ENFERMAGEM E CUIDADO PALIATIVO ONCOLÓGICO EM UMA INSTITUIÇÃO DE REFERÊNCIA (2005 - 2006)

RESUMO

Objetivo:

analisar as estratégias empreendidas pelos enfermeiros do Hospital do Câncer IV para atuar em conformidade com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde.

Método:

estudo histórico e qualitativo realizado no Hospital do Câncer IV, unidade de referência e exclusiva de cuidados paliativos do Instituto Nacional de Câncer. A coleta de dados incluiu documentos escritos e seis depoimentos orais e foi realizada no período de agosto de 2020 a agosto de 2022. Os achados do estudo foram organizados e analisados em conformidade com o método histórico, que comportou a triangulação das fontes escritas, orais e o contexto em que foram produzidas.

Resultados:

a partir das referências do St. Christopher’s hospice e com o apoio do Grupo de Humanização da Unidade, as estratégias empreendidas pelos enfermeiros e evidenciadas nesta pesquisa foram: ampliação do Projeto de Capelania hospitalar e da Sala do Silêncio; investimentos em cursos de pós-graduação; capacitação profissional e cursos de atualização técnico-científica, na unidade e em outras instituições; participação em eventos, como organizadores, palestrantes e ouvintes; e atuação na Residência de Enfermagem.

Conclusão:

os enfermeiros empreenderam eficazes estratégias no campo da enfermagem oncológica, por meio da consolidação e difusão do conhecimento especializado em enfermagem oncológica no Brasil.

DESCRITORES:
Cuidados paliativos; História da enfermagem; Enfermagem oncológica; Institutos de câncer; Especializações; Enfermagem.

ABSTRACT

Objective:

to analyze the strategies undertaken by nurses at Hospital do Câncer IV to act in accordance with the World Health Organization guidelines.

Method:

a historical and qualitative study carried out at Hospital do Câncer IV, a reference and exclusive Palliative Care unit belonging to the National Cancer Institute. Data collection included written documents and six oral statements and was carried out from August 2020 to August 2022. The study findings were organized and analyzed in accordance with the historical method, which included triangulation of the written and oral sources and the context in which they were produced.

Results:

based on the references of St. Christopher's Hospice and with the support of the Unit's Humanization Group, the strategies undertaken by the nurses and evidenced in this research were as follows: expansion of the Hospital Chaplaincy Project and the Silence Room; investments in graduate courses; professional training and technical-scientific update courses, both at the unit and at other institutions; participation in events as organizers, speakers and listeners; and performance in the Nursing Residency Program.

Conclusion:

nurses undertook effective strategies in the Oncology Nursing field through the consolidation and dissemination of specialized knowledge in Oncology Nursing in Brazil.

DESCRIPTORS:
Palliative care; Nursing history; Oncology nursing; Cancer institutes; Specializations; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

analizar las estrategias adoptadas por los enfermeros del Hospital do Câncer IV para actuar en pleno cumplimiento de las directrices propuestas por la Organización Mundial de la Salud.

Método:

estudio histórico y cualitativo realizado en el Hospital do Câncer IV, una unidad de referencia y exclusiva de Cuidados Paliativos del Instituto Nacional del Cáncer. La recolección de datos incluyó documentos escritos y seis testimonios orales y fue realizada de agosto de 2020 a agosto de 2022. Los hallazgos del estudio se organizaron y analizaron de acuerdo con el método histórico, que incluyó triangulación de las fuentes escritas y orales y el contexto en el que fueron producidas.

Resultados:

a partir de las referencias del St. Christopher’s Hospice y con el apoyo del Grupo de Humanización de la Unidad, las estrategias adoptadas por los enfermeros y evidenciadas en este trabajo de investigación fueron las siguientes: ampliación del Proyecto de Capellanía hospitalaria y de la Sala del Silencio; inversiones en cursos de postgrado; capacitación profesional y cursos de actualización técnico-científica, tanto en la unidad como en otras instituciones; participación en eventos, como organizadores, exponentes y oyentes; y trabajo en el Programa de Residencia en Enfermería.

Conclusión:

los enfermeros adoptaron estrategias eficaces en el campo de la Enfermería Oncológica, consolidando y difundiendo el conocimiento especializado en Enfermería Oncológica en Brasil.

DESCRITORES:
Cuidados paliativos; Historia de la enfermería; Enfermería oncológica; Institutos de cáncer; Especializaciones; Enfermería

INTRODUÇÃO

Os cuidados paliativos, reconhecidos como um direito humano, são uma abordagem holística, centrada no paciente para cuidados na fase avançada da doença, proporcionando controle da dor, diminuição do sofrimento físico, psicossocial e espiritual, além do cuidado à família1^-2. Portanto, é importante que esses cuidados incorporem serviços que ajudem a atender às necessidades psicológicas, sociais e espirituais dos pacientes3^-4.

