INTRODUÇÃO
Os serviços de saúde podem ser considerados campos férteis para a exposição dos trabalhadores a diversos agravos à saúde. Além da exposição a acidentes com materiais biológicos, radiação, produtos químicos e danos ergonômicos, os profissionais da saúde deparam-se com a violência no seu local de trabalho.1-2
Os profissionais de enfermagem têm sido apontados como grupo vulnerável à violência no trabalho.2 A experiência frequente da exposição contribui para a gravidade da problemática, uma vez que trabalhadores experimentaram mais de um evento violento no ano,3 e em alguns locais pode chegar a um episódio diário.4
A Organização Mundial da Saúde define a violência no trabalho como resultado da interação complexa de diversos fatores, com destaque para as condições e a organização do trabalho, bem como a interação trabalhador-agressor.5 Para a Organização Internacional do Trabalho, a violência no âmbito laboral caracteriza-se por incidentes envolvendo abuso, ameaça ou ataque em circunstâncias de trabalho. Nesse sentido, as manifestações da violência se configuram como malefícios explícitos ou implícitos à segurança, bem-estar ou saúde do trabalhador.6
Os malefícios da violência podem ser de difícil identificação, especialmente quando não se configuram em repercussões físicas. No entanto, estudos já revelaram os impactos negativos para a saúde psíquica dos trabalhadores7-8 e para a saúde física, manifestados por sintomas como dor e palpitações, bem como reflexos sobre o desempenho no trabalho e, por vezes, implicam no desejo de desistir da profissão.9
No cenário brasileiro ainda são escassos estudos sobre a temática,10-12 especialmente na perspectiva de vislumbrar a violência como um objeto de estudo complexo, com dimensões quantitativas e qualitativas, de apresentação física e psicológica, sob o engendramento de relações humanas geradoras de agressões no espaço laboral em saúde. Considerando o exposto, objetivou-se analisar a presença da violência física e psicológica entre trabalhadores da saúde, identificar seus perpetradores e compreender a origem das agressões.
MÉTODO
Desenvolveu-se um estudo transversal, de abordagem mista, com delineamento quanti-qualitativo, em hospital público referência em trauma para a Região Sul do Brasil. O hospital funciona 24 horas por dia e realiza atendimentos em especialidades ambulatoriais e todas as especialidades médicas e odontológicas necessárias ao atendimento de politraumatizados.
Participaram do estudo auxiliares e técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos e outros profissionais da saúde (nutricionistas, fisioterapeutas, assistentes sociais, odontólogos, psicólogos e técnicos de radiologia) que atuavam nas salas de urgências e emergências, unidades de tratamento intensivo, bloco cirúrgico, unidades de internação, banco de sangue, bem como setores de radiologia, fisioterapia, psicologia e serviço social. O estudo considerou auxiliares e técnicos de enfermagem na mesma categoria, denominando-os como técnicos de enfermagem.
Na etapa quantitativa da investigação foram mensuradas as características demográficas e laborais dos trabalhadores, e para o levantamento da violência ocorrida nos últimos 12 meses foi utilizado o Survey Questionnaire Workplace Violence in the Health Sector, proposto pela Organização Mundial da Saúde, Organização Internacional do Trabalho e de Serviços Públicos e Conselho Internacional de Enfermagem,13 traduzido e adaptado para a língua portuguesa.14 Esse questionário mensura a ocorrência da violência física e a violência psicológica, sendo a violência psicológica composta pela agressão verbal, assédio moral, assédio sexual e discriminação racial.
A seleção aleatória dos trabalhadores da amostra (n=269) ocorreu por sorteio proporcional ao estrato das categorias profissionais, definida segundo cálculo amostral probabilístico sobre a população de 1.025 trabalhadores da equipe de saúde, considerando um nível de confiança de 95% e estimativa de erro de 5%. O sorteio foi realizado mediante a lista de funcionários do hospital, sendo incluídos os trabalhadores em cargo de provimento efetivo, com tempo mínimo de um ano de serviço no hospital e ativos no período da coleta dos dados.
Na etapa qualitativa do estudo foram entrevistados 20 sujeitos vítimas da violência no último ano, selecionados intencionalmente a partir da disposição para relatar suas experiências e sentimentos acerca do ocorrido, o que foi identificado ao longo da coleta quantitativa. O número de trabalhadores entrevistados foi definido pela saturação dos dados.15 Utilizou-se um roteiro semiestruturado para compreender a origem e as situações em que ocorre a violência laboral.
