VALIDADE DIMENSIONAL DO INVENTÁRIO DE PROBLEMAS ÉTICOS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE NO CONTEXTO DA SAÚDE DA CRIANÇA

RESUMO

Objetivo:

avaliar a validade dimensional e a confiabilidade do Inventário Problemas Éticos na Atenção Primária em Saúde adaptado ao contexto da saúde da criança.

Método:

estudo de desenho transversal com 101 enfermeiras de Unidades da Estratégia de Saúde da Família de uma cidade da região nordeste do Brasil. A coleta dos dados foi realizada entre maio de 2016 e junho de 2017. A validade de construto foi avaliada por meio da análise fatorial exploratória e a confiabilidade pela verificação da consistência interna utilizando o coeficiente alfa de Cronbach.

Resultados:

a análise fatorial revelou a multidimensionalidade do Inventário Problemas Éticos na Atenção Primária em Saúde-Saúde da Criança. Foi composta por 19 itens, distribuídos em 4 fatores: Fator 1 - Organização do sistema de saúde; Fator 2 - Ética Profissional; Fator 3 - Trabalho em equipe e Fator 4 - Expressão da autonomia dos pais (ou responsáveis). A consistência interna geral pelo alfa de cronbach e para os fatores foi moderada a satisfatória.

Conclusão:

a análise fatorial revelou que o inventário possui uma estrutura multidimensional com 4 fatores. O estudo demonstrou evidências de validade e confiabilidade que recomendam a aplicação do IPE-APS ao contexto da saúde da criança.

DESCRITORES:
Estudos de validação; Enfermeiras de saúde da família; Resolução de problemas; Bioética; Saúde da criança

ABSTRACT

Objective:

to assess the dimensional validity and reliability of the Inventory of Ethical Problems in Primary Health Care adapted to the children's health context.

Method:

a cross-sectional study with 101 nurses from the Family Health Strategy Units in a city of the Brazilian Northeast region. Data collection was carried out between May 2016 and June 2017. Construct validity was assessed by means of exploratory factor analysis and reliability by verifying internal consistency using Cronbach's alpha coefficient.

Results:

the factor analysis revealed the multidimensionality of the Inventory of Ethical Problems in Primary Health Care-Children's Health. It consisted of 19 items, distributed into 4 factors: Factor 1 - Organization of the health system; Factor 2 - Professional Ethics; Factor 3 - Teamwork; and Factor 4 - Parents (or guardians) autonomy expression. Overall internal consistency by Cronbach's alpha and for the factors was moderate to satisfactory.

Conclusion:

factor analysis revealed that the inventory has a multidimensional structure with 4 factors. The study showed evidence of validity and reliability that recommends the application of the IPE-APS to the context of children's health.

DESCRIPTORS:
Validation studies; Family health nurses; Problem solving; Bioethics; Children's health

RESUMEN

Objetivo:

evaluar la validez dimensional y la confiabilidad del Inventario de Problemas Éticos en Atención Primaria de Salud adaptado al contexto de salud del niño.

Método:

estudio de corte transversal con 101 enfermeras de las Unidades del programa Estrategia de Salud de la Familia en una ciudad de la región noreste de Brasil. Lo recolección datos se llevó a cabo entre mayo de 2016 y junio de 2017. La validez de constructo se evaluó mediante análisis factorial exploratorio y la confiabilidad por medio de la verificación de la consistencia interna a través del coeficiente alfa de Cronbach.

Resultados:

el análisis factorial reveló la multidimensionalidad del Inventario de Problemas Éticos en la Atención Primaria de Salud- Salud del Niño. Estaba compuesto por 19 ítems, distribuidos en 4 factores: Factor 1 - Organización del sistema de salud; Factor 2 - Ética profesional; Factor 3 - Trabajo en equipo y Factor 4 - Expresión de la autonomía de los padres (o tutores). La consistencia interna general por el alfa de Cronbach y para los factores fue de moderada a satisfactoria.

Conclusión:

el análisis factorial reveló que el inventario presenta una estructura multidimensional con 4 factores. El estudio mostró evidencias de validez y confiabilidad que recomiendan la aplicación del IPE-APS al contexto de salud del niño.

DESCRIPTORES:
Estudios de validación; Enfermeras de salud familiar; Solución de problemas; Bioética; Salud del niño

INTRODUÇÃO

Na prática da Atenção Primária à Saúde (APS), o Problema Ético (PE) tem sido conceituado como aspectos, questões ou implicações éticas comuns a esse cenário e que não se configuram, fundamentalmente, em um dilema1. No contexto da Bioética Clínica, o PE é considerado um caso clínico ou biomédico para o qual se encontram várias saídas admissíveis, gerando dúvidas nos profissionais sobre o que fazer. A relação dos profissionais da APS com as famílias e a comunidade pode oferecer cenários propícios para o surgimento de conflitos de valores, aqui compreendidos também como PE2.