No Brasil, a partir da década de 1990, importantes alterações relacionadas à assistência em cuidados paliativos oncológicos se destacaram no campo da saúde. Em atendimento à Organização Mundial de Saúde (OMS), sustentavam objetivos relacionados à promoção da qualidade de vida por meio do alívio da dor e sofrimento, adoção de medidas de conforto e abordagem psicossocial e espiritual e física, capazes de proporcionar condições de compreensão da finitude da vida, em prol da qualidade de vida3^-4.

Dessa forma, frente à perspectiva crescente de demandas desses cuidados e à premência de políticas públicas de controle do câncer, nas décadas seguintes foram instituídas portarias para subsidiar e estimular a criação e o desenvolvimento dos cuidados paliativos, além de novas publicações internacionais e nacionais acerca do tema. Como base para o desenvolvimento desses cuidados em saúde pública, em anuência com a OMS, os países deveriam fortalecer esse serviço, pois se estima que, globalmente, apenas 14% dos pacientes que precisam deles de fato os recebem5.

Nesse cenário, e diante da magnitude que o câncer assumia mundialmente, nova publicação da OMS, em 2002, recomendou a implementação de programas abrangentes de cuidados paliativos para todos os países, enfatizando a importância de promover uma conscientização para o desenvolvimento desse perfil de assistência, priorizando o controle e alívio da dor, e garantia da morfina por via oral em todos os locais de atendimento em saúde. Reforçou, ainda, que o sistema de saúde dos países deveria incluir serviços substanciais de cuidados paliativos, pois sem eles a saúde não seria universal. A integração desses cuidados por meio dos programas de saúde também foi registrada pela Worldwide Hospice Palliative Care Alliance (WHPCA) como parte da Cobertura Universal de Saúde5^-6.

Em 2004, acompanhando o movimento nacional e internacional de cuidados paliativos, o Hospital do Câncer IV (HCIV), hospital exclusivo de cuidados paliativos oncológicos no Brasil, definiu sua missão: promover e prover cuidados paliativos oncológicos da mais alta qualidade, com habilidade técnica e humanitária, com foco na obtenção da melhor qualidade de vida a seus pacientes e familiares7. A referida missão visava o cumprimento de desenvolvimento de projetos que refletissem diretamente nas ações do cuidado, indo ao encontro de publicações, internacionais e nacionais, e registros da OMS, além de fortalecer a unidade como referência no cenário nacional.

No ano seguinte, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, durante conferência geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, incluiu o direito à morte com autonomia, dignidade e qualidade8. Nesse mesmo ano, iniciou-se, no HCIV, a reconfiguração da assistência e a reorganização dos serviços, com vistas ao processo de acreditação hospitalar junto ao Joint Commission International (JCI) e avanços na concretização de projetos internos relacionados à humanização em saúde, em busca do fortalecimento da excelência nos cuidados paliativos e da posição dos agentes no campo da oncologia no país.

Assim, os anos de 2005 e 2006 foram marcados por diversos investimentos e pela trajetória rumo à atuação em cumprimento das publicações, internacionais e nacionais, e à consolidação e divulgação do conhecimento especializado dos enfermeiros do HCVI/INCA.

Em paralelo às avaliações e atividades relacionadas à reconfiguração da assistência, os profissionais atuaram também na execução de projetos vinculados à humanização hospitalar, de acordo com padrões internacionais, tendo também como referência o St. Christopher’s Hospice. Nesses anos, conforme previa a Política Nacional de Humanização do Ministério da Saúde, foram intensificados investimentos no Projeto de humanização do INCA e o avanço de estratégias no eixo da humanização, com a finalidade de assegurar qualidade da assistência e de vida aos pacientes e familiares envolvidos no processo de cuidar9.

Assim, o conjunto de evidências sobre a importância dos cuidados paliativos aponta a relevância do tema em questão para a área da enfermagem, oncologia e história da enfermagem, pois, de acordo com a OMS, a demanda de cuidados paliativos aumenta em ritmo acelerado devido ao avanço do câncer e de outras doenças não transmissíveis; ao envelhecimento da população mundial e ao recente surgimento da COVID-196.

Diante do exposto, o presente estudo teve a seguinte questão principal: como os enfermeiros enfrentaram os desafios de reconfigurar os cuidados paliativos por eles prestados no Hospital do Câncer IV diante dos novos projetos institucionais relacionados ao eixo humanização? Assim, o objetivo do trabalho foi analisar as estratégias empreendidas pelos enfermeiros do HCIV para atuar em conformidade com as diretrizes da OMS e do Ministério da Saúde.

