no movimento das belas artes, seguido por sua aplicação ao conhecimento científico, trazendo as potencialidades teórico-metodológicas desse referencial para pesquisas em saúde e enfermagem.

ONDE TUDO COMEÇOU: A INFLUÊNCIA DO MOVIMENTO ARTÍSTICO

O conceito de bricolage ou, em português, bricolagem, é oriundo do francês e significa um trabalho manual feito ao acaso. Possui influência de movimentos artísticos que se caracterizaram por polemizar a lógica burguesa e a acadêmica imperativa, que se mantinha como supremacia e impedia que novas correntes artísticas se firmassem com força e vitalidade para a expressão da realidade condizente com a verdade social oculta.

Assim, das vanguardas artísticas europeias do século XX, origina-se o mito do selvagem - o qual excluía tudo que era convencional e primava pelo “caráter espontâneo e intuitivo da arte dos povos considerados sem instrução”.^4:1040 Tal interesse não se restringiu aos povos primitivos, se mas estendeu também às “produções dos marginais, dos loucos e das crianças”.^4:1040 Dessa tentativa de fuga contra o poder artístico burguês, entre outras tendências artísticas modernas, surge o movimento dadaísta, que não possuía identidade própria e assumia uma miscelânea de características e elementos identificados em outros movimentos artísticos preestabelecido.

A fuga ao pré-estabelecido é marcante ao dadaísmo e outorga-lhe, um status de antiarte ou movimento rebelde em prol da negação do poder dominante. A busca por rupturas ao instituído provocava, nos integrantes desse movimento, reações contra os sistemas predominantes que ditavam as tendências artísticas.

É perceptível nas primeiras compreensões sobre a interconexão da bricolage e o movimento artístico sua forte característica de consideração sobre as relações de poder estabelecidas no contexto, e sua luta pela queda da hegemonia lógica predominante. Quando analisamos os fatores que essa ruptura provocou, percebemos que novas formas de produzir arte foram inseridas no mundo, ampliando possibilidades de criação e proporcionando liberdade estética ao artista, que passa a atuar livre de qualquer regra ou moral estilista.

Encabeçado pelo movimento dadaísta, o surrealismo nasce com amparo teórico no marxismo, na psicanálise e nas filosofias de ocultismo e, assim, estrutura sua doutrina baseando-se não na destruição da lógica predominante, mas na possiblidade de construção de sua própria lógica, numa perspectiva aberta e ampla, que traz o inconsciente como uma dimensão psíquica a ser explorada.⁴

O surrealismo empodera a bricolage com teorias, e sua influência ultrapassa a barreira das artes, expandindo-se para diferentes áreas de produção, não só artísticas, mas também, científicas. Dessa forma, aprofundaremos, a seguir, como Lévi-Satruss aplicou esse raciocínio ao campo do conhecimento,² e também como Kincheloe e Barry o aprofundou na perspectiva metodológica científica.³

BRICOLAGEE CIÊNCIA - O CONHECIMENTO PRIMEIRO

O contato de Lévi-Strauss com a bricolage deu-se ao longo da Segunda Guerra Mundial, no período de seu exílio em Nova York nos Estados Unidos da América, onde conviveu com artistas influentes dos movimentos dadaísta e surrealista, também refugiados, com os quais partilhava interesses comuns referentes às artes e cultura indígenas. Nesse mesmo período, Claude Lévi-Strauss partindo desse encontro ao acaso, empenhou-se em dar vida ao seu novo trabalho: o Pensamento Selvagem.²

O princípio de seu pensamento teórico parte da negação de que todo conhecimento acumulado pelos povos primitivos iniciativa de uma necessidade prática. Para ele, o conhecimento aspirava à ordem no universo, e tal busca guiava-se pela intuição. Por muitos e muitos anos, antes da ciência moderna, o conhecimento já avançava por meio da experimentação humana guiada por uma “curiosidade assídua e sempre alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer”.^2:30 Como exemplo, cita o domínio do homem neolítico sobre as “grandes artes da civilização como a cerâmica, tecelagem, agricultura e domesticação de animais. Para ele, cada uma dessas técnicas supõe séculos de observação ativa e metódica, hipóteses ousadas e controladas, a fim de rejeitá-las ou confirmá-las”.^2:29

Lévi-Strauss acreditava que as formas de conhecimento elaboradas antes da ciência moderna já se constituíam por meios sistematizados de forma espontânea, e que mesmo não seguindo o rigor científico, com total controle sobre as variáveis como recomendado pela modernidade, o homem já carregava em si uma longa herança de tradição científica, que tendia a buscar conhecimentos diversos sobre o mundo, tornando-se um bricoleur, ou seja, utilizando meios indiretos e sem planejamento definido.^2:30