Os PE vivenciados na APS são próprios desse nível de assistência, já que a configuração e a lógica de organização dos serviços, nos diferentes pontos da rede, contribuem para sua ocorrência. Assim, não é apropriado utilizar na APS as mesmas soluções e contextualizações empregadas no âmbito hospitalar3.

Estudo de revisão integrativa da literatura4 evidenciou que os PE encontrados por enfermeiros na APS relacionaram-se a: problemas nas relações entre membros da equipe caracterizados pelo processo de trabalho, pelas relações interprofissionais, informações e formação; problemas que envolvem comunicação, autonomia e respeito na relação com o usuário; e problemas relativos a recursos humanos, financeiros, físicos e influências externas na gestão dos serviços de saúde.

A vivência de PE por profissionais de saúde é uma realidade cotidiana do seu espaço de trabalho, o que conduz à necessidade de dispor de instrumentos capazes de medir fenômenos relacionados à ética/bioética, a fim de auxiliar na sua identificação e abordagem com vistas à melhoria da qualidade da assistência. Esses instrumentos podem funcionar como um importante recurso para o entendimento da frequência com que ocorrem situações eticamente problemáticas e para a melhoria do desempenho ético em situações clínicas e de pesquisa5.

Ainda não há um consenso sobre instrumentos apropriados para medir PE nos contextos da saúde, e, particularmente na APS, a construção dessas ferramentas é dificultada pela escassez de publicações sobre ética e bioética nesse nível de atenção e quando comparadas à produção de estudos dentro do cenário hospitalar3^-4^,6.

Na literatura internacional, até o momento, não foram identificados instrumentos para a avaliação e mensuração de PE na APS. Entretanto, no Brasil, foi construído, em 2008, um instrumento para a identificação de PE no contexto da APS, denominado Inventário de Problemas Éticos na Atenção Primária em Saúde (IPE-APS)7. Trata-se de um instrumento tridimensional que avalia PE nas relações com usuários e família, nas relações da equipe e nas relações com a organização e o sistema de saúde.

O estudo capturou, pela frequência dos eventos, a partir das vivências dos profissionais enfermeiros e médicos, a ocorrência de PE durante o atendimento na APS. O instrumento foi formulado a partir de uma pesquisa qualitativa que identificou uma lista de problemas éticos referidos por profissionais da APS. Em seguida, passou por uma avaliação de seus itens, por meio da aplicação em dois grupos de participantes (nove especialistas em ética/bioética e 46 profissionais de saúde da APS)8.

O IPE-APS foi aplicado em três diferentes modelos de unidades básicas de saúde com o intuito de confirmar se os problemas éticos se repetiam e se existiam outros problemas que poderiam ser incluídos no instrumento. Os achados confirmaram a aplicabilidade do instrumento nesses cenários e não houve a admissão de outros itens9.

O histórico psicométrico da escala revelou outras evidências de validade e confiabilidade do IPE-APS. No Brasil, a validade de conteúdo, utilizando a técnica Delphi, foi realizada com 9 profissionais experts em APS10. A análise da validade de construto empregando a Análise Fatorial Exploratória (AFE) foi realizada em dois estudos6^,11 utilizando rotação varimax e evidenciaram cargas fatoriais acima de 0,32 e 0,52 para todos os itens componentes, com uma consistência interna de 0,87 e 0,91. Na Europa, foi realizada uma adaptação transcultural, com tradução desse instrumento para a língua portuguesa (de Portugal) e posterior aplicação em 91 profissionais médicos e enfermeiros de cuidados primários, na cidade do Porto-Portugal12.

Todas essas análises foram realizadas no contexto das Unidades Básicas de Saúde (UBS), abarcando os PE gerais vivenciados por enfermeiras e médicos. Todavia, dentre os diferentes usuários atendidos na APS, as questões éticas/bioéticas envolvidas no atendimento às crianças merecem especial atenção, pois as diferenças no cuidado ofertado às crianças e aos adultos não estão vinculadas apenas ao aspecto fisiológico, mas também no que tange às questões éticas13. Mesmo diante dos avanços conquistados pela bioética, e em especial pela bioética pediátrica, ainda persistem importantes problemas éticos na atenção à saúde das crianças14.