MÉTODO

Estudo histórico, de abordagem qualitativa, na perspectiva da História do Tempo Presente. As fontes históricas diretas do estudo são documentos escritos e orais. Os primeiros, localizados no Instituto Nacional do Câncer são constituídos por documentário do Serviço Nacional de Câncer, Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO e Relatório do Grupo de Humanização do Hospital do Câncer IV; já os segundos foram produzidos através de entrevistas semiestruturadas, realizadas no período de agosto de 2020 a agosto de 2022. As fontes indiretas, constituídas por artigos científicos produzidos sobre a temática, consubstanciaram a análise dos achados. Foram seguidas as diretrizes do COREQ.

O recorte temporal tem como marco inicial, o ano de 2005 quando foi publicada a Portaria nº 2.439/GM de 8 de dezembro do MS, que institui a Política Nacional de Atenção Oncológica, com vista a Promoção, Prevenção, Diagnóstico, Tratamento, Reabilitação e Cuidados Paliativos, a ser implantada em todas as unidades federadas. O marco final é 2006, ano que é inaugurado na unidade de referência exclusiva em cuidados paliativos oncológicos do INCA, um Projeto pioneiro no Brasil, planejado para desenvolver assistência qualificada, farmacológica e não farmacológica, o Day Care-Espaço Curiosação.

Os critérios de inclusão dos participantes foram: profissionais que ocuparam cargos de chefias no recorte temporal do estudo, qual seja, os anos de 2005 e 2006. Nesse período, oito enfermeiros ocuparam cargos de chefia. Destes, apenas um não participou do estudo, por motivos de saúde. Cinco participantes tiveram seus trechos de entrevistas aqui explicitados, cujo conteúdo relacionava-se diretamente ao objetivo do artigo.

Foi realizado um levantamento exploratório na instituição-cenário para identificar os profissionais que atenderiam os critérios de inclusão e posteriormente indicação de outros participantes dentro dos critérios (Bola de neve). Os participantes foram abordados através de e-mail e alguns pessoalmente.

O cenário foi o HCIV, unidade de referência e exclusiva de cuidados paliativos do Instituto Nacional de Câncer (INCA), no município do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, Brasil. O local das entrevistas foi definido pelos participantes e estas foram gravadas através de áudio e foram realizadas pela primeira autora do estudo treinada para esta atividade. O tempo médio foi de 236 minutos (aproximadamente 4 horas). Os participantes foram identificados com a letra E (entrevistado), acompanhado da numeração correspondente à ordem sequencial das entrevistas: E1; E2; E3, E4; E5.

Os achados do estudo foram organizados e analisados de acordo com o método histórico. Para a análise do corpus documental, as fontes escritas foram catalogadas a considerar a sequência cronológica dos fatos, seguidas de crítica externa e interna desses documentos, com vistas a garantir a sua autenticidade, legitimidade, veracidade e fidedignidade. Quanto às fontes diretas orais, as entrevistas foram submetidas à transcrição e validadas pelos colaboradores. A partir de então, o corpus documental foi submetido a procedimentos ativos de interrogação dos documentos, o que exigiu uma postura independente da versão oficial, permitindo evidenciar melhor o fenômeno histórico. A confiabilidade dos resultados foi assegurada com a valorização do conjunto documental e não dos documentos isoladamente. A análise dos achados constitui a síntese erudita e balizada da versão histórica aqui apresentada.

Ressalta-se que o estudo seguiu os preceitos éticos recomendados pelas Resoluções 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da instituição signatária. Cabe esclarecer que por tratar-se de pesquisa com metodologia histórica, cujos participantes ocuparam cargos de gestão em um determinado período de tempo, no TCLE foi explicitado que não seria possível assegurar o anonimato de todos os participantes. E nesse caso seria respeitado o direito de o mesmo declinar da entrevista, sem prejuízo de qualquer natureza.

RESULTADOS

A necessidade de atuação dos enfermeiros especialistas em cuidados paliativos oncológicos do HCIV, em conformidade com a literatura internacional, nacional e as diretrizes da OMS, determinou o empreendimento de estratégias em prol da humanização em saúde, na perspectiva de um Modelo de Gestão atinentes ao tema. Para o desenvolvimento dessas estratégias, a equipe de enfermagem contou com o apoio do Grupo de Humanização do HCIV, o qual, de acordo com o Relatório do Grupo de Humanização do HCIV, era liderado por uma enfermeira e contava com um assistente social e um auxiliar administrativo.