O bricoleur, nesse sentido, é capaz de executar tarefas diversificadas, valendo-se de múltiplos materiais, o que impossibilita a definição de um projeto a priori. Lévi-Strauss, nesse momento, na tentativa de fazer-se compreender, faz uma comparação do bricoleur ao engenheiro, explanando que o primeiro trabalha com signos, enquanto que o segundo com conceitos e, muito embora signos e conceitos representem as mesmas coisas, os signos abarcam o sensível, significados imbricados que fogem da lógica conceitual, captando o estético e ampliando as possibilidades de interpretação.

Assim, na mesma perspectiva do uso dos signos, o bricoleur é considerado um costurador de colchas de retalho, não em seu sentido prático, mas sim estético, devido sua arte trabalhar com o fragmentário e por utilizar-se de uma variedade de ferramentas, métodos, teorias, estratégias, intepretações, etc., sempre levando em consideração o contexto e suas particularidades como indivíduo e pesquisador.⁵

Podemos assim dizer que Lévi-Strauss inseriu a bricolage no campo científico e querapidamente o conceito tem se adaptado às diferentes áreas de conhecimento e práxis cotidiana. Na atualidade, o termo está popularmente associado a atividades do método ‘faça você mesmo’, também conhecido como ‘do it yourself (DIY)’, comumente divulgado nos meios de mídia digital e impressos de revistas.

Nessa perspectiva, “o bricoleur é o que executa usando dos meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano preconcebido e se afastam dos processos e normas adotados pela técnica”.^2:30 Não se restringindo somente aos cartazes de artesanatos, a bricolage tem sido muito discutida e empregada em termos metodológicos de pesquisa.

A PRODUÇÃO DE PESQUISAS CIENTÍFICAS NA AUSÊNCIA DE PLANOS

Quando falamos em metodologia, estamos tratando também sobre a obtenção de metas em consequência de um determinado percurso. Isto porque o sentido etimológico vem do grego méthodos (metá: através de/hódos: via), significando seu caminho. Ou seja, “a metodologia de uma pesquisa é um conjunto de estratégias anteriormente definidas”,^4:1038 que pressupõe claramente a necessidade de planejamento.⁶

O planejamento minucioso, com controle das variáveis, esteve sempre atrelado ao feitiço do método cartesiano, já que sua “emoção básica se constituiu no temor ao caos, o desejo de extirpar o erro, a procura da certeza e a necessidade de garantias”.^6:27 Entretanto, se bem pensarmos “nenhuma ciência começa a partir de um tratado de método. O discurso do método foi escrito depois dos ensaios científicos dos quais se constitui seu prefácio”.^6:29 Tal inversão temporal consiste em pretender que o caminho preexista ao próprio mundo e ao próprio conhecimento.

Ao cristalizar o método, como base primordial para a obtenção das verdades científicas, os seguidores cartesianos o transformaram sem querer, na fragilidade paradigmática para evolução do conhecimento. Kuhn, em 1962, já demostrara que as crises paradigmáticas iniciam-se principalmente pelas contestações metodológicas, pois em revoluções científicas o método é inicialmente questionado ante qualquer conteúdo específico de uma teoria.^6-7 Assim, essa estrutura tão segura advinda do paradigma positivista, ainda muito influente nas pesquisas contemporâneas, foi historicamente questionada por cientistas que advogavam a construção não neutra do pesquisador, ao apreciar “o valor da subjetividade em pesquisas qualitativas e o princípio da incerteza”.^8:280

Desde então, a pesquisa social tem convidado a comunidade acadêmica a (re)pensar e (re)criar novas e diferentes formas de produção de conhecimento, algo que desafie o comum e permita vir à tona toda criatividade do pesquisador. Muito se tem questionado sobre esse tema, e estudos têm polemizado se a preocupação com a metodologia de pesquisa está fora de moda, alarmando sobre uma delicada situação referente à falta de rigor metodológico em termos de relatos de pesquisas já publicadas.⁹

Outros debates trazem à tona a investigação qualitativa na perspectiva da avaliação de sua qualidade. Algumas iniciativas têm introduzido a pretensão de valorar quantitativamente tal qualidade por meio de diferentes instrumentos, e diferentes opiniões polarizam essa discussão. Nesse debate, a ação reflexiva durante o transcorrer de toda pesquisa é tida como um fator para obtenção da qualidade, ou seja, um instrumento para seu alcance, uma vez que tais estudos são de caráter subjetivo, lidam com a experiência humana e são construídos ao decorrer da própria pesquisa.¹⁰