Com o propósito de validar o conteúdo de um instrumento com enfoque específico na saúde da criança, as autoras desse estudo propuseram a adaptação contextual do IPE-APS7, realizando procedimentos metodológicos para adaptá-lo à atenção pediátrica na APS. A validação foi feita com 10 experts e 30 enfermeiras da ESF de uma cidade da região nordeste do Brasil. Na equivalência semântica e de itens as três dimensões do IPE-APS tiveram altos índices de concordância. No pré-teste, as enfermeiras avaliaram o instrumento como de fácil compreensão e sugeriram pequenos ajustes na instrução e no layout. O tempo médio de preenchimento foi de 15 minutos, resultando na primeira versão do Inventário de Problemas Éticos na Atenção Primária em Saúde - Saúde da Criança (IPE-APS-SC).15.

A partir da validação de conteúdo do IPE-APS-SC, foi necessário investigar também a sua estrutura dimensional. Sendo assim, o objetivo desse estudo foi avaliar a validade dimensional e a confiabilidade do IPE-APS-SC.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de desenho transversal que compreende a análise da validade do construto e da reprodutibilidade do IPE-APS-SC. O método foi orientado pelo check-list do COnsensus-based Standards for the selection of health Measurement INstruments (COSMIN)16.

O estudo foi realizado em um município de aproximadamente 600 mil habitantes, localizado na região nordeste do Brasil. Foi elencada toda a população de 105 enfermeiras das Unidades de Saúde da Família (USF). Os critérios de inclusão foram: 1) ser enfermeira de USF e 2) atender crianças regularmente há mais de 6 meses. Tais critérios são justificados por serem essas as profissionais que realizam puericultura e por necessitarem de um tempo mínimo de vivência com essa assistência para responderem o instrumento com propriedade. Destas, apenas 4 profissionais não aceitaram participar da pesquisa, totalizando 101 enfermeiras participantes. Esse quantitativo de participantes atende recomendações para a execução da análise proposta, que deve ser de pelo menos 100 sujeitos17.

A coleta dos dados foi realizada entre maio de 2016 e junho de 2017. O contato com as enfermeiras aconteceu nos dias em que as mesmas estavam na secretaria municipal de saúde participando de reuniões de educação permanente. A aplicação do instrumento foi realizada pela pesquisadora principal, com a colaboração de quatro acadêmicos de enfermagem, devidamente capacitados para tal procedimento.

O instrumento para coleta foi composto por dois módulos: o primeiro com variáveis sociodemográficas e profissionais das participantes (sexo, idade, tempo de trabalho na ESF, tempo que atua em puericultura, localização da ESF), e o segundo com o IPE-APS-SC a ser avaliado. O IPE-APS-SC continha 38 itens distribuídos em três dimensões. A primeira dimensão composta por 18 itens; a segunda por 8 itens e a última com 12 itens.

Para cada item do IPE-APS-SC, foi atribuída uma pontuação quanto à frequência com que o PE acontece em uma escala tipo Likert de 1 a 4 em ordem crescente de conformidade, na qual: 1- nunca; 2 - raramente; 3 - frequentemente e 4 - sempre. Ainda houve a questão que avaliava o fato de a situação descrita não ser considerada um problema ético pelo respondente (opção 0)15.

Para testar a hipótese de normalidade da distribuição dos dados, um pressuposto para a análise pretendida, aplicou-se o teste de Kolmogorov-Smirnov, considerado apropriado para estudos com amostras maiores do que 50 casos.

A estatística descritiva foi empregada para analisar as variáveis sociodemográficas e profissionais das enfermeiras. Para variáveis quantitativas, foram aplicadas medidas de tendência central (média) e de dispersão (desvio padrão). Para as variáveis qualitativas, foram aplicadas as medidas de frequências simples absolutas e relativas.

A validade do construto foi avaliada por meio da investigação da estrutura dimensional da escala. Essa estrutura foi identificada pela análise fatorial por componentes principais. Para confirmar a estrutura geral dos dados, adequação da amostra e da matriz de correlação da fatorização ao tipo de análise prevista, foi inicialmente realizado o teste de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO) e o teste de Barlett. Para determinar o número de fatores a serem extraídos, foram utilizados os critérios estatísticos de Kaiser (Eigenvalue>1) e Cattell (ScreePlot).

O procedimento de rotação adotado foi ortogonal, do tipo Varimax. As cargas fatoriais foram consideradas significativas quando excediam o valor absoluto de 0,50, indicando que no mínimo 25% da variância do item é explicada pelo fator, conforme proposta por autores17. Deste modo, a análise com 101 participantes levou a adoção de valores de cargas mais elevadas que o habitual, objetivando um nível de significância (α) de 0,05 e um nível de poder de 80%17.

Foram excluídos itens que não apresentaram carga fatorial significativa em nenhum fator, itens ambíguos por apresentarem carga em mais de um fator cuja diferença entre elas foi menor que 0,10. Os itens que apresentaram carga fatorial em mais de um fator e cuja diferença entre elas foi maior que 0,10 permaneceram no fator em que obtiveram maior carga fatorial.

