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ENTRE(LAÇAR) PARA GOVERNAR: ESTRATÉGIAS BIOPOLÍTICAS EM CAMPANHAS PUBLICITÁRIAS PARA DOAÇÃO DE ÓRGÃOS E TECIDOS

RESUMO

Objetivo:

analisar as campanhas publicitárias sobre doação de órgãos e tecidos como estratégias biopolíticas.

Método:

pesquisa qualitativa, inspirada na vertente Pós-Estruturalista dos Estudos Culturais. A coleta de dados ocorreu entre julho e setembro de 2020 e o corpus da pesquisa se constituiu dos componentes visuais e textuais de 421 peças publicitárias de doação de órgãos e tecidos de sites institucionais do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais de Saúde, das Centrais Estaduais de Transplante e da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Os dados foram gerenciados no programa Ethnograph v6, submetidos à análise proposta por Janice Morse e discutidos com as noções teóricas de biopoder e biopolítica, de Michel Foucault.

Resultados:

duas categorias são apresentadas. Na primeira, discutiu-se a representação da diversidade cultural e etária nas campanhas como forma de incluir todas as pessoas no processo de doação e transplante; na segunda, abordou-se a utilização do heroísmo, altruísmo e empatia para mobilização do “eu” do sujeito doador.

Conclusão:

a inclusão da diversidade cultural e etária e o recurso às características como empatia, altruísmo e heroísmo, nas campanhas publicitárias, são estratégias biopolíticas utilizadas pelo Estado brasileiro para conduzir a população para a doação de órgãos.

DESCRITORES:
Obtenção de tecidos e órgãos; Morte encefálica; Família; Meios de comunicação; Cultura

ABSTRACT

Objective

to analyze the organ and tissue donation advertising campaigns as biopolitical strategies.

Method

a qualitative research study inspired on the Post-Structuralist strand of Cultural Studies. Data collection took place between July and September 2020 and the research corpus consisted in the visual and textual components of 421 organ and tissue donation advertising pieces from institutional websites of the Ministry of Health, State Health Secretariats, State Transplantation Centers and the Brazilian Association of Organ Transplantation. The data were managed using the Ethnograph v6 program, submitted to analysis as proposed by Janice Morse and discussed following Michel Foucault's theoretical notions of Biopower and Biopolitics.

Results

two categories are presented. In the first, the representation of cultural and age diversity in the campaigns was discussed as a way to include all people in the donation and transplantation process; in the second, the use of heroism, altruism and empathy to mobilize the donor's “I” was addressed.

Conclusion

the inclusion of cultural and age diversity and the use of characteristics such as empathy, altruism and heroism in advertising campaigns are biopolitical strategies used by the Brazilian State to drive the population towards organ donation.

DESCRIPTORS
Securing of tissues and organs; Brain death; Family; Communication media; Culture

RESUMEN

Objetivo

analizar las campañas publicitarias sobre la donación de órganos y tejidos como estrategias biopolíticas.

Método

investigación cualitativa inspirada en la vertiente Post-Estructuralista de los Estudios Culturales. La recolección de datos tuvo lugar entre julio y septiembre de 2020 y el corpus de la investigación estuvo conformado por los componentes visuales y textuales de 421 materiales publicitarios sobre donación de órganos y tejidos de sitios web institucionales pertenecientes al Ministerio de Salud, a las Secretarías Estatales de Salud, a los Centros Estatales de Trasplante y a la Asociación Brasileña de Trasplante de Órganos. Los datos se manejaron en el programa Ethnograph v6, se los sometió a análisis según lo propuesto por Janice Morse, y se los debatió sobre la base de las nociones teóricas de Biopoder y Biopolítica de Michel Foucault.

Resultados

se presentan dos categorías. En la primera se analizó la representación de la diversidad cultural y etaria presente en las campañas como una forma de incluir a todas las personas en el proceso de donación y trasplante; en la segunda se abordó la utilización del heroísmo, el altruismo y la empatía para movilizar el “Yo” de los donantes.

Conclusión

incluir la diversidad cultural y etaria y recurrir a características como la empatía, el altruismo y el heroísmo en las campañas publicitarias son estrategias biopolíticas que emplea el Estado brasileño para inducir a la población a donar órganos.

DESCRIPTORES
Obtención de tejidos y órganos; Muerte cerebral; Familia; Medios de comunicación; Cultura

INTRODUÇÃO

O transplante é o tratamento que visa a melhora da qualidade de vida de pacientes com órgãos em insuficiência funcional terminal ou tecidos degenerados. O Brasil possui disparidade entre o número de doadores efetivos e de indivíduos que aguardam por transplante. Dados do registro brasileiro de transplante apontam que em 2019 foram 3.768 doadores efetivos para 37.946 indivíduos em lista de espera.11. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado. Registro Brasileiro de Transplantes [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 27];XXV(4):3-100. Available from: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf
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Essa diferença é responsável pelo elevado índice de mortalidade daqueles indivíduos que esperam ser transplantados, além do aumento de gastos públicos em saúde com tratamentos para aqueles com doenças crônicas.11. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado. Registro Brasileiro de Transplantes [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 27];XXV(4):3-100. Available from: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf
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-22. Alcalde PR, Kirsztajn GM. Expenses of the Brazilian Public Healthcare System with chronic kidney disease. J Bras Nefrol [Internet]. 2018 [cited 2020 Nov 10];40(2):122-9. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-3918
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Estudos demonstram que a diminuição no índice de doações efetivas está relacionada com as negativas das famílias, sendo estas responsáveis pelo consentimento. Tais negativas são justificadas, principalmente, pelo desconhecimento da vontade do familiar falecido.11. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado. Registro Brasileiro de Transplantes [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 27];XXV(4):3-100. Available from: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf
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,33. Aranda RS, Zillmer JGV, Gonçalves KD, Porto AR, Soares ER, Geppert AK. Profile and reasons for denying the donation of organs and tissues for transplants by familiars. Rev Baiana Enferm [Internet]. 2018 [cited 2020 Jun 18];32:e27560. Available from: https://doi.org/10.18471/rbe.v32.27560
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Contudo, para reverter tal situação, instituições governamentais e não governamentais atuantes no sistema de doação e transplante, têm desenvolvido estratégias com a finalidade de disseminar informações sobre o tema, principalmente, para sensibilização e conscientização, mediante a divulgação de campanhas publicitárias nas mídias,44. Pruinelli L, Kruse MHK. Biopolítica e doação de órgãos: estratégias e táticas da mídia no Brasil. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2011 [cited 2020 May 6];20(4):675-81. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-07072011000400005
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-55. Pauli J, Dalmoro M, Basso K. A economia de bens simbólicos e a criação de um ambiente favorável à doação: uma análise das campanhas de incentivo à doação de órgãos e tecidos. Rev Adm Pública [Internet]. 2018 [cited 2020 Jun 20];52(3):554-70. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7612170347
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uma vez que possuem elevada capacidade informativa e induzem determinados comportamentos.44. Pruinelli L, Kruse MHK. Biopolítica e doação de órgãos: estratégias e táticas da mídia no Brasil. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2011 [cited 2020 May 6];20(4):675-81. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-07072011000400005
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-66. Bezerra JJ, Silva FV. As cores da vida: estratégias biopolíticas nas campanhas setembro amarelo, outubro rosa e novembro azul. Miguilim [Internet]. 2019 [cited 2021 May 20];8(2):728-41. Available from: https://doi.org/10.47295/mgren.v8i2.1902
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É importante ressaltar que, neste estudo, consideramos campanhas publicitárias como um conjunto de peças publicitárias que possuem o intuito de comunicar, informar e anunciar uma determinada ideia à sociedade.77. Gonçalez MC. Publicidade e propaganda. Curitiba, PR(BR): IESDE Brasil; 2009. 100 p. Elas são formadas por peças publicitárias (banners, cartazes e folders, e outros) que possuem os mesmos elementos visuais, temas e conceitos.88. Ferrari CT, Nascimento LV, Baggio LF, Alegre RSP, Knoll GF. Campanha publicitária da feira do livro de Santa Maria 2016: da divulgação à leitura. Disciplinaum Scientia [Internet]. 2016 [cited 2021 Aug 21];17(1):95-105. Available from: https://periodicos.ufn.edu.br/index.php/disciplinarumALC/article/view/2317/2050
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A tentativa de conduzir as condutas dos indivíduos através da mídia, mediante campanhas publicitárias, pode ser considerada uma estratégia biopolítica.

