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IMPLANTAÇÃO DE UM PRONTUÁRIO ELETRÔNICO A LUZ DA TEORIA ATOR-REDE

RESUMO

Objetivo:

descrever a rede de atores humanos e não humanos envolvidos na implantação de um prontuário eletrônico na Atenção Básica à Saúde de Minas Gerais.

Método:

estudo de abordagem qualitativa, tendo a Teoria Ator-Rede como referencial teórico e a Cartografia de Controvérsias como referencial metodológico. Entrevistamos 20 profissionais de saúde, gestores e outros porta-vozes envolvidos com a implantação de um prontuário eletrônico em um município de Minas Gerais. Realizamos observação e coleta de 30 documentos ao seguir os participantes no período de setembro de 2018 a agosto de 2019. Para análise, utilizamos as seguintes escalas de visualização das dinâmicas sociais cartografadas: Escala Menor (descrição sucinta e cronológica dos principais acontecimentos); Escala Intermediária (identificação dos humanos e não humanos, suas relações e controvérsias); Escala Maior (descrição detalhada das principais controvérsias).

Resultados:

a rede de actantes envolvidos na implantação do prontuário eletrônico é tecida a partir das controvérsias: múltiplos actantes e suas traduções influenciando a implantação do prontuário eletrônico; contribuições e fragilidades conformando o prontuário eletrônico como uma controvérsia em aberto. Tais controvérsias emergiram a partir da mobilização de actantes de várias esferas de governo, além do local de implantação. Apesar das fragilidades constatadas, o prontuário eletrônico contribuiu para: apoio à tomada de decisões; acompanhamento do histórico de saúde do paciente; integração das informações entre os pontos da rede assistencial.

Conclusão:

o sucesso da implantação da tecnologia foi influenciado pelas relações estabelecidas entre humanos e não humanos de diversas esferas de gestão, que, ao se mobilizarem, fortalecem ou fragilizam a informatização.

DESCRITORES:
Registros eletrônicos de saúde; Informática médica; Informática em enfermagem; Tecnologia da informação; Atenção primária à saúde

ABSTRACT

Objective:

to describe the human and non-human actors network involved in the implementation of an electronic medical record in Primary Health Care in Minas Gerais.

Method:

this is a study with a qualitative approach, with the Actor-Network Theory as a theoretical framework and Controversy Cartography as a methodological framework. We interviewed 20 health professionals, managers and other spokespersons involved with the implementation of an electronic medical record in a city in Minas Gerais State. We conducted observation and collection of 30 documents when following the participants from September 2018 to August 2019. For analysis, we used the following scales to visualize the mapped social dynamics: Minor Scale (brief and chronological description of the main events); Intermediate Scale (identification of humans and non-humans, their relationships and controversies); Major Scale (detailed description of the main controversies).

Results:

the network of actants involved in the electronic medical record implementation is woven from controversies: multiple actants and their translations influencing the electronic medical record implementation; contributions and weaknesses shaping the electronic medical record as an open controversy. Such controversies emerged from the mobilization of actors from various spheres of government, in addition to the place of implementation. Despite the weaknesses found, the electronic medical record contributed to: support decision-making; monitor patients’ health history; integrate information between the assistance network points.

Conclusion:

the success of the technology implementation was influenced by the relationships established between humans and non-humans from different management spheres, which, by mobilizing, strengthen or weaken computerization.

DESCRIPTORS:
Electronic health records; Medical informatics; Nursing informatics; Information technology; Primary health care

RESUMEN

Objetivo:

describir la red de actores humanos y no humanos involucrados en la implementación de una historia clínica electrónica en Atención Primaria de Salud en Minas Gerais.

Método:

estudio de abordaje cualitativo, utilizando la Teoría Actor-Red como marco teórico y la Cartografía de Controversia como marco metodológico. Entrevistamos a 20 profesionales de la salud, gerentes y otros voceros involucrados en la implementación de una historia clínica electrónica en una ciudad de Minas Gerais. Realizamos observación y recolección de 30 documentos al seguir a los participantes desde septiembre de 2018 hasta agosto de 2019. Para el análisis, usamos las siguientes escalas para visualizar la dinámica social mapeada: Escala menor (descripción breve y cronológica de los principales eventos); Escala intermedia (identificación de humanos y no humanos, sus relaciones y controversias); Escala mayor (descripción detallada de las principales controversias).

Resultados:

la red de actores involucrados en la implantación de la historia clínica electrónica se teje a partir de las controversias: múltiples actores y sus traducciones influyen en la implantación de la historia clínica electrónica; contribuciones y debilidades que configuran la historia clínica electrónica como una controversia abierta. Tales controversias surgieron de la movilización de actores de diversas esferas de gobierno, además del lugar de implantación. A pesar de las debilidades encontradas, la historia clínica electrónica contribuyó a: apoyar la toma de decisiones; monitorear el historial de salud del paciente; integrar información entre los puntos de la red de asistencia.

Conclusión:

la implementación exitosa de la tecnología estuvo influenciada por las relaciones que se establecen entre humanos y no humanos desde diferentes esferas de gestión, que, al movilizar, fortalecen o debilitan la informatización.

DESCRIPTORES:
Registros electrónicos de salud; Informática médica; Informática de enfermería; Tecnología de la informacion; Atención primaria de salud

