Acessibilidade / Reportar erro

Utopia possível

RESENHA DO LIVRO

Utopia possível

Francisca Bezerra de Oliveira

Professora assistente do Departamento de Enfermagem do Campus V da Universidade Federal da Paraíba. Doutoranda da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

Jardins de Abel - Desconstrução do Manicômio de Triestre de Denise Dias Barros. São Paulo: Edusp/Lemos Editorial, 1994. 155p.

Historicamente, a psiquiatria tem se constituído como um campo polêmico e contraditório. Para Franco Basaglia, considerado um dos maiores psiquiatras sociais deste século, este saber legitima a exclusão do louco da sociedade, silencia-o para manter a ordem social. Estas afirmações são formuladas em seu livro A Instituição Negada, obra que procura descrever a prática antinstitucional ocorrida no manicômio de Gorizia e que ensaia os primeiros passos para uma transformação radical da instituição psiquiátrica, sinalizando o que será a experiência de Triestre, com repercussões em vários países. Constitui-se em documento-chave para se compreender os movimentos psiquiátricos ocorridos no Brasil, na década de 70, e serve de subsídios básicos para uma melhor apreensão de Jardins de Abel.

As duas experiências iniciaram-se sob a batuta de Franco Basaglia. O movimento de desinstitucionalização revelou o manicômio como "locus" de uma psiquiatria que é administração das figuras da periculosidade social, marginalidade, improdutividade e radicalizou as denúncias sobre a violência da instituição psiquiátrica. Criou, igualmente, perspectiva para a desmontagem do manicômio de Triestre, entendida como desconstrução de materialidades e dos saberes médico-psicológicos.

É esta experiência triestrina que Denise Dias Barros procura com ousadia delicada explicitar em Jardins de Abel: Desconstrução do Manicômio de Triestre. Este estudo foi originalmente realizado como dissertação de mestrado em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo sob orientação do Professor Edgard de Assis Carvalho.

Mergulhada como verdadeira etnógrafa, em Triestre, nos anos 88/89, Denise narra fatos datados no espaço e no tempo, norteados sob a égide das idéias de Basaglia e por proposições de pensadores de correntes filosóficas diferenciadas. O texto nos convida a duvidar de certezas evidenciando o que Foucault assinalou de que a loucura como desrazão é um discurso e não a verdade.

Descrever a experiência de Triestre, ainda hoje em plena atividade, não constitui tarefa fácil, exatamente pela riqueza multifacetada dos seus conteúdos e significados básicos. Mas a autora o faz com competência, instiga o debate em um campo que vem passando por profundas reformulações. O enfoque principal é a apreensão das estratégias e dos momentos significativos do processo de transformação institucional que se desenvolveu no período compreendido entre 1971, início da experiência, e 1978, quando foi aprovada pelo parlamento italiano a Lei nº 180.

Nesta obra está presente a necessidade de renovação e democratização de saberes e práticas, em busca de uma nova psiquiatria, de uma nova cultura de como lidar com a loucura, de como construir um sistema de atendimento psiquiátrico que possibilite a produção de vida, singularidades, de novos espaços de relação. A história de Jardins de Abel transcende a sua especificidade historiográfica.

Por tudo isso, Jardins de Abel é, sem dúvida, dos mais instigantes trabalhos de configuração de um campo da assistência particularmente importante e de enorme oportunidade para todos os que trabalham com a loucura. Vem preencher a quase-ausência em português sobre a atual situação em Triestre, cujo conhecimento é de importância fundamental ara o movimento pela Reforma da Psiquiatria do Brasil.

Assim, este estudo parafraseando Adorno é algo especial, é digno de ser contado e inaugura um espaço ético-social de discussão voltado para um novo paradigma de ciência como postula Souza Santos, "um conhecimento prudente para uma vida decente". Um conhecimento que compreenda a criação de micropolíticas sociais em que convivam iguais e diferentes, singulares e plurais. Utopia possível! Cremos que sim. Ninguém melhor que Roland Barthes expressa o sentido desta utopia ao defini-la como "a de um mundo onde só houvesse diferenças, de modo que diferenciar-se não fosse mais excluir-se". São as utopias que impedem o absurdo de tomar conta da história.

Enfim, este é um livro sobre a prática inovadora no campo psiquiátrico. Uma pesquisa que nos convida a abandonar os conformismos intelectuais e pensar em psiquiatria como uma invenção humana que só tem sentido se servir para melhorar a vida de humanos com certeza cumprira suas finalidades como texto de apoio e de consulta para todos aqueles que se dedicam ao ensino da saúde mental e da assistência psiquiátrica. Sugerimos como leitura complementar o livro Psiquiátrica Social e Reforma Psiquiátrica de Paulo Amarante (org), FIOCRUZ, 1994, 202p. Um estudo constituído de textos relevantes na área psiquiátrica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1996
Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
E-mail: rlae@eerp.usp.br