A biopolítica, noção teórica desenvolvida por Michel Foucault, se refere ao modo pelo qual o Estado regula a realidade de uma sociedade, e os problemas dela emergentes. Visa à promoção da vida, o afastamento da morte e à produtividade dos indivíduos, de maneira menos onerosa possível, em termos econômicos, políticos e sociais. Promove o controle dos corpos, os quais são modulados pelos mecanismos de segurança, que interferem em prescrições e modulam comportamentos almejando o governo da vida de uma população.99. Foucault M. Segurança, Território e População: curso dado no Collège de France (1977-1978). São Paulo, SP(BR): Martins Fontes; 2008. 295 p.

No cenário brasileiro, a Política Nacional de Doação de Órgãos (PNDOT) se aproxima de um exemplo de biopolítica. Ela é colocada em prática pelo Estado e as Sociedades de Conhecimento, como a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), ou o Conselho Federal de Medicina. Tais instituições contribuem para a constituição de um campo de saberes e práticas sobre os corpos, pois abrigam experts, os quais produzem formulações e modelos sobre a temática, tornando-se referências e autorizados a proferir aquilo que é considerado verdade e aceito. Legitimam o que é produzido no campo teórico, que captura, convence e subjetiva profissionais da área da saúde, e a população, para a efetivação da doação de órgãos e tecidos. As proposições e intervenções enunciadas por estas instituições visam potencializar a vitalidade dos órgãos daqueles que estão em morte encefálica, busca-se manter a continuidade da vida de outras pessoas, especialmente jovens, acometidas por algum tipo de doença crônica, mas com potencial de continuar vivendo.1010. Lock M, Nguyen VK. Anthropology of biomedicine. Chichester, (UK): Wiley-Blackwell; 2010. 560 p.

Apesar do importante papel das campanhas publicitárias na doação de órgãos e tecidos para transplantes, os estudos que abordam a temática ainda são incipientes.44. Pruinelli L, Kruse MHK. Biopolítica e doação de órgãos: estratégias e táticas da mídia no Brasil. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2011 [cited 2020 May 6];20(4):675-81. Available from: https://doi.org/10.1590/S0104-07072011000400005
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-55. Pauli J, Dalmoro M, Basso K. A economia de bens simbólicos e a criação de um ambiente favorável à doação: uma análise das campanhas de incentivo à doação de órgãos e tecidos. Rev Adm Pública [Internet]. 2018 [cited 2020 Jun 20];52(3):554-70. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7612170347
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Em tais estudos, constatamos que campanhas publicitárias em saúde, tendem a incitar comportamentos desde 1920, início da sua implementação no Brasil. Algumas delas substituíram o viés educacional pelo apelativo, privilegiando reações emocionais em detrimento da explicação sobre a necessidade de doações de órgãos. Além disso, a produção de campanhas padronizadas pode não contemplar a multiculturalidade existente no País, que possui extensão continental, além de expressões linguísticas, costumes, valores morais e crenças diversas.

Dessa forma, justifica-se a relevância de analisar como as campanhas publicitárias operam enquanto estratégia biopolítica, como são construídas, quais discursos evocam buscando convencer para a doação de órgãos e para a continuidade da vida. O movimento em torno das campanhas pode ser compreendido como um jogo conduzido pelo Estado - representado pelo Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais - e por entidades vinculadas a campos de saber específicos sobre doação, notadamente a ABTO. Nele, verificamos o recurso aos números na composição de slogans como forma de apelo à população: “Um salva oito”, expressão utilizada por muitos anos em campanhas; ou ainda “+ de 250 pessoas aguardam hoje um transplante de coração no Brasil”, “+ de mil pessoas aguardam hoje um transplante de fígado no Brasil”, frases que circularam com imagens dos respectivos órgãos representados em balão, aparentando movimento, se esvaindo, nas campanhas alusivas ao “setembro verde”, promovidas pela ABTO em 2021.