INTRODUÇÃO

No Brasil, busca-se a informatização da Atenção Básica à Saúde (ABS) a partir da estratégia e-SUS Atenção Básica (e-SUS AB).11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. e-SUS Atenção Básica: Manual do Sistema com Prontuário Eletrônico do Cidadão PEC - Versão 3.1 [Internet]. Brasília, DF(BR): Ministério da Saúde; 2018 [cited 2020 Mar 03]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/esus/manual_pec_3_1.pdf
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Trata-se de um conjunto de ações que permitem o aprimoramento da gestão e coordenação do cuidado a partir da incorporação de tecnologias da informação.11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. e-SUS Atenção Básica: Manual do Sistema com Prontuário Eletrônico do Cidadão PEC - Versão 3.1 [Internet]. Brasília, DF(BR): Ministério da Saúde; 2018 [cited 2020 Mar 03]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/esus/manual_pec_3_1.pdf
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É composta por dois sistemas de software: Coleta de Dados Simplificado (CDS) e Prontuário Eletrônico do Cidadão (PEC). Os softwares buscam, dentre outras coisas, reestruturar e integrar as informações dos diversos pontos da rede assistencial a partir de dispositivos móveis, internet banda larga, instalação de computadores e outras tecnologias.11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. e-SUS Atenção Básica: Manual do Sistema com Prontuário Eletrônico do Cidadão PEC - Versão 3.1 [Internet]. Brasília, DF(BR): Ministério da Saúde; 2018 [cited 2020 Mar 03]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/esus/manual_pec_3_1.pdf
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O PEC foi desenvolvido para organizar a agenda de atendimento dos profissionais, sistematizar o histórico clínico dos pacientes e gerar relatórios visando o planejamento local.22. Ministério da Saúde (BR). e-SUS Atenção Básica: Manual do Sistema com Prontuário Eletrônico do Cidadão PEC - Versão 3.2 [Internet]. Brasília, DF(BR): Ministério da Saúde ; 2020 [cited 2020 Mar 03]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/esus/manual_pec_3_2.pdf
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O Ministério da Saúde (MS) brasileiro também permitiu que prontuários eletrônicos próprios (aqueles desenvolvidos por Secretarias Municipais de Saúde ou adquiridos através do setor privado) pudessem ser implantados. A condição é que tais prontuários disseminem as informações para o Sistema de Informações em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) da estratégia e-SUS AB.22. Ministério da Saúde (BR). e-SUS Atenção Básica: Manual do Sistema com Prontuário Eletrônico do Cidadão PEC - Versão 3.2 [Internet]. Brasília, DF(BR): Ministério da Saúde ; 2020 [cited 2020 Mar 03]. Available from: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/esus/manual_pec_3_2.pdf
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O prontuário eletrônico (PE) (objeto desta pesquisa) foi desenvolvido pela Secretaria Municipal de Saúde (SEMUSA), disseminando as informações no SISAB.

Alguns estudos evidenciam que prontuários eletrônicos agilizam o acesso aos dados dos pacientes, proporcionando a continuidade do cuidado. Também tornam as informações mais legíveis e qualificadas, tendendo a eliminar as redundâncias e perdas de dados. Os dados registrados podem subsidiar a compreensão da condição clínica e a tomada de decisões, promovendo a gestão qualificada do cuidado.33. Li J. A Service-Oriented Approach to Interoperable and Secure Personal Health Record Systems. Service-Oriented System Engineering (SOSE). IEEE Symposium on Service-Oriented System Engineering (SOSE) [Internet]. 2017 [cited 2020 Mar 03]. Available from: https://doi.org/10.1109/SOSE.2017.20
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-77. Donohue S, Sesto ME, Hahn DL, Buhr KA, Jacobs EA, Sosman JM, et al. Evaluating Primary Care Providers’ Views on Survivorship Care Plans Generated by an Electronic Health Record System. J Oncology Practice [Internet]. 2015 [cited 2020 Mar 03];11(3):329-35. Available from: https://doi.org/10.1200/JOP.2014.003335
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Há também estudos, relacionados a prontuários eletrônicos, que demonstram muitos casos de insucesso devido a algumas fragilidades como: deficiências de conectividade; pouca habilidade e resistência dos profissionais; sobrecarga de trabalho; baixa capacitação dos profissionais.88. Gomes PAR, Farah BF, Rocha RS, Friedrich DBC, Dutra HS. Electronic Citizen Record: an instrument for nursing care. Rev Fund Care [Internet]. 2019 [cited 2020 Mar 03];1(5):1226-35. Available from: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2019.v11i5.1226-1235 .
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-99. Shahmoradi L, Darrudi A, Arji G, Farzaneh NA. Electronic Health Record Implementation: a SWOT analysis. Acta Med Iran [Internet]. 2017 [cited 2020 Apr 20];55(10):642-9. Available from: http://acta.tums.ac.ir/index.php/acta/article/view/5790
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Ainda são necessários estudos que elucidem o processo de implantação de prontuários eletrônicos, sobretudo na ABS, onde a gestão da informação necessita ser organizada e sistematizada visando a qualificação da gestão do cuidado.1010. Mota DN, Torres RAM, Guimarães JMX, Barreto MNAS, Araújo AF. Tecnologias da informação e comunicação: influências no trabalho da estratégia Saúde da Família. J. Health Inform [Internet]. 2018 [cited 2020 Mar 03];10(2):45-9. Available from: http://www.jhi-sbis.saude.ws/ojs-jhi/index.php/jhi-sbis/article/viewFile/563/330
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Ressalta-se que a implantação de prontuários eletrônicos está ocorrendo em todo o território nacional, necessitando de avaliações desse processo e, principalmente, como essa tecnologia tem influenciado a gestão do cuidado no cotidiano de profissionais e de pacientes.

É preciso investigar a implantação do PE a partir de uma abordagem sociotécnica, que não dissocia o “técnico” (hardware/software e outros componentes) do “social” (pessoas, política, subjetividades e a própria organização), mas reconhece a tecnologia como um não humano imerso em uma rede de relações considerando a dinamicidade e os processos.1111. Venturini T, Munk A, Jacomy M. Actor-network vs. network analysis vs. digital networks: are we talking about the same networks? Galáxia: São Paulo [Internet]. 2016 [cited 2020 Mar 03];38:5-7. Available from: https://doi.org/10.1590/1982-2554236645 .
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-1414. Schoen J, Mallett JW, Grossman-Kahn R, Brentani A, Kaselitz E, Heisler M. Perspectives and experiences of community health workers in Brazilian primary care centers using m-health tools in home visits with community members. Hum Resour Health [Internet]. 2017 [cited 2020 Mar 03];15:71. Available from: https://doi.org/10.1186/s12960-017-0245-9
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Os artefatos tecnológicos não são reduzidos a dispositivos técnicos (instrumentos do trabalho), sem possibilidade de emissão de efeitos sobre as pessoas.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. Humanos e não humanos possuem capacidade de agência (geram efeitos uns sobre os outros) em rede, tecendo relações.

Assim, é preciso considerar a constituição de redes de atores humanos e não humanos em relação à implantação de uma tecnologia, como o PE. É necessário seguir a tessitura da rede, descrevê-la e entender tal processo como um fenômeno social a ser compreendido. Desta feita, definimos como questão norteadora: como é tecida a rede de atores humanos e não humanos envolvidos na implantação de um PE na ABS? Buscou-se descrever a rede de atores humanos e não humanos envolvidos na implantação de um PE na ABS de Minas Gerais.

MÉTODO

Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, baseado na Teoria Ator-Rede (TAR) e na Cartografia de Controvérsias como referenciais teórico-metodológico. Ao seguir a rede de atores humanos e não humanos, o pesquisador se apropria de ligações e negociações relacionadas às controvérsias que vão se formando.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. Utilizamos os quatro movimentos do pesquisador cartográfico: buscar uma porta de entrada na rede e começar a seguir os atores; identificar os porta-vozes (atores humanos) concordantes ou discordantes que falam pela rede; acessar os dispositivos de inscrição (documentos e outros dispositivos) que possibilitam a exposição da rede; mapear as associações entre os actantes (descrever conflitos, acordos, sinergismos e divergências).1616. Pedro R. Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais. In: Ferreira AAL, Freire LL, Moraes M, Arendt RJJ. eds. Teoria Ator-Rede e Psicologia. Rio de Janeiro, RJ(BR): Nau; 2010.

