PROBLEMAS ÉTICOS VIVENCIADOS POR ENFERMEIROS DURANTE À COVID-19: RELAÇÃO COM O SOFRIMENTO MORAL

RESUMO

Objetivo:

analisar associações entre sofrimento moral e problemas éticos vivenciados por enfermeiros durante à COVID-19.

Método:

estudo quantitativo, transversal, realizado com 101 enfermeiros atuantes em hospitais universitários entre março e maio de 2022, por meio de questões sociolaborais, implicações éticas que levam ao sofrimento moral e do Ethical Problems Experienced By Nurses In Emergency Questionnaire adaptado e validado para brasileiros. Empregou-se estatística descritiva, ANOVA, Qui-quadrado de Pearson e regressão linear múltipla, e adotou-se p<0,05.

Resultados:

os 09 elementos atribuídos às implicações éticas foram classificados com algum grau de importância para o sofrimento moral, apresentando maior média nos seguintes itens: sinto compromisso, responsabilidade e obrigação moral em prestar cuidados à população infectada (4,26) e possuo conhecimento ou experiência para atuar na linha de frente à COVID-19 (3,44). A associação do sofrimento moral aos problemas éticos demonstrou que os indivíduos que atribuíram alta importância às implicações éticas também apresentavam problemas éticos em nível moderado/alto, ressaltando maior média nas questões de “cuidado ao paciente” (4,07). Evidenciou-se que o sofrimento moral dos participantes foi mais afetado pelos seguintes construtos: “percepção das medidas hospitalares contra a COVID-19” (p=,000), “problemas éticos no atendimento a pacientes” (p=,000) e “percepção da estigmatização social” (p=,000).

Conclusão:

ao relacionar os problemas éticos ao sofrimento moral, foi possível evidenciar que a COVID-19 gerou uma mudança abrupta na rotina de trabalho dos enfermeiros, o que dificulta a tomada de decisão adequada diante situações que envolve questões além do cuidado, mas também em nível profissional e organizacional levando a vivência de sofrimento moral.

DESCRITORES:
Enfermagem; COVID-19; Ética na Enfermagem; Moral; Saúde do adulto

ABSTRACT

Objective:

to analyze associations between moral distress and ethical issues experienced by nurses during COVID-19.

Method:

this is a quantitative, cross-sectional study, carried out with 101 nurses working in university hospitals, between March and May 2022, through socio-occupational issues, ethical implications that lead to moral distress, and the Ethical Issues Experienced by Nurses in Emergency Questionnaire, adapted and validated for Brazilians. Descriptive statistics, ANOVA, Pearson’s chi-square and multiple linear regression were used, and p<0.05 was adopted.

Results:

the 9 elements attributed to ethical implications were classified with some degree of importance for moral distress, with the highest average in the following items: I feel a commitment, responsibility and moral obligation to provide care to the infected population (4.26) and I have the knowledge or experience to work on the frontline of COVID-19 (3.44). The association of moral distress with ethical issues showed that individuals who attributed high importance to ethical implications also had ethical issues at a moderate/high level, emphasizing a higher mean in questions of “patient care” (4.07). It was evident that participants’ moral distress was more affected by the following constructs: “perception of hospital measures against COVID-19” (p=.000), “ethical issues in patient care” (p=.000) and “perception of social stigmatization” (p=.000).

Conclusion:

when relating ethical issues to moral distress, it was possible to show that COVID-19 generated an abrupt change in nurses’ work routine, which hinders adequate decision-making in situations involving issues beyond care, but also at a professional and organizational level, leading to the experience of moral distress.

DESCRIPTORS:
Nursing; COVID-19; Ethics Nursing; Moral; Adult Health

RESUMEN

Objetivo:

analizar asociaciones entre sufrimiento moral y problemas éticos vividos por enfermeros durante la COVID-19.

Método:

estudio cuantitativo, transversal, realizado con 101 enfermeros que actúan en hospitales universitarios, entre marzo y mayo de 2022, a través de cuestiones sociolaborales, implicaciones éticas que conducen al sufrimiento moral y del Ethical Issues Experienced by Nurses in Emergency Questionnaire, adaptado y validado para brasileños. Se utilizó estadística descriptiva, ANOVA, chi-cuadrado de Pearson y regresión lineal múltiple, y se adoptó p<0,05.

