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CIÊNCIA ABERTA: TENDÊNCIAS NA PUBLICAÇÃO CIENTÍFICA

Ao iniciarmos a escrita deste editorial, questionamos sua pertinência, dada a quantidade de conteúdo já disponível sobre o tema, em diversas línguas. Mesmo assim, convergimos na ideia de que podemos contribuir com a nossa comunidade de autores, revisores, editores e leitores, para a necessária mudança de paradigma, em direção a um futuro de Ciência Cidadã, que é um objetivo e um instrumento para a promoção da Ciência Aberta11. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Recomendación de la UNESCO sobre la Ciencia Abierta [Internet]. 2021 [cited 2023 May 2]. Available from: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000379949_spa
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Nessa direção, compreendemos também que essa mudança tem uma implicação fundamental e direcionamento prático no processo de produção científica, com aspectos que serão culturalmente e gradualmente interiorizados por cada realidade, conforme se dá a apropriação da Ciência Aberta no interior das instituições e pelos pesquisadores.

Olhemos, então, para a história e as justificativas que sustentam este movimento. As origens das publicações datam do século XVII, com as primeiras revistas. A revisão por pares foi iniciada no século XVII com a Royal Society of London (1662) e a Académie Royale des Sciences de Paris (1699), como forma da ciência se censurar a si própria, ao invés de ser censurada pela igreja. Ainda assim, o estabelecimento da revisão por pares demandou muitos anos. Como exemplo desse processo recente, trazemos a revista Nature, a qual somente em 1947 iniciou a revisão por pares22. European Commission, Directorate-General for Research and Innovation, Cabello Valdes C, Rentier B, Kaunismaa E, Metcalfe J, et al. Evaluation of research careers fully acknowledging Open Science practices - Rewards, incentives and/or recognition for researchers practicing Open Science. Publications Office European Union [Internet]. 2017 [cited 2023 May 2]. Available from: https://doi.org//10.2777/75255
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O movimento da Ciência Aberta objetiva estratégias que permitam tornar o conhecimento científico aberto e compartilhado para a comunidade científica, para a sociedade e empresas, nos diversos países. Este movimento, também, permite reforçar o conceito de responsabilidade social científica e gerar múltiplas oportunidades de inovação. Compõe o conjunto de justificativas em prol da Ciência Aberta, o crescente desejo de compartilhar recursos de maneira interdisciplinar, assim como a necessidade de transparência para alcançar maior responsabilidade, eficiência, rigor, além de sustentabilidade para as gerações vindouras e a reprodutibilidade das investigações. O debate sobre ética e publicação científica e a necessidade de melhor análise dos múltiplos casos com problemas de ordem ética, os quais requerem aumento da transparência, redução de fraudes, de manipulação indevida dos dados e divulgação seletiva de resultados, também conduzem para a necessidade da Ciência Aberta. Isso, reforçado na era digital, em que tais situações são rapidamente publicizadas.

Além disso, comunidades acadêmicas e instituições governamentais também exercem pressão no sentido de que projetos científicos financiados com recursos públicos devem ter seus resultados compartilhados de forma aberta, contribuindo para acelerar o crescimento econômico, social e a inovação. Denota-se que isto requer uma mudança cultural na forma de se fazer investigação científica e na adoção de ferramentas da Web que fomentem a colaboração científica e o acesso à ciência produzida.

Um ponto que merece destaque entre pesquisadores da área de Enfermagem é o que engloba os dados de pesquisa. Em geral, esses representam o resultado mais valioso da maioria dos projetos e constituem a fonte primária que sustenta a investigação científica, o que possibilita novas descobertas teóricas e atualização das práticas assistenciais, gerenciais, educativas e investigativas. Aqui, a recomendação de boas práticas é de que os dados sejam o mais abertos possível e consistentes aos princípios FAIR, um acrônimo para Findable, Accesible, Interoperable e Reusable (FAIR).* * The Future of Research Communications and e-Scholarship. https://force11.org/info/the-fair-data-principles/ Isto para tornar os resultados das pesquisas replicáveis, ou pelo menos reprodutíveis ou reutilizáveis em qualquer outra forma.