Essas questões ainda geram polêmica, devido aos reflexos da vertente positivista, que ainda paira sobre os caminhos científicos, enfatizando a necessidade de privilegiar o método. As pesquisas qualitativas questionam o pensamento cartesiano, demostrando que ele já não consegue responder a todas as questões e, justamente por possuir essa característica, necessita de um relato metodológico rigoroso. Consideramos inadmissível a condução de pesquisas sem um relato metodológico fidedigno ou qualquer situação que confunda ‘liberdade’ com ‘licenciosidade acadêmica’, pois mesmo na perspectiva da bricolage, prima-se sempre pelo rigor metodológico desenhado ao longo da pesquisa.

Tais ocorridos se constituem entre os argumentos que formulam as principais críticas à bricolage, pois devido sua liberdade de criação muitos a consideram um vale-tudo metodológico,³ e com isso, há cientistas que não a “vislumbram como um modo rigoroso de se fazer pesquisa social”.^11:4 Outro aspecto relevante sobre sua crítica, “diz respeito às conclusões, pois de fato o pesquisador bricoleur não porta ou define verdades, uma vez que sua visão sobre os fenômenos é apenas mais uma de inúmeras perspectivas que podem vir a existir”.^11:4

As inovações surgidas em termos de pesquisa qualitativa, e as resistências delas advindas ao campo científico, estimularam os pesquisadores Kincheloe e Berry³ a investir sobre a temática da bricolage e, assim, aprimoraram o conceito de Lévi-Strauss e tornaram-se referências sobre sua utilização em termos metodológicos de pesquisa. Sem fugir do conceito original proposto por Lévi-Strauss, esses autores imprimem ao termo um olhar teórico pós-moderno, atrelando ao mesmo implicações de cunho filosófico, paradigmático, social, cultural, político e histórico, tornando científico algo metodologicamente subversivo.

Kincheloe e Barry resgatam toda a rebeldia que despertou o surgimento da bricolage no dadaísmo, que se traduz basicamente na denúncia das relações de poder estabelecidas nos contextos de pesquisa. Para eles, “a bricolage opera a partir de uma visão sobre as formas dominantes de poder, adotando uma ontologia relacional e enfrentando o desafio de trazer para o bojo da pesquisa as dificuldades envolvidas no seu processo”.^12:8

O pesquisador bricoleur não é ingênuo. Consciente que seu objeto de pesquisa, ele está fortemente ligado a si e a sua constituição enquanto indivíduo; ele não nega essa relação intrínseca, mas amplia suas possibilidades de pesquisa sabendo que a multiplicidade de abordagens irá gerar resultados sob perspectivas diversas. Sendo assim, não aceita os resultados enquanto verdade absoluta, mas como aproximações temporais, limitadas e provisórias da realidade.¹³ “A interação dos pesquisadores com os objetos de suas investigações é sempre complicada, volátil, imprevisível e certamente, complexa. Essas condições descartam a prática de planejar antecipadamente as estratégias de pesquisa. Em lugar desse tipo de racionalização do processo, os bricoleurs ingressam no ato de pesquisa como negociadores metodológicos.”^3:17 Ou seja, vão avaliar continuamente a necessidade de inclusões ou descartes de estratégias durante o desenvolvimento da mesma.

Na perspectiva de Kincheloe e Barry, a interdisciplinaridade é proposta como centro da bricolage,³ e para compreender melhor como tal proposta se insere, na perquisa recorremos a complexidade moriniana,¹⁴ que embora não seja diretamente citada na obra principal de tais autores, “encontra-se inserida em uma orientação teórica-filosófica pós-moderna, aceitando a confluência e a combinação de técnicas de pesquisa modernas e construtivistas, incitando discussões sem delimitar fronteiras ou soberania de um paradigma sobre o outro”.^11:5

A interdisciplinaridade na bricolage baseia-se no diálogo, numa inter-relação entre conhecimentos e disciplinas, a fim de promover uma pesquisa integrada, contextualizada, com saberes conexos. É nesse sentido que a complexidade se insere na bricolage, e vice e versa, demostrando que a separação dos fenômenos de seu ambiente natural, do homem e da natureza, da objetividade e subjetividade, enfim, que o pensamento fragmentário gera as cegueiras do conhecimento.¹⁴

