EVIDÊNCIAS SOBRE OS IMPACTOS DA PANDEMIA DA COVID-19 NA VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS: SCOPING REVIEW

RESUMO

Objetivo:

mapear evidências existentes na literatura sobre os impactos da pandemia de Covid-19 na violência infantil.

Método:

revisão de escopo realizada conforme as recomendações do Joanna Briggs Institute e do guia internacional PRISMA-ScR nas bases de dados PubMed, CINAHL, Web of Science e LILACS no mês de outubro de 2020. Os critérios de inclusão foram: estudos disponíveis em texto completo, online, nos idiomas português, inglês ou espanhol, publicados em 2020 e que abordassem a violência infantil no contexto da pandemia. Os dados foram submetidos à análise descritiva.

Resultados:

foram encontrados 216 artigos, dos quais 26 foram mantidos para a revisão. Os resultados foram apresentados em forma de quadro e, para a sua discussão, foram sintetizadas nos seguintes eixos: fechamento de escolas, aumento de riscos e diminuição das notificações de violência; Mudanças econômicas, estresse parental e aumento da violência infantil; Profissionais de saúde, serviços de proteção e negligência para com a violência infantil.

Conclusão:

a pandemia de Covid-19 trouxe inúmeros impactos no que concerne à violência infantil. A síntese dos achados desta revisão poderá contribuir para a divulgação do tema e estimular as ações que favoreçam a identificação, a notificação e o acompanhamento dos casos de violência infantil como parte importante das respostas contra a pandemia de Covid-19.

DESCRIPTORS:
Pandemias; Infecções por Coronavírus; Maus-tratos infantis; Atenção primária à saúde; Saúde da criança; Violência doméstica

ABSTRACT

Objective:

to map existing evidence in the literature on the impacts of the Covid-19 pandemic on child violence.

Method:

scope review carried out according to the recommendations of the Joanna Briggs Institute and the international guide PRISMA-ScR in the Databases PubMed, CINAHL, Web of Science and LILACS in October 2020. Inclusion criteria were: studies available in full text, online, in the Portuguese, English or Spanish language, published in 2020 and addressing violence against children in the context of the pandemic. The data were submitted to descriptive analysis.

Results:

216 articles were found, of which 26 were kept for review. The results were presented in the form of a table and, for their discussion, were summarized in the following axes: Closing schools, increasing risks and reducing reports of violence; Economic changes, parental stress and increased violence against children; Health professionals, protection services and negligence violence against children.

Conclusion:

he Covid-19 pandemic has had numerous impacts on violence against children. The summary of the findings of this review may contribute to the dissemination of the theme and stimulate actions that favor the identification, notification and monitoring of cases of violence against children as an important part of the responses against the Covid-19 pandemic.

DESCRIPTORS:
Pandemics; Coronavirus infections; Child abuse; Primary health care; Child health; Domestic violence

RESUMEN

Objetivo:

para mapear la evidencia existente en la literatura sobre los impactos de la pandemia Covid-19 en la violencia infantil.

Método:

revisión del alcance realizada de acuerdo con las recomendaciones del Instituto Joanna Briggs y la guía internacional PRISMA-ScR en las bases de datos PubMed, CINAHL, Web of Science y LILACS en octubre de 2020. Los criterios de inclusión fueron: estudios disponibles en texto completo, online, en portugués, Inglés o español, publicado en 2020 y que abordó la violencia infantil en el contexto de la pandemia. Los datos se sometieron a análisis descriptivo.

Resultados:

se encontraron 216 artículos, de los cuales 26 se conservaron para revisión. Los resultados se presentaron en forma de tabla y, para su discusión, se resumieron en los siguientes ejes: cierre de escuelas, aumento de riesgos y disminución de notificaciones de violencia; Cambios económicos, estrés de los padres y aumento de la violencia infantil; Profesionales de la salud, servicios de protección y negligencia por violencia infantil.