A coleta dos dados aconteceu entre os meses de junho e setembro de 2011. Obteve-se aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do local do estudo (nº. 001.014667.11.8) e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Utilizou-se a estatística descritiva e analítica para os dados quantitativos, considerando estatisticamente significativo p≤0,05. Variáveis categóricas foram descritas por meio de frequências relativas e absolutas e variáveis contínuas foram descritas com medidas de tendência central e dispersão. Para as análises de associação, utilizou-se do teste qui-quadrado.
Os dados originados das transcrições das entrevistas foram submetidos à técnica de análise temática.15 A leitura flutuante do material e a identificação de palavras-chave, recortes e codificação configuraram a pré-análise do material. Na sequência, construíram-se as unidades temáticas, que foram interpretadas e confrontadas com a literatura, originando as seguintes categorias: pacientes: agressores sem culpa e o perfil da culpa; a revolta como manifesto: a agressão praticada pelos agredidos; trabalho sem regra e as regras do oficio: engendramentos da violência entre profissionais. Para garantir o anonimato dos participantes no uso dos fragmentos das falas, empregou-se a letra E (entrevista) seguida pelo número arábico que ordenou cronologicamente a realização das entrevistas.
RESULTADOS
Compuseram a amostra 269 sujeitos, sendo 122 (45,4%) técnicos de enfermagem, 90 (33,5%) médicos, 27 (10%) enfermeiros e 30 (11,1%) profissionais de outras categorias da saúde; 157 (58,4%) eram mulheres, com 49 (+7,4) anos em média, 24,8 (+7,8) anos de experiência profissional na área da saúde e 16,2 (+7,7) anos na instituição. Na amostra, 63,2% (n=170) referiram trabalhar exclusivamente nesta instituição e 8,9% (n=24) possuíam cargo de chefia.
O estudo registrou 277 eventos de violência entre os 170 trabalhadores que afirmaram ter sofrido violência, seja um tipo de violência (35%, n=94) ou mais (28,2%, n=76), nos últimos 12 meses. Dentre as vítimas, 15,2% (n=42) sofreram violência física. A violência psicológica atingiu 48,7% (n=135) dos trabalhadores por meio de agressões verbais, 24,9% (n=69), por assédio moral, 8,7% (n=24) foram ocorrências de discriminação racial e 2,5% (n=7), de assédio sexual (Tabela 1).
Tabela 1 Distribuição dos trabalhadores expostos à violência física e psicológica no trabalho, segundo o sexo e a categoria profissional. Porto Alegre-RS, 2011. (n=269)
Variáveis | Violência física (n=42) | Agressões verbais (n=135) | Assédio moral (n=69) | Assédio sexual (n=7) | Discriminação racial (n=24) | |||||
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n (%) | p* | n (%) | p* | n (%) | p* | n (%) | p* | n (%) | p* | |
Sexo | ||||||||||
Feminino | 31 (19,7) | 0,027 | 86 (54,8) | 0,075 | 51 (32,5) | 0,002 | 5 (3,2) | 0,477 | 19 (12,1) | 0,030 |
Masculino | 11 (9,8) | 49 (43,8) | 18 (16,1) | 2 (1,8) | 5 (4,5) | |||||
Categoria | ||||||||||
Técnico de Enfermagem | 30 (24,6) | 0,001 | 69 (56,6) | 0,129 | 41 (33,6) | 0,015 | 3 (2,5) | 0,434 | 15 (12,3) | 0,256 |
Enfermeiro | 4 (14,8) | 15 (55,6) | 6 (22,2) | 0 (0,0) | 2(7,4) | |||||
Médico | 4 (4,4) | 40 (44,4) | 13 (14,4) | 2 (2,2) | 4 (4,4) | |||||
Outra | 4 (13,3) | 11 (36,7) | 9 (30,0) | 2 (6,7) | 3 (10,0) |
*Qui-quadrado calculado sobre a distribuição da amostra total nos grupos expostos e não expostos à violência.
Ainda sobre a violência física, 41,2% (n=111) da amostra afirmaram já ter presenciado algum tipo de violência física no seu local de trabalho.
