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PESQUISA CARTOGRÁFICA: REFLEXÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS PARA ENFERMAGEM1 1 Artigo extraído da tese - Marcas do corpo do professor na formação de enfermeiros: um estudo sobre egressos nos cenários de cuidar, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), em 2016.

INVESTIGACIÓN CARTOGRÁFICA: REFLEXIONES TEÓRICAS Y METODOLÓGICAS PARA LA ENFERMERÍA

RESUMO

Objetivo:

refletir sobre as contribuições teóricas e metodológicas da cartografia para pesquisa em enfermagem.

Método:

trata-se de um ensaio reflexivo sobre as reverberações teóricas e metodológicas da cartografia nas pesquisas em enfermagem alicerçada na rede conceitual deleuze-guattariana.

Resultados:

as reflexões foram agrupadas em um pilar reflexivo intitulado: Contribuições teóricas e metodológicas da cartografia para as pesquisas em enfermagem. Nesta perspectiva, a cartografia foi considerada como uma atitude de descobertas no plano da subjetividade, problematizada pela posição do pesquisador-cartógrafo durante o ato de investigar-cartografar.

Conclusão:

a cartografia, como campo de experimentação, pressupõe, por parte dos pesquisadores, o desprendimento de técnicas engessadas em pesquisa, como forma de analisar a complexidade dos fenômenos na sua relação com a prática da enfermagem nos territórios cartografados.

DESCRITORES:
Conhecimento; Mapeamento geográfico; Enfermagem; Pesquisa em enfermagem; Filosofia em enfermagem

RESUMEN

Objetivo:

reflexionar sobre las contribuciones teóricas y metodológicas de la cartografía para la investigación en enfermería.

Método:

se trata de un ensayo reflexivo sobre las reverberaciones teóricas y metodológicas de la cartografía en las investigaciones en enfermería cimentada en la red conceptual deleuze-guattariana.

Resultados:

las reflexiones fueron agrupadas en un pilar reflexivo titulado: Contribuciones teóricas y metodológicas de la cartografía para las investigaciones en enfermería. En esta perspectiva, la cartografía fue considerada como una actitud de descubiertas en el plano de la subjetividad, problematizada por la posición del investigador-cartógrafo durante el acto de investigar-cartografiar.

Conclusión:

la cartografía, como campo de experimentación, presupone el desprendimiento de técnicas relacionadas con la investigación, por parte de los investigadores, como forma de analizar la complejidad de los fenómenos en su relación con la práctica de la enfermería, en los territorios cartografiados.

DESCRIPTORES:
Conocimiento; Mapeo geográfico; Enfermería; Investigación en enfermería; Filosofía en enfermería

ABSTRACT

Objective:

to reflect on the theoretical and methodological contributions of cartography for nursing research.

Method:

this is a reflexive essay on the theoretical and methodological reverberations of cartography in nursing research based on the deleuze-guattarian conceptual network.

Results:

the reflections were grouped in a reflective pillar entitled: Theoretical and methodological contributions of cartography for nursing research. From this perspective, cartography was considered as an attitude of discoveries in the field of subjectivity, problematized by the position of the researcher-cartographer during the act of investigating-mapping.

Conclusion:

cartography, as a field of experimentation, presupposes, on the part of the researchers, the detachment of techniques plastered in research, as a way of analyzing the complexity of the phenomena in their relation with the practice of nursing in the mapped territories.

DESCRIPTORS:
Knowledge; Geographic mapping; Nursing; Nursing research; Philosophy in nursing

INTRODUÇÃO

Fundamentalmente, este ensaio reflexivo agrega em si os produtos filosóficos oriundos da íntima parceria estabelecida entre Gilles Deleuze e Félix Guattari.11 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia - volume I. São Paulo (SP): Editora 34; 1995. Esses autores se mantêm lado a lado, sem hierarquia para conversar sobre os fenômenos presentes na vida, o que convoca a enfermagem a pensar sobre o que eles denominam de filosófico-política.22 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009.

No mundo globalizado, tal binômio incorpora discursos sobre o capitalismo e seus complexos de forças circulantes no íntimo dos corpos implicados nos mais variáveis processos de produção da vida. Estas conversas sobre as forças produtivas, instituídas e instituintes, configuram oportunidades de intensificação nas apostas investigativas no pensamento contemporâneo como forma de superar o isolamento dos saberes e disparar questões que ainda não foram suscitadas para construção do conhecimento científico.