Conclusión:

la pandemia de Covid-19 tuvo numerosos impactos con respecto a la violencia infantil. La síntesis de los hallazgos de esta revisión puede contribuir a la difusión del tema y fomentar acciones que favorezcan la identificación, notificación y seguimiento de los casos de violencia infantil como parte importante de las respuestas frente a la pandemia Covid-19.

DESCRIPTORES:
Pandemias; Infecciones por coronavirus; Abuso infantil; Atención Primaria de Salud; Salud Infantil; Violencia doméstica

INTRODUÇÃO

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a violência como uso intencional da força física ou do poder, por meio de ameaça ou de forma real, podendo ser empregada contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade, que possibilite ou resulte em lesão, dano psicológico, morte, deficiência ou privação de desenvolvimento. Os tipos de violência são: violência coletiva, que diz respeito aos atos que ocorrem nos âmbitos social, político e econômico; violência dirigida a si mesmo (autoinfligida), que pode se apresentar como comportamento suicida ou autoabuso (automutilação); e violência interpessoal, subdividida em violência familiar (doméstica) e violência comunitária.1

A violência doméstica é aquela cometida, principalmente, dentro de casa por membros da família e/ou parceiros íntimos.1 Destaca-se que crianças que vivem em ambientes nos quais a violência doméstica é realidade possuem maior probabilidade de reproduzir comportamentos violentos no futuro.2^-4

Atualmente, o mundo vivencia a pandemia da Covid-195^-6 e inúmeras medidas foram tomadas para que o vírus pudesse ser contido, dentre estas, o distanciamento e o isolamento social que, embora importantes, trazem consequências principalmente para o relacionamento familiar, uma vez que o convívio doméstico passou a ser mais prolongado e contínuo.7

Diante disso, há um paradoxo na Pandemia da Covid-19: por um lado, ficar em casa é um dos meios mais eficientes para a contenção da doença; por outro lado, o ambiente familiar, que deveria ser um lugar seguro e acolhedor, é considerado um grande facilitador de atos violentos.8

A violência que ocorre em ambiente doméstico é a com maior número de denúncias de violência infantil.9 A permanência da criança nesse ambiente hostil e violento torna mais difícil a denúncia,10 uma vez que ela se encontra na presença de seu(s) agressor(es) e/ou potenciais agressores.7

A pandemia ocasionou impactos negativos para o desenvolvimento mental, físico e psíquico das crianças que, embora sejam menos atingidas biologicamente pela Covid-19, estão predispostas ao surgimento e/ou aumento das vulnerabilidades de seus direitos e maior exposição à violação deles.7

Em março de 2020, as denúncias de violência sexual contra crianças no Brasil tiveram um aumento de 85% comparado com o mesmo período no ano anterior. Em abril de 2020, ocorreram 19.663 denúncias, cerca de 10% a menos comparado ao mês anterior. Essa redução, apesar do número elevado, está associada à suspensão de aulas, à exposição a um convívio contínuo com os agressores e ao distanciamento de adultos protetores.11^-12

Durante a pandemia, houve aumento de maus tratos infantis no Brasil e no mundo,13^-15 o que intensificou a urgência de discutir o enfrentamento dessa problemática, uma vez que por trás da crise sanitária trazida pela pandemia, cresce outro entrave: a violação dos direitos de crianças e adolescentes.11^-15

Com base no exposto, justifica-se a importância desta pesquisa para a produção do conhecimento e para a disseminação de informações a respeito dos impactos que a pandemia trouxe para a violência infantil. A opção metodológica adotada - revisão de escopo16 - permite reunir as evidências existentes acerca da temática de forma clara e direta, para que os profissionais de saúde possam ter uma percepção ampliada dos problemas existentes e uma maior clareza na hora de planejar, implementar e tomar decisões.

Assim sendo, o objetivo desta pesquisa é mapear evidências existentes na literatura sobre os impactos da pandemia de Covid-19 na violência infantil.