A análise do poder discriminativo dos itens foi feita pelo coeficiente de Correlação Item-Total (CIT), que visa medir o relacionamento de cada item com respectivo fator. Padronizou-se 0,30 como valor mínimo da avaliação18.

Para o exame da confiabilidade por meio da consistência interna da escala, utilizou-se o coeficiente alfa de Cronbach, que é apropriado para escalas com mais de duas opções de respostas. Ele varia entre 0 e 1 e possui valores mínimos de aceitabilidade entre 0,60 e 0,7018. Foi empregado o SPSS 22 para Windows para todas as análises.

A pesquisa foi realizada após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia.

RESULTADOS

Os dados sociodemográficos e profissionais das 101 enfermeiras participantes do estudo estão descritos na Tabela 1.

Tabela 1 -
Distribuição das características sociodemográficas e profissionais dos participantes, Feira de Santana, Bahia, Brasil, 2017. (n=101)

Características	Frequência (%) ou média [desvio padrão]
Sexo
Masculino	05 (5%)
Feminino	96 (95%)
Idade	35,5 [± 8,79]
Tempo de formação (anos)	8,0 [±6,7]
Tempo de trabalho na ESF ⃰(anos)	5,1 [±4,3]
Tempo de atuação em puericultura (anos)	5,7 [±5,3]
Localização da ESF que atua
Zona urbana	77 (76,2%)
Zona rural	24 (23,8%)

• ^*ESF - Estratégia de Saúde da Família.

Sobre o teste de hipótese da normalidade Kolmogorov-Smirnov (KS), obteve-se KS maior que (p>0,05), indicando aderência à curva gausiana entre a distribuição esperada e a observada. O teste de KMO de 0,6 indicou a adequação do tamanho amostral e o teste de esfericidade de Bartlett <0,001 e mostrou que a matriz de correlações não é uma matriz de identidade.

De acordo com a Figura 1, o critério do autovalor (Eigenvalue>1) e do Scree Plot indicou uma solução com 13 fatores, representando 69% da variância, o que sinalizou sobre a decisão do número de fatores a extrair. Todavia, muitos fatores possuíam apenas dois itens; assim, testou-se as soluções de 4 a 6 fatores e passou-se à realização da Análise de Componentes Principais (ACP), analisando-se as respectivas estruturas.

Na primeira solução de 5 e 6 fatores, constatou-se a saturação confusa dos itens. No entanto, na solução de 4 fatores verificou-se uma melhor estrutura fatorial, pois houve menor número de itens ambíguos e confusos que apresentavam cargas em mais de um fator, assim como maior poder de defesa teórica.

Figura 1 -
Gráfico Scree Plot. Feira de Santana, Bahia, Brasil, 2017.

A análise fatorial resultou em um instrumento com número maior de fatores do que os definidos no instrumento (Tabela 2). O agrupamento em 4 fatores evidenciou que 19 dos 38 itens da IPE-APS tiveram carga fatorial maior que 0,50 em apenas um fator, sugerindo a sua pertinência ao mesmo.

Tabela 2 -
Distribuição dos itens na estrutura fatorial do IPE-APS-SC e respectivas cargas fatoriais, Feira de Santana, Bahia, Brasil, 2017. (n=101).