Nesta direção, a enfermagem é estimulada, por estes referenciais, a ampliar os problemas a serem investigados e analisar, a partir de uma perspectiva política, os processos instaurados na realidade, que, por si só, são dinâmicos e agregam elementos da subjetividade.

Subjetividade é compreendida como produção “interna e externamente construída, estando relacionada a uma heterogeneidade de fatores que são socio-historicamente determinados. Alguns comportamentos que se revelam na prática do trabalhador de enfermagem podem, muitas vezes, estar relacionados a tudo o que ele aprendeu em sua vida, desde a infância e, também, durante os anos de sua formação e atuação profissional”.3:11433 Figueiredo PP, Lunardi-Filho WD, Silveira RS, Fonseca AD. A não implementação do processo de enfermagem: reflexão apoiada em conceitos de Deleuze e Guattari. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2014 [cited 2017 Feb 02]; 23(4):1136-44. Available from: http://www.scielo.br/pdf/tce/v23n4/pt_0104-0707-tce-23-04-01136.pdf
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Nesse prisma, emergem as reverberações teóricas e metodológicas da cartografia no domínio da enfermagem, o que garante confirmar o caráter profícuo deste ensaio reflexivo, que, de fato, tem muito a contribuir no plano da subjetividade para as pesquisas nas áreas da saúde, gestão e ensino.

Contextualmente, pensar a cartografia no ensino de enfermagem, conduz o pensamento para análises que tocam os processos de subjetivação, ou seja, formar é produzir. No caso, produzir corpos de enfermeiros, o que não se faz sem uma aventura na ideia deleuze-guattariana de produção de subjetividade. Isso coloca em destaque a formação do profissional de saúde pautado num regime de afetabilidade que se produz no processo de ensino-aprendizagem entre o corpo do professor e o estudante de enfermagem.44 Spinoza B. Ética. 2ª ed. Belo Horizonte (MG): Autêntica; 2009.

É neste particular encontro estabelecido entre o professor e o estudante, aqui traduzido em reflexões, que os corpos ilustrativamente não são observados pela sua forma e suas funções, mas entendido como um plano de forças acessadas pelas diretrizes teóricas e metodológicas da cartografia.

No plano teórico, a cartografia é responsável em atualizar as sensações das pessoas, cuja polarização está centrada nas conexões humanas e nos processos apreendidos da realidade. O corpo passa a ser entendido como uma representação gráfica, onde os aspectos subjetivos são, metricamente, expressos por linhas, pontos, desenhos, recortes das experiências vividas. Espécie de arte viva, que dá visibilidade a um mapa capaz de retratar os territórios percorridos, os seus acontecimentos mais significativos, suas paixões e as distintas grandezas de poderes nele circulados.

Nesta representação gráfica, “nada se decalca, não há um único sentido para a sua experimentação, nem uma mesma entrada. Entende-se que os acessos são múltiplos na cartografia. A realidade cartografada se apresenta como um mapa móvel, de tal maneira que tudo aquilo que tem aparência de ‘o mesmo’ não passa de um concentrado de significação, de saber e de poder”.2:102 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009.

Cartografia também é entendida como conhecimento capaz de ser gerado “em consonância construtiva com a heterogeneidade imanente ao viver, isto é, pautado por uma ética, uma estética e uma política que, além de favorecer o desprendimento das rotas repetidas, apura o cuidado com o outro mediante o respeito pela própria vida e sua vocação expansiva”.5:2805 Regis VM, Fonseca TMG. Cartografia: estratégias de produção do conhecimento. Fractal, Rev Psicol [Internet]. 2012 [cited 2016 Dec 15]; 24(2):271-86. Available from: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v24n2/a05v24n2.pdf
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6 Passos E, Kastrup V, Tedesco S. Dossiê cartografia: pistas do método da cartografia - Vol. II. Fractal, Rev Psicol [Internet]. 2013 [cited 2016 Dec 14]; 25(2):217-20. Available from: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v25n2/01.pdf
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7 Meneghetti FK. O que é um Ensaio-Teórico? Rev Adm Contemp [Internet]. 2011 [cited 2016 Dec 14]; 15(2):320-32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rac/v15n2/v15n2a10.pdf
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8 Japiassú H, Marcondes D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro (RJ): Zahar; 2006.

9 Zambenedetti G, Silva RAN. Cartografia e genealogia: aproximações possíveis para a pesquisa em psicologia social. Psicol Sociedade [Internet]. 2011 [cited 2016 Dec 15]; 23(3):454-63. Available from: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n3/02.pdf
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10 Rolnik S. O ocaso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência. ARS (São Paulo) [Internet]. 2003 [cited 2016 Dec 15]; 1(2):79-87. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n2/07.pdf
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11 Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1996.