No primeiro movimento, a porta de entrada foi a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de um município da Região Oeste de Minas Gerais. Justificou-se tal escolha devido ao fato de o município estar passando pelo processo de implantação do PE na ABS. O PE, objeto deste estudo, foi desenvolvido pela equipe de tecnologia da informação do município no período de janeiro a agosto de 2018, tendo o início da implantação em setembro do mesmo ano. Foi desenvolvido com a finalidade de permitir que os profissionais de saúde realizem todos os registros assistenciais (agendamentos, atendimentos, consultas, evoluções) e prescrições.

No segundo movimento, os primeiros porta-vozes identificados foram dois funcionários da SMS, responsáveis pelo processo de implantação do PE. O pesquisador passou a acompanhá-los e a mapear suas relações com outros atores, incluindo aqueles que se manifestavam como vozes discordantes. Ao percorrer a rede, o pesquisador foi remetido a 10 unidades de saúde (2 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 8 Estratégias Saúde da Família (ESF)), totalizando 31 atores humanos seguidos no período de setembro de 2018 a agosto de 2019. Tais atores foram seguidos por se conformarem como mediadores, ou seja, aqueles que emitem influências sobre a rede, a modificam e, portanto, ao serem seguidos, revelam as relações estabelecidas, os alinhamentos e os conflitos.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012.

Ao seguir os atores, utilizamos a observação participante, pois proporciona ao pesquisador cartográfico maiores evidências dos rastros deixados, culminando, assim, em uma descrição mais apropriada.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. O pesquisador participou ativamente dos processos e discussões relacionados à implantação da tecnologia nos cenários pesquisados. O pesquisador na TAR é considerado um ator mediador da rede, ou seja, participa ativamente das interações entre os pontos de conexão e colabora na construção do fenômeno.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012.-1616. Pedro R. Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais. In: Ferreira AAL, Freire LL, Moraes M, Arendt RJJ. eds. Teoria Ator-Rede e Psicologia. Rio de Janeiro, RJ(BR): Nau; 2010. Norteado por um roteiro, o pesquisador observou o cotidiano de trabalho dos atores humanos e suas relações com os não humanos, o contexto, as condições e os meios utilizados para implantação do PE. As observações foram realizadas na SMS e nas UBS durante reuniões, capacitações e consultas clínicas utilizando o PE. As informações foram registradas em diário de campo e codificadas como Notas de Observações (NO).

Foram seguidos 31 porta-vozes (11 enfermeiros, 04 enfermeiros residentes, 09 médicos, 02 psicólogos, 02 gestores, 02 técnicos em informática, 01 responsável pela Superintendência Regional de Saúde (SRS)). Entretanto, 20 foram entrevistados (7 enfermeiros, 3 enfermeiros residentes, 5 médicos, 2 gestores, 2 técnicos de informática e 1 responsável pela (SRS)) a partir de um roteiro de entrevista aberta. Justificamos as entrevistas dos 20 porta-vozes devido à necessidade de compreensão, por parte do pesquisador, de alguns questionamentos que emergiram no campo, além de se disponibilizarem a responder tais questionamentos. Conformaram-se, na avaliação do pesquisador, como informantes-chave para a compreensão da rede. Mesmo seguindo um número maior de porta-vozes, a TAR1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. propõe entrevistar apenas aqueles que podem esclarecer questionamentos e aprofundá-los ao ponto de saturar as informações necessárias, ou seja chegar a um estado onde as informações se tornam repetitivas, não sendo necessários outros entrevistados, concebendo uma compreensão menos distorcida e mais aproximada da rede.

Na TAR, a entrevista se apresenta como pertinente fonte de evidência, pois proporciona ao pesquisador uma maneira de certificar-se de que suas percepções estão em conformidade com a dos atores. O roteiro de entrevistas deve ser minimalista (questões iniciais), pois muitos questionamentos emergem durante o ato de seguir.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. Definimos como questões iniciais: como você percebe a implantação do prontuário eletrônico? O que o prontuário eletrônico em implantação significa para você? As entrevistas ocorreram em local definido pelo participante, durando aproximadamente 50 minutos, sendo áudio gravadas e, posteriormente, transcritas para um banco de dados.

Para preservar o sigilo dos participantes, definimos um sistema de codificação: responsável por conduzir a implantação do PE (RESP1, RESP2); enfermeiro (ENF1, ENF2...); médico (MED1, MED2...); enfermeiro residente (ENFR1, ENFR2...); gerente (GER1, GER2); responsável da Superintendência Regional de Saúde (RESP SRS); técnico em informática (TE1, TE2).

No terceiro movimento, o pesquisador se deparou com 30 dispositivos de inscrição (DI) (normativas publicadas, manuais, e-mail, WhatsApp, reportagens), que emergiram no campo de pesquisa, sendo elencados por estarem diretamente relacionados à implantação do PE estudado. Os DI materializam informações sobre a rede, esclarecem fatos e possibilitam “objetivar” a rede, esclarecendo a dinâmica social em construção.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012.-1616. Pedro R. Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais. In: Ferreira AAL, Freire LL, Moraes M, Arendt RJJ. eds. Teoria Ator-Rede e Psicologia. Rio de Janeiro, RJ(BR): Nau; 2010.

No quarto movimento do pesquisador cartográfico, é preciso descrever os movimentos ao invés de tentar explicar as situações, mapear e delinear as articulações em rede e, só a posteriori, encontrar um certo sentido de ordem nos dados coletados.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012.-1616. Pedro R. Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais. In: Ferreira AAL, Freire LL, Moraes M, Arendt RJJ. eds. Teoria Ator-Rede e Psicologia. Rio de Janeiro, RJ(BR): Nau; 2010. Na intenção de sistematizar a descrição, a partir da narrativa dos fatos e acontecimentos, seguimos as proposições da TAR,1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. onde o pesquisador deve observar os elementos que interagem entre si e descrever: (1) como são feitas as atribuições de causas e efeitos; (2) quais atores estão interligados; (3) quais dimensões têm essas associações; (4) quais são porta-vozes mediadores; e (5) como todos esses elementos são modificados durante a controvérsia.

Para análise dos dados, utilizamos as escalas de visualização das dinâmicas sociais cartografadas (Escala Menor, Escala Intermediária, Escala Maior).1717. Venturini T. Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science [Internet]. 2010 [cited 2020 Mar 03];19(3):258-73. Available from: https://doi.org/10.1177/0963662509102694
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Na Escala Menor (maior amplitude e menor detalhamento), fizemos uma descrição suscinta dos principais acontecimentos, delimitando os marcos temporais relacionados à implantação da tecnologia.