A utilização destes números é um recurso para chamar atenção, alertar e demonstrar a importância da participação de cada um na tentativa de manter algo próximo de uma “homeostase” do corpo social e coletivo, para manter viva a população. Para além dele, outros elementos relacionados aos desejos, aos valores, àquilo que cada um ou cada grupo considera importante parecem ser utilizados nas campanhas publicitárias para convencer indivíduos, mas principalmente, convencer famílias a manifestarem o sim pela doação. São esses outros elementos que circulam e que interpelam os sujeitos no cotidiano, particularmente no mês de setembro de cada ano, que buscamos explorar. Frente ao exposto, construímos a pergunta de pesquisa: como, no Brasil, as campanhas publicitárias sobre doação de órgãos e tecidos se constituem em estratégias biopolíticas? Assim, este estudo tem como objetivo analisar as campanhas publicitárias sobre doação de órgãos e tecidos como estratégias biopolíticas.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que se aproxima da vertente Pós-Estruturalista dos Estudos Culturais. Os Estudos Culturais surgiram na década de 1960, no Reino Unido, e envolvem análises sobre práticas, identidades e arranjos sociais, a partir da interação dos indivíduos com diferentes produtos da Cultura.1111. Wortmann MLC, Santos LHS, Ripoll D. Apontamentos sobre os Estudos Culturais no Brasil. Educ Realidade [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 24];44(4):e89212. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-623689212
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Nessa perspectiva, por meio de análise documental, de etnografias, entrevistas, entre outras possibilidades, busca-se problematizar como as formas de pensar, de agir, de se posicionar e de se relacionar em determinada sociedade, em períodos históricos específicos, se modificam com base nos saberes que circulam em imagens, quadros, campanhas publicitárias, novelas, revistas, filmes e mídias sociais, os denominados artefatos culturais. Tais artefatos atuam de maneira pedagógica, constituindo sujeitos, que entendem e aceitam aquilo que eles dispõem como verdades, transformando os comportamentos frente aos mais variados aspectos da vida.1111. Wortmann MLC, Santos LHS, Ripoll D. Apontamentos sobre os Estudos Culturais no Brasil. Educ Realidade [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 24];44(4):e89212. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-623689212
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-1212. Kruse MHL, Dornelles CS, Viana KRF, Bernardi KS, Botega MSX, Pinheiro MS. Estudos culturais: possibilidades para pensar de outro modo a pesquisa em enfermagem. Rev Gaúcha Enferm [Internet]. 2018 [cited 2021 Oct 24];39:e2017-0135. Available from: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2018.2017-0135
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Para análise neste estudo, as campanhas publicitárias sobre doação de órgãos e tecidos veiculadas pelo Ministério da Saúde, pelas Secretarias Estaduais de Saúde, pelas Centrais Estaduais de Transplante e pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos foram o artefato cultural escolhido. No que se refere às Secretarias, consideramos os materiais de todos os Estados e o Distrito Federal.

As campanhas foram recuperadas entre julho e setembro de 2020, nos sites, nas redes sociais das Instituições e pelo motor de busca Google, tendo em vista que os sites disponibilizam publicações por um período limitado. Como critérios de seleção, delimitou-se: campanhas passíveis de download, formatadas em folder, banner, cartaz ou publicações em redes sociais e divulgadas entre 2007 e 2020. Essa limitação temporal se justifica pela data em que entrou em vigor, no Brasil, a Lei nº 11.548 de 2007, que instituiu o Dia Nacional da Doação de Órgãos. A utilização de mídias sociais possibilitou que um maior número de materiais fosse encontrado neste ambiente. Tal fato pode estar associado ao uso dessas páginas como principal meio de comunicação das instituições, tendo em vista que elas permitem maior alcance de sujeitos. Outra estratégia de busca por campanhas, foi o envio de um e-mail para as Secretarias Estaduais dos Estados do Mato Grosso e Amapá, e Central Estadual de Transplante do Distrito Federal, a fim de obter, aquelas disponíveis na internet. O envio para estas secretarias ocorreu devido a pesquisadora não ter encontrado ou ter encontrado menor número de campanhas comparado a outros Estados. Entretanto, a pesquisadora não obteve retorno dos e-mails enviados às secretarias.

No que se refere à organização dos dados, todas as imagens das campanhas coletadas foram agrupadas em pastas de um serviço para armazenamento e compartilhamento de arquivos (em nuvem), intituladas com o nome da instituição, após a realização dos downloads. Devido à diversidade de campanhas, optou-se por criar um sistema para nomeá-las com as iniciais da instituição, seguida do ano de publicação e de uma letra do alfabeto, respeitando a ordem de seleção da imagem. Também foram construídos e preenchidos dois quadros com as informações coletadas. O primeiro foi composto com data da busca, responsável pela coleta (a primeira autora), local de busca, data/ano da campanha, tipo e registro de identificação da campanha. O segundo contemplou instituição, ano, campanha, componente visual e componente textual.1313. Rapley T. Los análisis de la conversación, del discurso y de documentos en investigación cualitativa. Madrid, (ES): Ediciones Morata; 2014. 184 p.

Para extrair o componente visual, foi realizada a transcrição das imagens, respeitando as seguintes etapas: 1) identificação dos elementos presentes na imagem, bem como suas disposições; 2) descrição detalhada desses elementos, possibilitando a transformação de dados verbais em documento escrito; e 3) a extração do componente textual, que implicou na cópia literal das mensagens e dos logos presentes nas campanhas.1313. Rapley T. Los análisis de la conversación, del discurso y de documentos en investigación cualitativa. Madrid, (ES): Ediciones Morata; 2014. 184 p. Os arquivos oriundos das transcrições foram gerenciados e codificados no Programa Ethnograph v.6.

Os dados foram analisados de acordo com a proposta de Janice Morse, em que a análise ocorreu mediante a realização de quatro processos cognitivos: compreensão, sintetização, teorização e recontextualização.1414. Morse JM. Asuntos críticos en los métodos de investigación cualitativa. Medelín, (CO): Universidad de Antioquia; 2003. A compreensão consiste em obter conhecimento sobre o objeto de estudo. Nesta pesquisa, ela teve início com o registro das informações provenientes da revisão de literatura sobre os estudos existentes (realizada durante a construção do projeto de pesquisa), das campanhas publicitárias a partir das transcrições dos componentes visuais e textuais, da organização e da codificação com base nas noções teóricas utilizadas. A síntese diz respeito ao momento em que os códigos são inseridos e sofrem alteração e vinculação com outras partes do texto, atribuindo sentido às unidades de análise por meio da aplicação da semântica.1414. Morse JM. Asuntos críticos en los métodos de investigación cualitativa. Medelín, (CO): Universidad de Antioquia; 2003.

A codificação consistiu em identificar no texto transcrito, palavras e ou temas chaves, que representam os componentes textuais e visuais das campanhas publicitárias. Assim, construímos 51 códigos, os quais foram agrupados em cinco categorias, unindo as informações comuns transcritas, considerando o objeto de pesquisa e as ferramentas de análise, sendo então construída uma síntese dos achados. Os códigos construídos pela primeira autora foram revisados e comparados pelas orientadoras do trabalho, na sequência um livro de códigos foi criado. Destacamos que neste artigo serão apresentados os resultados pertinentes a duas das categorias construídas.

A teorização está associada à análise dos dados através da interpretação, argumentação e crítica. Já a recontextualização consiste em aplicar ou relacionar o conhecimento produzido com a prática.1414. Morse JM. Asuntos críticos en los métodos de investigación cualitativa. Medelín, (CO): Universidad de Antioquia; 2003. Para tal, nos apropriamos das noções teóricas de biopolítica e biopoder propostas por Michel Foucault. A biopolítica é um conjunto de estratégias e intervenções que tem como objetivo controlar processos biológicos coletivos de modo a potencializar a capacidade de governo do Estado. É uma política sobre as ações que podem fazer uma população viver.1515. Foucault M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, RJ(BR): Edições Graal; 1988. 149 p. Para que estratégias biopolíticas sejam operacionalizadas, há o exercício do biopoder, que se trata de um desdobramento da noção de poder. O poder, nessa perspectiva teórica, “é um modo de ação de alguns sobre os outros”16:24216. Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, RJ(BR): Forense Universitária; 1995. p. 231-49, se caracteriza pela relação entre indivíduos ou entre grupos, que resulta na produção de sentidos, sempre produtivos e positivos.1616. Foucault M. O sujeito e o poder. In: Rabinow P, Dreyfus H. Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, RJ(BR): Forense Universitária; 1995. p. 231-49

Quanto aos aspectos éticos, destacamos que por se tratar da análise de materiais de domínio público ou produzidos por órgãos de interesse público, a pesquisa dispensa aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa.