12 Bollnow OF. O homem e o espaço. 9ª ed. Curitiba (PR): UFPR; 2000.

13 Passos E, Kastrup V. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal, Rev Psicol [Internet]. 2013 [cited 2016 Dec 15]; 25(2):391-414. Available from: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v25n2/11.pdf
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14 Carreiro MA, Santos MMD, Gama PR, Figueiredo NMA. Maneiras de pesquisar o cuidado de enfermagem por meio do método cartográfico. J Res Fundam Care Online [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 22]; 7(4):3135-47. Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/2870/pdf_1684
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-11 Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia - volume I. São Paulo (SP): Editora 34; 1995.

Nesta linha, a compreensão metodológica da cartografia pressupõe o desprendimento de técnicas engessadas em pesquisa que remontam um arsenal de conhecimentos sistematizados. Ela é responsável em estimular os investigadores aqui denominados cartógrafos a enveredar em um território intersubjetivo potencializado pelo encontro.

Firma-se que o método cartográfico “não se define pelos procedimentos que adota, mas é uma prática e uma atividade orientadas por uma diretriz de natureza não propriamente epistemológica, mas ético-estético-político. Diversos procedimentos podem ser adotados no que concerne a técnicas de entrevistas, análise dos dados, estratégias e dispositivos de pesquisa existentes”.6:2186 Passos E, Kastrup V, Tedesco S. Dossiê cartografia: pistas do método da cartografia - Vol. II. Fractal, Rev Psicol [Internet]. 2013 [cited 2016 Dec 14]; 25(2):217-20. Available from: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v25n2/01.pdf
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Importa registrar que, nesta orientação metodológica, o conhecimento científico produzido localiza-se em uma espécie de zona intermediária, lugar privilegiado para observação das (des)conexões existentes entre as pessoas e o complexo intensivo de forças circulantes nos seus corpos quando vivenciam os processos investigados.

Baseado nessas contextualizações preliminares, o que emerge para pensar a cartografia são reflexões que trazem a indissociabilidade teórica e metodológica, capazes de exercitar na enfermagem formas inusitadas para a produção do seu conhecimento científico.

Dado este interesse, as argumentações presentes neste ensaio são orientadas pelo seguinte questionamento: Quais são as contribuições teóricas e metodológicas da cartografia para as pesquisas em enfermagem?

Para responder esta indagação não há enredo a priori e considera-se necessário manter o equilíbrio nas linhas teóricas dos filósofos inicialmente mencionados. Em consequência, emerge o desejo iminente de ensaiar proposições guiadas pelo seguinte objetivo: refletir sobre as contribuições teóricas e metodológicas da cartografia para pesquisa em enfermagem.

No tocante particular da criação de reflexões, posiciona-se o papel do ensaísta, entendido como aquele que é capaz de transgredir a forma tradicional de pensar a realidade. É antes de tudo experimentador e não reprodutor de conhecimento ou produto de reflexões presas à formalidade do método. É por meio do ensaio que a enfermagem deve possibilitar um vir-a-ser, ou seja, elo entre o conhecimento existente e novo, baseados na originalidade.77 Meneghetti FK. O que é um Ensaio-Teórico? Rev Adm Contemp [Internet]. 2011 [cited 2016 Dec 14]; 15(2):320-32. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rac/v15n2/v15n2a10.pdf
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Isto porque a criação de reflexões perpassa pela ação do pensamento que investiga a si mesmo, volta-se sobre si mesmo, examinando a natureza de sua própria atividade e estabelecendo os princípios que a fundamentam. Caracteriza, assim, a consciência crítica, isto é, a consciência na medida em que examina sua própria constituição, seus próprios questionamentos.88 Japiassú H, Marcondes D. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro (RJ): Zahar; 2006.

Rumo à reflexão, que versa sobre a cartografia e suas reverberações no plano teórico e metodológico para as pesquisas de enfermagem, optou-se por organizar os conteúdos no pilar reflexivo, dispostos a seguir.

CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS DA CARTOGRAFIA PARA AS PESQUISAS EM ENFERMAGEM

De saída, a cartografia se projeta em um “campo de multiplicidades e de variação contínua. É tomada como um mapa em constante produção, instaurando um processo de experimentação capaz de criar novas coordenadas de leitura da realidade, criando uma ruptura permanente dos equilíbrios estabelecidos”.9:4579 Zambenedetti G, Silva RAN. Cartografia e genealogia: aproximações possíveis para a pesquisa em psicologia social. Psicol Sociedade [Internet]. 2011 [cited 2016 Dec 15]; 23(3):454-63. Available from: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n3/02.pdf
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Um mapa totalmente flexível, cujos percursos vão sendo construídos à medida que os processos são vivenciados e as linhas e eixos de diferentes intensidades e coordenadas presentes, como desejos nos corpos, são capturadas da realidade e impactadas pelas forças presentes na rede de relações.

Sendo assim, o desafio para cartografar pode incidir na seguinte indagação: como não se perder nesse processo extremamente subjetivo, uma vez que envolve diretamente as forças presentes no mundo e nas relações? Para abrir essa discussão, situa-se o corpo como uma “bússola que orienta a criação de territórios para fazê-los funcionar como atualização existencial de sensações. Um manancial de força de invenção é, então, liberado, sem que se possa dele apropriar-se para a construção de mundos singulares em consonância com o que pede o processo vital”.10:8010 Rolnik S. O ocaso da vítima: para além da cafetinagem da criação e de sua separação da resistência. ARS (São Paulo) [Internet]. 2003 [cited 2016 Dec 15]; 1(2):79-87. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ars/v1n2/07.pdf
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De fato, realizar pesquisas na área da enfermagem, orientadas pela cartografia, perpassa por uma compreensão teórica dos territórios e análises dos processos dali advindos. Por isso, “a instalação da pesquisa cartográfica sempre pressupõe a habitação de um território, o que exige um processo de aprendizado do próprio cartógrafo. Tal aprendizado não é pensado como uma série de etapas de um desenvolvimento, mas como um trabalho de cultivo e refinamento”.2:1352 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009.

Na sua forma ampliada, o território é entendido como “um espaço vivido, um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’. Sinônimo de apropriação de subjetivação fechada sobre si. Conjunto dos projetos e representações nos quais vai desembocar toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”.1111 Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1996.

Do mesmo modo, o corpo pode ser compreendido como território mínimo determinado pela política, economia, regulado socialmente, inserido nos dispositivos coletivos ou mesmo entendido como receptáculo de circulação do poder nos lugares onde se movimenta.

Seja qual for o entendimento, macro ou micro, em toda parte, o território pode se desterritorializar, isto é, engajar-se em linhas de fuga e até sair de seu curso e se destruir. Atualmente, a espécie humana está mergulhada num imenso movimento de desterritorialização: seus territórios originais são desfeitos ininterruptamente com a divisão social do trabalho, com a ação dos deuses universais que ultrapassam os quadros da etnia e com os sistemas de estratificação mental.1111 Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1996.

Nesses fios teóricos, a cartografia se projeta e também agrega a noção de reterritorialização, entendida como a tentativa do corpo recapturar os processos de desterritorialização na ordem da produção e das relações sociais, controlando todas as pulsões processuais do desejo que influenciam a sociedade.1111 Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do desejo. 4ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1996.

Esses conceitos falam de um constante partir e regressar que tem implicação direta na forma como os dados são produzidos nas investigações cartográficas. Os indivíduos cartografados, que podem ser os participantes das pesquisas, se movimentam fisicamente em diversos contextos e neles vivenciam a intensidade dos processos em um coletivo.

O que chama atenção nessas idas e vindas são as mudanças ocasionadas no próprio ser. O corpo-território tem suas coordenadas criadas, apagadas, retraçadas mediante ação do tempo e a força das pessoas, portanto, estas transformações devem ser consideradas pelos cartógrafos.

A ideia do partir e do regressar, sobretudo quando contextualizado com a cartografia, ganha concretude a partir do seguinte entendimento: “o partir não é nenhum movimento arbitrário no espaço, pois o homem vai embora para buscar alguma coisa no mundo, para atingir uma meta. Contudo, quando ele a realizou ou fracassou, regressa a sua habitação como um local de repouso. É ao mesmo tempo a mudança profundamente essencial para o homem, que se expressa nesse movimento pendular do partir e do regressar, do qual cada fase tem, por sua vez, seu sabor peculiar e inconfundível”.12:6112 Bollnow OF. O homem e o espaço. 9ª ed. Curitiba (PR): UFPR; 2000.