Itens		Carga fatorial				CIT*	α se item excluído
		1	2	3	4
Fator 1 - Organização do sistema de saúde
38	Não há retaguarda de serviço de remoção na UBS†.	0.655				0.485	0.719
35	Dificuldades quanto ao retorno e à confiabilidade dos resultados dos exames laboratoriais.	0.609				0.548	0.702
37	A UBS não tem condições para realizar atendimentos de urgência às crianças.	0.581				0.522	0.701
36	A UBS† não oferece às equipes de saúde da família condições para apoiar a realização de visitas domiciliares de crianças.	0.520				0.514	0.707
28	Falta de apoio de ações intersetoriais para discutir e resolver problemas éticos que encontrem em sua prática na saúde da criança.	0.520				0.417	0.725
32	Os profissionais de serviço de saúde privados desconsideram a conduta diagnóstica ou terapêutica feita pelos profissionais da equipe de saúde da família.	0.503				0.347	0.738
34	Dificuldades no sistema de referência e contrarreferência para a realização de consultas com especialistas e de exames complementares para as crianças.	0.502				0.458	0.717
Fator 2 - Ética Profissional
4	Os profissionais da ESF‡ fazem prescrições inadequadas ou erradas para a criança.		0.666			0.312	0.414
12	O ACS§ conta a seus vizinhos informações obtidas no seu trabalho a respeito das crianças e das suas famílias.		0.540			0.282	0.459
9	Os profissionais solicitam exames diagnósticos para a criança sem informar aos pais (ou responsáveis) o que está sendo pedido e por quê.		0.534			0.365	0.315
Fator 3 - Trabalho em equipe
19	Os profissionais da equipe de ESF‡ atuam com falta de compromisso e envolvimento na assistência à saúde da criança.			0.713		0.573	0.567
26	Funcionários da UBS† levantam dúvidas sobre a conduta dos profissionais da ESF‡.			0.642		0.471	0.508
31	O médico da ESF‡ se recusa a atender as crianças que não têm consulta médica marcada para o dia, o que acaba por restringir o acesso dessas à UBS†.			0.606		0.412	0.617
21	Existe falta de respeito entre os membros da equipe da ESF‡.			0.566		0.426	0.551
Fator 4 - Expressão da autonomia dos pais (ou responsáveis)
17	Pais (ou responsáveis) se recusam a seguir as indicações médicas ou a fazerem exames que os médicos e enfermeiras indicaram para as crianças.				0.615	0.448	0.493
15	Os pais (ou responsáveis) recusam tratamento prescrito à criança por acreditarem numa cura divina.				0.586	0.384	0.528
7	Os pais (ou responsáveis), durante a consulta médica ou de enfermagem, solicitam exames, medicamentos ou outros procedimentos inadequados ou desnecessários para a criança.				0.550	0.376	0.528
25	Pais (ou responsáveis) pedem a um dos membros da ESF‡ que os outros membros não tenham acesso à alguma informação relacionada à saúde da criança, mesmo em situação em que seja necessária a participação de toda a família no cuidado.				0.532	0.266	0.576
16	Menores de idade procuram a UBS e pedem à equipe exames, medicamentos ou outros procedimentos, sem autorização e/ou conhecimento dos pais.				0.532	0.322	0.551
	Alfa de Cronbach	0.74	0.50	0.62	0.59		Alfa geral= 0,767
	Variância%	16.36	6.20	6.06	5.31
	Variância Cumulativa%	17.87	24.07	30.13	35.44

• Nota: Método de extração: Análise de componentes principais; Método de rotação: Varimax com normalização de Kaiser, Rotação convergida em 8 interações. ^*CIT: Correlação de Item Total. ^† Unidade Básica de Saúde. ^‡ Estratégia de Saúde da Família. ^§ Agente Comunitário de Saúde.

Na ACP, o fator 1 agrupou 7 itens que antes pertenciam predominantemente à dimensão PE na relação com a organização e o sistema de saúde, com cargas fatoriais entre 0,655 e 0,502 que demonstraram uma boa relação desses itens com seu fator. O fator 2 incorporou três itens que pertenciam à dimensão dos PE na relação com os usuários e família e todos apresentaram valores aceitáveis de carga fatorial. O fator 3 agrupou quatro itens com predominância de altas cargas fatoriais no mesmo fator que correspondia à dimensão de PE na relação da equipe. O fator 4 apresentou cinco itens que tratavam, especificamente, de questões que envolvem a autonomia dos pais (ou responsáveis) sobre a vida da criança. As cargas fatoriais apresentadas pelos itens foram aceitáveis e exclusivas para este fator.

Assim, depois da ACP, do total de 38 itens do IPE-APS original, foram extraídos 19 itens. Desses, onze pertenciam à primeira dimensão (1, 2, 3, 5, 6, 8, 10, 11, 13, 14, 18); cinco compunham a segunda dimensão (19, 20, 22, 23, 24) e três itens a última dimensão (27, 30 e 33).

Os resultados da análise da consistência interna pelo coeficiente Alfa de Cronbach dos quatro fatores da IPE-APS-SC mostrou que o coeficiente alfa apresentou valores moderados (α= 0,74 a 0,50), quanto ao alfa dos 19 itens considerou-se satisfatório (Tabela 2).

A análise de componentes principais em 4 fatores permitiu a elaboração de definições operacionais a partir dos agrupamentos de itens evidenciados pela ACP que contribuíram para a definição da estrutura teórica, corroborando com a explicação do construto da bioética na APS e da saúde da criança (Quadro 1).

Quadro 1 -
Descrição operacional dos fatores do IPE-APS-SC. Feira de Santana, Bahia, Brasil, 2017.