Acerca da violência psicológica, dentre as vítimas da agressão verbal, 83% (n=112) classificaram a situação como típica no seu local de trabalho. As vítimas de assédio moral referiram que esta havia se repetido por volta de quatro vezes no último ano. A vivência repetida da discriminação racial para as suas vítimas variou em torno de duas situações no último ano. Apesar de pouca expressão numérica, o assédio sexual havia se repetido para suas vítimas por mais de três vezes no último ano.
Quanto aos perpetradores de violência (n=277), constatou-se que o paciente foi o principal agressor da equipe de saúde (35,4%, n=98). Os colegas (da equipe multiprofissional de saúde) praticaram violência em 25,3% (n=70) das situações, seguidos pela chefia (21,7%, n=60), acompanhantes (15,5%, n=43) e outros agentes (2,1%, n=6).
Os dados apontaram que os pacientes foram os principais perpetradores da violência física e da agressão verbal, alcançando respectivamente 90,5% (n=38) e 35,5% (n=48) dessas agressões, e também estiveram entre os principais praticantes das intercorrências de discriminação racial (25%, n=6) e assédio sexual (42,9%, n=3).
Os acompanhantes ocuparam o segundo lugar entre os perpetradores da agressão verbal (23,7%, n=31) e da violência física (7,1%, n=3), além de praticarem o assédio moral (4,3%, n=3), a discriminação racial (16,7%, n=4) e o assédio sexual (14,3%, n=1).
Os colegas de trabalho dividiram o segundo lugar com os acompanhantes na prática da agressão verbal (23,7%, n=32). As chefias foram as principais responsáveis pelas ocorrências de assédio moral (47,9%, n=33), tendo sido apontadas como praticantes da discriminação racial em 20,8% (n=5). Nas situações de agressão verbal, elas foram apontadas em 16,3% (n=22) das ocorrências, entretanto, não houve nenhuma situação que envolvesse a chefia na prática da violência física e do assédio sexual no trabalho.
Ainda foi possível observar que 'outros agentes', de fora do ambiente laboral, como profissionais de diferentes serviços de saúde contatados para encaminhamentos, por exemplo, e motoristas de táxis e de ambulâncias que trazem os pacientes ao serviço, também praticaram a violência contra os trabalhadores do hospital em estudo. Estes agentes foram apontados como perpetradores do assédio moral (5,8%, n=4), da agressão verbal (0,8%, n=1) e da discriminação racial (4,2%, n=1).
As categorias oriundas da análise qualitativa acrescentam aos resultados a compreensão sobre a relação entre a vítima, o tipo de violência praticada, o estímulo gerador da agressão e o espaço social da violência no mundo do trabalho em saúde.
Pacientes: agressores sem culpa e o perfil da culpa
Ao discorrer sobre as situações que envolviam a violência perpetrada pelos pacientes, os trabalhadores buscavam justificar racionalmente as suas vivências, ocupando-se de esclarecer que não atribuíam a estes a culpa pelo incidente. Alterações neurológicas, história de abuso de álcool/drogas e distúrbios mentais foram as principais causas das agressões, segundo os profissionais.
Eu já fui agredida por uma paciente, ela era confusa devido à patologia dela e ela cuspiu na minha cara, era paciente com HIV, então a gente vive assim (E3).
Às vezes, acontece com um paciente bêbado, alguma coisa assim, que aí te empurra, ou te bate com os pés (E4).
Ademais, ao falar dos pacientes agressivos, as vítimas frequentemente descreviam o seu perfil de maneira similar, atribuindo a imagem do agressor ao sexo masculino.
[...] o paciente levantou um soco para bater em mim e o familiar foi e segurou a mão. Era um rapaz forte, musculoso (E16).
Se eles estão lúcidos e não têm uma distração, eles te usam como distração, entendeu? [...] eles te chamam de "santa", sabe? (E15).
Outro aspecto mencionado nas entrevistas foi sobre o atendimento prioritário do hospital às causas externas, o que acaba trazendo a violência urbana das ruas para dentro do hospital. Os profissionais relataram que isso lhes conferia maior risco de serem agredidos no trabalho.
Geralmente os usuários de drogas são mais agressivos, os que já vêm com histórias assim de agressão física, foram agredidos, foram esfaqueados, baleados, tiro (E14).
Nesse hospital tu lidas muito com a violência em si, banho de sangue e estresse, toda hora lidando com presos que vêm do presídio ou são pegos na rua. Aí tu atendes o cara que fez o assalto e baleou o trabalhador [...] tu atendes esse bandido (E19).