Resultados:

los 9 elementos atribuidos a implicaciones éticas fueron clasificados con algún grado de importancia para el sufrimiento moral, con mayor promedio en los siguientes ítems: Siento compromiso, responsabilidad y obligación moral de brindar atención a la población infectada (4,26) y tengo conocimiento o experiencia para actuar en la primera línea de COVID-19 (3,44). La asociación del sufrimiento moral con los problemas éticos mostró que los individuos que atribuían alta importancia a las implicaciones éticas también presentaban problemas éticos en un nivel moderado/alto, destacando un promedio más alto en cuestiones de “atención al paciente” (4,07). Se evidenció que el malestar moral de los participantes se vio más afectado por los siguientes constructos: “percepción de las medidas hospitalarias frente al COVID-19” (p=,000), “problemas éticos en la atención al paciente” (p=.000) y “percepción de estigmatización social” (p=,000).

Conclusión:

al relacionar los problemas éticos con el sufrimiento moral, se pudo evidenciar que el COVID-19 generó un cambio abrupto en la rutina de trabajo de los enfermeros, lo que dificulta la toma de decisiones adecuadas en situaciones que involucran cuestiones más allá del cuidado, pero también a nivel profesional y organizacional que lleva a la experiencia del sufrimiento moral.

DESCRIPTORES:
Enfermería; COVID-19; Ética en Enfermería; Moral; Salud del Adulto

INTRODUÇÃO

A pandemia do coronavírus, a COVID-19, que emergiu no final de dezembro de 2019 em Wuhan, na China, é considerada a maior emergência em saúde pública de importância internacional dos últimos tempos. Rapidamente, o número de casos aumentou radicalmente, espalhando-se no mundo inteiro. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou a COVID-19 como uma pandemia, tornando-se uma preocupação global 1.

Os profissionais de saúde que estão envolvidos na assistência e tratamento dos pacientes com COVID-19 são mais propensos a se infectar do que a população em geral, principalmente os enfermeiros que estão na linha de frente ao cuidado, em tempo constante de permanência com os pacientes infectados 2. Isso faz com que experimentem uma carga exacerbada de problemas éticos relacionados ao medo de contágio, preocupação com a saúde da família, falta de confiança e apoio da sua organização e o medo de sofrer estigma social 3^-4. Com isso, consequentemente, sofrem maior pressão psicológica, o que pode levar a vários agravantes, tais como transtorno de estresse pós-traumático, medo, depressão e sofrimento moral 5.

Em situações de sofrimento moral, o indivíduo reconhece a ação eticamente correta a seguir, porém não a executa por limitações ou circunstâncias que extrapolam sua competência 6. Diante disso, quando o profissional é repetidamente incapaz ao longo do tempo de realizar ações que considera eticamente corretas, cria-se um “resíduo moral” permeado por sentimentos negativos que se perpetuam e crescem de forma cada vez mais intensa diante das novas experiências 7^-8.

Nesse ínterim, enquanto cuidam desses pacientes confirmados ou suspeitas da COVID-19, os enfermeiros estão enfrentando barreiras referentes ao sistema de saúde para um atendimento seguro e eficaz, o que dificulta a tomada de decisão ética 5^,7^-9. Essas circunstâncias que envolvem divergências entre um ou mais valores são caracterizadas como problemas éticos que exigem dos profissionais o reconhecimento e o enfrentamento para então realizar a tomada de decisão assertiva 10.

O sofrimento moral e os problemas éticos estão associados às situações relacionadas ao cotidiano de trabalho dos enfermeiros, como distribuição desigual de recursos, baixo dimensionamento de pessoal para o trabalho, percepção de práticas profissionais controversas e resistência terapêutica 11^-12. Durante a COVID-19, os problemas éticos incluíram a falta de equipamento de proteção individual (EPI), potencial escassez de ventiladores, alta gravidade e mortalidade de pacientes críticos e visitas familiares inexistentes, restringindo-se a contato telefônico limitado 3^-5^,7^-9^,13^-14.

Mesmo antes da pandemia, os enfermeiros já apresentavam níveis mais elevados de sofrimento moral 11^-12 quando comparados a outros profissionais de saúde. Pesquisa realizada sobre os riscos psicossociais dos profissionais da saúde identificou que a pandemia da COVID-19 foi associada a um aumento dos riscos psicossociais do trabalho, implicando em consequências emocionais significativas para esses profissionais 4. Tais fenômenos geram preocupações sobre o impacto da COVID-19 no bem-estar dos enfermeiros 7^-8^,14.

Pesquisa sobre o sofrimento moral dos enfermeiros durante a pandemia evidenciou que os níveis de sofrimento moral aumentaram 13^-16, sendo este influenciado por fatores agravantes, como racionamento e triagem devido à escassez de recursos, estigma, medo e estresse. Investigação realizada na China 17, o primeiro país a passar pela crise, descreve o impacto da pandemia nos profissionais de saúde, identificando alta incidência de ansiedade (45%), depressão (50%) e angústia relacionada à COVID-19 (71%). Além disso, a pandemia da COVID-19 apresentou-se como um dos desafios mais significativos enfrentados pelos profissionais de saúde, principalmente, os enfermeiros, os quais relataram sintomas mais graves de depressão, ansiedade e angústia 7^-8^,16^-17.