Na Escala Intermediária (amplitude e detalhamento intermediários), buscamos identificar os humanos e não humanos, suas relações e controvérsias, sem entrar no detalhe dos debates ocorridos.

Na Escala Maior (menor amplitude e maior detalhamento), realizamos uma descrição detalhada das principais controvérsias, seguindo os procedimentos: evidenciar os actantes envolvidos nos debates, seus argumentos, defesas e decisões; atentar aos actantes que ocupam posições de maior influência e as minorias; destacar cenas observadas; realizar comentários analíticos à luz dos conceitos da TAR. Neste artigo, optamos em destacar duas controvérsias: múltiplos actantes e suas traduções influenciando a implantação do PE; contribuições e fragilidades conformando o PE como uma controvérsia em efervescência

RESULTADOS

Múltiplos actantes e suas traduções influenciando a implantação do prontuário eletrônico

Iniciamos o percurso seguindo dois atores da SMS: um profissional responsável por coordenar e acompanhar a implantação do PE no município (RESP1) e um profissional de Tecnologia da Informação responsável pelo mesmo processo (RESP2). Ao acompanhá-los, participamos da primeira reunião pautada pela discussão sobre a implantação do PE. Percebemos, nesta reunião, a primeira controvérsia: decidir em implantar o PEC disponibilizado pelo MS, implantar o Prontuário Eletrônico próprio (PE próprio), já disponibilizado a partir de um Sistema de Informação (SI) próprio, desenvolvido pelo município, ou adquirir outro PE utilizado em algum município. O trecho elucida a controvérsia: [...] os técnicos da Secretaria realizaram visitas a outros municípios para conhecer outras realidades e, a partir, daí decidir se implantariam um novo, se utilizariam o prontuário eletrônico já inserido no sistema próprio municipal, ou se implantariam o prontuário eletrônico do Ministério da Saúde [...] (RESP2).

Nesta controvérsia, o RESP1 foi fundamental na decisão em adotar o PE próprio, já existente no SIS próprio municipal. As vantagens do PE próprio impregnaram o seu discurso: [...] o Sistema nosso não atende só a Atenção Básica, mas a outros setores. Já o do Ministério, é só para a Atenção Básica. A gente perderia este link com serviços especializados, com as farmácias e com a UPA [...] (RESP1). Ao findar da reunião, definiu-se pela implantação do PE já existente no SIS próprio municipal. Ainda, na SMS, iniciou-se uma discussão sobre as diversas formas de apresentar o PE para os profissionais de saúde. Foi decidida a necessidade de testá-lo, antes de sua implantação, para que pudessem ser levantadas possíveis dificuldades detectadas pelos profissionais. Sendo assim, foram realizados pré-testes durante uma semana, com cinco profissionais (médicos e enfermeiros). Nas várias tentativas, não foram encontradas dificuldades ou obstáculos para a utilização do PE (NO).

Foram convidados também outros atores da rede para serem submetidos aos mesmos testes. Apesar da confirmação de que se tratava de uma tecnologia de fácil manejo, os atores decidiram pela elaboração de um Procedimento Operacional Padrão (POP), um não humano, que já emergia como um suporte técnico nas possíveis dúvidas durante a utilização do PE (NO). A partir da elaboração do POP, foi realizada outra reunião envolvendo o RESP2, o GER1 e o GER2 para discussões relativas às “estratégias mais adequadas para implementação do PE na rede”, discussões relativas à “escolha das unidades, formas de apresentação e os profissionais que seriam treinadas inicialmente”. Decidiu-se, então, por cinco unidades: uma UBS de pequeno porte, uma de médio e outra de grande porte; uma ESF de médio porte e outra de grande porte. Porém, apesar do planejado, o RESP2, o GER1 e o GER2 decidiram “realizar as capacitações in loco de acordo com a disponibilidade e aceitação dos profissionais e do aparato tecnológico disponível em cada UBS (número de computadores, acesso à internet, cabos de rede, dentre outros)”, não sendo, portanto, seguido o parâmetro estabelecido inicialmente.

Assim, a implantação do PE, no entendimento de alguns participantes, ocorreu [...] de forma aleatória e de acordo com a disponibilidade dos profissionais, sendo capacitados primeiramente os enfermeiros e médicos. A princípio, os profissionais médicos colocaram uma certa resistência, alegaram que o novo sistema poderia interferir no tempo de atendimento, o que comprometeria suas agendas. Já outros [médicos], mais tradicionais, manifestaram dificuldades em acessar e manusear o PE [...] (RESP2). Neste sentido, o RESP2 se prontificou a auxiliar individualmente cada profissional, acessando o sistema, preenchendo campos e explicando a utilização do PE (NO). Assim, gradativamente, os profissionais, a princípio resistentes, se mostraram mais seguros e confiantes (RESP2). Tal processo de treinamento se repetiu nas várias unidades onde foi implantado o PE (NO). Neste ponto da rede, o RESP2 foi fundamental para a mobilização dos demais atores, visando a implantação efetiva.

Outro não humano, grupo de WhatsApp, emergiu na rede como um importante mediador viabilizando a troca de informações entre os profissionais de saúde acerca da tecnologia em implantação. Observamos que, a partir das discussões constantes neste grupo, foram sugeridas mudanças no PE visando a melhor compatibilidade da inovação com o processo de trabalho (NO).

As pressões de instâncias superiores de gestão também influenciaram o processo de implantação do PE no município estudado. Muitos apontaram a SRS, representativa da Secretaria Estadual de Saúde (SES), como uma instância que pressionava a implantação do PE no município. Desta forma, nesse processo de seguir os atores na rede, o pesquisador procurou desvelar tal pressão para implantação, sendo remetido a este ponto de conexão. Na SRS, a RESP SRS, por acompanhar nos municípios a implantação do PEC, reconheceu que “o MS definiu o ano de 2013 como o marco inicial para a implantação”. O MS, neste ínterim, publicou alguns DI norteadores, como a Portaria 1.412, propondo o SISAB e o Manual de Implantação com as Diretrizes Nacionais de Implantação da Estratégia e-SUS AB. Além disso, para dar suporte ao processo de implantação, a responsável técnica da SRS informou que [...] o Ministério contratou um consultor, que foi em cada município para estar apoiando essa implantação. E, desde o ano passado, está viabilizando a disponibilização de computadores para as equipes [...] o Estado ofereceu um equipamento por Unidade Básica de Saúde [...] (RESP SRS).