Na elaboração e implementação dessas estratégias, no que diz respeito à reconfiguração do ambiente hospitalar, os enfermeiros se respaldaram nos princípios dos cuidados paliativos prescritos pela OMS e no Relatório do Grupo de Humanização do HCIV. Nesse relatório, o grupo enfatiza que humanizar é também buscar talentos, e que as ações com a finalidade de humanização devem ser ininterruptas.

Além da reestruturação dos setores com vistas à continuidade de ajustes necessários ao cumprimento dos padrões de excelência do cuidado, merece destaque a conclusão do Projeto de Capelania Hospitalar, que representou a criação de um espaço para o compartilhamento da fé religiosa no enfrentamento de dificuldades, medos, frustrações e desapontamentos. O propósito desse espaço era apoiar a construção de uma vida positiva, valorizando a dimensão espiritual do ser humano hospitalizado. Uma das entrevistadas tece considerações favoráveis ao novo espaço no tocante à importância para o bem estar do paciente e a visibilidade angariada pelo seu ineditismo no hospital: [...] a Capelania foi maravilhosa dentro do HCIV [...] um espaço novo que as pessoas iam para se encontrar com elas mesmas [...] ninguém tinha um serviço daquele e as pessoas queriam conhecer aquilo [...] veio gente das outras unidades [das outras unidades do INCA] [...] foi muito bom para os pacientes [...] as pessoas se encontravam espiritualmente naquele lugar e se sentiam curadas em muitas dores que o remédio não curava [...] era a oportunidade do cuidado sem medicação [...] (E5).

O Projeto mencionado constitui-se, originalmente, como um espaço para a atuação de líderes religiosos, os quais são detentores de habilidades específicas referentes a uma determinada religião. No entanto, os enfermeiros reconheceram nesse espaço, a importância de incorporá-lo como parte do cuidado de enfermagem, orientando aos pacientes sobre as vantagens de estarem com seus líderes religiosos. A seguir, destaca-se o fragmento da fala de uma das entrevistas sobre a incorporação da capelania no cuidado de enfermagem: [...] nós [enfermeiros] mantínhamos busca ativa na parte da manhã e da tarde, nos andares da enfermaria, com uma abordagem aos pacientes e familiares para explicar o Projeto da Capelania, a possibilidade de estarem com um líder religioso da sua confiança e aproveitarem esse momento voltado para a espiritualidade deles e como parte do tratamento, também [...] tudo era registrado no prontuário como parte do cuidado da enfermagem [...] todos da equipe eram responsáveis pela divulgação do espaço, fazer o paciente ser cuidado na Capelania [...] (E2).

Também foi criada a Sala do Silêncio, em 2004. Era uma sala de relaxamento, com música ambiente e acomodações confortáveis. Os enfermeiros também incorporaram o uso dessa sala no planejamento dos cuidados de enfermagem, conforme descrito no relato abaixo: [...] a gente levava os pacientes [...] isso era uma forma de cuidado com eles [...] pensávamos em tudo que podíamos oferecer pra melhorar o tempo deles lá dentro [no HCIV] [...] a gente não cuidava somente com remédio [...] (E3).

Além dos benefícios desses espaços terapêuticos e humanizados para os pacientes e seus familiares ou acompanhantes, os enfermeiros também utilizavam esses ambientes durante a jornada de trabalho, para descanso físico, emocional e mental. Essa pausa era uma forma de autocuidado que poderia contribuir para a prestação de um cuidado humanizado. O excerto da fala da entrevistada evidencia essa afirmação: [...] lá era um lugar de repor as energias e até pensar sobre como eu estava atendendo meus pacientes [...] pensar como poderia melhorar na parte da assistência e oferecer um cuidado de excelência, que refletisse da melhor forma na vida do meu paciente [...] (E1).

Eles também utilizaram como estratégia o investimento no aprimoramento em cursos de Pós-Graduação Lato e Stricto Sensu, na temática de cuidados paliativos. Essa estratégia, ao mesmo tempo em que lhes possibilitava a atualização dos conhecimentos, também legitimava a competência para atuação especializada. O fragmento da fala de uma das entrevistadas evidencia o reconhecimento dos estudos como chancela para a atuação em cuidados paliativos no HCIV: [...] estudava muito [...] tinha muitas colegas [enfermeiras] que faziam cursos, mestrado, especialização, pós-graduação e tudo que tinha na área [...] a enfermagem sempre teve muito apoio para aprender, fazer quantos cursos e especializações a gente quisesse [...] tinha muitas colegas que tinham muitos títulos e estudavam bastante [...] (E4).