Fatores	Definição operacional	Item na versão original	Item na versão adaptada
1 - Organização do sistema de saúde	Problemas éticos relacionados às questões organizacionais do sistema de saúde, que não estão sob a governabilidade da enfermeira (estrutura, gestão, recursos, articulação).	28, 32, 34, 35, 36, 37, 38	2, 19, 1, 16, 8, 12, 10
2 - Ética Profissional	Problemas éticos relacionados à ética profissional dos membros que compõem a estratégia de saúde da família (sigilo, imperícia, comunicação).	4, 9, 12	6, 7, 15
3 - Trabalho em equipe	Problemas éticos relacionados aos diferentes perfis profissionais que geram entraves no trabalho em equipe na APS (compromisso, respeito, confiança, flexibilidade).	19, 21, 26, 31	4, 11, 14,13
4 - Expressão da autonomia dos pais (ou responsáveis)	Problemas éticos vinculados à expressão da autonomia dos pais em decidir sobre as questões que envolvem a vida da criança (tratamento, sigilo, decisão dos filhos) e de como o profissional lida com essa questão ética.	7, 15, 16, 17, 25	17, 3, 18, 5, 9

DISCUSSÃO

A análise da validade estrutural tem sido definida como o grau no qual os escores de instrumento de medida refletem adequadamente a dimensionalidade do construto a ser mensurado. Esse tipo de validade pode ser avaliado pela técnica de análise fatorial exploratória quando, ainda não há ideias claras sobre o número e os tipos de dimensões que estão contempladas no construto investigado16.

No presente estudo, a hipótese a ser investigada foi se o construto “Problemas éticos na APS”, avaliado apenas com enfermeiras e adaptado ao contexto específico da saúde da criança, estava sendo adequadamente captado com um instrumento tridimensional.

Sabe-se que o construto em questão é variável e depende do contexto e da compreensão dos profissionais sobre o significado individual, sendo recomendada a realização de validação nos estudos que adaptaram instrumento para outra população19. Assim, acredita-se que a adaptação da escala original para contexto da saúde da criança15 foi passo primordial para obtenção de bons índices psicométricos e, certamente, essa etapa preliminar influenciou positivamente na apreciação de uma estrutura fatorial consistente e com poder de defesa teórica considerável.

O modelo apresentado corrobora com a propriedade multidimensional da escala IPE-APS-SC. A estrutura fatorial da versão brasileira tem cargas fatoriais altas e exclusivas para quase todos os itens que compuseram o modelo final. A análise da validade do IPE-APS-SC mostrou uma configuração estrutural com 19 itens, distribuídos em 4 fatores; assim, baseadas no construto do instrumento original e do referencial teórico da saúde da criança, os quatro fatores passaram a ter nova denominação.

O fator 1, Organização do sistema de saúde, concentrou o maior número de itens por fator, um total de sete. Abarcou as questões macroestruturais, porém com grande potencial para afetar o cotidiano da enfermeira que atua em puericultura. Na perspectiva operacional, são as questões organizacionais do sistema de saúde (estrutura, gestão, recursos, articulação) que não estão sob a governabilidade da enfermeira.

Para justificar o agrupamento dos itens 36, 37 e 38 no fator 1, que versam sobre a estrutura dos serviços da ESF, verificou-se resultado de estudo que avaliou a vivência de enfermeiras na consulta de puericultura na ESF, pontuando as seguintes dificuldades na esfera estrutural: espaço físico insuficiente, falta de insumos e equipamentos essenciais para a realização da consulta, além dos problemas vinculados ao transporte da equipe, tendo como consequência prejuízo nas visitas domiciliares20.

Os aspectos gerenciais de escassez e alocação de recursos humanos, financeiros e materiais geram problemas éticos e influenciam sua resolução4. Nos itens 28, 32, 34 e 35, é possível identificar as demandas específicas da gestão e/ou da ausência de um trabalho articulado nos serviços de saúde.

Os principais problemas relativos ao processo de gestão pública em saúde foram apontados em artigo de revisão: a falta de planejamento, a integralidade das ações em saúde, a equidade, a universalidade, o financiamento, a burocracia, a descentralização, o trabalho em equipe multiprofissional, a participação popular, a regulação do acesso, a gestão dos recursos humanos, a avaliação e a auditoria e a gestão da qualidade dos serviços21.

O fator 2, Ética Profissional, é integrado por apenas três itens (4, 9 e 12); todavia, foi incorporado como representativo do construto “Problemas éticos na APS”, visto se tratar dos PE relacionados à ética profissional dos membros que compõem a ESF como o sigilo, a imperícia e a comunicação, com grande potencial de riscos à integridade física e relacional dos envolvidos. Sua manutenção baseou-se em orientações metodológicas da literatura que estabelecem a exigência mínima de três indicadores por fator, já que menos de três itens certamente comprometeria um mapeamento mais adequado do crescente de intensidade do conteúdo dimensional17 (por ter apresentado robustez apenas na estrutura de 4 fatores).