MÉTODO

Trata-se de uma scoping review, desenvolvida a partir das recomendações do Joanna Briggs Institute (JBI)16 e do Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses extension for Scoping Reviews (PRISMA-ScR).17 Essa escolha ancora-se em seu potencial para identificar e analisar lacunas de conhecimento, esclarecer os principais conceitos/definições, bem como as principais características ou fatores relacionados a um conceito.16

O título da revisão foi registrado na Open Science (https://osf.io/dashboard), no perfil de uma das autoras. Para formulação da questão de pesquisa, utilizou-se o mnemônico PCC, em que o (P) diz respeito à “população”, (C) ao “contexto” e (C) ao “conceito”.16 Foram definidos os elementos: P (crianças); C (pandemia) e C (violência infantil). A partir disso, elaborou-se o seguinte questionamento: quais as evidências existentes na literatura sobre os impactos da pandemia da Covid-19 na violência infantil?

Ressalta-se que, para o vocabulário MESH,18 o descritor “criança” refere-se à pessoa de 6 a 12 anos de idade. Já o termo violência infantil é um termo alternativo para o descritor “Maus-Tratos Infantis”, adotado na busca. A pandemia é definida, neste vocabulário, como epidemia de doença infecciosa que se disseminou para vários países, com frequência em mais de um continente e que afeta geralmente um grande número de pessoas.

Para serem incluídos na revisão, os estudos deveriam estar disponíveis em texto completo, online, em português, inglês ou espanhol, publicados no ano de 2020 e que abordassem, em seu título e/ou resumo, a violência infantil no contexto da pandemia. Os estudos que, após leitura na íntegra, não traziam evidências relacionadas ao tema foram excluídos. Também foram excluídos artigos repetidos, sendo considerada apenas a primeira ocorrência.

A construção das estratégias de busca foi realizada a partir de combinações de descritores combinados pelos operadores booleanos “AND” e “OR”. Com ajuda de um bibliotecário, cada estratégia foi adaptada para as respectivas bases de dados, conforme exposto no Quadro 1.

Quadro 1 -
Estratégias de busca utilizadas por bases de dados e total de artigos encontrados. Santa Cruz, RN, Brasil, 2020.

Base de dados	Estratégia de busca	Resultados
MEDLINE/PubMed	("child abuse"[Title/Abstract]) OR ("Child Maltreatment"[Title/Abstract]) OR ("Child Mistreatment"[Title/Abstract]) OR ("Child Neglect"[Title/Abstract])) AND ("2019-nCoV disease"[Title/Abstract]) OR ("2019-nCoV infection"[Title/Abstract]) OR ("COVID-19 pandemic"[Title/Abstract]) OR (COVID-19[Title/Abstract])	44
MEDLINE/PubMed	(child abuse OR child maltreatment OR child neglect) AND (covid-19 OR COVID-19 virus disease OR SARS-CoV-2 infection OR 2019-nCoV infection)	87
CINAHL	(child abuse) OR (Child Maltreatment) OR (Child Mistreatment) OR (Child Neglect)) AND (severe acute respiratory syndrome coronavirus 2) OR (SARS-Cov-2 infection) OR (coronavirus disease 2019)	12
CINAHL	(child abuse) OR (Child Maltreatment) OR (Child Mistreatment) OR (Child Neglect)) AND (COVID-19 virus infection) OR (COVID19) OR (COVID-19 pandemic)	25
Web of Science	TS= (child abuse OR Child Maltreatment OR Child Mistreatment OR Child Neglect) AND (covid-19 OR COVID-19 virus disease OR SARS-CoV-2 infection OR 2019-nCoV infection)	47
LILACS	(Violência Infantil) OR (maus-tratos infantis) OR (abuso infantil)) AND (covid-19) OR (pandemia) OR (corona vírus)	1

A busca e seleção dos estudos ocorreram no mês de outubro de 2020, por dois revisores e, em caso de divergências, houve a participação de um terceiro revisor como juiz, com o intuito de fortalecer a qualidade do estudo.