Dessa forma, é de extrema importância explorar sobre a relação entre sofrimento moral e os problemas éticos vivenciados por enfermeiros diante dos riscos impostos por uma pandemia no contexto brasileiro 18^-19, visto que reconhecer as associações entre os problemas éticos e o sofrimento moral em si e nos outros melhora a compreensão em nível organizacional sobre o sofrimento moral, de forma a reconhecer e acolher as aflições dos profissionais e intervir precocemente para que os prestadores de cuidados tenham o poder de agir e saber que existem recursos para ajudá-los em situações difíceis antes que o sofrimento moral se agrave. Perante o exposto, apresentou-se como objetivo analisar associações entre sofrimento moral e problemas éticos vivenciados por enfermeiros durante a COVID-19.

METODO

Tratou-se de uma pesquisa quantitativa, descritiva e transversal, seguindo as recomendações do Strengtheneing the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) 20, realizada em duas instituições hospitalares (H1, H2) do sul do Brasil, localizadas em dois municípios distintos (M1 e M2). A instituição H1 é um Hospital Universitário Público Federal de médio porte, localizado no município (M1), com capacidade de 237 leitos. A instituição H2 também se trata de Hospital Universitário Público Federal, localizado no município (M2) de médio porte, e conta com 175 leitos. As duas instituições hospitalares possuem servidores públicos concursados tanto pelo Regime Jurídico Único (RJU) quanto pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O quadro funcional de enfermeiros atuantes na linha de frente contra a COVID-19 dos dois hospitais universitários é composto de 133 profissionais, sendo 90 do H1 e 43 do H2, tendo representatividade mínima de respostas: 50% mais um de cada instituição.

Do total, participaram deste estudo 101 enfermeiros selecionados por meio de amostragem não probabilística por conveniência com a finalidade de atingir o maior número de participantes. Para o cálculo amostral, utilizou-se o programa StatCalc do programa EpiInfo, versão 7, com o nível de confiança de 95%, que exigia uma amostra mínima de 99 participantes.

Os critérios de inclusão para a seleção da amostra limitaram-se a ser enfermeiro envolvido diretamente na assistência de enfermagem ou gestão das unidades que prestaram atendimento a pacientes com COVID-19. E, como critérios de exclusão, consideraram-se os enfermeiros que estavam em trabalho remoto em razão dos fatores de risco relacionados à pandemia e à ausência do participante por motivo de férias, licença ou benefício.

A coleta de dados ocorreu após a autorização da Gerência de Ensino e Pesquisa dos dois Hospitais Universitários selecionados, no período de março a maio de 2022. Logo, encaminhou-se o link com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apontando o objetivo e demais preceitos éticos como garantia do anonimato e sigilo das informações. E somente após manifestação de aceite dos enfermeiros o instrumento de pesquisa poderia ser preenchido. A pesquisa foi online por meio da tecnologia digital livre e gratuita do Google Docs, da Google Company Inc. O convite foi encaminhado por e-mail semanalmente, por quatro semanas consecutivas, até ser atendida a amostra desejada.

Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário composto de três partes: a primeira semiestruturada com questões mistas que possibilitaram identificar as características dos participantes, como idade, sexo, estado civil, titulação máxima, tempo de experiência profissional, se tinham filhos ou viviam com familiares do grupo de risco e variáveis acerca da atuação durante a COVID-19.

A segunda parte foi composta por questões associadas às principais implicações éticas no fazer assistencial dos enfermeiros diante das situações de conflitos éticos evidenciados durante a COVID-19, que podem levar ao sofrimento moral, as quais foram traçadas a partir de uma revisão de literatura nos achados científicos nacionais e internacionais sobre a temática. A questão norteadora para a busca bibliográfica foi: qual o conhecimento produzido sobre os problemas éticos no cotidiano de trabalho do enfermeiro durante a COVID-19? Tendo como descritores: “Enfermagem”, “Coronavírus”, “Moral” e “Ética na enfermagem” no DeCS (Descritores em Ciências da Saúde) da Biblioteca Virtual em Saúde. Já no portal de pesquisa do PubMed (arquivo digital produzido 83 pela U.S. National Library of Medicine), realizou-se a seleção de trabalhos na base de dados da Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE), utilizando-se o descritor do Medical Subject Headings (MeSH): “Coronavírus”, “Nursing” e “Ethics” com o operador booleano AND em ambas as pesquisas. As buscas foram realizadas pelo acesso on-line, no mês de maio de 2021.