O equívoco da conduta profissional, sinalizado no item 4, pode ocasionar danos às crianças atendidas na ESF. Uma revisão da literatura apontou que a principal iatrogenia cometida pelas enfermeiras é a medicamentosa, estando relacionada à negligência, imperícia e imprudência22.

No item 9, observa-se a ausência e/ou falha de comunicação na relação entre os profissionais e os usuários da APS, sendo essas geradoras de inúmeros conflitos. Entende-se que a boa comunicação pode minimizar as demandas éticas, repercutindo na construção de uma relação terapêutica e ética4.

No fator 3, Trabalho em equipe, os quatro itens 19, 21, 26 e 31 vincularam-se a ações da esfera individual que comprometeram o trabalho em equipe, sendo esse essencial para a integralidade do cuidado ofertado às crianças.

Revisão bibliográfica sintetiza o conceito de trabalho em equipe na APS como “uma forma de estruturação e organização dos processos de trabalho, baseada em relações intersubjetivas, comunicações efetivas e articulação de práticas e saberes que são construídos coletivamente, com objetivos comuns e responsabilidades compartilhadas, incluindo a participação dos usuários e da comunidade na produção do cuidado”23:153.

No que se refere à definição operacional do fator 3, tem-se os problemas éticos relacionados aos diferentes perfis profissionais que geram entraves no trabalho em equipe na APS, comprometendo o compromisso, o respeito, a confiança e a flexibilidade tão necessários ao trabalho interprofissional.

Corroboram com os três fatores supracitados o histórico psicométrico das duas análises fatoriais exploratórias do IPE-APS, em que alguns fatores apresentam correspondência teórica6^,11. Essa semelhança evidencia que esses itens abarcam as questões éticas comuns a qualquer grupo etário assistido pela APS.

No entanto, o fator 4 revelou um construto específico do contexto da saúde da criança, denominado Expressão da autonomia dos pais (ou responsáveis). Esse problema ético está vinculado à expressão autonômica dos pais em decidir sobre as questões que envolvem a vida da criança como tratamento, sigilo, decisão dos filhos, e o modo como o profissional lida com a demanda ética. Investigação do tipo revisão integrativa afirma que os PE muito frequentes na APS estão associados às questões relativas à autonomia4.

Os itens 7, 15, 17, 25 evidenciam os PE relacionados à dificuldade dos profissionais de saúde em lidar com a autonomia dos usuários representados pelos pais ou responsáveis na puericultura. No entanto, esse problema possui raízes históricas, sendo denominado de paternalismo, comum entre os médicos pediatras24 e enfermeiras25. No contexto do trabalho feminino exercido pela enfermeira, ainda se identifica o maternalismo25 que, como o paternalismo, entra em conflito com o direito de decisão dos pais (ou responsáveis).

Uma das temáticas mais frequentes na lista de problemas éticos vivenciados pelos profissionais que cuidam de crianças na APS diz respeito à relação profissional-família24. Pesquisa de revisão que identificou 40 problemas éticos na prática da medicina infantil destacam as seguintes questões: o consentimento informado, a informação ao paciente, estresse dos pais pela carga efetiva ao acompanharem o tratamento dos seus filhos e a ausência de formação em comunicação/psicologia infantil dos profissionais envolvidos no cuidado infantil26.

Estudiosas salientam que, na consulta de puericultura, a mãe deve ser considerada pelo profissional de saúde como corresponsável no cuidado à criança, sendo indicado o estabelecimento de uma relação que estimule o vínculo, a troca e construção de consensos e o respeito à sua autonomia. Evitando, assim, de vê-la como uma figura passiva, limitada a adotar as orientações profissionais27.

A exclusão de dezenove itens do instrumento inicialmente causou preocupação, fato esse que levou à realização de uma revisão minuciosa dos itens que não alcançaram carga fatorial de 0,50, a fim de verificar alguma contribuição teórica desses itens aos fatores em análise. Além disso, acrescenta-se que a autora do instrumento original foi consultada para avaliar a pertinência do agrupamento de alguns itens em fatores diferentes.

Essa nova análise elencou os itens excluídos, como já representados teoricamente, considerando possuir cargas fatoriais baixas ou cruzadas, indicando ambiguidade. Além disso, é possível supor que tenham sido mal interpretados pelos participantes por possível problema na redação.

Verifica-se, na prática, uma tendência ao incentivo do uso de instrumentos mais objetivos e curtos. Estudo realizado na Inglaterra, utilizando um instrumento aplicado em mulheres, comprovou que alguns métodos aumentaram a taxa de respostas, dentre esses se destaca o questionário mais curto28.

A consistência interna nos fatores 2 e 4 apresentou valores moderados, respectivamente, 0,50 e 0,59. O método estatístico Alfa de Cronbach compara os itens de um fator e mede a correlação média entre todos esses itens 19; assim, pequeno número de itens, como nos fatores 2 e 4, certamente afetou valores da consistência interna.