Os relatos trazem à tona a representação que os trabalhadores têm sobre o perfil dos pacientes agressivos, que passam a ser objeto da assistência, exigindo habilidades para lidarem com a violência, e refletem relações de poder no espaço social do hospital.
A maioria dos pacientes são meio desculturados. A maioria com pouco estudo, mora em vila, então, eles não conhecem limites [...] o tipo de paciente que nós temos, eles têm dificuldade com liderança e isso gera neles um tipo de, vamos dizer, de poder ou direito que eles não têm (E12).
Ao mesmo tempo em que inocentaram os pacientes pela violência praticada, os trabalhadores agredidos por pacientes atribuíam a eles a culpa pelas próprias escolhas.
A gente sofre muita violência por parte dos pacientes, infelizmente, e não tem como tu culpares o paciente, porque muitos são drogaditos, são alcóolatras, entram em abstinência e eles não sabem o que estão fazendo [...] alguns não querem o tratamento, alguns fogem, aí tu ficas pensando assim: por que não aproveita a oportunidade? Tem um que recebe todo um tratamento caríssimo, mas vai para a rua e continua, e amanhã ou depois volta. Ou fogem porque não querem, na maior cara de pau, sabe? (E18).
As falas ainda revelaram que, além da agressão oriunda do contato assistencial, o trabalhador experimenta uma violência que se materializa na sua frente: a brutalidade das ruas, a miséria, as histórias de vulnerabilidades; o que já agrega, por si só, a experiência da insegurança.
A história [dos pacientes] relata que muitas vezes eles foram vítimas da violência na rua, o que para nós soa como negativo, porque é uma pessoa como a gente, que estava na rua e de repente sofre uma violência, um dano, isso aí, queira ou não queira, nos abala (E19).
Eles têm umas histórias bem complicadas assim, trágicas, violência, e daí, às vezes, até eu procuro me afastar um pouco, não parar para ouvir tanto para não absorver. Parece que, às vezes, agride a gente (E14).
Diante dos relatos, pode-se dizer que os pacientes são agressores destituídos da culpa pela ação violenta, mas culpados pelas escolhas que os trazem ao hospital. Ainda, a aproximação com a violência urbana, com a marginalidade e a exclusão atribui aos trabalhadores uma vivência cotidiana de ameaça e sofrimento.
A revolta como manifesto: a agressão praticada pelos agredidos
A aproximação com as vivências dos trabalhadores frente às agressões sofridas no trabalho possibilitou identificar a estrutura organizacional que permite, instiga, incita ou mesmo perpetua a violência. No que tange às agressões perpetradas pelos pacientes, estes foram interpretados como usuários revoltados diante da qualidade do serviço prestado no hospital.
O médico demora para vir, aí o paciente é lúcido mas não entende, ele já te agride, o familiar já te agride porque o médico passou mas já foi embora, entendeu? Toda a estrutura, ou que ele [paciente] tem que 'ir na comadre' e está na frente de todo mundo, aí ele fica brabo contigo. Se tu estás ocupada e demora 5 minutos para 'tirar a comadre', eles te agridem verbalmente (E15).
Aos déficits no atendimento se soma a exigência dos pacientes pelo atendimento imediato, previamente esperado de um hospital de pronto-socorro. Essa questão agrava os conflitos nos setores que recebem os pacientes externos, pois, quando a expectativa pela atenção imediata não se cumpre, ocorre a revolta.
Muitas vezes o profissional não tá te dando um retorno satisfatório porque tá defasada a mão de obra [...]. Então eles vão se revoltando com isso [...]. Todos que entram aqui dentro: 'meu caso émais urgente, meu caso éo último' (E12).
Se bobear, eles vêm para cima, [...] tudo para eles é grave, eles não entendem que um cortezinho no dedo pode esperar. Aí vem o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], às vezes com um etilizado que caiu, cortou a testa, e passa na frente, ou os presos, também passam na frente. Isso irrita quem está lá fora há mais de uma hora esperando. [...] E aí, o que acontece? Eles não xingam o médico, eles não xingam o enfermeiro, eles não xingam o diretor, eles xingam nós, porque nós somos a linha de frente (E2).
Este fragmento sinaliza para aspectos que contribuem para a maior exposição dos auxiliares ou técnicos de enfermagem à violência no trabalho, seja pela maior interação física ou pelo maior espaço temporal em contato com os pacientes. Além disso, os auxiliares ou técnicos de enfermagem se sentem golpeados pela percepção de baixo prestígio socioprofissional ao serem alvo de ataques que não atingem na mesma frequência os demais profissionais.