Em um DI, uma reportagem publicada no site Portal da Saúde do MS confirmou a obrigatoriedade e o prazo estabelecido para implantação do PE nos municípios brasileiros: [...] nós demos um prazo até 10 de dezembro de 2016 para que todos os sistemas estejam integrados ao Ministério da Saúde [...] basta fazer a integração [...] (DI).

Contribuições e fragilidades conformando o prontuário eletrônico como uma controvérsia em efervescência

Após entender melhor o processo de monitoramento da implantação do PE por parte da SRS, o pesquisador retornou seus contatos com os responsáveis pelo processo na SMS para dar continuidade à proposta de capacitação dos profissionais na utilização do PE in loco. Assim, foi realizada a primeira visita na unidade de saúde, denominada como ESF1. O primeiro ator seguido foi o enfermeiro (ENF1), que apresentou os profissionais e mostrou a unidade. A equipe constava dos seguintes profissionais: médico, enfermeiro, dentista, fisioterapeuta, técnico em enfermagem, técnico em saúde bucal, assistente de saúde bucal e quatro agentes comunitários de saúde (ACS) (NO). Na unidade, são realizadas consultas diárias por esses profissionais, além de pré-agendamento e visitas domiciliares.

No primeiro momento, na ESF1, somente o ENF1 e o MED1 utilizavam o PE, pois somente esses dois profissionais teriam recebido treinamento para utilização da tecnologia (NO). Além dos profissionais e o processo de trabalho, também observamos as condições precárias, que, de certa forma, influenciaram a implantação do PE, fragilizando-a: [...] a unidade de saúde funciona em uma residência alugada pelo município. Logo na entrada, se depara com a dificuldade do usuário em entrar devido à falta de estrutura básica, falta de espaço, dificuldade de acesso. As salas são inapropriadas para um bom atendimento. Os profissionais tinham acesso à internet através de um cabo de rede doado por uma escola do bairro [...] (NO).

Nas consultas de enfermagem, acompanhando o ENF1 na utilização do PE, percebemos alguns questionamentos sobre como fazer o “retorno da tela anterior”, o fato de “não conseguir imprimir o relatório do paciente” e “dificuldades de colocar diagnóstico de enfermagem”, dificultando a operacionalização da consulta. Além disso, observamos que o diagnóstico de enfermagem, para o enfermeiro, representa uma controvérsia, pois, no PE, o diagnóstico disponível se restringia ao diagnóstico médico. Neste caso, os enfermeiros e os demais profissionais recorriam ao dispositivo Classificação Internacional da Atenção Primária (CIAP 2) (NO).

É interessante perceber que na primeira unidade de saúde, os profissionais foram envolvidos na implantação do PE, promovendo sugestões para alterações em suas funcionalidades: [...] teve a nossa participação... anteriormente, sempre os programas e as diretrizes são ditadas de cima pra baixo e cumpra-se. Com a oportunidade de a gente estar auxiliando no aperfeiçoamento do prontuário eletrônico com sugestões, está sendo interessante [...] (ENF1).

Ao participar de uma consulta médica nesta mesma unidade de saúde, foi notória a dificuldade do MED1 em manusear o PE devido à sua falta de habilidade, assim como o preenchimento dos demais campos disponíveis (NO). Ao ser abordado quanto às suas dificuldades, mencionou o pouco tempo de uso da tecnologia e pouca habilidade técnica na área da informática (MED1). Apesar das suas dificuldades, reconheceu que percebe o uso do prontuário eletrônico de grande valia como ferramenta de trabalho, e que a tecnologia pode ajudar na agilização do acesso às informações dos pacientes, contribuindo com a assistência.

Na trajetória de acompanhar a rede, o pesquisador foi remetido a outra unidade, UBS 2, onde já havia profissionais capacitados para o uso do PE. Ao dar entrada na UBS 2, o pesquisador foi recebido pela GER2, e o PE foi apresentado aos profissionais de saúde. Ao acompanhar uma enfermeira, ENF2, em consulta de puericultura, relatou a dificuldade em utilização do prontuário por ainda ser novo, pois estava acostumada com o lançamento através do prontuário de papel, onde já constavam as informações do histórico do paciente. Acreditava que com o tempo, após a utilização dos dados, o prontuário se tornará mais fácil e mais resolutivo. Entretanto, relatou dificuldade em registrar os dados da criança, sendo necessário realizar leitura do prontuário de papel visto que as informações ainda não tinham sido passadas para o prontuário eletrônico. Com isso, se perde muito tempo, algumas telas do prontuário eletrônico ainda não estão adequadas para o atendimento infantil. Em outra cena observamos: [...] o MED2 realizava atendimento de criança de três anos, com queixa de inapetência e mal-estar geral, faz o exame físico e registra os dados no prontuário eletrônico. Apresenta dificuldade na digitação e utilização do prontuário eletrônico, demonstra a falta de preparo técnico na utilização, não conseguindo prosseguir nas telas seguintes, faz referência ao prontuário de papel, pois já está escrito todas suas consultas anteriores [...] (NO).

Dando sequência ao caminhar na rede, o pesquisador foi acionado pelo RESP1 da ESF2 devido ao PE já estar implantado e a equipe capacitada e com maior adesão à tecnologia. Constatamos grande mobilização dos atores humanos, ENF3, MED3 e ENFR1, na utilização do PE. Buscando entender a mobilização, aceitação e receptividade à nova tecnologia, o pesquisador decidiu entrevistá-los. Os atores destacaram algumas contribuições do PE para o cotidiano de trabalho: [...] no prontuário eletrônico, todos os profissionais têm acesso à história daquele usuário no âmbito municipal [...] a gente consegue ter uma visão melhor daquele usuário, principalmente os usuários que vão na UPA que a gente, até então, não tinha nenhum conhecimento do que era feito lá. A questão de exames é mais fácil do que você ficar indo separadamente [...] a gente consegue ver tudo numa tela só [...] as receitas médicas ficam registradas no prontuário; quando necessário, é só reimprimir [...] (ENF3). Outro entrevistado enfatizou o compartilhamento e a legibilidade das informações: [...] você consegue compartilhar as informações com os profissionais [...] porque você pega um prontuário escrito e você não entende nada e no prontuário eletrônico você não tem esse problema [...] (ENFR1). Outro participante destacou a contribuição do PE no acompanhamento do paciente pelos pontos da rede assistencial: [...] quando você abre o prontuário eletrônico, já dá para ver o remédio que o paciente usa, dá para ver quantas vezes ele foi consultar lá na UPA, eu faço um acompanhamento melhor [...] (MED3).