Os valores de alfa dos fatores 1 e 3 desse estudo foram considerados adequados e semelhantes com as outras análises fatoriais realizadas com o instrumento original6^,11 e também se assemelha a outros estudos que utilizaram a psicometria para mensurar fenômenos subjetivos, nos quais estão envolvidas as questões éticas e bioéticas vivenciadas por enfermeiras29^-30.

A medida de correlação item-total e do alfa de Cronbach, se o item for excluído, permitiu avaliar até que ponto a consistência interna dos fatores do IPE-APS-SC seria afetada pela remoção do item com baixo poder de discriminação. Verificou-se que os itens 12 e 25 não alcançaram uma CIT acima de 0,30; entretanto, não obtiveram melhora em seus índices de confiabilidade, o que não justificaria a remoção desses itens, já que poderia também implicar em problemas de representatividade no conteúdo mapeado por esses indicadores. Assim, optou-se pela sua permanência neste modelo quadrifatorial.

Além disso é fundamental a continuidade da compreensão dos problemas éticos vivenciados pelos profissionais na APS, mas com a ampliação para o reconhecimento do modo como gerenciam esses problemas e dos possíveis efeitos sobre os profissionais e seus usuários31.

Nesse sentido, a preocupação em ofertar um instrumento como o IPE-APS está associada não apenas à contabilização dos problemas éticos, mas também pode ser útil para a melhoria dos serviços de saúde ao fomentar discussões e reflexões sobre as questões éticas11 e para o processo de validação/medição no processo de ensino-aprendizagem em bioética e julgamento moral6.

Os resultados deste estudo devem trazer implicações para a prática da enfermagem ao disponibilizar um instrumento que possa identificar a ocorrência de problemas éticos no contexto da atenção à criança e ao suscitar reflexão quanto a sua prática cotidiana no cuidado à criança, com a expectativa de qualificação desse cuidado.

Destaca-se o diferencial deste instrumento em relação aos seus antecessores, no contexto da saúde do adulto, por ser direcionado para captar informações na perspectiva de enfermeiras (embora os itens propostos aparentem ser aplicáveis para outros profissionais que interagem com a criança e sua família). Todavia, para essa aplicação, seria necessário validá-lo em outra categoria profissional, a exemplo das técnicas de enfermagem, dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e da equipe do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF).

A versão atual do IPE-APS-SC, com 19 itens, tem a vantagem de ser breve, possuir apenas quatro categorias de respostas, ser de fácil aplicação e, portanto, menos cansativo, podendo ser mais aceito pelos respondentes.

Uma provável limitação diz respeito ao fato de o instrumento ter sido testado em um único contexto geográfico. Seria recomendável novos estudos em outras regiões do país para corroborar com a estrutura obtida e preferencialmente por meio de análises fatoriais confirmatórias. Para além de uma boa evidência sobre estrutura configural e métrica, é preciso, ainda, avaliar a capacidade do instrumento quanto a sua invariância.

CONCLUSÃO

A análise da validade do construto por meio da verificação da estrutura fatorial do IPE-APS-SC permitiu identificar uma versão composta por 19 itens distribuídos em quatro dimensões.

O estudo apresentou evidências de validade e confiabilidade sobre a aplicação do IPE-APS ao contexto da saúde da criança. Todavia, essa é a primeira evidência, sendo necessário avançar em outras análises a fim de verificar a validade discriminante do instrumento e utilizando outras amostras e novos cenários.

Sugere-se que essas avaliações sejam estendidas a análises fatoriais confirmatórias, além da apreciação das relações entre as dimensões identificadas e outros conceitos pertinentes ao construto problemas éticos.

AGRADECIMENTO

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) pela concessão de bolsa de estudos para a doutoranda Deisy Vital dos Santos.

À Secretaria Municipal de Saúde do município e as(os) enfermeiras(os), pelo acolhimento durante a realização da pesquisa.

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NOTAS

• ORIGEM DO ARTIGO

  Extraído da tese - Problemas éticos na atenção à saúde da criança: deliberação moral de enfermeiras, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade Federal da Bahia, 2017.

• APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

  Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia, Escola de Enfermagem, parecer n. 940.420, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética n 40030114.9.0000.5531.

Editado por

EDITORES

Editores Associados: Selma Regina de Andrade, Gisele Cristina Manfrini, Natália Gonçalves, Ana Izabel Jatobá de Souza. Editor-chefe: Roberta Costa.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  10 Set 2021
• Data do Fascículo
  2021

Histórico

• Recebido
  19 Out 2020
• Aceito
  28 Maio 2021