A falta de condições apropriadas ao atendimento não afetou somente os usuários do serviço, mas também os trabalhadores:
existe um certo estresse entre os profissionais devido à contingência de trabalho, [...] as pessoas brigam muito entre si por falta de leito aqui dentro, pela necessidade que têm de encaminhar os pacientes (E3).
[...] o problema é um só: é a falta de funcionários! [...] ficam cobrando um do outro e acabam brigando. [...] a gente não consegue desenvolver muito o trabalho. Daí acaba te irritando (E14).
Além de compreender esses comportamentos como instigados pelo contexto de trabalho, as entrevistas mostraram que as agressões entre colegas muitas vezes são maneiras de dar vazão à frustração causada por um tipo de violência que, embora não tenha sido quantificada nesta pesquisa, faz trabalhadores vítimas em massa: a violência estrutural. O impacto da violência estrutural gera outras violências e, assim, abala-se a integridade moral do trabalhador, e o sofrimento se instala.
Precisa apoio de fora, da Secretaria da Saúde, a fim de intervir nessas dificuldades de falta de leito, falta de UTI. Precisaria não só os profissionais daqui ficarem brigando entre si, mas ter o apoio governamental (E10).
Nessa direção, os trabalhadores apontaram as suas chefias imediatas como igualmente vítimas da violência estrutural, já que sua autonomia passa a ser um prestígio ou injunção, retóricos diante da degradação da missão de produzir saúde naquele contexto de trabalho.
Trabalho sem regra e as regras do ofício: engendramento da violência entre profissionais
Na maioria dos relatos dos participantes, a violência originada pelas relações socioprofissionais foi vinculada ao fato de se tratar de um serviço público, no qual a estabilidade do emprego justifica as formas de expressão.
[A agressão] acontece até pelo fato que as pessoas não têm medo de perder o emprego [...] nós abusamos um pouco (E10).
Pelo fato de ser um serviço público, ninguém quer se indispor, eles [chefias] não querem se indispor [...] o resultado disso é que o desrespeito vai aumentando (E17).
As falas revelaram que a passividade contra a injustiça e a aceitação da agressividade são utilizadas como forma de linguagem, assim, vítima e agressor são papéis do mesmo personagem.
Eu já fui vítima de agressão, mas também já xinguei, sabe? [...] também não existe um respeito hierárquico de chefia com subordinado, como também não existe de subordinado para chefia (E2).
As falas ainda evidenciaram que muitas situações de violência se originam de conflitos provocados pelos desacordos nas condutas assistenciais.
Tu colocas uma guedel no paciente, porque facilita para higienizar a boca e para o paciente não morder o tubo, ele oxigena melhor e facilita a aspiração do tubo, mas quando tu voltas, ele está sem a guedel. Fica uma coisa que não tem uma rotina, não tem protocolo, e isso é ruim. [...] São coisas pequenas que viram a coisa mais horrível do mundo, uma violência [...] a gente fica brigando entre si desnecessariamente, porque não se limita a tomar uma atitude (E10).
Sem investimentos no gerenciamento dos conflitos, estes se agravam a ponto de se transformarem em violências entre os pares e mesmo entre os níveis hierárquicos.
As coisas ficam de acordo com a decisão de quem tá no plantão, de quem tá vivendo aquela situação. Não existe um protocolo, então, por isso que existem muitos desentendimentos (E3).
A menção ao protocolo expressa a necessidade de serem assumidos acordos de cooperação que visem à mudança, uma cooperação que requer evoluir sobre a aceitação passiva que deixa por isso mesmo.
É um serviço público, e existem pessoas que tão aqui dentro há anos [...]. E isso permite, na cabeça da pessoa que é o agressor, permite uma margem de segurança. Então, eu posso voltar a agredir o colega porque não vai dar nada comigo, já estou aqui há tantos anos (E6).
Como visto, diante do trabalho sem regras, prevalece como regra de ofício o poder do mais antigo, e a violência se manifesta no abuso assegurado pela inexistência de medidas de controle, prevenção ou punição.