A extração dos dados foi realizada por meio da utilização de um instrumento baseado nas recomendações do JBI16 e adaptado pelos revisores, contendo as seguintes informações: Título do estudo, Ano, Autoria, Periódico, Título, País do Estudo e Principais Evidências Relatadas.

Após a leitura e avaliação dos textos na íntegra, os dados extraídos foram submetidos à análise descritiva, pautando-se no delineamento da pesquisa conforme referencial adotado.16

As bases de dados consultadas foram a Medical Literature Analysis AND Retrieval System Online via US National Library of Medicine (MEDLINE/PubMed), Cumulative Index to Nursing and Allied Healthe Literature (CINAHL), Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Web of Science (WOS). A Figura 1 mostra o processo de busca, exclusão e seleção dos estudos encontrados. Os estudos selecionados foram exportados para um software gerenciador de referências, o Mendeley ®.

Figura 1 -
Fluxograma da seleção dos estudos, segundo o PRISMA-ScR. Santa Cruz, RN, Brasil, 2020.

RESULTADOS

Foram selecionados 26 estudos, publicados em 16 periódicos diferentes, sendo 9 publicações (34,6%) realizadas pela Child Abuse & Neglect,25^,27^-28^,31^-32^,35^,39^,41^-42 periódico em destaque na presente revisão. Em relação ao método adotado, 9 eram revisões (34,6%),20^,25^,27^,30^,33^,35^-36^,38^,42 3 eram estudos qualitativos (11,5%),28^-30 2 eram cartas ao editor (7,6%),21^,37 2 eram editoriais (7,6%),8^,23 2 eram comentários (7,6),22^,26 2 eram estudo seccional (7,6%),41^,43 2 eram artigos de opinião19^,24 e os demais eram estudo ecológico,29 estudo comportamental,32 estudo observacional34 e análise espaço-temporal.31

Quanto ao país de origem, 10 estudos foram desenvolvidos nos Estados Unidos (38,4%),19^-20^,23^,30^-34^,36^,42 3 no Reino Unido (11,5%),8^,34^,39 2 no Canadá (7,6%)27^-28, 2 na Austrália (7,6%)24^,38 e os demais na Suécia,21 Israel,25 Cingapura,43 Espanha,40 Japão,23 Nepal,26 Índia36 e Alemanha.42

Para a caracterização dos estudos incluídos, foram extraídos dados quanto à identificação, aos autores e ao ano de publicação, bem como ao periódico e ao país em que foi realizado o estudo. A seguir, no Quadro 2, encontra-se a disposição dos dados.

Quadro 2 -
Apresentação dos estudos incluídos na revisão (n=26). Santa Cruz, RN, Brasil, 2020.

Estudo	Periódico	País do Estudo
E119	JAMA Pediatrics	Estados Unidos
E220	Bulletin of the World Health Organization	Reino Unido e Estados Unidos
E321	Archives of Sexual Behavior	Suécia
E48	Journal of Clinical Nursing	Reino Unido
E522	World Medical and Health Policy	Estados Unidos
E623	Journal of Advanced Nursing	Japão
E724	Journal of Pediatrics and Child Health	Austrália
E825	Child Abuse & Neglect	Israel
E926	Globalization and Health	Nepal
E1027	Child Abuse & Neglec	Canadá
E1128	Child Abuse & Neglect	Canadá
E1229	Journal of Public Economics	Estados Unidos
E1330	Journal of Family Violence	Estados Unidos
E1431	Child Abuse & Neglect	Estados Unidos
E1532	Child Abuse & Neglect	Estados Unidos
E1633	American Journal of Criminal Justice	Estados Unidos
E1734	BMJ Open	Reino Unido
E1835	Child Abuse & Neglect	Estados Unidos
E1936	Minerva Pediatrica	India
E2037	Nature Human Behaviour	Estados Unidos
E2138	Children Australia	Austrália
E2239	Child Abuse & Neglect	Reino Unido
E2340	Sustainability	Espanha
E2441	Child Abuse & Neglect	Estados Unidos
E2542	Child Abuse & Neglect	Alemanha
E2643	Journal of Family Violence	Singapura