Entretanto, dificuldades também foram apontadas nessa unidade de saúde, destacando-se a falta de acesso ao prontuário por parte de profissionais de nível médio, dificultando, muitas vezes, a assistência por parte desses profissionais. Assim foi destacado: [...] se chega uma pessoa que fala que estava na UPA, que estava passando mal, o meu técnico de enfermagem tem a capacidade de fazer um acolhimento, só que ele não tem acesso nenhum a essa informação. Até esse momento, no prontuário eletrônico, só quem acessa é quem tem nível superior [...] (ENF3). Outra dificuldade mencionada foi a falta de uma janela para consulta rápida de um prontuário de determinado paciente, ou uma determinada patologia ou agravo mencionado na história clínica do paciente, sem ter que rever todo histórico do paciente anterior: [...] ainda não tem essa facilidade de eu querer consultar qualquer paciente de uma forma mais rápida. Eu tenho que procurar o código do SIS do paciente, abrir um novo atendimento, podendo gerar duplicação, isso é um problema [...] (ENFR1).

O pesquisador continuou seguindo a implantação do PE em mais duas unidades, ESF3 e ESF4, pois foram apontadas por outros atores como unidades onde a tecnologia estava em pleno funcionamento, além de a equipe de profissionais já ter recebido capacitação. Predominantemente, foram seguidos o ENF4, o ENF5 e o ENFR3, pois se conformaram como atores mediadores da implantação e utilização da tecnologia, além de mobilizarem outros atores da rede. Reconheceram o PE como uma inovação para gestão do cuidado (ENF5), assim como um facilitador para visualizar o percurso do paciente em outros níveis de atenção à saúde (ENF4).

Emergiu, também, o discurso da utilização do prontuário de papel concomitante ao eletrônico: [...] eles [gestores] não sabem ainda como ficarão esses prontuários de papel. Mas, enquanto o paciente vai chegando, estamos anotando no prontuário dele de papel, e depois evoluindo no prontuário eletrônico [...] (ENF4). Outras indagações enfatizaram a fragilidade na recuperação das informações a partir do prontuário eletrônico (ENF5). Neste sentido, o enfermeiro teria que ler todo o prontuário, ou vários para encontrar o dado almejado do paciente. Além disso, apontou-se a necessidade de integração do prontuário eletrônico com outros sistemas de informação (ENFR3).

DISCUSSÃO

A implantação do PE envolveu uma rede de atores humanos e não humanos de múltiplas conexões. Verificamos que o MS definiu Resoluções, Portarias e Diretrizes norteando o processo de implantação. Não humanos são impregnados de intencionalidades, representando imposições e pressões para implantação. Os gestores na SES e na SRS acompanharam o processo a partir de cobranças sobre o cumprimento das normativas nos municípios. Já os profissionais, no município, se sentiram pressionados a adotar a tecnologia, desenvolvendo e utilizando-se de outros artefatos: o POP, visando padronizar o uso da tecnologia, e o WhatsApp, na tentativa de sanar dúvidas sobre a implantação. Essa cascata de acontecimentos, em múltiplas conexões, enfatiza os não humanos (resoluções, portarias, diretrizes, POP, WhatsApp) em suas relações e como mediadores (emissores de efeitos) da implantação do PE, pois mobilizaram a rede de atores, despertando comportamentos relacionados à implantação da tecnologia.

À luz do princípio de simetria, conceito originário da TAR, os não humanos também são dotados de capacidade de agência, pois transformam a rede, influenciam processos e outros atores.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. Reconhecê-los é fundamental, pois suas influências devem ser discutidas e canalizadas visando o sucesso da implantação e uso da tecnologia. Não se trata de compreender os não humanos como entidades dotadas de capacidade reflexiva e independentes, pelo contrário, a agência dos não humanos, na TAR, emerge a partir da interação com humanos e de sua produção pelos humanos, que inscrevem nos artefatos suas intencionalidades e transformações. A capacidade de agência dos não humanos depende de compreendê-los como ator-rede1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. e sua atuação é intrínseca às conexões estabelecidas na rede e em sua tessitura.

As normativas, como não humanos componentes da rede tecida no município, também estiveram impregnadas de pontualizações da esfera estadual e federal, influenciando o cotidiano de trabalho dos profissionais no município. Este achado demonstra que a rede de atores envolvida na implantação de uma tecnologia não é apenas local, mesmo que o processo investigativo inicie por cenários mais localizados, como um município. O que verificamos são múltiplas conexões estabelecidas entre atores humanos e não humanos de várias esferas de atuação, influenciando o processo de implantação e adoção de uma tecnologia. As pontualizações1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. em uma rede são representações de intencionalidades dos múltiplos atores de diferentes esferas de atuação que acabam por emitir seus efeitos sobre as relações que se estabelecem. Portanto, não se pode dizer que uma rede é local e outra mais global, pois a rede é uma construção relacional, onde os atores se interpenetram em conexões e influenciam relações.

Não podemos considerar as normativas como não humanos garantidores da implantação per si, apesar de considerar a agência desses actantes. No Brasil, a implantação de Tecnologias da Informação no contexto da saúde pública ainda ocorre a partir da definição de normativas federais e estaduais, que acabam por pressionar a adoção nos municípios.1818. Silva TIM, Cavalcante RB, Santos RC, Gontijo TL, Guimaraes EAA, Oliveira VC. Diffusion of the e-SUS Primary Care innovation in Family Health Teams. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Mar 3];71(6):2945-52. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0053
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
-1919. Cavalcante RB, Esteves CJS, Brito MJM, Gontijo TL, Guimaraes EAA. Actor-networks and their influences on the informatization of Primary Healthcare in Brazil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2019 [cited 2020 Mar 3];23:e180364. Available from: https://doi.org/10.1590/interface.180364
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Tais normativas nem sempre são consensuadas a partir de um movimento coletivo envolvendo os profissionais, usuários e gestores que estão nos municípios, gerando resistências e fragilizando o processo de informatização.1818. Silva TIM, Cavalcante RB, Santos RC, Gontijo TL, Guimaraes EAA, Oliveira VC. Diffusion of the e-SUS Primary Care innovation in Family Health Teams. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Mar 3];71(6):2945-52. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0053
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
-1919. Cavalcante RB, Esteves CJS, Brito MJM, Gontijo TL, Guimaraes EAA. Actor-networks and their influences on the informatization of Primary Healthcare in Brazil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2019 [cited 2020 Mar 3];23:e180364. Available from: https://doi.org/10.1590/interface.180364
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Assim, a constatação de que a rede tecida durante a implantação de um PE é híbrida (de humanos e não humanos) e possui múltiplas conexões (não apenas local) desencadeia a necessidade de empoderar um processo de incorporação da inovação que considere tal hibridismo e suas múltiplas intencionalidades, direcionadas ao sucesso da implantação. A incorporação tecnológica neste contexto deve ser planejada, implementada e avaliada de forma contínua e considerando os vários atores representantes das diversas esferas de interesse.2020. Perez G, Popadiuk S, Cesar AMRVC. Internal factors that favor the adoption of technological innovation definedby information systems: a study of the electronic health record. RAI Rev Admin Inovação [Internet]. 2017 [cited 2020 Apr 20];14(1):67-78. Available from: https://doi.org/10.1016/j.rai.2016.12.003
https://doi.org/10.1016/j.rai.2016.12.00...