DISCUSSÃO
Estudos internacionais corroboram com os achados acerca da exposição frequente à violência no trabalho em saúde, seja de natureza física ou psicológica.16-17 A violência psicológica tem sido mais prevalente do que a física,3,16-23 com ocorrência que pode chegar à média de 2,29 episódios de agressão verbal por turno de 8 horas e 1,18 de agressões físicas.24
A prevalência da agressão verbal identificada na literatura (62% a 85%),3,17-18,20-22 é superior aos achados deste estudo (48,7%), podendo até ser constatada em 100% dos trabalhadores no período de seis meses.25
Os achados do presente estudo revelaram prevalência superior aos 10% de casos de violência física vistos em estudo realizado no Líbano.21 Por outro lado, vê-se 62,3% de agressões físicas realizadas com facas feitas previamente com pedaços de madeira ou com mobiliários da enfermaria a profissionais de enfermagem de hospitais chineses.26
Revisão sistemática com 136 estudos, que estimou as taxas de exposição em diversas regiões do mundo, desvelou que a violência não física ocorreu em mais de 50% dos casos em todas as regiões, sendo a menor taxa verificada na Ásia e quase duas vezes mais prevalente na região do Oriente Médio.1 O assédio moral teve a menor taxa de incidência na Europa e a maior no Oriente Médio1 e atingiu 30,2% da equipe de enfermagem de um hospital da Grécia,27 e os episódios ocorreram várias vezes na semana (12%) ou quase que diariamente (4%).28 A presença do assédio moral no ambiente laboral da enfermagem tem sido considerada aceita e reproduzida como parte da cultura organizacional, repercutindo no adoecimento e prejuízo das funções profissionais.11
Estudos têm apontado que os enfermeiros são mais expostos à violência do que outros membros da equipe mutiprofissional4 e que os mesmos tiveram risco de 39% a 53% maior de sofrer violência no local de trabalho do que técnicos de enfermagem.19,23 Quanto ao sexo, existem diferenças nos resultados de estudos anteriores, uma vez que há estudo apontando mulheres como principais vitimas,16 homens29 ou sem diferença significativa entre os sexos.19
Quanto ao perpetrador dos diferentes tipos de violência no trabalho em saúde, corrobora-se com o que é mostrado pela maioria dos estudos, os quais citam os pacientes seguidos pelos acompanhantes como os agressores mais frequentes.1,9,21,25,30-31 A maioria das agressões e ameaças físicas é perpetrada por paciente e o abuso verbal frequentemente é perpetrado por acompanhantes.3 De encontro com esse dado, estudo libanês evidenciou que os perpetradores mais comuns de abuso verbal eram os acompanhantes dos pacientes, seguidos de médicos, enfermeiras e supervisoras.21
Em seis hospitais norte-americanos, constatou-se uma prevalência de 50,4% de episódios de violência perpetrada por pacientes e acompanhantes, sendo 39% nos 12 meses anteriores à pesquisa.3 Outros estudos afirmam que os profissionais que trabalham mais frequentemente com pacientes, e que têm contato físico direto com estes, têm risco aumentado de sofrer violência física.26,30 A maioria dos eventos violentos ocorreu nos próprios quartos dos pacientes.3,21
Face aos achados acerca do perpetrador, foi possível desvelar uma ambiguidade de sentimentos e pensamentos no que tange ao paciente como autor das agressões sofridas pelos trabalhadores, uma vez que os trabalhadores trouxeram ao discurso justificativas para desculpar os pacientes, as quais se embasaram primeiramente na racionalização dos efeitos da condição clínica, e outras vezes os culparam, baseados na estereotipia de ser bandido, criminoso ou miserável. Estudo afirma que trabalhores vítimas de violência distinguem violência intencional de não intencional, tendendo a ver a última em termos menos negativos.4
Longos tempos de espera e o abuso de substâncias têm sido causas para agressões no trabalho em saúde.4 Questões comportamentais de saúde mental foram apontadas por estudo americano como fatores que contribuem para 63,7% dos eventos perpetrados por pacientes, seguidas de retirada da medicação, dor e abuso de substâncias (37,8%), e estar descontente com o cuidado e/ou conflito experimentando com a equipe médica (72,7%).3 Nessa direção, investigação suíça constatou que enfermeiros que possuíam um ritmo de trabalho mais elevado eram mais propensos à exposição à violência física em seu local de trabalho.17
Neste estudo, a organização e as condições de trabalho foram aspectos intensamente relacionados à violência que faz vítimas no trabalho em saúde e configuram um tipo de violência institucional,32 bem como se relacionam à insatisfação dos trabalhadores.33 Trata-se, contudo, de uma relação complexa, uma vez que a violência pode ser compreendida como produto das interações humanas que se estabelecem num cenário precário e turbulento de trabalho ou, ainda, como uma forma de manifestação do descontentamento dos envolvidos (trabalhadores e usuários) com a precarização a que estão expostos.