Os enfermeiros também empreenderam estratégias no sentido de se atualizarem por meio de treinamentos, cursos de curta duração, oficinas, além da organização de eventos científicos no hospital. O depoimento abaixo evidencia essa estratégia: [...] teve muito investimento nas questões das aulas [para capacitação dos profissionais de enfermagem do HCIV] [...], tinha muita aula de dor, muita aula de hidratação subcutânea, muita aula de cuidados ao fim da vida [...] tivemos [as enfermeiras] cursos de atualização, sempre fizemos [participação como alunas dos cursos] [...] a Dra. Cláudia [diretora do HCIV à época] sempre procurou fazer [os cursos internos] e sempre dava oportunidade para as pessoas que quisessem fazer algum curso fora atuação profissional mesmo [...] muito bom [...] elas estavam sempre dando cursos [...] (E5).

Os eventos científicos que foram promovidos no HCIV, além de constituírem oportunidades de estudo e pesquisa para a equipe de enfermagem, também representaram a oportunidade de divulgar a relevância do enfermeiro, em especial do HCIV, no cuidado humanizado ao paciente em paliação. O depoimento abaixo evidencia o reconhecimento profissional dos pares, angariado pelos enfermeiros do HCIV, reforçado pelos convites para palestras em âmbito nacional: [...] fazíamos muitos eventos dentro da unidade [do HCIV] [...] teve a Semana de Enfermagem no INCA e a do HCIV, uma Jornada de Bioética, Fórum da Dor [...] nossa Semana da Enfermagem foi muito divulgada e os enfermeiros tiveram muita autonomia desde a organização, como palestrantes nas mesas cientificas, cursos e toda essa parte cientifica [...] estava sempre cheio [...] tinha alunos, enfermeiros de outros hospitais e até de outras cidades [...] a gente ouvia as pessoas falando que se planejavam para participar dos eventos que aconteciam lá [no HCIV] porque era visto como uma referência de cuidados paliativos no Brasil [...] assisti muitas palestras e dei muitas palestras [...] éramos chamadas para palestrar porque as pessoas queriam ouvir sobre a nossa realidade de cuidados paliativos [...] nosso trabalho era impecável, cheio de novidades que nenhum outro hospital do país tinha [...] (E4).

O conhecimento das enfermeiras também foi disseminado para a formação de pós-graduação por meio da Residência em Enfermagem no HCIV, além de convites para ministração de aulas em outras unidades do INCA. Os excertos abaixo atestam essa afirmação: [...] dei aula para os residentes de enfermagem aqui [no HCIV] (E5). [...] também ia para o INCA [nas outras unidades] dar aula para Residente de enfermagem [...] era chamada pela DTC [Divisão Técnico Científica] [...] (E3).

Como registrado, foi possível o desenvolvimento de estratégias que culminaram em um cuidado humanizado ao paciente com necessidade de cuidados paliativos. Ademais, a execução dessas estratégias disseminou a importância do enfermeiro nesse espaço de atuação.

DISCUSSÃO

De acordo com a OMS, a definição de cuidados paliativos compreende “a prevenção e alívio do sofrimento de pacientes e suas famílias que atravessam complicações inerentes a doenças ameaçadoras da vida”6^:13. Essas complicações causam sofrimento físico, social, emocional e espiritual, e por isso os cuidados paliativos devem ter como pilares a oferta de cuidados humanizados e integrais3^-5.

As estratégias empreendidas pelos enfermeiros do HCIV relacionadas à assistência em cuidados paliativos visavam o cumprimento das Diretrizes da OMS, em consonância com as publicações internacionais e nacionais sobre humanização. O St. Christopher’s Hospice, na Inglaterra, também serviu como referência para o empreendimento dessas estratégias.

Estas tinham como foco o eixo da humanização na unidade, e a consolidação e difusão do conhecimento especializado, a fim de ofertar uma abordagem holística e também de atender aos investimentos institucionais iniciados em 200410. Estudos recentes destacam que a atuação dos enfermeiros tem um papel fundamental na prestação de cuidados paliativos qualificados aos pacientes e suas famílias11^-13.

Com isso, buscou-se trazer a importância da realização de uma assistência ampliada - isto é, para além de medidas farmacológicas - e de excelência, voltada para os pacientes sem possibilidade terapêutica e para seus familiares. Vale pontuar que as medidas de conforto são desenvolvidas pela enfermagem que acompanha a sua ação ao longo de todo o ciclo vital, independentemente da existência de uma perspectiva curativa13.