Com relação às consequências da pandemia da Covid-19 na violência infantil, os estudos indicaram 10 principais impactos, como é possível perceber no Quadro 3. Dentre os que se destacam estão: diminuição das denúncias de violência e diminuição dos casos confirmados (30%),20^-21^,28^,29^,31^,34^,42 aumento de maus-tratos, negligência, abuso psicológico e exploração infantil (30%),19^-20^,8^,26^,32^,34^,36 aumento dos riscos de violência infantil (23%),8^,25^,26^,30^,32^,37 e aumento da dificuldade de identificar e relatar os casos (19%).8^,22^-24^,33

Quadro 3 -
Principais impactos da pandemia da Covid-19 na violência infantil de acordo com os estudos incluídos na revisão. Santa Cruz, RN, Brasil, 2020.

Impactos na violência infantil	Estudo
Diminuição das denúncias e aumento de casos não confirmados	E119, E220, E1128, E1229, E1430, E1734, E2542
Aumento dos riscos de violência	E48, E825, E926, E1330, E1532, E2037
Interrupção de acompanhamento e monitoramento de crianças em risco pelos serviços de proteção	E623, E1229, E1633, E2542
Diminuição das rotas de fuga e pedido de socorro	E48, E926
Aumento de maus-tratos, negligência, abuso psicológico e exploração	E119, E220, E48, E926, E1532, E1734, E1936
Diminuição das formas mais graves de lesões por uso de armas de fogo e armas brancas	E1431
Aumento da dificuldade em identificar e relatar os casos de violência	E48, E522, E623, E724, E1633
Aumento de atendimentos de traumas contusos e traumatismo craniano por abuso físico infantil	E1835
Aumento de crimes e exploração sexual infantil online	E321, E1936, E2138
Aumento no número de estupros de menores perpetrado por membros da família	E2542

Esses impactos permeiam e são permeados por questões mais amplas que foram sintetizadas em torno de três eixos: fechamento de escolas, aumento de riscos e diminuição das notificações de violência; mudanças econômicas, estresse parental e aumento da violência infantil; profissionais de saúde, serviços de proteção e negligência para com a violência infantil.

DISCUSSÃO

O mapeamento realizado assinala importantes evidências acerca dos impactos da pandemia de Covid-19 na violência infantil e suas mais variadas causas.8^,19^-43^. A discussão sobre elas se deu por meio dos três eixos a seguir.

Fechamento de escolas, aumento de riscos e diminuição das notificações de violência

A escola é um ambiente importante para o desenvolvimento físico, mental e social das crianças e dos adolescentes e se caracteriza como parte da rede de proteção.22^,24 Em março de 2020, inúmeros estados do Brasil decretaram o fechamento de escolas e creches como uma das medidas de contenção do novo Coronavírus, fazendo com que crianças e adolescentes passassem a ter aula online e interrompessem seus contatos presenciais com professores e outros profissionais escolares.

Segundo o Art. 245 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),44 os professores são obrigados a notificar os casos suspeitos ou confirmados de violência. Desse modo, os professores são parte dos principais denunciantes de casos de violência infantil,28 e o contato entre estes adultos protetores e as crianças durante o período escolar é essencial para a notificação e proteção contra violência.