Assumir o método da cartografia como direção nas pesquisas de enfermagem envolve uma atitude para reconhecer que nessa viagem, caracterizada pelo acompanhamento dos corpos e dos processos nos territórios, pode levar os cartógrafos, à “perda momentânea de rumo, que não é necessariamente indício de inconsistência do problema ou de despreparo do pesquisador. Adotando esta atitude, esse ethos de pesquisa, se reconhece que a atividade de investigação envolve sempre, em certa medida, o redesenho do campo problemático”.2:2042 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009.

Isso porque uma das maiores contribuições da cartografia é justamente “a problematização da posição do pesquisador e do ato de pesquisar, onde a pesquisa é tomada como um campo de experimentação, atravessado pelo regime da sensibilidade. Não existe um campo constituído a priori e um pesquisador neutro em relação a ele, operando uma ‘coleta de dados’ - como se os dados estivessem prontos, esperando o momento ‘certo’ para serem coletados. A coleta de dados só pode ser operada no encontro entre o pesquisador, suas ferramentas conceituais e o território, encontro esse que pode modificar tanto o pesquisador quanto apontar os caminhos possíveis para a constituição de um campo”.9:4579 Zambenedetti G, Silva RAN. Cartografia e genealogia: aproximações possíveis para a pesquisa em psicologia social. Psicol Sociedade [Internet]. 2011 [cited 2016 Dec 15]; 23(3):454-63. Available from: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n3/02.pdf
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Para enfermagem não bastam os contornos problemáticos da investigação, território, participantes e conhecimento produzido com o estudo. É preciso aceitar o convite para uma análise profunda na ação de pesquisar, ou seja, com implicações diretas na realidade estudada. É preciso com o aporte do método cartográfico (re)inventar a forma de ser e estar no mundo, de pesquisar e atribuir seus frutos em prol da vida.

Na cartografia, as etapas do estudo são construídas paulatinamente sem receitas prontas e o cartógrafo se mistura nos processos advindos das cenas pesquisadas. Não há caminhos indicados, muito menos um padrão de pesquisa pré-determinado. A todo instante o cartógrafo é obrigado a pensar o fenômeno dentro de um processo por ele experienciado.

O cartógrafo posicionado junto aos participantes dos estudos tem a certeza que mudanças de ordem subjetiva podem impactar a produção dos dados. Isso certamente exige, nas pesquisas em enfermagem, análises contínuas do que é entendido por postura ética, estética e política nos territórios visitados.

Isso porque “as cartografias são como resultados sempre parciais, lances de uma viagem em terras estrangeiras. É essa a potência que o cartógrafo quer alcançar, de sentir-se estrangeiro dentro da própria morada, ele que de porto em porto se vê em um tempo outro, que empurra, traveste, ora rasga e ora costura o mesmo e o faz diferir”.5:2735 Regis VM, Fonseca TMG. Cartografia: estratégias de produção do conhecimento. Fractal, Rev Psicol [Internet]. 2012 [cited 2016 Dec 15]; 24(2):271-86. Available from: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v24n2/a05v24n2.pdf
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Essa imprevisibilidade que aguarda o cartógrafo quando este inicia suas investigações nos corpos e territórios, que por natureza são estritamente subjetivas, busca nas dimensões da cartografia a experimentação e invenção, o que sugere rigorosidade nesta opção metodológica.1313 Passos E, Kastrup V. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal, Rev Psicol [Internet]. 2013 [cited 2016 Dec 15]; 25(2):391-414. Available from: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v25n2/11.pdf
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Com esse entendimento, as ditas e usadas pistas da cartografia são indispensáveis para acompanhar os processos e produzir dados sobre os fenômenos subjetivos a serem investigados na área da enfermagem.

Em vez de regras para serem aplicadas, “é proposta a ideia de pistas para guiar o trabalho da pesquisa, sabendo que para acompanhar processos não podemos ter predeterminado de antemão a totalidade dos procedimentos. As pistas guiam o cartógrafo e servem como referências que concorrem para a manutenção de uma atitude de abertura ao que vai se produzindo e de calibragem do caminhar no próprio percurso da pesquisa - o hódos metá - da pesquisa”.2:132 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009.

Daí o sentido tradicional de metodologia que está impresso na própria etimologia da palavra: metá-hódos. Com essa direção, “a pesquisa é definida como um caminho (hódos) predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografia propõe uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos em hódos-metá. Essa reversão consiste numa aposta na experimentação do pensamento - um método não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude”.2:102 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009.