Uma das estratégias em prol do cuidado humanizado que abarcasse todas as dimensões do paciente foi a consolidação do Projeto de Capelania Hospitalar, em 200510. Este teve como modelo o projeto já existente no St. Christopher’s, de autoria de Cicely Saunders. Essa estratégia foi importante porque a espiritualidade desempenha um papel fundamental para o cuidado, pela sua definição como uma jornada de autodescoberta e de busca pelo sagrado, significado e propósito da vida. Os pacientes vivenciam o processo da doença, cuidado e morte de acordo com seus valores, crenças, cultura e experiências, pois, os sintomas, no câncer avançado, pioram ao passo que a doença progride, impactando pacientes e cuidadores familiares14.

O referido projeto passou por adaptações para que seu desenvolvimento ocorresse de acordo com a realidade do HCIV. Em relação a essas adaptações, foi desenvolvido e implementado um formulário próprio, para registro do acompanhamento dos pacientes que utilizassem a Capelania, sendo este incorporado ao prontuário para que toda a equipe se apropriasse da rotina desse serviço e pudesse integrar ações relacionadas a ela. Os registros também eram realizados pelos líderes religiosos e voluntários e inseridos aos prontuários, com o intuito de documentar a rotina da assistência espiritual. Dessa forma, possibilitavam a ampliação do cuidado considerando aspectos da religiosidade na conduta terapêutica.

Em relação à atuação da enfermagem no Projeto, foram implementadas ações regulares de cuidado em cumprimento de seus objetivos e apoio espiritual. Conforme apresentado, os profissionais realizavam busca ativa aos pacientes e familiares nas enfermarias, em todos os turnos de plantão, e padronizaram uma abordagem direta, documentando a prática em prontuário. A abordagem contava com a visitação regular leito a leito, a fim de que os pacientes pudessem suportar, com ânimo e esperança, a estada no hospital, descobrindo no tempo de dor e convalescença a oportunidade para vida, reavaliando-a e tomando novos rumos. A abordagem espiritual do paciente estava em conformidade com o preconizado pela OMS quando redefiniu, em 2002, o conceito de cuidados paliativos, incluindo neles a parte espiritual5.

A Sala do Silêncio, como foi nomeado um dos projetos consolidados, que por suas características de ambiente agradável e acolhedor, também contribuía para promover um cuidado holístico pela equipe enfermagem, valorizando medidas não farmacológicas para o alívio da dor e outros sintomas. Os relatos dos enfermeiros enfatizaram as melhoras significativas do paciente, tanto do ponto de vista físico como emocional. Tais melhorias facilitavam a comunicação adequada entre enfermeira, paciente e família, a base para o esclarecimento e a aceitação do diagnóstico, além de permitir planejar a assistência de modo que atendesse as necessidades do paciente e, assim, poder aceitar o processo saúde-doença, buscando um bem-estar de corpo e alma15.

Assim, as ações implementadas visando o cuidado holístico e humanizado, de natureza física, psicossocial e espiritual, foram adequadas e eficazes para a consolidação do conhecimento especializado de enfermagem em conformidade com as publicações científicas internacionais e nacionais. A literatura reforça que é importante fornecer cuidados de enfermagem paliativos acessíveis, aceitáveis, de qualidade e com boa relação custo-benefício para todos que precisarem, sempre que necessário16.

Alguns participantes consideraram o desenvolvimento de ações assistenciais humanizadas, aquelas que iam ao encontro das recomendações da OMS. Dentre essas, citam-se as que se refletiam diretamente no cuidado, tais como a oferta de um ambiente acolhedor e confortável, contato com música, ambiente agradável e relaxante com uma fonte de água, e a disponibilidade de um caderno para o paciente registrar seus pensamentos, dores e sentimentos. A música pode beneficiar pacientes no manejo da dor, na redução do nível de ansiedade, depressão, aumento da consciência espiritual, além de proporcionar um sentimento geral de felicidade, esperança e amor, atendendo às necessidades psicossociais e para melhora da qualidade de vida17^-18. Os cuidadores também passam por situações de estresse e esgotamento, sendo o uso da música utilizado também para amenizar suas preocupações19.

A participação significativa e protagonista dos enfermeiros na implementação e desenvolvimento dos projetos permitiu que a equipe adquirisse conhecimento especializado sobre o tema, conferindo-lhe reconhecimento profissional no campo da Oncologia. Eles também operaram como difusores de um conhecimento especializado em outras instituições do país, fortalecendo-se como referência nacional.

Nesse contexto, o envolvimento dos enfermeiros ocorreu por intermédio de ações que os estimulavam no sentido de consolidar e difundir conhecimento técnico e científico, por meio de investimentos em cursos de Pós-Graduação Lato e Stricto Sensu. Essas estratégias já atendiam o que seria preconizado pela OMS acerca da necessidade de educação em cuidados paliativos em três níveis de treinamento: básico, para todos os profissionais de saúde; intermediário, para aqueles que trabalhavam rotineiramente com pacientes acometidos por doenças que ameaçam a vida; especializado, para os profissionais atuantes com os pacientes que manifestam sintomas mais complexos, atuação em gestão, ou para aqueles que ensinavam esses cuidados e os que se dedicavam a pesquisa científica5. A resolução da WHPCA também registrou a educação em cuidados paliativos como uma exigência6.