Outro ponto que precisamos avançar é na análise do surgimento de novas formas de divulgação, tais como preprints em repositórios e servidores, já bastante discutidos. Estes agora apresentam novos processos de revisão por pares aberta no preprint. Emergiram, também, novas plataformas de publicação, tais como as financiadas pela Wellcome Trust** ** https://wellcomeopenresearch.org/ e Bill and Melinda Gates Foundation.*** *** https://gatesopenresearch.org/ A crescente utilização de plataformas de publicação traz consigo mudanças no processo de avaliação das pesquisas, na forma atual de revisão por pares e nas atribuições da equipe editorial. Nas plataformas, os leitores conhecem a identidade dos revisores e acompanham a evolução das versões do manuscrito que os autores podem depositar, a qualquer tempo, como resposta às revisões recebidas. Nessas plataformas não ocorre a decisão de editores e a revisão por pares é totalmente transparente. Cabe destacar que, se essas plataformas se consolidarem como a ferramenta mais utilizada para a publicação científica, a equipe editorial precisará redefinir o seu papel. A publicação aberta permite acelerar o ritmo da transferência e tradução do conhecimento33. Lorenzini E, Banner D, Plamondon K, Oelke N. A call for knowledge translation in nursing research. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2019 [cited 2023 May 2];28:e20190104. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2019-0001-0004
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, com o respectivo aumento do impacto econômico e social da ciência, com o respectivo envolvimento da sociedade.

Nas novas plataformas de publicação assim como nos periódicos científicos, a revisão por pares aberta apresenta benefícios vinculados à democratização do conhecimento científico, o que se traduz na garantia de padrões de rigor, qualidade, objetividade e confiabilidade dos resultados que serão publicados. Além disso, melhora a transparência e promove as melhores práticas de pesquisa. Da mesma forma, a revisão por pares aberta incentiva a participação e a colaboração entre os pesquisadores e contribui para um feedback mais detalhado e construtivo. Finalmente, ao tornar públicos seus relatórios e comentários, o trabalho dos revisores é reconhecido e eles têm a oportunidade de serem identificados e citados, o que pode ser benéfico para sua carreira acadêmica e reputação como especialistas em suas respectivas áreas.

A revisão por pares aberta também pode melhorar a diversidade de opiniões na revisão, incluindo revisores de diferentes perfis e áreas de atuação, promovendo maior diversidade na pesquisa científica com maior engajamento da comunidade científica em todo o processo44. Allen C, Mehler DMA. Open science challenges, benefits and tips in early career and beyond. PLoS Bio [Internet]. 2019 [cited 2023 May 2];17(5):e3000246. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pbio.3000246
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-55. Garcia-Remesal M, García-Ruiz A, Pérez-Rey D, de la Iglesia D, Maojo V. Open peer review and scientific quality of biomedical publications. J Med Internet Res [Internet]. 2011 [cited 2023 May 2];13(3):e73. Available from: https://doi.org/10.2196/jmir.1726
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. Também, na prática, a Ciência Aberta requer infraestrutura, reforça a produção científica em diferentes línguas, e exige formas de acesso mais práticas, com plataformas menos complexas e potencialmente mais criativas, uma vez que sugere uma construção inclusiva, que permite aumentar as colaborações e o compartilhamento de informações, como foco também na forma como a sociedade consegue acessar os benefícios da ciência.