RESULTADOS

Foram selecionadas 426 peças publicitárias, oriundas de 200 campanhas. Dessas, excluiu-se cinco campanhas repetidas, resultando em 421 peças publicitárias pertencentes a 195 campanhas. Em relação às Secretarias Estaduais de Saúde e às Centrais Estaduais de Transplantes, os estados que se destacaram na publicação de campanhas publicitárias destinadas a doação de órgãos e tecidos foram: Bahia (20 campanhas e 42 peças), Goiás (19 campanhas e 36 peças), Pernambuco (13 campanhas e 34 peças), Ceará (13 campanhas e 25 peças) e São Paulo (oito campanhas e 11 peças).

Os estados que apresentaram menor número de campanhas de doação de órgãos e tecidos foram: Mato Grosso (uma campanha e duas peças), Mato Grosso do Sul (duas campanhas e duas peças), Pará (uma campanha e cinco peças), Paraíba (uma campanha e duas peças), e Roraima (duas campanhas e duas peças). O Amapá não apresentou nenhuma campanha e nenhuma peça.

A seguir, apresentamos as categorias, “Diversificar para doar: a população nas campanhas publicitárias” e “Heroísmo, altruísmo e empatia: mobilização do “eu” do sujeito doador”. A partir delas, é possível identificar quais populações são mobilizadas bem como descrever quais elementos inerentes ao “eu” de cada sujeito são acionados pelo Estado para convencer e efetivar a doação de órgãos e tecidos.

Diversificar para doar: a população nas campanhas publicitárias

Constatamos que, no período analisado, nas campanhas publicitárias de doação de órgãos e tecidos foram utilizadas distintas estratégias para convencer os sujeitos, para conduzi-los a decidir e consentir a doação. Identificamos elementos presentes nas campanhas que, tanto em sua apresentação quanto conteúdo de texto, como cores e formas na imagem, representam a diversidade e a multiculturalidade da população brasileira. Estes elementos foram: presença de sujeitos considerando - sexo/gênero, homens e mulheres; idade - crianças, jovens, adultos e idosos; quanto a cor - brancos e pretos; estes ocupando tanto o lugar de doadores como de receptores.

Na Figura 1, estes elementos são perceptíveis e, além disso, como estratégia, utiliza-se o laço verde que entrelaça um grupo de sujeitos. Ele parece estar unindo-os em torno de uma determinada finalidade; ou ainda parece estar formando uma rede para recolher e envolver. Na figura, a distribuição dos sujeitos ganha o formato de uma pirâmide, que é construída a partir de uma ordem com base nas características biológicas, como a mulher frente ao homem, o preto frente ao branco, o idoso frente ao jovem. Uma disposição que se aproxima da organização das listas de espera.

Figura 1 -
Campanha da Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão.1717. Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão (Brasil). Campanha da Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão [Internet]. 2017 [cited 2020 Oct 10]. Available from: https://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/?tag=doacao-de-orgaos
https://www.ma.gov.br/agenciadenoticias/...

A diversidade cultural existente nos estados brasileiros também foi contemplada nas campanhas, assim como elementos da cultura que referenciam determinado grupo. A população negra, por exemplo, esteve presente em maior frequência nas campanhas das instituições das Regiões Norte e Nordeste, como a Central Estadual de Transplantes da Bahia e de Rondônia. Na região superior, imagem da boca, do queixo e do tronco de uma mulher preta, vestindo uma camisa azul com corações brancos e sorrindo. Sobre o peito esquerdo da mulher, há duas mãos de cor branca formando um coração (CETBA2017B).

Na região central, imagem de uma mulher negra, com cabelo comprido preto, vestindo uma blusa com desenhos de flores nas cores rosa, amarelo e verde, abraçando e olhando para uma menina de pele preta (CETRO2017A). Tal achado também pode ser identificado na Figura 2.

Figura 2 -
Campanha da Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão.1818. Secretaria Estadual de Saúde do Maranhão (Brasil). Permita que a vida continue para quem aguarda por um transplante [Internet]. 2019 [cited 2020 Oct 17]. Available from: https://www.facebook.com/saudegovma/photos/a.1711313409180040/2309379829373392/
https://www.facebook.com/saudegovma/phot...

Outra estratégia biopolítica foi a utilização de crianças ocupando, principalmente, o lugar de sujeitos receptores de órgãos e tecidos. Nas campanhas, as crianças aparecem com menor frequência se comparado aos adultos. Além disso, as representações infantis estavam relacionadas, na maioria das vezes, ao adoecimento. Essas crianças se encontravam em cenários como quartos de hospitais e apresentavam feições de tristeza e doença. Na lateral esquerda, imagem de criança preta, deitada sobre um travesseiro branco, segurando um urso de pelúcia de cor marrom do lado direito e com uma pulseira de internação de cor vermelha e branca no braço direito (MS2010A). Na região central, imagem de uma menina de pele preta, de cabelo crespo, preto preso, usando uma pulseira hospitalar azul, vestindo uma camiseta do tipo regata rosa e com os braços cruzados sobre o peito (SESES2011B). Junto à imagem das crianças, percebemos a associação de elementos que fazem parte do universo infantil, como brinquedos, animais, desenhos e a família, conforme exemplificado na Figura 3.

Figura 3 -
Campanha de doação de órgãos e tecidos do Ministério da Saúde.1919. Ministério da Saúde (Brasil). Hoje é o dia Nacional de Incentivo à Doação de Órgãos [Internet]. 2018 [cited 2020 Sep 10]. Available from: https://www.facebook.com/minsaude/photos/a.205936522758305/2235313039820633/?type=3
https://www.facebook.com/minsaude/photos...

Em contraponto, a população adulta esteve representada ocupando tanto o papel de doador quanto de receptor, e os idosos aparecem com menor frequência nas peças publicitárias. Nelas, identificamos sujeitos na lista de espera, sujeitos que realizaram transplante e, até mesmo, o sujeito familiar que autorizou a doação. A utilização de nomes próprios, o tipo de doença e o tempo em que estão na lista de espera também foram identificadas nas peças publicitárias como uma estratégia de aproximação com os possíveis sujeitos doadores. Guilherme Pradines está na fila de espera para transplante de rim. Josilene Ribeiro transplantada de rim há 15 anos. José Milson transplantado de fígado há 4 anos. Setembro verde (SESAL2017A). Na região central, sobre as fotos, imagem de uma idosa branca de cabelo curto castanho, braços cruzados sobre a barriga, usando uma blusa verde com um laço verde preso do lado esquerdo do peito (MS2019D).