Alguns participantes também narraram a participação em cursos, na qualidade de ouvintes e representantes da enfermagem do HCIV, no Instituto e em instituições externas. A organização, a liderança e a participação em eventos científicos foram estratégias que contribuíram para o reconhecimento da competência da enfermagem do HCIV/INCA, produto de investimento na materialização de um conhecimento profissional especializado. Isso proporcionou autoridade para definir as regras do jogo, através das normatizações e participações nos principais processos na instituição e, em contrapartida, fortalecer as estratégias para difundir o conhecimento especializado desse grupo de agentes nos espaços externos.

Tais investimentos possibilitaram a sustentação de suas posições de poder na unidade e em âmbito nacional, ou seja, um reconhecimento institucional, voltado para uma assistência altamente qualificada para o HCIV e para outras unidades oncológicas no Brasil. Nesse sentido, considera-se que o conhecimento dos enfermeiros contribui para o cuidado holístico dos pacientes com doenças crônicas e cuidados paliativos no final de vida, como também para suas famílias, pois a posse de informações e habilidades adequadas é essencial ao lidar com o processo de morrer20^-21. Nesse espaço, o enfermeiro ratificou a sua importância para a implementação do cuidado humanizado aos pacientes com necessidades de cuidados paliativos, oferecendo apoio e assistência ampliada para o enfrentamento da doença.

A evidência cabal a respeito do fortalecimento da unidade como referência nacional se pauta nas providências, iniciadas em 2004, para o alcance das metas relativas ao planejamento do HCIV no movimento da acreditação hospitalar pela certificação internacional de excelência. Nesse mister, no ano de 2005, a chefe da Divisão de Enfermagem, Fátima Vinhas, em parceria com os enfermeiros e com o apoio da então diretora, a médica Cláudia, elaboraram um planejamento para a enfermagem cumprir tais metas10^,22.

A presença dos enfermeiros nos espaços institucionalizados de saber em oncologia, proferindo palestras em eventos científicos externos, simbolizava o reconhecimento de competência pelos seus pares e pelos demais profissionais que ocupavam posições de poder, responsáveis pela aquiescência do convite. Ademais, as discussões científicas nesses eventos permitiam que os profissionais presentes, mesmo aqueles que não atuavam em cuidados paliativos, pudessem incorporar conhecimentos sobre o tema, pois é essencial que a qualquer enfermeiro seja ensinado pelo menos um nível básico de cuidados paliativos, uma vez que esse conhecimento respaldará a atuação com pessoas suscetíveis a receber esse tipo de atenção, independentemente da área em que desenvolva sua atividade profissional23.

Outro cenário narrado pelos participantes para a difusão dos conhecimentos foi a Residência/Especialização de Enfermagem, vinculada ao INCA, que tinha o espaço social do HCIV como cenário em um dos módulos. Nesse movimento, a difusão do conhecimento científico pela Enfermagem do HCIV dentro da própria unidade abarcava, para além da participação do ensino, a oferta de aulas para enfermeiros residentes no HCIV e também nas outras unidades hospitalares do INCA. Assim, as possibilidades de atuação se configuravam pela posição ocupada pelos enfermeiros nos espaços internos e externos. Recomenda-se uma cooperação perfeita entre serviços de cuidados paliativos e instituições, para garantir que a educação de graduação e pós-graduação seja baseada em uma avaliação contínua dos requisitos de competência no campo dos cuidados paliativos24.

Esse foi um dos relevantes momentos no fortalecimento do espaço profissional, cujas evidências revelam o reconhecimento de um saber especializado e a importância de o compartilhar nacionalmente, para, assim, respaldarem também outras instituições a atuarem em conformidade com o preconizado pela OMS e sustentarem uma visão holística do cuidado nos diferentes níveis assistenciais da saúde.

Nesse espaço científico, interno e externo ao HCIV/INCA, para além de agregar e difundir conhecimento na área, os enfermeiros do HCIV estabeleceram uma rede com outros profissionais, também em importante posição e/ou em formação, o que lhes conferia a ampliação das relações profissionais, pois a existência de uma rede de relações é o produto do trabalho de introdução e manutenção necessária para produzir e reproduzir relevantes e duráveis relações, aptas a proporcionar lucros materiais ou simbólicos25. Ademais, estudos apontam que a equipe de saúde é um fator importante para o aumento do senso de dignidade humana dos indivíduos em cuidados paliativos, o que favorece a valorização dos cuidados diretos e indiretos importantes para essas pessoas26^-29.