Vários atores humanos (profissionais de saúde, gestores e responsáveis técnicos) emergiram na rede como mediadores da implantação, exercendo sua agência a partir de traduções do processo de implantação e adoção da tecnologia. Se mobilizaram no sentido de viabilizar a implantação discutindo e decidindo qual tecnologia implantar, compartilhando informações sobre a tecnologia, desenvolvendo e recebendo capacitação, conflitando opiniões e desenvolvendo sinergismos. Impregnaram seus discursos de resistências e de percepções sobre os impactos da tecnologia na assistência e nas rotinas de trabalho. São humanos manifestando sua capacidade de agência1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. por meio de traduções, manifestando suas intencionalidades e fomentando controvérsias.

A tradução se configura como um processo cuja ação é sempre deslocada e transformada em outra, envolvendo desvios de rota e articulações, nas quais os elementos expressam estratégias de interesses, influências, atos de persuasão e demais elementos em sua própria linguagem.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012. São sempre imperfeitas, pois significam a apropriação que cada ator faz do que circula na rede.1616. Pedro R. Sobre redes e controvérsias: ferramentas para compor cartografias psicossociais. In: Ferreira AAL, Freire LL, Moraes M, Arendt RJJ. eds. Teoria Ator-Rede e Psicologia. Rio de Janeiro, RJ(BR): Nau; 2010. ,2121. Oliveira KEJ, Porto CM. Educação e teoria ator-rede: fluxos heterogêneos e conexões híbridas. Ilhéus, BA(BR): Editus; 2016.-2222. Cavalcante RB, Esteves CJS, Pires MCA, Vasconcelos DD, Freitas MM, Macedo AS. A teoria ator-rede como referencial teórico-metodológico em pesquisas em saúde e enfermagem. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2017 [cited 2020 Mar 03];26(4):e0910017. Available from: https://doi.org/10.1590/0104-07072017000910017
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Assim, o PE em implantação é ressignificado à guisa das intencionalidades e das pressões circunstanciais (normas, incompatibilidades, deficiente infraestrutura, dentre outras) presentes na rede em tessitura. Essas traduções se configuram de forma natural e dinâmica, são inerentes às relações tecidas durante a construção das associações coletivas.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012.,2323. Potvin L, Clavier C. Actor-Network Theory: the governance of intersectoral initiatives. Health Promotion and the Policy Process [Internet]. Oxford (UK):Oxford University Press; 2014 [cited 2020 Mar 03]. Available from: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199658039.003.0005
https://doi.org/10.1093/acprof:oso/97801...

Entretanto, as traduções do uso do PE não devem ser prejudiciais ao processo de trabalho que se estabelece na rede assistencial. A tecnologia deve ser usada de forma a mediar o registro de informações e o norteamento seguro da assistência. Os dados armazenados no PE devem ser fidedignos, confiáveis e compatíveis com a realidade.44. Jawhari B, Keenan L, Zakus D, Ludwick D, Isaac A, Saleh A, Hayward R. Barriers and facilitators to Electronic Medical Record (EMR) use in an urban slum. Int J Med Inform [Internet]. 2016 [cited 2020 Mar 03];94:246-54. Available from: https://doi.org/10.1016/j.ijmedinf.2016.07.015
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,2424. Shenoy A, Appel JM. Safeguarding Confidentiality in Electronic Health Records. Camb Q Healthc Ethics [Internet]. 2017 [cited 2020 Apr 20];26(2):337-41. Available from: https://doi.org/10.1017/S0963180116000931 .
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Portanto, as traduções do uso do PE devem ser interpretadas no sentido do reconhecimento de suas necessidades de aprimoramentos e adequações às demandas do cotidiano de trabalhadores e usuários.

O PE foi reconhecido pelo acesso rápido às informações; suporte na tomada de decisões; tangibilidade e legibilidade das informações; atualizações instantâneas e contínuas das informações proporcionando conhecimento do fluxo dos pacientes nos serviços, redução da duplicidade de informações. Entretanto, também emergiram fragilidades, como deficiências de infraestrutura; fragilidades no acesso à internet; falta de qualificação dos profissionais para utilizar a tecnologia.

Inicialmente, poderíamos analisar este resultado como um paradoxo (contribuições versus fragilidades) relacionado ao processo de implantação de uma tecnologia. Entretanto, as dicotomias exaltam uma visão reducionista e técnica, onde o artefato tecnológico é entendido como um instrumento que, por inadequações em seu software, hardware e outros componentes técnicos, estaria inviabilizando sua própria implantação e adoção.1919. Cavalcante RB, Esteves CJS, Brito MJM, Gontijo TL, Guimaraes EAA. Actor-networks and their influences on the informatization of Primary Healthcare in Brazil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2019 [cited 2020 Mar 3];23:e180364. Available from: https://doi.org/10.1590/interface.180364
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,2222. Cavalcante RB, Esteves CJS, Pires MCA, Vasconcelos DD, Freitas MM, Macedo AS. A teoria ator-rede como referencial teórico-metodológico em pesquisas em saúde e enfermagem. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2017 [cited 2020 Mar 03];26(4):e0910017. Available from: https://doi.org/10.1590/0104-07072017000910017
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É preciso entender a implantação de uma tecnologia como uma controvérsia em efervescência e mobilizadora de outras controvérsias.1717. Venturini T. Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science [Internet]. 2010 [cited 2020 Mar 03];19(3):258-73. Available from: https://doi.org/10.1177/0963662509102694
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,2525. Venturini T. Building on faults: how to represent controversies with digital methods. Public Understanding of Science [Internet]. 2012 [cited 2020 Mar 03];21(7):796-812. Available from: https://doi.org/10.1177/0963662510387558
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Tal artefato tecnológico, nesse sentido, está envolto por conflitos, disputas e contradições emanados por uma rede de actantes em constantes relacionamentos (conexões), conformando-se como um debate ainda em aberto.2525. Venturini T. Building on faults: how to represent controversies with digital methods. Public Understanding of Science [Internet]. 2012 [cited 2020 Mar 03];21(7):796-812. Available from: https://doi.org/10.1177/0963662510387558
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,2626. Handayani PW, Hidayanto AN, Ayuningtyas D, Budi I. Hospital information system institutionalization processes in indonesian public, government-owned and privately owned hospitals. Int J Med Inform [Internet]. 2016 [cited 2020 Mar 03];95:17-34. Available from: https://doi.org/10.1016/j.ijmedinf.2016.08.005
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Então, considerar a implantação do PE envolve ouvir as discordâncias entre os atores envolvidos, entender as situações onde discordam. Controvérsias se iniciam quando os atores decidem pela discordância, não ignoram uns aos outros e terminam quando assumem um compromisso por consensos que potencializam o coletivo.2525. Venturini T. Building on faults: how to represent controversies with digital methods. Public Understanding of Science [Internet]. 2012 [cited 2020 Mar 03];21(7):796-812. Available from: https://doi.org/10.1177/0963662510387558
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Além disso, controvérsias devem ser compreendidas como estimuladoras de evoluções, de oportunidades para o debate coletivo, onde o envolvimento dos atores é fundamental para a compreensão de sua dinamicidade.1515. Latour B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Salvador;Bauru (BR): Edufba;Edusc; 2012.,1717. Venturini T. Diving in magma: How to explore controversies with actor-network theory. Public Understanding of Science [Internet]. 2010 [cited 2020 Mar 03];19(3):258-73. Available from: https://doi.org/10.1177/0963662509102694
https://doi.org/10.1177/0963662509102694...