Segundo estudos conduzidos nos EUA19^,29 e Austrália,38 é bastante comum se perceber uma redução no número de notificações de violência infantil no período de férias escolares e em situações de desastres naturais, o que costuma aumentar logo após o retorno escolar; esses achados fortalecem a ideia de que, durante a pandemia de Covid-19, os abusos infantis podem ter aumentado, embora muitos deles não venham a ser notificados em razão do aumento da dificuldade de identificar e relatar os casos.8^,22^-24^,33

No Brasil, o mês de abril de 2020 apresentou uma diminuição de 19% no número de denúncias de violência sexual infantil em comparação com o mesmo período no ano anterior.11 Nos EUA,29 estima-se que, apenas na Flórida, cerca de 40 mil casos de violência infantil não foram confirmados devido ao fechamento das escolas. Ressalta-se que a diminuição de notificações e denúncias foi fortemente relatada como principal impacto da pandemia na violência infantil.19^-20^,28^-29

Para crianças em risco ou em situação de violência, a presença constante e diária de seus agressores acaba por diminuir as rotas de fuga e as possibilidades de pedir socorro, bem como aumentam os riscos de violência.8^,26

Além disso, outro fato que merece destaque é que o fechamento de escolas e maior tempo em casa fez com que as crianças passassem mais tempo na internet, tanto para o acompanhamento das atividades escolares quanto para outros tipos de uso, gerando uma maior exposição delas aos crimes sexuais online,21^,36^,38 e, devido ao home office e ao acúmulo de responsabilidades domésticas dos pais, muitas não têm uma supervisão adequada.36

Durante o período de distanciamento social, houve o aumento da busca de material sexual infantil, bem como da troca informações sobre como ter acesso às crianças para a produção de material sexual.21 Embora todas as crianças sejam possíveis vítimas e corram riscos de sofrerem violência sexual online, aquelas com histórico de abuso e negligência são ainda mais vulneráveis.38

Mudanças econômicas, estresse parental e aumento da violência infantil

A pandemia trouxe o surgimento/intensificação da crise econômica, a perda de empregos e as adaptações no modo de trabalho.19^,22^,24 As mudanças econômicas trazidas pelo distanciamento social impactaram principalmente os pais que perderam seus empregos ou que já estavam desempregados. Isso resultou em aumento do estresse parental e ansiedade que, em consequência, aumentam os riscos de abuso físico e psicológico, exploração sexual e negligência.20^,22^,25^,30^-31

Sentimentos gerados pela perda de emprego estão relacionados à violência física entre membros familiares, em especial crianças.42 As preocupações sobre insegurança financeira, crise econômica e saúde, bem como o estresse tóxico são os principais fatores do aumento de risco de abuso infantil.36^-37 Além disso, mudanças nas condições de trabalho (home office), responsabilidades domésticas e o fechamento de escolas intensificaram o surgimento de estresse nos pais e, consequentemente, apresentaram aumento no risco de violência.20^,24^,38

O aumento do estresse dos pais decorre, também, das restrições de contato com membros da família que habitualmente ofereciam apoio nos cuidados domésticos e com as crianças. Muitos avós e avôs tiveram que interromper o contato com as crianças como uma medida de proteção contra a doença, reduzindo, assim, o suporte social para famílias.32

A exploração sexual e o casamento infantil também cresceram durante a pandemia, sendo esse crescimento ligado, principalmente, à crise econômica. Muitos pais recorrem ao planejamento de casamento infantil ou à exploração sexual para diminuir as despesas de casa e aliviar os impactos econômicos trazidos pela pandemia.26^,36

No Brasil, a taxa de desemprego chegou a 14,4% com o número de desempregados em 13,8 milhões.45 Ainda nesse contexto, ressalta-se que é possível que grande parte dos estudantes passem fome com a ausência de refeições escolares durante a pandemia.7 Apesar de não se ter encontrado estudos brasileiros sobre o tema, com a coexistência dos dois fatores expostos, é possível pressupor que, para crianças e adolescentes brasileiros, os riscos de exploração sexual e trabalho forçado para o suprimento das despesas econômicas familiares são reais, perigosos e precisam ser modificados.