Os critérios de inclusão das publicações definidos para esta revisão foram artigos de pesquisa, completos, apresentando resumo para primeira análise e enfocando como assunto principal os problemas éticos encontrados no cotidiano de trabalho do enfermeiro durante a pandemia COVID-19. Não houve restrições quanto ao idioma. Da análise dos estudos da revisão, extraíram-se nove itens divididos em três elementos: paciente e família (três itens); enfermeiro e equipe (três itens); e sistema e organização (três itens), nos quais os participantes deveriam assinalar em uma escala de 1 a 5, em que 1 nada verdadeiro e 5 completamente verdadeiro, a ordem em que concordam com as situações.

E a terceira foi composta de um instrumento autoaplicável: Ethical problems experienced by nurses in emergency questionnaire21, validado e normatizado para uso no Brasil de acordo com as diretrizes internacionais 22. Este se trata de um instrumento coreano, originalmente na língua inglesa, o qual busca investigar os problemas éticos vivenciados por enfermeiros em contexto de situações de emergência em saúde pública por meio de 16 questões em 5 constructos: problemas éticos no atendimento a pacientes; risco percebido de infecção e disposição para o trabalho; percepção da estigmatização social; concordância com as medidas do controle de infecções hospitalares; e percepção das medidas hospitalares, mensurados por meio de uma escala Likert de 5 pontos com intervalos de respostas que variam entre 1 (“discordo totalmente”), 2 (“discordo muito”), 3 (“não discordo e nem concordo”), 4 (“concordo muito”) e 5 (“concordo totalmente”).

Os dados do Ethical Problems Experienced by Nurses in Emergency Questionnaire foram submetidos à análise fatorial exploratória e confirmatória e os resultados agrupados em cinco grupos de respostas denominados constructos, apresentando cargas fatoriais acima de 0,50. O nível de confiabilidade do instrumento foi verificado por meio da fidedignidade composta que apresentou valor de 0,86 de consistência interna; já os coeficientes dos constructos apresentaram os valores entre 0,76 e 0,87, comprovando a fidedignidade dos constructos gerados.

A análise dos dados ocorreu por meio de dupla digitação no Microsoft Excel 2016 e, em seguida, inseridos no software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 22. Empregou-se a análise descritiva, mediante distribuição de frequência e de medidas de posição e dispersão (média e desvio padrão), e a análise de variância (ANOVA) para as variáveis de implicações éticas com os problemas gerados no instrumento. Para associação do sofrimento moral e os problemas éticos, utilizou-se o teste qui-quadrado, em que as variáveis foram dicotomizadas, isto é, sofrimento moral categorizado em baixo (0 a 2,80) e moderado/alto (2,81 a 5) e problemas éticos em baixa concordância (1 e 2,80) e moderada/alta concordância (2,81 e 5), considerando-se a amplitude da escala Likert.

Por último, para análise dos fatores do instrumento que possuem maior predição para o sofrimento moral, utilizou-se a regressão linear múltipla. A normalidade dos dados foi verificada por meio do teste Kolmogorov-Smirnov e adotou-se p<0,05 como significativo para todas as associações 23.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa e atendeu a todos os preceitos éticos.

RESULTADOS

A pesquisa contou com a participação de 101 enfermeiros atuantes em Hospitais Universitários de dois municípios localizados no Sul do Rio Grande do Sul, sendo 79 participantes do H1 e 22 atuantes no H2, com idade média de 39,9 anos (DP 7,8), apenas 3% (3) com 60 anos ou mais, predominantemente do sexo feminino 84,2% (85) e com filhos 68,3% (69). Em relação ao estado civil, 41,6% (42) casados, 30,7% (31) solteiros, 19,8% (20) em união estável, 7,9% (8) divorciados. Além disso, 66,3% (67) possuem até 15 anos de experiência profissional, 26,7% (27) 16 a 25 anos e 6,9% (7) mais de 25 anos de atuação profissional.

Quanto à titulação máxima, 48,5% (49) possuem especialização, 29,7% (30) mestrado, 9,9% (10) doutorado, 5,9% (6) residência e 5,9% (6) graduação. Outrossim, quando questionados sobre a infecção por COVID-19, 55,4% (56) dos participantes relataram ter sido acometidos por SARS-CoV-2 e 95% (96) foram vacinados com 3 doses da vacina contra a COVID-19.

É possível observar na Tabela 1, por meio da análise descritiva deste estudo, que todas as situações foram classificadas com algum grau de importância para o sofrimento moral dos enfermeiros, evidenciando as questões relacionadas ao fator “cuidado ao paciente” (4,07) como os principais fatores que levam ao sofrimento moral. Destacou-se o item 7, “sinto compromisso, responsabilidade e obrigação moral em prestar cuidados à população infectada” (4,26) com maior média, subsequente do item 1, “é estressante para mim comunicar o óbito de um paciente com COVID-19” (4,00), e “é estressante para mim pensar que não poderei realizar o cuidado com qualidade devido à falta de insumos (3,95), que apresentaram maior média de respostas.