Guiados por esse pensamento, é reconhecido aqui, o empenho de um grupo de professores, que coletivamente, durante o período aproximado de três anos, concentraram esforços na elaboração de oito pistas para a prática do método cartográfico.22 Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009. Pistas da cartografia já experimentadas no domínio da enfermagem. Seus produtos científicos atestam para área o desenvolvimento de conteúdos complexos no ensino, reflexões sobre os instrumentos básicos e identificação do papel dos enfermeiros nos processos do cuidado.1414 Carreiro MA, Santos MMD, Gama PR, Figueiredo NMA. Maneiras de pesquisar o cuidado de enfermagem por meio do método cartográfico. J Res Fundam Care Online [Internet]. 2015 [cited 2017 Mar 22]; 7(4):3135-47. Available from: http://www.seer.unirio.br/index.php/cuidadofundamental/article/view/2870/pdf_1684
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Em síntese, as contribuições teóricas e metodológicas da cartografia para as pesquisas em enfermagem abrem passagem para dilatar o que se tem reconhecido como corpo. Essa unidade epistêmica passa a ter um sentido ampliado, ou seja, um corpo que se individua dentro de um processo, também, um corpo considerado coletivo e teórico da profissão que está em transformação.

Dado que “a cartografia entende o conhecimento como invenção e considera que a pesquisa é sempre intervenção”,13:39213 Passos E, Kastrup V. Sobre a validação da pesquisa cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal, Rev Psicol [Internet]. 2013 [cited 2016 Dec 15]; 25(2):391-414. Available from: http://www.scielo.br/pdf/fractal/v25n2/11.pdf
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sua aplicabilidade metodológica nas investigações de enfermagem inaugura a possibilidade de reconhecer os territórios, os processos de cuidar, ensinar, gerenciar e investigar afetados pelas forças presentes no mundo.

Nesta perspectiva, a cartografia ao ser assumida como diretriz no campo das pesquisas qualitativas e/ou quantitativas, amplifica a atenção dos cartógrafos para elementos subjetivos inerentes a existência humana. É bem isto, os cartógrafos não desconsideram as forças presentes no mundo e as intensidades que circulam nas pessoas quando acessam os fenômenos investigados.

Antes de fechar o pilar reflexivo, cabe sublinhar o convite deste ensaio para aplicação da cartografia como referencial teórico, e diretriz metodológica nos estudos da enfermagem. Na condição de discípulos de Deleuze e Guattari, inaugura-se o convite para superar a partir da cartografia o isolamento dos saberes com intuito de suscitar questionamentos que ainda não tinham sido disparados nos diversos contextos que a enfermagem está presente.

CONCLUSÃO

Para não concluir e intensificar esta abordagem teórica e metodológica na enfermagem, afirma-se: a cartografia envolve uma atitude de descobertas. Sim, em cada território, seleção de participantes do estudo, vivências das situações de cuidar, ensinar, gerenciar e pesquisar, o corpo do cartógrafo se reconhece como ser com inúmeras dobras e muitos movimentos políticos.

Cabe sublinhar que o cartógrafo deve estar disponível para voar e pousar, num constante movimento de ampliação e redução para, assim, reconhecer os processos presentes nos territórios investigados. Nesse sentido, é necessário aguçar os sentidos humanos com a cartografia e assumir seus aportes científicos para produção do conhecimento no domínio da enfermagem que (re)afirme a tríade ética-estética-política nas pesquisas.

Para isso, é necessário estar atento às formas e forças que incidem os participantes e cartógrafos nos territórios em que os fenômenos estudados se encontram circunscritos. Libertar-se de regras pré-estabelecidas em pesquisa parece ser um bom início para aqueles que desejam se aventurar no método da cartografia. Isto porque a potência do encontro no interior do processo pousado intensifica elementos subjetivos que merecem destaque no momento da produção, análise e discussão do que foi cartografado.

Assim, espera-se que este ensaio reflexivo mobilize nos “novos cartógrafos”, professores universitários, enfermeiros, estudantes de enfermagem, o desejo de apropriação teórica e transposição metodológica da cartografia para a prática de pesquisar como forma de suscitar novos achados sobre posturas que beneficiarão o exercício de uma prática de enfermagem que os clientes do cuidado e a profissão, hoje e amanhã, merecem.

  • 1
    Artigo extraído da tese - Marcas do corpo do professor na formação de enfermeiros: um estudo sobre egressos nos cenários de cuidar, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Biociências da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), em 2016.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia - volume I. São Paulo (SP): Editora 34; 1995.
  • 2
    Passos E, Kastrup V, Escóssia L, organizadores. Pistas do método da cartografia: pesquisa - intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre (RS): Sulina; 2009.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2016
  • Aceito
    22 Jul 2017
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