Profissionais de saúde, serviços de proteção e negligência para com a violência infantil

De acordo com o Art. 11 do ECA, o atendimento integral à saúde de crianças e adolescentes deve ser assegurado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de modo a garantir o acesso universal e igualitário nas ações de proteção, promoção e recuperação de saúde.44 Durante o cenário pandêmico, percebeu-se uma intensificação na desigualdade de acesso aos serviços de saúde, impactando no aumento dos riscos de violência e vulnerabilidade de crianças20 e dificultando a proteção delas. Essa desigualdade acarretará impactos imediatos e a longo prazo, pós-pandemia.8

A portaria Nº 115 de 20 de março de 2017, em seu Art. 65, Item I, diz que é de responsabilidade do Departamento de Proteção Especial o planejamento, a organização, a regulação e a execução dos serviços e programas destinados aos casos de violência, exploração e abuso sexual.46 O fluxo de atendimento para os casos de suspeita ou confirmação dos casos de violência são organizados a partir da realidade de cada estado/município, porém existem serviços que estão integrados à rede de proteção, comuns a todo o Brasil: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Hospital, Escolas, Conselho Tutelar, Delegacias e Ministério Público.46^-47

Antes da pandemia, o fluxo de atendimento, de modo geral, envolvia a unidade identificadora (Unidade Básica de Saúde, hospitais, escolas, creches), que era responsável por realizar o acolhimento da criança e a notificação ao Conselho Tutelar.46^-47 O caminho a ser seguido posteriormente na rede de proteção variava de acordo com as necessidades das vítimas, dos familiares e das gravidades dos fatores de risco e violações.47

Neste período, os serviços de proteção permaneceram os mesmos, mas houve uma reorganização dos fluxos e do funcionamento presencial. Cada Estado e município realizaram seus decretos e determinaram se os serviços de proteção seriam abertos ou fechados, culminando em diferentes realidades de atendimentos e estratégias de enfrentamento à violência infantil no país.48

Dentre as estratégias traçadas para o enfrentamento da violência infantil durante a pandemia, estão: priorizar o atendimento e acompanhamento assistencial remoto para casos de risco; reorganizar o atendimento presencial de forma descentralizada onde há maior demanda para evitar aglomerações; conduzir, de forma remota, a conscientização apropriada para gêneros e idades distintas.48^-51

Dentre os estudos incluídos na revisão, apenas dois trouxeram sugestões de proteção e enfrentamento da violência infantil, de modo a colocar a criança no centro das ações,39^-40 ou seja, trabalhando a perspectiva da prevenção, educando as crianças para identificar sinais de abuso e orientando formas de pedir ajuda de maneira rápida e eficiente.

CONCLUSÃO

Conclui-se que a pandemia de Covid-19 trouxe inúmeros impactos no que concerne à violência infantil. A necessidade de distanciamento social demandou o fechamento de escolas, com consequente diminuição das rotas de fuga e pedido de socorro. A interrupção de acompanhamento e monitoramento pelos serviços de proteção das crianças em risco foi seguida do aumento de casos não confirmados e da dificuldade em identificar e relatar os casos de violência com consequente diminuição das denúncias. Destaca-se, também, o aumento dos seguintes fatores: maus-tratos; negligência; abuso psicológico e exploração; atendimentos de traumas contusos e craniano por abuso físico infantil; crimes e exploração sexual infantil online; número de estupros de menores perpetrado por membros da família; além da diminuição das formas mais graves de lesões por uso de armas de fogo e armas brancas.

Para além do contributo para a área da investigação, espera-se que este estudo contribua para a divulgação da temática e estimule ações que favoreçam a identificação, a notificação e o acompanhamento dos casos de violência infantil como parte importante das respostas contra a pandemia de Covid-19. Essa problemática deve ser um compromisso ético e político de toda a sociedade.

Reconhece-se como limitação do estudo a ausência de pesquisas brasileiras na composição da amostra, deixando dúvidas sobre o envolvimento político e científico com o tema neste país. Sugere-se pesquisas futuras com outros desenhos metodológicos que permitam explorar diferentes dimensões desta temática.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  22 Set 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  08 Mar 2021
• Aceito
  07 Maio 2021