O segundo fator com maior prevalência foi “enfermeiro e equipe” (3,32) com a Q8 “possuo conhecimento ou experiência para atuar na linha de frente à COVID-19” (3,44) e, por fim, o fator “instituição e organização” (2,99) apresentando como item de maior média a Q4 “conheço meu direito de recusar realizar a assistência devido à falta de insumos” (3,95). Constatou-se, assim, que o sofrimento moral dos enfermeiros está relacionado às questões de conflitos entre o dever moral e o cuidado, bem como à falta de recursos materiais, conforme demonstrado na Tabela 1.

Tabela 1 -
Respostas sobre as implicações éticas no fazer assistencial dos enfermeiros que podem levar ao sofrimento moral no atendimento de pacientes durante a COVID-19. Rio Grande, RS, Brasil, 2023 (n=101).

Variável	X̄*	DP†
Cuidado ao Paciente	4,07	,166
Q1 É estressante para mim pensar comunicar o óbito de um paciente com COVID-19.	4,00	1,208
Q3 É estressante para mim pensar que não poderei realizar o cuidado com qualidade devido à falta de insumos.	3,95	1,284
Q7 Sinto compromisso, responsabilidade e obrigação moral em prestar cuidados à população infectada.	4,26	,934
Enfermeiro e Equipe	3,32	,098
Q5 É estressante para mim pensar que precisarei escolher quem deve ou não ser atendido devido à falta de insumos.	3,28	1,632
Q6 Acredito que todos os pacientes possuem direitos iguais de atendimento, independentemente da idade e histórico de comorbidades.	3,26	1,245
Q8 Possuo conhecimento ou experiência para atuar na linha de frente à COVID-19.	3,44	1,108
Instituição e Organização	2,99	,430
Q2 Presenciei o dilema ético relacionado à escassez de epis.	2,98	1,385
Q4 Conheço meu direito de recusar realizar a assistência devido à falta de insumos.	3,43	1,268
Q9 Considero ter recebido treinamento específico para atuar na linha de frente à COVID-19.	2,57	1,117

• Estatística descritiva; *x̄: média; †DP: desvio padrão.

Destaca-se também, por meio da ANOVA, diferença estatisticamente significativa entre a variável “é estressante para mim pensar comunicar o óbito de um paciente com COVID-19” (F(1)8,846; p=,004); “é estressante para mim pensar que não poderei realizar o cuidado com qualidade devido à falta de insumos” (F(1)6,822; p=,005); e “sinto compromisso, responsabilidade e obrigação moral em prestar cuidados à população infectada” (F(1) 4,489; p= ,002), com os problemas éticos vivenciados por enfermeiros durante a COVID-19.

Para a associação entre as implicações éticas que resultam no sofrimento moral com os problemas éticos, realizou-se o teste qui-quadrado de Pearson, o qual está descrito na Tabela 2.

Tabela 2 -
Associação entre as implicações éticas que resultam no sofrimento moral com os problemas éticos, 2023 (n=101).

Variáveis		Problemas Éticos
		Baixo n(%)	Moderado/Alto n(%)	p*
Q1 É estressante para mim pensar comunicar o óbito de um paciente com COVID-19	Baixo Moderado/Alto	9 (9,8) 22 (21,8)	30 (29,7) 70 (69,3)	p<0,05*
Q2 Presenciei o dilema ético relacionado à escassez de EPIs.	Baixo Moderado/Alto	15 (14,9) 16 (15,8)	27 (26,7) 43 (42,6)	p<0,05*
Q3 É estressante para mim pensar que não poderei realizar o cuidado com qualidade devido à falta de insumos.	Baixo Moderado/Alto	14 (14,9) 17 (16,8)	17 (16,8) 52 (51,5)	p<0,05*
Q4 Conheço meu direito de recusar realizar a assistência devido à falta de insumos.	Baixo Moderado/Alto	7 (6,9) 24(23,8)	20 (19,8) 50 (49,5)	p>0,05
Q5 É estressante para mim pensar que precisarei escolher quem deve ou não ser atendido devido à falta de insumos.	Baixo Moderado/Alto	16 (15,8) 15 (14,9)	20 (19,8) 50 (49,5)	p<0,05*
Q6 Acredito que todos os pacientes possuem direitos iguais de atendimento, independentemente da idade e histórico de comorbidades.	Baixo Moderado/Alto	6 (5,9) 25 (24,8)	11 (10,9) 59 (58,4)	p>0,05
Q7 Sinto compromisso, responsabilidade e obrigação moral em prestar cuidados à população infectada.	Baixo Moderado/Alto	2 (2) 29 (28,7)	4 (4) 66 (65,3)	p<0,05*
Q8 Possuo conhecimento ou experiência para atuar na linha de frente à COVID-19.	Baixo Moderado/Alto	4 (4) 27 (26,7)	19 (18,8) 51 (50,5)	p<0,05*
Q9 Considero ter recebido treinamento específico para atuar na linha de frente à COVID-19.	Baixo Moderado/Alto	15 (14,9) 16 (15,8)	36 (35,6) 34 (33,7)	p<0,05*