Esse tempo na lista de espera, representado em anos, por um órgão e ou tecido parece ser um dos elementos utilizados como forma de apelo pela representação do tempo de doença e sofrimento, o que pode despertar na população um sentimento de compaixão.

Heroísmo, altruísmo e empatia: mobilização do “eu” do sujeito doador

Nesta categoria, apresentamos as estratégias biopolíticas que correspondem à mobilização do “eu” doador, destacando-se algumas das características acionadas pelo Estado para convencer a população: o heroísmo, a empatia e o altruísmo. Sentimentos esses evocados, principalmente, nas campanhas das Secretarias Estaduais de Saúde, das Centrais Estaduais de Transplantes e da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Na Figura 4, um bombeiro promove o resgate diante de um incêndio, evitando a morte e trazendo os indivíduos à vida. Esses indivíduos carregados pelo ombro de um herói, remetem àqueles que aguardam por um transplante e que podem ser “salvos”, unicamente, pelo gesto da família do indivíduo doador de órgãos.

Figura 4 -
Campanha de doação de órgãos e tecidos da ABTO.2020. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Seja um doador de órgãos e salve até 7 vidas, avise a sua família [Internet]. 2014 [cited 2020 Oct 17]. Available from: https://www.facebook.com/doeorgaos/photos/a.282680388473998/644605222281511/?type=3
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O altruísmo foi identificado nas peças publicitárias pelo uso de palavras que impactam o “eu” do outro, como, “faça o bem”, “gesto”, “sorriso de alguém”, e na possibilidade de transformar positivamente a vida de uma pessoa. Doe órgãos. A esperança de dias melhores para alguém pode começar com o seu gesto (SESCS2017A). Viver é uma grande conquista. Ajude mais pessoas a serem vencedoras. Seja doador de órgãos (SESCE2015A). Seja o motivo do sorriso de alguém (SESAL2017C). A decisão de mudar para sempre a vida de alguém está dentro de você (CETTO2015A).

A empatia foi outra característica mobilizada. Ela está associada às relações interpessoais e, nas campanhas, houve referência, principalmente, aos familiares, no intuito de fazer o público-alvo pensar em seus vínculos afetivos. Dessa forma, em algumas peças publicitárias, por exemplo, a referência da díade mãe e filho(a) está presente. Só um milagre pode salvar a vida da sua filha” E se fosse com você, doação de órgãos ainda não seria um problema seu? (SESPE2016A). Sua mãe não tem mais como fazer hemodiálise. Só nos resta aguardar um doador.” E se fosse com você, doação de órgãos ainda não seria problema seu? (CET2015D). Empatia. Capacidade de captar o que o outro sente e suas necessidades. A doação de órgãos é um símbolo de empatia da família doadora por alguém desconhecido (SESDF2020C).

O heroísmo também foi recorrente. Seja um herói. Salve vidas. Doe órgãos (ABTO2019A). Você pode salvar muitas vidas (SESMG2017C). Na maioria das vezes ele é representado pela imagem de heróis, sejam eles de filmes americanos, sejam eles de desenhos animados, como por exemplo, super homem, capitão américa, homem aranha entre outros. Na região central, imagem de um coração humano encapado com uma roupa do Homem-Aranha (CETCE2013A). O fundo é composto por um mar azul agitado com ondas elevadas e por um homem branco com roupa de salva-vidas saindo do mar com sete pessoas sobre seus ombros (um menino, uma menina e cinco homens) (ABTO2014F).

Em algumas situações, a representação ocorreu através de pessoas e de palavras, por exemplo, “salve” e “salvar”, em uma tentativa de sair do mundo lúdico e imaginário, e aproximar a população da realidade do processo de doação de órgãos e tecidos. Doe órgãos. Salve vidas! João Marcos autorizou a doação de órgãos da mãe (SESAL2018C). A Shirlayni disse sim e os órgãos do seu filho salvaram uma outra vida (SESES2017A). O verdadeiro poder está em você. Seja doador (CETCE2013B).

DISCUSSÃO

No que se refere à relação entre o número de campanhas publicitárias e as doações e transplantes realizados, verificamos que, em 2019, nos estados com maior número de campanhas, Bahia, Goiás, Pernambuco, Ceará, e São Paulo, houve maior número de doações efetivadas por milhão de população e transplantes realizados, com órgãos oriundos de doadores falecidos.11. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado. Registro Brasileiro de Transplantes [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 27];XXV(4):3-100. Available from: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf
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Já os estados com menos campanhas, Amapá, Pará, Paraíba, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Roraima, no mesmo período apresentaram, menor número de doações efetivadas e realizaram menos transplantes.11. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado. Registro Brasileiro de Transplantes [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 27];XXV(4):3-100. Available from: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf
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Sendo assim, esse achado pode estar relacionado à ausência ou a menor frequência de publicação de campanhas voltadas à temática. É importante considerar que Roraima e Amapá possuem programas de doação de órgãos recentes, instaurados, respectivamente, em 2015 e 2018.

Contudo, esta interpretação precisa ser ponderada visto que melhores desempenhos no processo de doação e transplante podem não estar exclusivamente associados com a publicação de campanhas. Como exemplo, destacamos o estado de Santa Catarina, considerado um dos líderes no ranking nacional de doações. Em nosso estudo, apresentou menor número de campanhas quando comparado a Goiás e Bahia. Entretanto, estudo aponta que profissionais de saúde com amplo conhecimento sobre a temática, apoio eficiente das centrais de transplantes e atuação ativa das comissões intra-hospitalares de doação de órgãos e tecidos para transplante nas instituições hospitalares contribuem para melhores resultados em Santa Catarina.2121. Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo, SP(BR): Martins Fontes; 1999. 379 p.