Não podemos ignorar o fato de que o sucesso na implantação do PE depende da provisão de estrutura tecnológica, de formar profissionais e fortalecer processos de educação permanente e de sensibilizar profissionais, gestores e usuários acerca da importância da tecnologia.44. Jawhari B, Keenan L, Zakus D, Ludwick D, Isaac A, Saleh A, Hayward R. Barriers and facilitators to Electronic Medical Record (EMR) use in an urban slum. Int J Med Inform [Internet]. 2016 [cited 2020 Mar 03];94:246-54. Available from: https://doi.org/10.1016/j.ijmedinf.2016.07.015
https://doi.org/10.1016/j.ijmedinf.2016....
,99. Shahmoradi L, Darrudi A, Arji G, Farzaneh NA. Electronic Health Record Implementation: a SWOT analysis. Acta Med Iran [Internet]. 2017 [cited 2020 Apr 20];55(10):642-9. Available from: http://acta.tums.ac.ir/index.php/acta/article/view/5790
http://acta.tums.ac.ir/index.php/acta/ar...
,1818. Silva TIM, Cavalcante RB, Santos RC, Gontijo TL, Guimaraes EAA, Oliveira VC. Diffusion of the e-SUS Primary Care innovation in Family Health Teams. Rev Bras Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Mar 3];71(6):2945-52. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0053
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0...
-1919. Cavalcante RB, Esteves CJS, Brito MJM, Gontijo TL, Guimaraes EAA. Actor-networks and their influences on the informatization of Primary Healthcare in Brazil. Interface (Botucatu) [Internet]. 2019 [cited 2020 Mar 3];23:e180364. Available from: https://doi.org/10.1590/interface.180364
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,2626. Handayani PW, Hidayanto AN, Ayuningtyas D, Budi I. Hospital information system institutionalization processes in indonesian public, government-owned and privately owned hospitals. Int J Med Inform [Internet]. 2016 [cited 2020 Mar 03];95:17-34. Available from: https://doi.org/10.1016/j.ijmedinf.2016.08.005
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Entretanto, considerando a implantação da tecnologia como uma controvérsia, é preciso promover estratégias que contemplem suas características como tal: controvérsias devem ser continuamente debatidas considerando sua dinamicidade e constantes transformações; controvérsias envolvem considerar a agência de humanos e não humanos e seus relacionamentos; controvérsias são impregnadas por intencionalidades de diversos atores sejam eles indivíduos ou posições institucionais; controvérsias são resistentes à redução da complexidade; controvérsias envolvem distribuições de poder.

Desta feita, o sucesso da implantação do PE depende de um debate contínuo e alinhado às constantes evoluções da tecnologia, das normas relacionadas e das transformações proporcionadas no cotidiano de trabalho e nas relações entre atores envolvidos. Não podemos esperar um processo de implantação imediato, que se resume na utilização da tecnologia em sua máxima potencialidade, pois é um processo evolutivo e repleto de traduções que, ao seu tempo, serão desenvolvidas. O desafio é canalizar, ao longo do tempo, as traduções visando a implantação e adoção. Além disso, não podemos reduzir a complexidade da implantação do PE como um processo simplesmente local, dependente das atitudes dos atores humanos que ali habitam, pois a rede é híbrida (humanos e não humanos), complexa (vários pontos de conexão pontualizando intencionalidades) e permeada por relações de poder (normas definidas e institucionalizadas, mas atores humanos que as traduzem a seu modus operandi).

Reconhecemos a dinamicidade do processo de implantação da tecnologia e a necessidade de acompanhar sua evolução ao longo do tempo, apontando o limite deste estudo em cartografar controvérsias de um recorte histórico e de uma realidade específica e impossibilitando generalizações.

CONCLUSÃO

A rede de implantação do PE estudado é híbrida (de humanos e não humanos), possui múltiplas conexões (não é uma rede apenas local, é influenciada pelas esferas estadual e federal de governo), sendo tecida a partir de duas principais controvérsias: múltiplos actantes e suas traduções influenciando a implantação do PE; contribuições e fragilidades conformando o PE como uma controvérsia em aberto. Apesar das fragilidades relacionadas à infraestrutura e qualificação dos profissionais para uso da tecnologia, enfatizamos a constatação de que a tecnologia em implantação, mesmo em fase inicial, já apresenta contribuições, como apoio à tomada de decisões clínicas; acompanhamento do histórico de saúde e da evolução do paciente; e integração das informações entre profissionais e entre os pontos da rede assistencial.

A TAR e a Cartografia de Controvérsias conformaram-se como referenciais importantes para a compreensão do objeto a partir de uma abordagem sociotécnica, voltando o olhar investigativo para as relações entre humanos e não humanos estabelecidas em rede. Ressalta-se a importância de novas pesquisas que avaliem a implantação de novas tecnologias informacionais no processo de trabalho dos profissionais de saúde e de enfermagem, e como tais inovações influenciam a gestão do cuidado.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO

    Extraído da dissertação - A rede de atores humanos e não humanos na implantação de um prontuário eletrônico, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade Federal de São João Del Rei, em 2019.
  • FINANCIAMENTO

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG (Processo: APQ 00248-18), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (Processo: 404653/2016-2) e Universidade Federal de Juiz de Fora.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal de São João Del Rei - Campus Centro-Oeste Dona Lindu, sob parecer de Nº: 3.297.521. CAAE: 53159316.5.0000.5545.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2020
  • Aceito
    06 Jul 2020
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