• *Teste Qui-quadrado com valor significativo ao nível de p<0,05.

A partir da Tabela 2, constatou-se que as maiores prevalências de sofrimento moral estiveram nos indivíduos que atribuíram alta importância às implicações éticas e apresentavam problemas éticos em nível moderado/alto. Apresentaram maiores associações do sofrimento moral com os problemas éticos os itens relacionados com a Q1 “é estressante para mim pensar comunicar o óbito de um paciente com COVID-19, seguida de Q7 “sinto compromisso, responsabilidade e obrigação moral em prestar cuidados à população infectada” e “acredito que todos os pacientes possuam direitos iguais de atendimento, independentemente da idade e histórico de comorbidades”.

Já as questões Q4 “conheço meu direito de recusar realizar a assistência devido à falta de insumos” e Q6 “acredito que todos os pacientes possuem direitos iguais de atendimento, independentemente da idade e histórico de comorbidades” não apresentaram associação significativa com os problemas éticos vivenciados pelos enfermeiros durante a COVID-19.

E, por último, na Tabela 3, apresenta-se a regressão linear múltipla pelo método enter com as variáveis do Ethical problems experienced by nurses in emergency questionnaire, adaptado e validado para brasileiros ​​(problemas éticos no atendimento a pacientes, risco percebido de infecção e disposição para o trabalho, percepção da estigmatização social, concordância com as medidas de controle de infecção e percepção de medidas hospitalares contra COVID-19), para determinar os fatores que apresentam maior predição entre os problemas éticos e o sofrimento moral no fazer assistencial dos enfermeiros durante a COVID-19.

Tabela 3 -
Regressão linear múltipla dos fatores de predição dos problemas éticos que estão mais associados ao sofrimento moral dos enfermeiros na COVID-19. Rio Grande, RS, Brasil, 2023 (n=101).

Variáveis	Beta β)	T*	p †	Torelance	VIF‡
F1 - Problemas éticos no atendimento a pacientes	,408	7,962	,000†	,905	1,105
F2 - Risco percebido de infecção e disposição para o trabalho	,155	2,173	,032†	,796	1,256
F3 - Percepção da estigmatização social	,321	4,629	,000†	,842	1,187
F4 - Concordância com as medidas de controle de infecção	,120	,075	,075	,920	1,087
F5 - Percepção das medidas hospitalares de controle de infecção	,501	7,298	,000†	,858	1,166

• Regressão Linear Múltipla: *T: teste t; †: Nível de significância p<0,05; ‡VIF: fator de inflação da variância.

As análises resultaram em um modelo estatisticamente significativo (F (5,95) = 30,441; p< 0,001; R2, 616), evidenciando que o sofrimento moral dos participantes foi mais afetado pelos constructos F5 “percepção das medidas hospitalares contra a COVID-19” (β=,501; p=,000), seguido de F1 “problemas éticos no atendimento a pacientes” (β=,408; p=,000) e de F3 “percepção da estigmatização social” (β=,321 p=,000). Demonstrou-se, assim, que os enfermeiros apresentam maior sofrimento moral ao se depararem com problemas éticos relacionados à gestão, ao risco de infecção e ao estigma social. Além do mais, o teste obteve como coeficiente de determinação ajustado (R2) valor de 616, representando 61% de explicação da variação de fatores associados ao sofrimento moral dos enfermeiros durante a COVID-19.

No que se refere ao teste de autocorrelação de erro para análise de regressão, utilizou-se a estatística de Durbin-Watson, obtendo o valor de 1,896, indicando que não houve autocorrelação. Outrossim, identificou-se a ausência de multicolinearidade, apresentando como a tolerância para o teste: 842 - 920, superior a 0,1, e o fator de inflação da variância (VIF): 1,087 - 1,187, inferior ao nível de referência de 10.