No que concerne às taxas de efetivação, estudo alemão,2222. Pfaller L, Solveig LH, Adloff F, Schicktanz S. Saying no to organ donation’: an empirical typology of reluctance and rejection. Sociol Health Illn [Internet]. 2018 [cited 2022 Mar 8];40(8):1327-46. Available from: https://doi.org/10.1111/1467-9566.12775
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no qual foram realizados grupos focais com pessoas que dizem não à doação de órgãos, buscou analisar quais aspectos podem interferir nas negativas. Os autores identificaram, corroborando com outros estudos daquele país, que quatro fatores são preponderantes na relutância e na rejeição da doação de órgãos: 1) a falta de conhecimento acerca dos procedimentos que envolvem a doação e o transplante de órgãos; 2) a desconfiança no modo como é regulada a doação e o transplante no sistema de saúde; 3) o desejo de “não” matar a pessoa considerada como provável doador, aspecto relacionado à descrença nos critérios de morte encefálica e na sua aceitação como sinônimo de morte na atualidade; 4) a integridade corporal ser considerada um princípio da dignidade humana, o qual seria afetado no momento em que medicamentos e intervenções cirúrgicas são realizadas em uns para manter a vida e a integridade do corpo de outros. No mesmo estudo, os autores apontam que com base nesses quatro fatores é possível pensar em mecanismos individuais e coletivos envolvidos no processo de (não) convencimento para a doação. Indicam que é importante reconhecer o “sim” à doação, mas também o “não”, sendo necessário incluir todas as perspectivas nas políticas públicas e nas campanhas midiáticas. Considerando a pluralidade de opiniões e inquietações acerca do corpo e dignidade, das concepções sobre o que são vida e morte, é possível planejar ações mais inclusivas e acolhedoras, as quais podem ser mais sensibilizadoras, fomentando o desejo de doar.2222. Pfaller L, Solveig LH, Adloff F, Schicktanz S. Saying no to organ donation’: an empirical typology of reluctance and rejection. Sociol Health Illn [Internet]. 2018 [cited 2022 Mar 8];40(8):1327-46. Available from: https://doi.org/10.1111/1467-9566.12775
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Quanto às estratégias biopolíticas, em nossas análises a imagem do laço aparece frequentemente nas campanhas. O laço representa aliança, vínculo, a união de dois elementos ou engajamento em torno de uma ideia que se torna comum a todos, independentemente das diferenças. Tem sido utilizado para simbolizar a luta em torno de uma causa envolvendo instituições públicas e privadas. Ele é evidenciado em campanhas como a luta contra o câncer de mama, na prevenção do suicídio ou no combate à Síndrome da Imunodeficiência Humana Adquirida.66. Bezerra JJ, Silva FV. As cores da vida: estratégias biopolíticas nas campanhas setembro amarelo, outubro rosa e novembro azul. Miguilim [Internet]. 2019 [cited 2021 May 20];8(2):728-41. Available from: https://doi.org/10.47295/mgren.v8i2.1902
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,2323. King S. Pink Ribbons, INC: breast cancer and the politics of philanthropy. Minneapolis, MN(US): University of Minnesota Press; 2008. 208 p.

Podemos considerar que seu uso nas campanhas analisadas visa aproximar o maior número de pessoas em torno de um objetivo comum: efetivar a doação e o transplante de órgãos e tecidos. Tal estratégia nos remete ao governo de "um corpo com inúmeras cabeças”21:29221. Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo, SP(BR): Martins Fontes; 1999. 379 p., forma pela qual age o Estado no contexto da biopolítica. Dito de outra maneira, trata-se de uma forma de mobilizar e conduzir uma população, em seu sentido mais plural.2424. Gallo S. Biopolítica e subjetividade: resistência? Educ Rev [Internet]. 2017 [cited 2021 Oct 17];(66):77-94. Available from: https://doi.org/10.1590/0104-4060.53865
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Assim, busca-se incluir e atingir grupos que se distinguem justamente pelas características fenotípicas, mas que ao fim e ao cabo possuem um corpo - enquanto estrutura biológica - comum, o qual viabiliza o processo de doação.

A ampla representação da diversidade populacional nas campanhas de doação de órgãos e tecidos pode ser justificada por meio da governamentalidade democrática. Esse conjunto de técnicas de gestão visa desenvolver ações que construam sujeitos como cidadãos, possibilitando com que eles se sintam incluídos no processo de governo e, tornando-os centrais nas relações de poder. Sendo assim, a partir do momento em que esses sujeitos são individualizados, eles passam a ser alvo das políticas públicas e, consequentemente, dos sistemas de controle.2525. Foucault M. Microfísica do poder. 8th ed. Rio de Janeiro, RJ(BR): Paz e Terra; 2018. 432 p.

Consideramos que, quando as campanhas trazem imagens que conseguem representar pessoas de todas as idades e cores, elas demonstram que aqueles sujeitos fazem parte do processo brasileiro de doação e transplante. Além disso, essa inclusão, também permite torná-los responsáveis pelos números das doações efetivadas e da lista de espera, por exemplo. Essa responsabilidade vai ao encontro da Lei no 8.080 de 1990, que afirma o dever do Estado em relação ao direito à saúde, não anulando o dever das pessoas e das famílias.2626. Brasil. Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da Saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências [Internet]. Brasília, DF(BR): Conselho Nacional de Saúde; 1990 [cited 2021 Nov 5]. Available from: https://conselho.saude.gov.br/legislacao/lei8080_190990.htm
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O uso de crianças, meninos e meninas, principalmente em situação de sofrimento, nas peças publicitárias das campanhas de doação de órgãos e tecidos parece ser uma estratégia apelativa emocional. Isso está relacionado com a incompatibilidade dessas representações às imagens infantis que são vistas no dia a dia, repletas de sorrisos, brincadeiras e vitalidade. Assim, o público-alvo se depara com o diferente e é convocado a pensar nos benefícios que o transplante proporciona àqueles que aguardam por um órgão e, com isso, pode tornar-se favorável à doação.

Algumas campanhas também recorrem ao apelo emocional, notadamente pelo uso de imagens ou desenhos de crianças. Ao fazer referência ao público infantil, como estratégia de impacto, considera-se que esses materiais buscam retomar a relação de cada pessoa com os cuidados direcionados às crianças. Entretanto, esse estímulo só é possível porque existem discursos, disseminados na sociedade moderna, em relação à necessidade de investimento na infância, como por exemplo, o da Educação.2727. Custódio CO. Representações da infância nos discursos pedagógicos: mutações e temporalidades. Educa Educ Real [Internet]. 2017 [cited 2020 Jun 14]; 42(1):299-321. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-623654662
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Tais discursos tratam a criança como um ente sobre o qual se deve investir, com vistas a transformar e tornar melhor a sociedade em que se vive. Assim, é possível realizar aproximações entre o discurso da saúde com o da educação no que se refere ao investimento econômico, social e de cuidados, com vistas a potencializar a vida da criança, tendo como finalidade última a mudança de um determinado contexto.