No entanto, é importante destacar os riscos associados à revisão por pares aberta. A falta de anonimato dos revisores pode levar a retaliações por parte dos autores, comprometendo a qualidade e a objetividade da revisão66. Tran L, Gruszczynski L, Heinze T, Gaddis M, Hedstrom M, Loeber C. Open peer review and the future of scholarly communication: a legal and ethical analysis. J Law Biosci [Internet]. 2021 [cited 2023 May 2];8(1):lsaa038. Available from: https://doi.org/10.1093/jlb/lsaa038
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. Essas retaliações em longo prazo podem induzir os revisores a serem menos críticos e/ou criteriosos, o que comprometeria a qualidade dos conteúdos publicados. Na mesma direção, os conflitos de interesse são mais difíceis de serem mitigados. A carga de trabalho dos revisores também pode aumentar, devido à possibilidade de serem requeridas revisões adicionais por parte da comunidade científica. Isso pode prejudicar a qualidade da revisão e levar à sobrecarga dos revisores, comprometendo a oferta e disponibilidade dos mesmos, acentuando um problema já existente77. Niles SG, Mulvihill CM. The hidden costs of open peer review. Lancet Psyc [Internet]. 2021 [cited 2023 May 2];8(4):268-70. Available from: https://doi.org/10.1016/S2215-0366(21)00057-7
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Além disso, as instituições de pesquisa e as agências de fomento e de avaliação do pesquisador precisam reconhecer o mérito científico da publicação em acesso aberto. E os autores precisam se sentir seguros em relação aos direitos autorais (copyright). O debate aqui incide também no tempo de acesso do material publicado no acesso aberto, geralmente protegido por licenças Creative Commons ou Science Commons, as quais permitem o ajuste dessa licença conforme a escolha do autor ou da instituição de conceder o direito de usar, distribuir ou remixar as informações88. Silva FCC, Silveria L. O ecossistema da Ciência Aberta. Transinformação [Internet]. 2019 [cited 2023 May 2];31:e190001. Available from: https://doi.org/10.1590/2318-0889201931e19000
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Assim, uma vez que esse movimento tem como pilares: conhecimento científico aberto, infraestruturas de ciência aberta, comunicação científica, engajamento aberto de atores sociais e diálogo aberto com outros sistemas de conhecimento99. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Draft recommendation on Open Science on its way to final adoption [Internet]. 2023 [cited 2023 May 2]. Available from: https://www.unesco.org/en/articles/draft-recommendation-open-science-its-way-final-adoption
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, ele exigirá rever as práticas atuais. Estamos passando, então, por um processo que pode ser inicialmente multilateral, ou seja, exige dos periódicos a manutenção de processos fechados e abertos de avaliação por um período e impõe os velhos e os novos desafios.

Nesse sentido, atualmente a ciência aberta apresenta, para além dos desafios, algumas possibilidades. Além de apontar riscos e benefícios, a Ciência Aberta tem dividido opiniões no meio acadêmico e científico. Será necessário amadurecer as discussões e análises do seu impacto nas publicações de Enfermagem e da área da saúde.

REFERENCES

  • 1. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Recomendación de la UNESCO sobre la Ciencia Abierta [Internet]. 2021 [cited 2023 May 2]. Available from: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000379949_spa
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  • 2. European Commission, Directorate-General for Research and Innovation, Cabello Valdes C, Rentier B, Kaunismaa E, Metcalfe J, et al. Evaluation of research careers fully acknowledging Open Science practices - Rewards, incentives and/or recognition for researchers practicing Open Science. Publications Office European Union [Internet]. 2017 [cited 2023 May 2]. Available from: https://doi.org//10.2777/75255
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  • 3. Lorenzini E, Banner D, Plamondon K, Oelke N. A call for knowledge translation in nursing research. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2019 [cited 2023 May 2];28:e20190104. Available from: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2019-0001-0004
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  • 4. Allen C, Mehler DMA. Open science challenges, benefits and tips in early career and beyond. PLoS Bio [Internet]. 2019 [cited 2023 May 2];17(5):e3000246. Available from: https://doi.org/10.1371/journal.pbio.3000246
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  • 5. Garcia-Remesal M, García-Ruiz A, Pérez-Rey D, de la Iglesia D, Maojo V. Open peer review and scientific quality of biomedical publications. J Med Internet Res [Internet]. 2011 [cited 2023 May 2];13(3):e73. Available from: https://doi.org/10.2196/jmir.1726
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  • 6. Tran L, Gruszczynski L, Heinze T, Gaddis M, Hedstrom M, Loeber C. Open peer review and the future of scholarly communication: a legal and ethical analysis. J Law Biosci [Internet]. 2021 [cited 2023 May 2];8(1):lsaa038. Available from: https://doi.org/10.1093/jlb/lsaa038
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  • 7. Niles SG, Mulvihill CM. The hidden costs of open peer review. Lancet Psyc [Internet]. 2021 [cited 2023 May 2];8(4):268-70. Available from: https://doi.org/10.1016/S2215-0366(21)00057-7
    » https://doi.org/10.1016/S2215-0366(21)00057-7
  • 8. Silva FCC, Silveria L. O ecossistema da Ciência Aberta. Transinformação [Internet]. 2019 [cited 2023 May 2];31:e190001. Available from: https://doi.org/10.1590/2318-0889201931e19000
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  • 9. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). Draft recommendation on Open Science on its way to final adoption [Internet]. 2023 [cited 2023 May 2]. Available from: https://www.unesco.org/en/articles/draft-recommendation-open-science-its-way-final-adoption
    » https://www.unesco.org/en/articles/draft-recommendation-open-science-its-way-final-adoption

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2023
  • Aceito
    11 Jul 2023
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