DISCUSSÃO

A pandemia vivenciada pelos profissionais de saúde é uma situação completamente atípica, carregada de situações conflitantes, que se não reconhecidas em sua dimensão moral e ética podem levar o enfermeiro a tratá-la como normal, uma situação eticamente desafiadora. Estudo realizado com enfermeiros atuantes na clínica do adulto identificou que o não enfrentamento dos problemas éticos pode afetar negativamente a tomada de decisão ética e, consequentemente, a qualidade da assistência de enfermagem 24, levando ao sofrimento moral.

Nessa perspectiva, os profissionais identificaram um risco real de sofrimento moral durante a pandemia, evidenciado pela classificação de todas as implicações éticas com um grau de verdade. Tal condição é consistente com as descobertas internacionais durante a COVID-19, as quais apresentam um grau de risco para o sofrimento moral durante o período inicial da pandemia 16^,25. Essa abordagem dá à equipe uma exposição compartilhada das situações moralmente desafiadoras que levam ao sofrimento moral.

Os dados obtidos a partir dos itens relacionados às implicações éticas no fazer assistencial dos enfermeiros durante a COVID-19 desta pesquisa exemplificam situações relacionadas à pandemia propícias ao desenvolvimento de sofrimento moral, sendo influenciado, principalmente, por questões relacionadas ao cuidado, ao enfermeiro e à equipe e à instituição/gestão. Semelhante a esse achado, identificou-se que o sofrimento moral durante a pandemia é determinado por situações relacionadas ao paciente e família, à unidade de trabalho e à gestão de recursos das próprias organizações 7^-8^,15^,19.

Outrossim, evidenciou-se que o sofrimento moral identificado em enfermeiros pode ser causado tanto por situações específicas do fazer assistencial quanto ser desencadeado por causas que se estendem para os níveis de unidade/equipe e organização/sistema, destacando a importância de estratégias de enfrentamento voltadas a ações psicoeducativas como meio intervenção e treinamento para lidar com as situações de problemas éticos que levam ao sofrimento moral dos profissionais 25.

Mesmo diante do cenário de incertezas, verificou-se que os enfermeiros participantes deste estudo sentem a obrigação e a responsabilidade moral de prestar cuidados em situação de catástrofes, mesmo reconhecendo o direito de recusa de atendimento, caso a situação cause danos à própria saúde. Estudos com enfermeiros sobre dilemas éticos identificou que eles não reconheciam o direito de recusar desenvolver o cuidado se houver risco próprio, porém são motivados e influenciados por sua obrigação moral de tratar os pacientes e fornecer ajuda à sociedade israelense 26, demonstrando que a dimensão do cuidado vai além da doença, mas da responsabilidade do profissional com a situação de emergência em saúde pública.

Nossas descobertas demonstram que os profissionais referem estresse ao ter que comunicar o óbito de um paciente com COVID-19 por empatia com os familiares que não puderam se despedir. Semelhante ao resultado obtido nesta pesquisa, na Holanda se constatou que os níveis e as causas do sofrimento moral, bem como o clima ético identificado entre profissionais, estavam relacionados à incapacidade de fornecer atendimento psicossocial aos pacientes e suas famílias devido à necessidade do distanciamento social 27. Tal situação tem consequência adversa para a tomada de decisão ética compartilhada, o que reflete diretamente na humanização e qualificação da assistência.

Neste estudo, 70% dos profissionais se sentem preparados para atuar na linha de frente à COVID-19. Nesse sentido, pesquisa realizada com enfermeiros mostrou que 82,7% dos entrevistados afirmaram ter conhecimento e experiência para atuar na COVID-19 e que a instituição em que trabalham tinha diretrizes políticas claras para o tratamento de pacientes26. O treinamento adequado reduz os problemas éticos vivenciados por enfermeiros e está associado a níveis mais baixos de sofrimento moral19^,25^,28.

A falta de insumos foi um dos itens considerados pelos enfermeiros como agravantes do sofrimento moral. Da mesma forma, estudo multicêntrico realizado com profissionais da saúde da Etiópia 29 relatou que a falta de insumos e de apoio organizacional apresentou níveis mais altos para todas as medidas de sofrimento moral e risco para saúde mental dos profissionais.

Nas análises de relações entre o sofrimento moral e os problemas éticos, identificou-se que o sofrimento moral dos profissionais entrevistados é influenciado, principalmente, pela percepção das medidas hospitalares contra a COVID-19, seguida dos problemas éticos no atendimento a pacientes e pela percepção da estigmatização social. Evidenciando a amplitude das questões que levam ao adoecimento dos profissionais.

Nessa pandemia, os profissionais de saúde foram realocados dos seus setores, sendo submetidos a trabalhar em um ambiente clínico desconhecido e com pacientes com características e curso clínico que exigiam decisões críticas muito específicas. Tal situação pode fazer com que os profissionais não se sintam preparados para lidar com o cenário pandêmico carregado de problemas éticos e emocionais, uma variável relacionada ao sofrimento moral 2^,25^,27.