Na mesma direção, trabalhadores de dois hospitais atenienses mencionaram que as principais causas da violência praticada por médicos contra a enfermagem foram a falta de profissionais (84,0%) e os atrasos na prestação de cuidados de enfermagem (67,9%). Já as perpetradas por enfermeiros tiveram como principais causas a falta de profissionais (77,6%) e discordâncias e falta de comunicação entre a equipe (58,0%).16 Fatores relacionados à má administração da instituição, incluindo redução de pessoal e de recursos, foram citados por estudo realizado na Jordânia como fatores que contribuíam com a violência em seu local de trabalho.20
As consequências da precarização do setor de saúde afetam os profissionais, que brigam entre si ao se sentirem, de alguma forma, responsabilizados injustamente. Assim, interpretam-se os comportamentos violentos como expressões de descontentamento diante do abuso provocado, sob forma de negligência, às condições essenciais à dignidade do trabalhador como representante de um sistema de saúde frente à população.
Enfermeiros que trabalham em hospitais públicos têm maiores riscos de sofrer violência no local de trabalho do que aqueles que trabalham em hospitais privados.23 Além de considerar os investimentos públicos em medidas de segurança para conter e tratar os casos de agressão, no presente estudo, encontrou-se que a estabilidade do vínculo empregatício é fator que possibilita o uso da violência sem risco da perda do emprego. Interpretam-se as agressões entre profissionais como resposta aos valores organizacionais que cultuam a virilidade como valor, como virtude do grupo, e, assim, negam a fraqueza e o medo diante da precarização das condições de trabalho e das relações sociais.
Como limitação do estudo aponta-se o foco voltado a um único contexto laboral, o que não impede que a reflexão seja transposta a outros cenários, uma vez que o local do estudo possui características organizacionais e de demanda comuns aos diferentes contextos públicos de prestação de serviços de saúde. Dessa forma, os resultados aqui apresentados podem impulsionar gestores e trabalhadores para a análise deste fenômeno presente no cotidiano do trabalho em saúde: a violência sofrida pelos profissionais responsáveis pela oferta de cuidados à população. Sugerem-se estudos de acompanhamento e que avaliem a eficácia de intervenções para a prevenção e combate à violência no trabalho em saúde.
CONCLUSÃO
A violência psicológica foi prevalente, principalmente na forma de agressão verbal e assédio moral, mas a violência física também se mostrou frequente. Mulheres foram estatisticamente mais expostas à violência física, assédio moral e discriminação racial, bem como técnicos de enfermagem foram mais expostos à violência física e assédio moral. O paciente foi o principal agressor da equipe de saúde, seguido pelos colegas, chefia e acompanhantes, respectivamente.
Foi possível compreender que a origem das agressões esteve relacionada aos agravos neurológicos, abuso de álcool e outras drogas, motivos pelos quais os pacientes foram ditos como não culpados pela violência praticada. As condições impróprias de trabalho foram geradoras da revolta dos pacientes e entre os profissionais. Aspectos da organização do trabalho no hospital público foram apontados como motivos para conflitos que repercutem em violências.
O estudo desenvolvido contribui para a análise do fenômeno da violência no trabalho em saúde, o qual tem sido naturalizado no cotidiano dos serviços brasileiros, raramente mensurado, tipificado ou compreendido e, portanto, não combatido, tratado ou prevenido. A abordagem mista como escolha promissora para a análise do fenômeno da violência no trabalho, uma vez que integrou elementos complementares e potencializou as interpretações e inferências sobre os achados.
Acredita-se que a presente investigação poderá despertar os profissionais da saúde para reconhecerem a problemática, bem como poderá instigar futuros profissionais a refletir sobre o tema e identificar circunstâncias potencialmente capazes de incitar práticas de violência ou mesmo enxergar as agressões físicas e psicológicas, por vezes consideradas inerentes ao contexto da saúde. Ainda para o campo da gestão, o estudo aponta aspectos merecedores de investimentos, a fim de garantir mais segurança e qualidade de vida aos trabalhadores, bem como prevenir agravos à saúde, afastamentos e desistências do emprego.