REFLETINDO ACERCA DO USO DA BRICOLAGE NAS PESQUISAS EM SAÚDE E ENFERMAGEM

A formulação do método ao passo e andamento da pesquisa é característico na vertente pós-moderna. A criação de percursos próprios, criativos e com registros fidedignos são bem quistos na (re)construção do conhecimento no paradigma emergente, assim, as decisões formuladas que irão compor a trilha da pesquisa não se dão apenas sobre os aspectos técnicos, tais como seleção de sujeitos, coleta e/ou análise dos dados, ou seja, itens indispensáveis que compõem o capítulo metodológico de uma pesquisa. As decisões são tecidas ao longo de todo o estudo, e estão contidas em cada elemento, desde a escolha e delimitação do objeto a ser investigado, às considerações finais elaboradas a partir das interpretações do autor.

Existem diferentes conotações referentes aos termos de ‘método’ e ‘metodologia’ descritas acerca da produção de conhecimento científico. Sendo assim, esclarecemos que a compreensão de método aqui adotada abarca as terminologias método e metodologia de forma equivalente.

O método¹⁵ traduz-se nas práxis de um fenômeno, no seu sentido objetivo, subjetivo e concreto, reunindo, de forma inextricável olhares teóricos impressos, tipos de pesquisas, técnicas adotadas, formas de análise, metodologias percorridas e, o mais importante, a marca personificada do pesquisador.

Essa compreensão ampara-se em noções complexas descritas entre o programa e a estratégia, cujo entendimento está atrelado à instabilidade da realidade circunscrita e a aceitação das incertezas. O programa é compreendido “como uma organização predeterminada da ação”,^15:29 necessita de estabilidade para que possa ser concretizado, não improvisa e nem inova. É bem característico na vertente positivista, pois não admite correções ao caminho já traçado. Já a “estratégia encontra recursos, faz contornos, realiza investimentos e desvios”,^15:29 é capaz de proporcionar improviso diante de situações imprevistas bem como abrir possibilidades de inovação, assim, não define e nem descarta nenhum caminho a priori, pois permite a criação e a oportunidade de reinvenção em acordo ao contexto da pesquisa.

A estratégia coloca-nos frente à incerteza da realidade e à necessidade de enfrentar contradições, paradoxos, ambiguidades, questões que são naturais à realidade de saúde; ensinando-nos a lidar com a diversidade. Portanto, pesquisas em saúde e enfermagem, liquidificadas na realidade instável, e que necessariamente precisam considerar as diversas facetas/dimensões envolvidas nos serviços e sistemas de saúde, possuem com a bricolage, a oportunidade de valer-se de olhar contextualizado e interdisciplinar.

A bricolage aplicada à enfermagem, tanto na formulação de pesquisas quanto no cotidiano de trabalho, vem de encontro a princípios marcados como fundamentais para a formação voltada ao Sistema Único de Saúde, a integralidade e a interdisciplinaridade.

A prática contemporânea de enfermagem defende a atenção centrada no paciente, considerando que o mesmo possui multidimesões e singularidades que o definem como sujeito. Assim, o exercício profissional exige que enfermeiros sejam capazes de aplicar uma gama de saberes e conhecimentos visando o bem-estar de um ou mais indivíduos. Portanto, estudos têm considerado a atividade do profissional de enfermagem como uma forma de bricolage.^16-17

Essa analogia dá-se pelo fato do enfermeiro articular no seu dia a dia uma heterogeneidade de saberes fragmentados, que são construídos e reconstruídos no contexto de trabalho, muitas vezes, modificando o sentido ou intenção inicial de suas ações, sendo considerados gerenciadores interdisciplinares, os quais executam múltiplas tarefas utilizando os recursos disponíveis adotados.¹⁷

O conceito do profissional de enfermagem enquanto bricoleur parte da sua capacidade de criação de cuidados baseados em evidências, pesquisas, conhecimento profissional e experiência clínica em conjunto às singularidades e preferências do paciente. A ‘enfermeira cientista’ analisa e possivelmente muda sua prática por meio investigações, enquanto a ‘enfermeira bricoleur’ altera os eventos e ajusta as ferramentas para criar novas práticas.^17:121

Entretanto, a segurança ontológica envolvida na enfermagem, enquanto disciplina científica, engessa a maior parte das inovações que surgem e/ou que podem vir a surgir na realidade prática do serviço. São ações que se perdem por falta de registros nos livros, atas e prontuários, consideradas como ações sem valor ou limitadas por restrição de autorização no exercício profissional.