Nessa perspectiva, nos Estados Unidos, constatou-se a presença de sofrimento moral, Burnout e alterações na saúde mental dos enfermeiros durante a COVID-19, evidenciando que enfermeiros que vivenciam e reconhecem os problemas éticos sentem-se mais sobrecarregados e estressados, ​​podendo não ser capazes de fornecer os cuidados que gostariam aos pacientes gravemente enfermos, aumentando potencialmente o risco de sofrimento moral ou esgotamento, bem como sintomas de estresse pós-traumático, ansiedade e depressão 14^.

Os enfermeiros são protagonistas do cuidado ao paciente clínico durante a COVID-19, sobretudo no que se refere aos processos decisórios 7^,18. Diante disso, sua tomada de decisão exige sensibilidade moral para que consigam reconhecer e enfrentar os problemas éticos de forma a não resultar em sofrimento moral. A sensibilidade moral é uma habilidade fundamental que instiga os enfermeiros a identificar o componente ético e moral de cada situação vivenciada, diferenciando de circunstâncias corriqueiras da prática de enfermagem e os direcionando para a tomada de decisão moralmente adequada 30, e, consequentemente, reduzir a vivência do sofrimento moral.

Contudo, considera-se que este estudo apresenta contribuição para a prática clínica, uma vez que a utilização dos diferentes elementos identificadores dos problemas éticos vivenciados pelos enfermeiros corrobora uma prática assistencial pautada em valores éticos, individuais e profissionais como forma de auxiliar os profissionais a superar as dificuldades e interrupções em seu cotidiano de trabalho e, desse modo, reduzir o sofrimento moral. Destarte, é primordial que sejam oferecidos capacitações e treinamentos sobre a importância da ética no fazer da enfermagem a fim de promover maior qualificação que contribua para o reconhecimento e resolução dos problemas éticos e, assim, diminuir o sofrimento moral dos enfermeiros decorrente da estagnação perante as situações-problema 7^,18.

A pesquisa apresentou como limitações o fato de ser transversal, o que impede o estabelecimento de causa e efeito, demonstrando a necessidade de pesquisas longitudinais e com amostras maiores. Além disso, a generalização dos seus resultados, visto que foi realizado com uma amostra específica de enfermeiros de dois hospitais universitários selecionados por amostragem de conveniência durante a pandemia da COVID-19. Destaca-se a incipiência em pesquisa realizada no Brasil acerca dos problemas éticos vivenciados por enfermeiros em contexto de surtos, epidemias e pandemia, bem como a sua relação com o sofrimento moral. Assim sendo, mais pesquisas são necessárias para analisar essa relação nos diferentes contextos nacionais.

CONCLUSÃO

A pandemia de SARS-CoV2 representa um grande desafio a vários níveis: para a gestão da saúde pública, referente à descoberta de novos recursos terapêuticos e vacinais; aos hospitais, que precisaram readequar os recursos de forma a atender à demanda; e principalmente aos profissionais da saúde, que se submeteram a desenvolver o cuidado perante um cenário completamente arriscado e desconhecido, levando-os a experimentar uma gama de problemas éticos que podem levar ao sofrimento moral.

Os achados deste estudo identificaram que quanto maior a percepção dos problemas éticos, maior o risco ao sofrimento moral. Sendo os problemas éticos relacionados ao estigma, ao cuidado ao paciente e ao apoio organizacional mais associados ao sofrimento moral dos enfermeiros, evidenciando que as causas do sofrimento moral não estão apenas no nível do paciente, mas também nos níveis profissionais e do sistema de saúde.

Por fim, é importante destacar que a realização de pesquisas nessa área é extremamente necessária para entender seu impacto em longo prazo de forma a fornecer evidências científicas para o desenvolvimento de estratégias de reconhecimento e enfrentamento dos problemas éticos durante a pandemia atual e futuras emergências em saúde pública.

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NOTAS

• ORIGEM DO ARTIGO

  Extraído da tese - Problemas éticos no cotidiano de trabalho da enfermagem no cuidado a pacientes com COVID-19 em Hospitais Universitários. Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, da Universidade Federal do Rio Grande, em 2023.

• APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

  Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande, parecer n. 5.074.202. Certificado de apresentação para apreciação ética CAAE: 52592421.2.0000.5324.

Editado por

EDITORES

Editores Associados: Glilciane Morceli, Maria Lígia dos Reis Bellaguarda. Editor-chefe: Elisiane Lorenzini.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  28 Jul 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  07 Abr 2023
• Aceito
  07 Jun 2023