Os anos de 2005 e 2006 foram de inúmeras mudanças para o cuidado de enfermagem e para a realidade da unidade que se adaptava aos moldes de um hospice internacional, sendo esse processo de adaptação um fator muito destacado pelas participantes. As diversas possibilidades de atuação desse grupo de enfermeiros configuravam a posição construída através de estratégias de ação do mesmo grupo nos espaços internos e externos ao HCIV/INCA.

Considerando o cenário atual de envelhecimento populacional, o avanço das doenças crônicas não transmissíveis, bem como oncológicas, e a importância dos cuidados paliativos5. a presente pesquisa contribui para a compreensão da trajetória da atuação do enfermeiro nesta modalidade de assistência, destacando o seu protagonismo atrelado às estratégias de difusão e consolidação do seu conhecimento especializado para o atendimento de uma assistência de qualidade com foco na humanização.

Nesse sentido, este estudo possibilita o investimento em outros estudos relacionados aos cuidados paliativos oncológicos em contextos históricos diversos, pois, existe a estimativa de que até o ano de 2060 a necessidade de cuidados paliativos no final de vida dobrará. Logo, evidencia-se a gestão em saúde como importante desafio em função da elevada demanda para essa população. O Brasil será o sexto país no mundo em número de idosos, podendo chegar a 32 milhões30.

Como limitação do estudo, deve-se considerar a possibilidade de que, em outras pesquisas, sejam localizadas outras fontes históricas, a despeito de a coleta dessas fontes nesta pesquisa ter ocorrido de maneira ampliada, sistemática e criteriosa, conforme prevê o método histórico.

CONCLUSÃO

O estudo evidenciou o protagonismo do enfermeiro na implementação e consolidação dos projetos no HCIV, pois estes, além de sustentarem a enfermagem como porta-vozes do discurso autorizado sobre cuidados paliativos, influenciaram absolutamente no contexto em que a unidade estava estabelecida enquanto unidade de referência em âmbito nacional para cuidados paliativos oncológicos.

O HCIV se constituiu como um cenário profícuo ao desenvolvimento de estratégias pelos enfermeiros, para a consolidação e difusão do conhecimento especializado. Para que a unidade se firmasse como liderança nacional e atuasse em cumprimento com as publicações científicas internacionais e nacionais e as diretrizes da OMS, era preciso que a enfermagem se fortalecesse para sustentar sua posição no campo dos cuidados paliativos nacional, o que ocorreu com as estratégias desenvolvidas.

Conclui-se que, no HCIV, os enfermeiros empreenderam estratégias eficazes frente aos desafios que se impunham em prol do cuidado paliativo de enfermagem, para atuar em cumprimento com as publicações internacionais e nacionais e as diretrizes da OMS. Isso culminou no reforço da ocupação de suas posições nesse espaço, transformando-o e contribuindo para a humanização hospitalar, de acordo com padrões internacionais.

É relevante destacar que o esforço e a autoridade das enfermeiras permitiram a consolidação da abordagem holística centrada no paciente, com vista aos cuidados paliativos oncológicos na fase avançada da doença, proporcionando-lhes controle da dor, do sofrimento físico, psicossocial e espiritual e, desse modo, atendendo ao eixo humanização, necessário para o credenciamento do HCIV Joint Commission International. Nesse sentido, o HCIV representa um importante cenário para o desenvolvimento e aplicação de conhecimentos especializados nos âmbitos assistenciais, de ensino e na produção científica da unidade enquanto unidade de referência no cenário da saúde no Brasil.

REFERENCES

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NOTAS

• ORIGEM DO ARTIGO

  Extraído da tese - O Hospital do Câncer IV como lócus da atualização do capital científico dos enfermeiros em cuidados paliativos oncológicos no Brasil (2005-2006), apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Escola de Enfermagem Anna Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2023.

• FINANCIAMENTO

  O presente trabalho foi realizado com apoio da coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

• APROVAÇÃO DE COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

  Aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery e Hospital Escola São Francisco de Assis da Universidade Federal do Rio de Janeiro parecer n. 4.141.019, Certificado de Apresentação para Apreciação Ética 33612720.2.0000.5238.

Editado por

EDITORES

Editores associados : José Luís Guedes dos Santos, Ana Izabel Jatobá de Souza. Editor-chefe: Elisiane Lorenzini

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  17 Nov 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  15 Maio 2023
• Aceito
  31 Jul 2023