No Brasil, políticas públicas federais visam proporcionar melhores condições à saúde do público infantil, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança.2828. Ministério da Saúde (Brasil), Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança: orientações para implementação [Internet]. Brasília, DF(BR): Ministério da Saúde; 2018 [cited 2021 Oct 5]. Available from: https://central3.to.gov.br/arquivo/494643/
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Ao pensar em uma perspectiva foucaultiana,2525. Foucault M. Microfísica do poder. 8th ed. Rio de Janeiro, RJ(BR): Paz e Terra; 2018. 432 p. pode-se compreender que os investimentos do Estado buscam aprimorar meios físicos, psicológicos e sociais, favorecendo a modulação dos corpos e, consequentemente, tornando útil o desenvolvimento das crianças. Dito de outra forma, os corpos infantis são aqueles que receberão todo o investimento de educação e saúde para se tornarem produtivos, pois sobre eles se projeta a formação de futuros adultos saudáveis, com potencial para o consumo, para o trabalho, para a manutenção da vida e a organização de uma sociedade.2525. Foucault M. Microfísica do poder. 8th ed. Rio de Janeiro, RJ(BR): Paz e Terra; 2018. 432 p. A doação de órgãos, por exemplo, também pode ser considerada como parte dessa estratégia de promoção à saúde do público infantil, especialmente as crianças com doenças que apresentam o transplante como principal tratamento.11. Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. Dimensionamento dos transplantes no Brasil e em cada estado. Registro Brasileiro de Transplantes [Internet]. 2019 [cited 2021 Oct 27];XXV(4):3-100. Available from: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2019/RBT-2019-leitura.pdf
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Em 2009, diante do crescente número de crianças que necessitavam de transplante, foi publicada a Portaria 2.600 de 2009, determinando que as pessoas com menos de 18 anos têm prioridade para se tornarem receptores de órgãos oriundos de doadores pertencentes à mesma faixa etária.2929. Ministério da Saúde (Brasil). Portaria Nº 2.600, de 21 de outubro de 2009. Aprova o Regulamento Técnico do Sistema Nacional de Transplantes [Internet]. Brasília, DF(BR): Ministério da Saúde; 2009 [cited 2021 Nov 5]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt2600_21_10_2009.html
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Essa priorização também pode ser relacionada com a tentativa do governo em investir na infância e juventude daqueles que serão, posteriormente, parte da mão de obra que auxiliará no desenvolvimento do Estado.

No que diz respeito à população idosa, observou-se pouca referência a essas pessoas nas campanhas. O afastamento dos idosos no processo de doação e transplante pode estar relacionado com alguns critérios etários presentes no meio médico, que consideram a idade de um paciente inversamente proporcional à chance de um prognóstico favorável e, consequentemente, de potencialidade de recuperação, gerando menor investimento sobre eles.3030. Santos DK, Lago MCS. O dispositivo da idade, a produção da velhice e regimes de subjetivação: rastreamentos genealógicos. Psicol USP [Internet]. 2016 [cited 2020 Aug 19]; 27(1):133-44. Available from: https://doi.org/10.1590/0103-656420140060 .
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Esse tipo de critério está atrelado ao pensamento contemporâneo e aos efeitos do biopoder que prioriza o investimento sobre corpos jovens, potencialmente saudáveis ou recuperáveis, os quais terão perspectivas de consumos e produção, em detrimento dos corpos dos idosos, considerados frágeis, e impossibilitados de contribuir para o desenvolvimento do Estado.3131. Rose N. Como se deve fazer a História do Eu? Educ Realidade [Internet]. 2001 [cited 2021 Aug 21];26(1):33-57. Available from: https://doi.org/10.1590/2175-6236112138
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Outra estratégia utilizada nas campanhas publicitárias foi a mobilização de características com vistas a convencer as pessoas a doarem ou as famílias aceitarem a doação de órgãos. Nos materiais analisados, destacou-se o recurso ao altruísmo, à empatia e ao heroísmo. O termo altruísmo pode ser considerado como o oposto de egoísmo. Ele está associado à educação positivista que é capaz de desenvolver espontaneamente instintos simpáticos, fazendo com que a felicidade e o bem-estar de uma pessoa seja capaz de proporcionar o sentimento de satisfação no outro.3232. Abbagnano N. Dicionário de filosofia. 6th ed. São Paulo, SP(BR): Editora Martins Fontes; 2012. 1232 p. Além disso, esse termo também é considerado como caridade modernizada, uma vez que, existe um valor social nos órgãos disponibilizados para doação, ou seja, não se tratando apenas de partes do corpo disponibilizadas para doação.1010. Lock M, Nguyen VK. Anthropology of biomedicine. Chichester, (UK): Wiley-Blackwell; 2010. 560 p.

A empatia é uma disposição humana de um indivíduo para com outro. Está atrelada ao ato de imitar ou se projetar, o que permite a aproximação ao estado emocional pertencente a outra pessoa. O heroísmo também tem relação com a dedicação a outro em uma situação de extremo perigo e à coragem.3232. Abbagnano N. Dicionário de filosofia. 6th ed. São Paulo, SP(BR): Editora Martins Fontes; 2012. 1232 p. O uso das imagens de heróis está associado à forma como a sociedade os concebe: homens fortes, guerreiros, vitais e que são responsáveis por salvar o mundo. Logo, identificamos que as instituições responsáveis pela produção de campanhas de doação de órgãos e tecidos, ao abordarem questões relacionadas com o altruísmo, a empatia e o heroísmo, apropriam-se de elementos da subjetividade para sensibilizar o público-alvo. Dito de outra forma, elas trabalham com elementos do “eu”.3333. Miller P, Rose N. Governando o presente: gerenciamento da vida econômica, social e pessoal. São Paulo, SP(BR): Paulus; 2012.

O “eu”, em uma perspectiva Pós-Estruturalista, não implica uma psicologização da pessoa, não se trata de uma consciência, mas sim de relações dos seres humanos consigo em determinado período histórico e cultural. Trata-se daquilo que compõe a “pessoalidade” a partir das normas, saberes e técnicas que modulam os comportamentos dos indivíduos.3333. Miller P, Rose N. Governando o presente: gerenciamento da vida econômica, social e pessoal. São Paulo, SP(BR): Paulus; 2012. Assim, ao conduzir ou governar populações das modernas sociedades ocidentais é preciso explorar os elementos que envolvem os desejos, as vontades, as escolhas individuais e aquilo que faz as pessoas se sentirem importantes em determinado contexto ou sociedade, no dia a dia.3434. Steiner F. Altruísmo, dons e trocas simbólicas: abordagens sociológicas da troca. São Paulo, SP(BR): Cultura Acadêmica; 2016.

Dessa forma, nas campanhas de doação de órgãos e tecidos, é possível visualizar que o Estado brasileiro, seja por meio do Ministério ou das Secretarias de Saúde, recorre a algo que poderia ser denominado de gestão das emoções, da moralidade, dos desejos ou simplesmente do “eu”.3434. Steiner F. Altruísmo, dons e trocas simbólicas: abordagens sociológicas da troca. São Paulo, SP(BR): Cultura Acadêmica; 2016. Emerge, dessa maneira, uma outra estratégia para modular as escolhas e condutas das pessoas, a qual implica e considera que escolhas individuais ressoam sobre o coletivo, tanto em questões de consumo como naquelas de cuidado, de higiene, de beleza, entre outras.