Inovações no campo da pesquisa em enfermagem, principalmente na realidade do serviço, podem ser dotadas de dúvidas, questionamentos e, até mesmo, impossibilidade de execução a depender da cultura organizacional.¹⁸ O resquício positivista que ainda paira sobre a norma funcionalista organizacional da assistência em saúde e enfermagem, de forma geral, dificulta que métodos inovadores na produção do conhecimento científico sejam adotados, e quando o são, formulam-se para atender certas necessidades seguindo a rotina já estabelecida no ambiente assistencial. A bricolage, nesse sentido, ultrapassa a barreira metodológica afirmando que o contexto não define o método, pois este, pode ser adaptado aos diferentes cenários do objeto pesquisado.

Propostas de pesquisa, que promovem mudanças específicas à realidade dos serviços de enfermagem, têm ganhado destaque entre as publicações nos últimos anos. São replicáveis a depender do contexto seguindo fases preestabelecidas, como exemplo, podemos citar a pesquisa convergente assistencial cuja execução visa retorno prático para a realidade do serviço.¹⁹

Entretanto, pesquisas sobre a organização e realização dos serviços de enfermagem também podem ser realizadas no método da bricolage mas, nessa perspectiva, não há sugestão do passo a passo a ser seguido, pois a mudança não provém de um evento isolado, mas configura-se de maneira multifatorial, envolvendo, inclusive, conhecimentos fora da área de enfermagem, que podem ser utilizados para compreensão de experiências dentro do serviço.²⁰

No cenário de inovações em pesquisas em saúde e enfermagem, a bricolage abre portas, constituindo-se por múltiplos métodos de investigação, bem como diversas noções teóricas e filosóficas sobre os vários elementos que compõe o objeto de pesquisa.²¹ Abraçar a pluralidade de conhecimentos, avançar para além dos limites de ‘ser enfermeiro’, pode propiciar reflexões sobre sua própria constituição enquanto prossional e sobre a constituição dos serviços executados.¹⁶

Podemos dizer que, no nível da assistência, a bricolage encontra utilidade auxiliando a compreensão da complexidade envolvida no serviço de enfermagem. Ela honra essa complexidade sugerindo que os enfermeiros sejam capazes de modificar suas ações e seu contexto, utilizando múltiplas fontes de conhecimento baseadas em evidências. Isto se caracteriza como inovador, pois possibilita o desenvolvimento de produções científicas sobre fenômenos ou de suas facetas, que não podem ser abarcados por métodos embasados no pensamento linear.

CONCLUSÃO

A proposição de novos métodos para o desenvolvimento de pesquisas em saúde e enfermagem pode contribuir de forma única para o avanço do conhecimento científico na área. A realidade complexa necessita do reconhecimento da incerteza e da consideração da multidimensionalidade envolvida, nesse sentido, a bricolage se configura como uma alternativa metodológica viável, que permite a captação do aspecto multilógico, e também, da constante necessidade de recriações utilizando materiais e técnicas diversificadas durante o transcorrer da pesquisa.

A condição de pesquisador bricoleur assume a rebeldia pela contestação do pronto, toma a criação do próprio método como ponto de partida. As relações estabelecidas entre o objeto pesquisado e o pesquisador são fendidas, não abrindo espaço para a neutralidade perceptiva. Assim como foi no movimento das artes, representados pelo dadaísmo e surrealismo, os pesquisadores bricoleurs necessitam encontrar maneiras originais para estudar os diversos fenômenos envolvidos no setor saúde. A bricolage surge no cenário como um ‘óculos’ a fomentar a visão multilógica e contextualizada, trazendo a estratégia como aliada no processo de investigação.

O conceito de ‘enfermagem como bricolage’ foi algo novo advindo de leituras internacionais e demostra sua total utilidade ao considerar os múltiplos saberes e aspectos inerentes à atuação de profissionais de enfermagem, considerando não só a produção de conhecimento, mas também as intervenções que podem contemplar mudanças nos cenários de prática.

Compartilhar novos percursos metodológicos como meio de expansão do conhecimento atual, pode se categorizar como um desafio, uma vez que existem normatizações rígidas a serem consideradas na maioria dos meios de divulgação científica. Assim, consideramos ser necessário ultrapassar os aspectos técnico/burocráticos para se publicar além de novas descobertas, também, novas formas de produzir conhecimento em saúde e enfermagem.

• *
  Manteremos a utilização do termo bricolage em sua versão original (francês) ao longo do texto.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  2017

Histórico

• Recebido
  30 Mar 2017
• Aceito
  22 Ago 2017