Com o recurso à individualidade, às emoções, aos sentimentos, as pessoas são levadas a ter uma relação de compromisso consigo e com os outros. Assim, nas campanhas, busca-se enfatizar, o altruísmo, heroísmo e a empatia, como forma de distinguir o status social daquele que doa. Dá-se visibilidade aos benefícios do transplante para aqueles que estão na lista de espera, permitindo que a imagem de alguém que contribui com a continuidade e a manutenção daquilo que é mais “sagrado”, em termos religiosos, culturais e morais, ou seja, a vida, tenha destaque e promova a sensação de engajamento com uma causa social.3434. Steiner F. Altruísmo, dons e trocas simbólicas: abordagens sociológicas da troca. São Paulo, SP(BR): Cultura Acadêmica; 2016.

Esse tipo de estratégia tem sido denominada, sob a perspectiva sociológica, de economia moral da doação. Compreende-se, sob essa ótica, que os órgãos e tecidos humanos possuem valor individual, social, econômico, mas também afetivo. O afeto diz respeito à capacidade de se deixar tocar por dimensões da experiência e impressões de um corpo. Ele tem relação com intensidade e depende de interação. O afeto se difere da emoção, que pode ser concebida como a maneira cultural pela qual se externaliza e se dá visibilidade ao afeto, à forma como cada um se sentiu afetado por algo.3535. Shaw RM. Altruism, solidarity and affect in live kidney donation and breastmilk sharing. Sociol Health Illn [Internet]. 2019 [cited 2022 Mar 8];41(3):553-66. Available from: https://doi.org/10.1111/1467-9566.12805
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Por este motivo, mobilizar o altruísmo, a solidariedade e a concepção da vida como “presente” faz com que as pessoas participem de um jogo de afetos. Afetos em relação à família, em relação às concepções sobre si - através de representações sobre o próprio corpo - e afetos em relação à sociedade, quando se é convocado a pensar e realizar o exercício de empatia. É possível, a partir dessa mobilização das emoções e dos afetos, produzir novas formas de “biointimidade”, ou seja, novas relações afetivas e sociais mediadas pelas tecnologias da vida que interferem no modo como cada sujeito significa seu corpo e, consequentemente, o posiciona no mundo.3535. Shaw RM. Altruism, solidarity and affect in live kidney donation and breastmilk sharing. Sociol Health Illn [Internet]. 2019 [cited 2022 Mar 8];41(3):553-66. Available from: https://doi.org/10.1111/1467-9566.12805
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Posicionamento esse que, na temática abordada na presente pesquisa, o faz se sentir pertencente a um grupo de pessoas virtuosas, que tem como fator identitário comum o ato de doar, tornando cada um daqueles que dizem sim à doação um cidadão biológico3434. Steiner F. Altruísmo, dons e trocas simbólicas: abordagens sociológicas da troca. São Paulo, SP(BR): Cultura Acadêmica; 2016. de uma grande comunidade sustentada na doação de órgãos e tecidos.

Como contribuições, a análise das estratégias biopolíticas possibilitaram compreender como o Estado e as Instituições procuram sensibilizar, convencer indivíduos para efetivar a doação de órgãos e tecidos. Ressaltamos que este estudo instiga aos profissionais de saúde, especialmente enfermeiros e médicos, a refletirem sobre como circulam e são utilizadas as campanhas na abordagem à população considerando as atribuições e papeis por eles desenvolvidos na sociedade. Além disso, conhecer as estratégias apresentadas pode favorecer a produção de campanhas mais efetivas. Destacamos como limitações o número reduzido de campanhas publicadas entre 2007 e 2011, disponibilizadas na internet, e passíveis de serem acessadas; assim como o não retorno de e-mails enviados às secretarias estaduais. Além disso, a inconstância das publicações pelas instituições também pode ser considerada como limitação.

CONCLUSÃO

Este estudo permitiu analisar as campanhas publicitárias sobre doação de órgãos e tecidos no Brasil, demonstrando como elas se constituem como estratégias biopolíticas visando convencer a população e subjetivá-la em favor da doação. Em nossas análises, identificamos que o Estado brasileiro e as instituições governamentais e não-governamentais instauram um campo de saberes e práticas sobre a continuidade da vida por meio da doação de órgãos e tecidos. Saberes e práticas sustentadas nos discursos da Ciência, dos números, do altruísmo, da empatia e do heroísmo.

Ao olhar de outro modo para as campanhas publicitárias, percebemos que a morte parece ser uma possibilidade de renascimento, especialmente para crianças e adultos jovens. Público esse que recebe maior atenção nas campanhas, provavelmente pela ideia de que essa população é capaz de usufruir de um órgão produzindo efeitos e impactando na organização social. São jovens e adultos que trabalham, produzem e consomem. Ou seja, garantem a manutenção da vida e da estabilidade econômica de um Estado. Logo, “merecem” ter suas vidas salvas.

Acreditamos que a ideia de renascimento por meio da morte pode denotar a negação e o medo que apresentamos em relação à finitude. Por este motivo, mobilizar o “eu” se mostra importante, pois sensibiliza e faz com que cada um pense na própria existência, nas relações com a família, na possibilidade de se sentir imortal, nem que seja através de um órgão que continuará a executar suas funções em outro corpo. É como se fosse possível continuar a viver por meio de outras histórias. Ao acionar tais aspectos, o Estado e as instituições tocam na intimidade e no “eu” de cada um. Dessa forma, embora se tenha a impressão de que todos e todas parecem ser incluídos nas campanhas de doação de órgãos, cabe a reflexão sobre como essa inclusão ocorre. A nosso ver, parece que a inclusão de toda a população acontece visando o movimento de tornar-se doador. Entretanto, ao se tratar de possíveis receptores há uma seletividade das populações consideradas como as que merecem o investimento para que possam continuar a existir.

Por isso, acreditamos que este estudo serve como um disparador para as problematizações que envolvem a doação de órgãos e tecidos no Brasil. Com base nas análises aqui tecidas, é possível (re)pensar a forma como as diferentes populações são posicionadas e acionadas nas campanhas. É possível tencionar como o Estado e instituições se utilizam ou podem se utilizar de estratégias individuais e coletivas para mobilizar cada um e todos em direção a essa prática contemporânea - a doação de órgãos e tecidos - que nos permite afastar a morte e salvar vidas, nem que se seja a vida de alguns.

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NOTAS

  • ORIGEM DO ARTIGO

    Extraído do Trabalho de Conclusão de Curso - Campanhas publicitárias de doação de órgãos e tecidos no Brasil: estratégias biopolítica, apresentada ao Curso de Enfermagem, da Universidade Federal de Pelotas, 2020.
  • APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

    Por se tratar da análise de materiais de domínio público ou produzidos por órgãos de interesse público, a pesquisa dispensa aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa conforme a Resolução 510 de 2016 do Conselho Nacional de Saúde.
  • CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM

    Não aplicável

Editado por

EDITORES

Editores Associados: Laura Cavalcanti de Farias Brehmer, Monica Motta Lino. Editor-chefe: Roberta Costa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2022
  • Aceito
    05 Maio 2022
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